
Contemplações
Francisco Gil
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Podemos parodiar o Astérix?
«Por Toutatis!» Lewis Trondheim realiza uma releitura dos heróis de Goscinny e Uderzo sem autorização…
O autocolante
exibido de forma proeminente no álbum
dá o tom: “Atenção! Isto não é um álbum
de Astérix. Parodix!” No entanto, a
capa mergulha o leitor num mundo
familiar: vemos Obélix e as suas curvas
generosas, podemos ver o venerável
Panoramix, e no fundo podemos ver as
cabanas da famosa aldeia gaulesa. Mas
alguns pormenores curiosos farão muita
impressão ao leitor: Astérix tem uma
cabeça de coelho, orelhas grandes e
pernas longas! Por Toutatis! é uma
banda desenhada desconcertante, a
primeira do seu género na história da
lendária série de Goscinny e Uderzo,
que começou em 1959. Enquanto o pequeno
gaulês é um vencedor para as Éditions
Albert René (Hachette), o lançamento
deste “objeto impresso” suscita muitas
questões. O autor desta variação não
autorizada, Lewis Trondheim, não é um
desconhecido. Co-fundador, em 1990, da
editora L'Association, este artista
talentoso sempre gostou de provocações.
Mas com o Astérix, muda de roupa. O seu
personagem favorito, Lapinot (um
coelho), é impelido, para seu grande
espanto, para as calças do pequeno
herói gaulês, e descobre que a morte
também existe nesse mundo supostamente
encantado. Sob o seu olhar horrorizado,
Obélix esmaga os cérebros dos
legionários romanos entre os seus
punhos de ferro – “Isso! É a guerra”.
O álbum está centrado na
impostura de um pseudo-deus gaulês com
tons melancólicos, que veio roubar o
segredo da poção mágica para resolver a
crise ecológica e as desigualdades
sociais e económicas que se banqueteiam
no mundo real. Mas, entre a homenagem e
a paródia, o uso da violência que
Goscinny odiava é bastante perturbador.
Para Trondheim, “Asterix já é uma
paródia às Guerras das Gálias de Júlio
César, e uma paródia de uma paródia
significa fazer algo “realista”.
Portanto, se há uma guerra entre
romanos e gauleses, há sangue e morte.
A violência que utilizo está lá para
surpreender e fazer rir o leitor
através do choque transgressivo, mas
também para questionar a violência na
ficção”.
A edição francesa desta
obra em 2022, não teve o acordo dos
detentores dos direitos autorais de
Astérix, as Éditions Albert René.
Segundo o autor, foram enviadas todas
as páginas como cortesia ao diretor das
Éditions Albert René, para que não
descobrisse o livro no último momento.
Trondheim perguntou ao seu advogado se
o álbum era de facto uma paródia, uma
prática autorizada, embora não
utilizada com frequência, e ele
respondeu sim, sem ambiguidade. Quando
questionado sobre isto, Surugue,
diretor das Éditions Albert René
confirmou, lembrando que esse jogo pode
ser perigoso: “Relativamente ao álbum
Lapinot, as Éditions Albert René não
deram absolutamente nenhuma
autorização. Todavia, não hesitaremos
em tomar todas as medidas necessárias
contra qualquer obra que utilize
indevidamente elementos específicos do
universo Asterix, crie confusão ou seja
semelhante à contrafação.”. Depois do
Astérix, Trondheim pensa ainda mais:
“Se eu tiver uma boa ideia com o
Tintin, não hesitarei. Afinal, ainda
sou um pirralho…
A Edição
portuguesa d’As novas aventuras de
Lapinot, estarão à venda a partir de 18
de abril de 2023 através da editora Ala
dos Livros. Confira aqui:
https://www.aladoslivros.com/index.php/loja/vm-portutatis-detail
*com Romain Brethes
Uma Obra fora do seu tempo
- Partilhar 09/03/2023
«O Desterrado» é a obra da
vida do seu autor, António Soares dos
Reis — a sua obra-prima!
É, também, um marco no
panorama da escultura portuguesa da
segunda metade do século XIX, elevando
o academismo da época a um nível
superior. A obra foi começada em
Itália em 1872 (para onde Soares dos Reis havia
ido estudar como bolseiro e onde teve oportunidade de
desenvolver e cimentar a sua formação
académica clássica) e terminada no
Porto.
Uma das suas fontes de
inspiração, terá sido
«O desespero» de
Joseph Perraud, de 1861 (Museu
d’Orsay), exposta no Salon de 1869 com
grande sucesso e que impressionou a
sociedade da época pela sua força e
delicadeza.
A obra de António
Soares dos Reis, «O Desterrado», é uma estátua, em tamanho
natural, de um jovem nu, sentado num
penhasco de rocha que o mar vem beijar
(visível no
detalhe da espuma que se
esvai contra a rocha e das pequenas
conchas na base do rochedo).
O corpo e
o rosto do jovem homem são de uma
perfeição clássica, idealizada, e
trabalhada com mestria pelo escultor
que neles evidenciou todo o seu
virtuosismo. A modelação anatómica é de
um primoroso realismo técnico que
acentua cada músculo, cada tendão, cada
ruga, cada textura. No entanto,
contrastando com o vigor físico que a
juventude e as formas harmoniosas lhe
conferem, tudo o mais, neste jovem,
transmite abandono, desalento, tristeza
e solidão...
A beleza física acentua o
abatimento psicológico em que o jovem
se encontra mergulhado. No corpo nu
sentado, os ombros, meio arqueados,
inclinam o tronco ligeiramente para a
frente; a cabeça cai-lhe sobre o ombro
esquerdo como se incapaz de suportar o
próprio peso; o rosto olha sem ver,
alheio a tudo o que é exterior e apenas
atento à realidade interior. Os braços,
num movimento contrário ao da cabeça,
unem-se sobre o joelho direito
levemente erguido, entrecruzando os
dedos num gesto maquinal; a perna
esquerda pende com todo o seu peso ao
longo da rocha. A postura de desalento
é reforçada pelo retraimento em relação
ao mundo exterior, o que sobressai do
rosto alheado, do olhar vazio, das mãos
enoveladas, dos ombros encurvados, das
pernas cruzadas...
Colocando o "seu"
Desterrado numa postura estática,
Soares dos Reis orientou, contudo, a
composição por duas linhas diagonais,
contrárias e divergentes: uma, a
dominante, vai do ombro direito à ponta
do pé esquerdo; a outra, mais pequena,
une a cabeça às mãos entrecruzadas. Se,
todavia, estas linhas não acrescentam
movimento à estátua, servem, isso sim,
para acentuar a tensão
interior-exterior, físico-espírito.
Enriquecem-na, também, plasticamente,
aumentando o jogo de cheios e vazios e
os contrastes de luz/sombra que as suas
múltiplas "vistas" proporcionam.
Obra
de síntese em relação ao seu tempo, «O
Desterrado» harmoniza em si valores
realistas (evidenciados na
pormenorização do seu virtuosismo
técnico), valores idealistas (na forma
canónica do nu e na sua beleza
idealizada) e valores românticos (na
expressividade nostálgica e sofrida),
que fazem dela o símbolo do seu século.
Interpretada, muitas vezes, como uma
espécie de auto-retrato idealizado do
seu autor (na altura afastado do país
e, por temperamento, um melancólico e
neurasténico), a obra «O Desterrado»
exprime, com invulgar sensibilidade, a
solitária e introspectiva inquietação
de toda uma geração de intelectuais que
observaram, impotentes, a estagnação e
a decadência do país.
Podemos
reconhecer também, nesta obra, o desalento que
muitos sentem pelo desprezo a que são
votados na comunidade que os viu
nascer. É uma obra notável de um
artista oriundo de uma terra pequenina,
cheia de invejosos, mesquinhez e
fervorosos adeptos do bota-abaixo.
O
grande obstáculo à afirmação da obra de
Soares dos Reis na arte do século XIX,
mais que a incompreensão dos seus
patrícios, foi a sua obra se situar num
período de grandes transformações
económicas e sociais. O academismo
clássico estava a ser contestado nos
grandes centros de produção artística,
tendo por essa altura emergido novas
correntes e movimentos, donde sobressaíam
nomes como Auguste Rodin, Édouard Manet, Claude Monet
que iniciaram novos caminhos na criação
artística, pondo de lado os anteriores
valores clássicos do academismo
predominante.
Em 1881 a obra foi premiada
na Exposição Geral de Belas Artes de
Madrid, tendo Soares dos Reis sido acusado
posteriormente, num artigo de um jornal de Lisboa,
de não ser o verdadeiro autor da peça.
O escândalo e a polémica provocaram
grande consternação no artista. Nos
anos seguintes, revelou algumas
perturbações cerebrais e de
irritabilidade que o levaram
frequentemente ao isolamento.
Sentindo-se incompreendido pelos que o
rodeavam, Soares dos Reis decidiu pôr
termo à vida. A 16 de Fevereiro de 1889
suicidou-se no seu atelier com dois
tiros de revólver. Tinha 42 anos.
Só
após a sua morte, a obra de Soares dos
Reis assumiu a grandeza que merecia
perante os críticos e o público.
O Regresso da Revista Tintin
Para celebrar o
77.º aniversário da "Revista dos jovens
dos 7 aos 77 anos", as editoras Le
Lombard e as éditions
moulinsart, unem forças para
relançar a famosa revista de banda
desenhada semanal, num único número de
300 páginas! Uma edição, criada
especialmente para a ocasião, que reúne
autores míticos como Hermann, Derib,
Cosey e outros que ao longo dos anos
forjaram a lendária da revista
francófona que teve uma edição
portuguesa entre 1 de Junho de 1968 e 20 de Outubro de 1982. As gerações
seguintes (Trondheim, Fabcaro, etc.)
também fazem parte da celebração para
trazer de volta à vida os célebres heróis
que fizeram as delícias de milhares de leitores.
Claro
que não é a primeira vez que uma
revista de banda desenhada se ergue das
cinzas. Entre outras, mencionemos por
exemplo: a Pilote ("Le journal qui
s'amuse à revenir") que entrega
números especiais ou de Verão, a Métal Hurlant
que está actualmente a passar
pela sua terceira edição especial. Mas o que marca desta vez,
é o acontecimento que representa,
porque a revista Tintin, bem
como
a Spirou, estiveram no centro
da chamada era dourada da banda
desenhada europeia do pós-guerra.
Recordemos que o semanário nasceu a
26 de Setembro de 1946 com Hergé como
director artístico, e sob a liderança
de Raymond Leblanc, o editor que impôs
a editora Le Lombard como um dos
pilares da banda desenhada
franco-belga. Em 2023, celebra-se
portanto um duplo aniversário: por um
lado, o do jornal Tintin, cujo slogan
"Revista dos jovens dos 7 aos 77 anos" continua a ser uma marca
registada, e por outro, a longevidade
de uma editora que conseguiu
reinventar-se nos últimos anos para
voltar a ser um centro de criação e um
centro de talentos.
A notícia
desta edição comemorativa foi dada
recentemente no Festival de BD Angoulême 2023,
pelos
diretores editoriais: Gauthier Van Meerbeeck da
Le
Lombard e Didier Platteau
da Tintinimaginatio (Éditions Moulinsart). Se os
dois parceiros históricos estão
(finalmente) reunidos, é de facto para
anunciar um acontecimento que os
leitores da Revista Tintin já não
esperavam: o regresso da histórica revista!
Mais de 77 autores foram convidados a
escolher uma personagem ou uma série
para prestar homenagem à Revista Tintin, a fim de reunir
mais de 300 páginas de criações em
torno dos emblemáticos heróis que
semanalmente preenchiam as páginas do
jornal.
Dentro desta
homenagem, encontramos em primeiro
lugar aqueles que se tornaram
emblemáticos dentro do
semanário. Assim, Cosey, que
definitivamente não terminou com o seu
Jonathan, dedica-lhe uma nova história,
Derib imagina um encontro entre
Corentin e Buddy Longway,
Dany presta
homenagem a Ric Hochet e aos seus
amigos Tibet & Duchâteau,
Hermann
retoma Comanche após mais de quarenta
anos de interrupção, Turk desenha um
Luc Orient reinventado sob um guião de
Zidrou & Falzar,
Michel Weyland leva a
sua Ária numa última volta, etc.
Um painel que não se limita aos
autores que foram publicados na revista
na sua época dourada. Toda uma série de convidados
tem a tarefa de revisitar à sua maneira
as heroínas e os heróis que os
emocionaram, tais como Fabcaro e
La
Tribu terrible ou Philippe Foerster que
toma conta de Clifton. Alguns
autores que já tinham tomado conta de
algumas personagens célebres estarão
presentes: Teun Berserik,
com Blake & Mortimer,
Christophe Simon com
Corentin,
Dominique Rousseau com
Vasco, etc.
Entre os autores
presentes, podemos contar com a geração
jovem: Alix Garin retoma também
Modeste
et Pompon, Clara Lodewick apresenta a
sua visão de Bob et Bobette,
Buddy
Longway é visto por Mobidic, e
Dimitri
Armand revisita Bob Morane.
E as
reposições continuam: Max l'explorateur por
Vincent Dugomier, Castellani & BenBK,
Michel Vaillant
por Dutreuil & Lapière,
Chlorophylle por
Ers & Dugomier,
Martin Milan por
Hautière & Fourquemin,
Cubitus visto
por Bénédicte Moret, uma reelaboração
hilariante de Capitan por
Nicolas
Juncker, Fred Vignaux imagina
Thorgal
durante o seu período "Shaïgan" com
Kriss de Valnor, Bernard Prince por
Philippe Xavier & Matz,
Nanouche por
Tako & Hamon, Martin Milan por
Benoît
Dellac, Simon du Fleuve por
Clarke,
etc. A maioria dos actuais autores da
Le Lombard prestam homenagem àqueles
que contribuíram para a fundação desta
prestigiosa editora.
De momento,
alguns dos principais autores, como
Christian Godard,
Jean-Claude Servais
ou Rosinski, ainda não foram
anunciados. Mas como esta edição
especial só será lançada a 8 de
Setembro 2023, a versão ainda pode ainda evoluir.
Provavelmente Jean Van Hamme participará na
aventura, e também encontraremos
homenagens a Alix de Jacques Martin, bem
como aos Escorpiões do Deserto,
de Hugo Pratt que apareceu
na Revista Tintin entre 1973 e 1982.
Há sete anos, para o
70.º aniversário da editora, Le Lombard
e Moulinsart já tinham juntado forças
para entregar um imponente trabalho de
777 páginas reunindo histórias e artigos
retirados dos quarenta anos de
publicação da Revista Tintin. Um
segundo volume retrospectivo está
portanto em preparação, ainda com a
mesma paginação impressionante.
Finalmente, o terceiro livro a ser
publicado para este 77.º aniversário
também combina dimensões extravagantes
com o tesouro da Revista Tintin. É que
entre 28
de Dezembro de 1972 a 25 de Dezembro de
1973, os autores Turk & De Groot entregaram
semanalmente um desenho A4 de uma
secção de uma rua, convidando os
leitores a montá-lo no que chamaram "o
maior quadro do mundo".
Pela
primeira vez, Le Lombard publica o
fruto desta aventura editorial num
livro que reúne todos estes desenhos
num enorme Leporello (papel
dobrado em acordeão) que terá mais de
15 metros de comprimento! No verso do
livro, a criação desta narrativa e
exercício gráfico será contextualizada,
com uma análise de Jean-Louis Lechat,
que já tinha escrito a história de Le
Lombard em três volumes.
E
noutro registo, será realizada uma
exposição durante um ano no Centro
Belga de Banda Desenhada em Bruxelas, a
cidade onde ainda se situa a Éditions
du Lombard. Thierry Bellefroid, o
curador desta retrospectiva, imaginou a
casa de uma família em que todas as
séries da Le Lombard estão agrupadas por
grupo etário e de acordo com o gosto
nas várias divisões da casa. (com Charles-Louis
Detournay)
Atahualpa Yupanqui, alma crioula argentina
- Partilhar 31/01/2023
Celebra-se em
2023, 0 115º aniversário do nascimento
de Atahualpa Yupanqui, o guitarrista,
poeta e cantautor argentino considerado
um dos grandes divulgadores da música
crioula argentina, cuja extensa obra
musical foi compilada por Carlos
Martínez num álbum de seis volumes, que
fala sobre o seu valioso legado.
Héctor Roberto Chavero, conhecido
artisticamente como Atahualpa Yupanqui,
nasceu a 31 de Janeiro de 1908 em Campo
de la Cruz, província de Buenos Aires.
Filho de um casal crioulo, aos seis
anos de idade começou a estudar violino
com o padre da aldeia até se virar para
a guitarra, tendo aulas com o maestro
Bautista Almirón em Junín. Aí descobriu
a música de Sor, Albéniz, Granados e
Tárrega, bem como transcrições para
guitarra de obras de Schubert, Liszt,
Beethoven, Bach e Schumann.
O
seu pseudónimo Atahualpa nasceu em 1913
durante um trabalho escolar em
homenagem ao último soberano inca, e
anos mais tarde acrescentou-lhe
Yupanqui. A tradução do seu nome
significa aquele que veio de terras
distantes para contar; derivado dos
seguintes termos quíchua: Ata "para
vir*, Hu "de longe", Alpa "terra" e
Yupanqui "para contar". Em 1917
mudou-se para Tucumán com a sua família
e aos 19 anos compôs a sua canção
popular "Camino del indio". Durante a
sua juventude, viajou por grande parte
da Argentina experimentando costumes e
sons que mais tarde incorporou nas suas
composições.
Em 1931 casou com a
sua prima María Alicia Martínez e
instalaram-se em Entre Ríos, onde
nasceu a sua filha Alma Alicia Chavero.
Um ano mais tarde, Atahualpa teve que
se exilar fora do país depois de
participar numa tentativa de golpe de
estado.
Em 1942, conheceu a
pianista Antoinette Paule Pepin
Fitzpatrick, apelidada de Nenette,
nascida em França e musicalmente
influenciada pela música argentina.
Casou com Nenette em Montevideo,
tiveram um filho, Roberto Chavero, e
mantiveram uma relação durante 48 anos.
Assinou com o pseudónimo de Pablo del
Cerro, sendo co-autora de 65 canções de
enorme sucesso entre elas as populares
"El arriero" e "Luna tucumana".
Devido à sua filiação no Partido
Comunista, Yupanqui foi censurado no
seu país natal, pelo que não podia
gravar, actuar ao vivo ou em programas
de rádio. Nessa altura, viajou para
França para actuar em Paris como
convidado especial da cantora Edith
Piaf, e lá assinou um contrato com a
companhia discográfica Chant du Monde
tendo gravado o seu primeiro LP na
Europa intitulado "Minero soy" com o
qual ganhou o primeiro prémio de melhor
disco folclórico da Academia Charles
Cros. Em 1952, demitiu-se do Partido
Comunista e em 1953 pode voltar a
gravar de forma sustentada na Argentina
efetuando numerosas actuações em Buenos
Aires e no interior do país.
Na
década de 1960 estabeleceu-se na cena
internacional, dando concertos na
Colômbia, Japão, Marrocos, Egipto,
Israel, Espanha e França, onde
finalmente se estabeleceu. Com visitas
esporadicas à Argentina, apresentou
várias obras no famoso concerto e
galeria do café La Capilla. Ao longo da
sua carreira, tocou com inúmeros
músicos e partilhou créditos com
grandes compositores, gravando mais de
1200 canções, 300 das quais da sua
autoria. Além disso, como escritor,
publicou o livro "Piedra Sola" (1941) e
o romance Cerro Bayo (1947) que
inspirou o filme "Horizontes de Piedra"
(1956).
O palco do Festival
Folclórico de Cosquín (o mais
importante da Argentina) recebeu o seu
nome em 1972; foi nomeado Cidadão
Ilustre no Estado de Vera Cruz, México
em 1973; foi condecorado pelo Governo
da Venezuela em 1978; foi nomeado
Presidente Honorário da Associação de
Trovadores de Medellín, Colômbia, em
1979; recebeu o Diploma de Honra do
Conselho Interamericano de Música da
OEA em 1983, o Prémio Konex Platinum
como autor folclórico em 1985, o Prémio
Knight of Arts and Letters do
Ministério da Cultura francês em 1986,
o título de Doutor Honoris Causa na
Universidade Nacional de Córdoba,
Argentina em 1990, a distinção de
Cidadão Distinto da Cidade de Buenos
Aires em 1991.
Em 1989, criou a
"Fundación Yupanqui", na sua casa no
Cerro Colorado, um refúgio utilizado
pelo maestro quando regressava das suas
viagens pelo mundo. Nesse ano,
Atahualpa foi hospitalizado em Buenos
Aires devido a uma doença cardíaca,
participando ainda no Festival Cosquín
em Janeiro de 1990. A 14 de Novembro
desse ano Nenette morreu, e alguns dias
mais tarde Yupanqui teve um compromisso
artístico em Paris. Em Dezembro de 1991
actuou em Buenos Aires, no que viria a
ser o seu último concerto na Argentina.
Don Ata, como foi carinhosamente
chamado, morreu a 23 de Maio de 1992 em
Nimes, França. As suas cinzas descansam
nos jardins da sua Casa Museo no Cerro
Colorado, à sombra de um carvalho junto
aos de Santiago Ayala "El Chúcaro",
onde também estão os seus livros, os punhais do seu
avô, ponchos, ferramentas e presentes
que lhe foram oferecidos por pessoas
nas suas digressões pelo mundo.
O EXPRESSIONISMO
- Partilhar 1/06/2022
O
expressionismo nas artes visuais
destaca-se pelas cores luminosas e nas violentas formas
tão distorcidas quanto possível.
Os expressionistas
são os responsáveis pela primeira
grande insurreição do conceito
de obra de arte e do respectivo tema.
Mesmo hoje, os pintores contemporâneos
continuam a redescobri-lo, sob rótulos
tão elegantes como «anos 80» ou
«pós-moderno», para que pareça algo de
definitivamente novo. Como disse o
crítico de arte
Hertwarth Walden,
fundador do movimento, sem
falsa modéstia: «Chamamos
expressionismo à arte deste século para
a distinguir de tudo o que não seja
arte. Estamos perfeitamente conscientes
do facto de que também os artistas dos
séculos anteriores procuravam a
expressão; apenas não sabiam
formulá-la.»
Se os pintores do
grupo Die Brücke (A Ponte),
nascidos em Dresden, no início do
século XX,
escolheram este nome com o objetivo de
expressarem quanto a sua arte era uma
ponte para o futuro, pode dizer-se que
foram brilhantemente sucedidos: os
desastres sociais e as revoluções
pictóricas tornaram-nos, mesmo hoje,
mais actuais do que nunca.
Dos artistas de Die Brücke,
Emil
Nolde é o mais conhecido. Enquanto
muitos pintores expressionistas se
suicidaram com o advento do nazismo,
Nolde declarou-se um
nacional-socialista convicto. Não há
ética alguma em arte. Infelizmente para
ele, Hitler — ele próprio um pintor — acabaria por
considerar as suas obras tão
degeneradas como as dos seus camaradas,
tendo Nolde sido proibido de expor
durante este período negro.
Em
Munique, de inspiração expressionista, formou-se em 1911, o
movimento cosmopolita Blaue Reiter
(Cavaleiro Azul),
fundado por
Kandinsky, que abandonara a Rússia,
trazendo para o movimento o seu amigo
Franz Marc, como se em arte nada
fosse definitivamente tão importante
como a amizade ou a inimizade. Para
tentarem impressionar o público, os
críticos procuram origens etimológicas
extremamente complexas para as
tendências artísticas. Já os verdadeiros
artistas, contudo, preferem a
simplicidade: a única coisa que
Kandinsky teve para dizer acerca do
nome deste movimento foi: «O Marc e eu
adoramos o azul; o Marc gosta de
cavalos e eu gosto de cavaleiros; daí
que o nome Blaue Reiter, o Cavaleiro
Azul, nos tenha parecido apropriado.»
Para um pintor, viver em Oslo é uma
vantagem, dado tratar-se de um lugar
sem grande concorrência artística.
Edward Munch, o monstro sagrado do expressionismo, viu o seu génio
devidamente recompensado nessa cidade
sob a forma de um gigantesco museu
inteiramente dedicado à sua obra. A
mais famosa pintura de Munch, tem o
título de Skrike (em norueguês,
e não O Grito), um nome tão
assustador como o próprio quadro.
O expressionismo sofreu muitas
alterações em resultado das diferentes
influências, como, por exemplo, a dos
fauves, Matisse e Derain.
Este nome (fauves), que significa
aproximadamente animais selvagens,
foi-lhes dado depreciativamente por
Louis Vauxelles, um famoso crítico
deste período que, ao ver as obras
destes pintores no Salão de Outono,
disse ter-se sentido num jardim
zoológico, trancado na jaula de uma
fera. (Dana Rodna)
ARTE MODERNA
- Partilhar 1/03/2022
Segundo a
enciclopédia, arte moderna engloba uma
grande variedade de movimentos, teorias
e atitudes cujo modernismo reside
particularmente numa tendência para
rejeitar formas e convenções
tradicionais, históricas ou académicas,
num esforço para criar uma arte mais de
acordo com as novas condições sociais,
económicas e intelectuais. Os inícios
da pintura moderna não podem ser
claramente demarcados, mas há um
consenso geral de que ela começou na
França do século XIX.
Há quem
entenda o moderno, como novo, atual, um
estilo e um corrente estética e
artística própria do tempo presente.
Nessa perspetiva, a arte mais
representativa tem sido sempre moderna.
Isto é, as principais produções
artísticas na história da humanidade
sempre acompanharam as tendências do
seu tempo. Mas, hoje, na atual
sociedade de consumo, o moderno de
ontem passa rapidamente de moda. Esta é
uma das suas características mais
relevantes. O facto de ser
«representativa do seu tempo» faz
aumentar o respectivo valor comercial.
A arte de outros tempos
empenhava-se em criar uma ilusão de
realidade, em alcançar um sentimento de
beleza e harmonia. No passado, os
artistas procuravam exprimir o ideal de
beleza, o que contrasta em absoluto com
as preocupações actuais. Se no passado,
a preocupação era a qualidade estética
e artística do produto final, hoje,
centramo-nos bem mais no processo
criativo do que nos seus resultados.
A arte moderna iniciou-se
realmente com a expressão da
subjectividade, dos sentimentos de
tensão e de crise. A maioria das
pessoas são totalmente incapazes de
apreciar tal coisa, sendo este um
bloqueio mental que se encontra
distribuído de modo bastante
democrático por todas as classes
sociais. Em geral, as pessoas são
altamente conformistas (e
conservadoras); a arte moderna perturba
o seu sentido das conveniências, a
menos que, obviamente, lhes traga
prestígio e riqueza.
Para
muitos artistas e criadores, ser
moderno significa dar a ver de um modo
totalmente novo o que outros antes
deles já andavam a fazer há décadas.
Alguns, poucos, alcançam o sucesso. Em
desespero de causa, adoptam-se
prefixos, como neo-, novo- ou, melhor
ainda, nouveau-, pós-, trans-, etc.
Criam apenas neologismos. A erudição é
admirável, mas raramente conduz a
obras-primas.
O escultor belga
Pol Bury, criador de numerosas fontes,
desde o Palais Royal de Paris aos Jogos
Olímpicos de Seul, exprime deste modo o
objectivo principal do artista moderno:
«O meu procedimento é um pouco como o
de Cézanne ao olhar para a montanha de
Sainte-Victoire, ao alterar a imagem
tradicional que podíamos ter desta. É
um modo de mostrar lugares familiares
sob uma nova luz e, depois de lhes
conferir um ponto de vista diferente,
vê-los melhor ou menos bem.» (Dana Rodna)
VIVA TIM-TIM*
- Partilhar 2/12/2021
A 3 de Março de
1983, um certo Georges Rémi falecia na
cidade de Bruxelas, vítima de cancro.
Para o pacato cidadão que folheia o
jornal diário, a notícia inserida numa
das páginas interiores não possuía
qualquer interesse relevante, mas para
os amantes da Banda Desenhada era a
consternação. Hergé deixou-nos! O autor
do herói imortal desaparecido para
sempre...
“O Universo de Tintin é
um universo onde a morte não existe”
dissera Hergé. Sem dúvida que o
espírito que emana das aventuras por si
criadas prevalecerá, deixando-as como
um modelo de épico romanceado. Porém o
genial criador da célebre “linha clara”
e das histórias paralelas não
prosseguirá o seu caminho em busca da
perfeição.
Bom aluno, exceto
a Desenho. Hergé possuía um mundo
interior em constante agitação o que
lhe permitia assumir e incarnar cada
uma das suas multifacetadas personagens
em cada momento da narrativa. Facilitou
sempre a difusão de notas biográficas,
para que todos aqueles que pretendiam
compreender Tintin, também o pudessem
fazer através do prisma paterno.
Nascido do seio de uma família da
pequena burguesia belga, afastou-se dos
laços paternos aos oito anos, entrando
para um colégio particular onde
permaneceu até à conclusão dos estudos
secundários. Por ironia do destino o
pequeno Georges atingia ótimas cotações
em todas as disciplinas, mas ficava-se
pelo 10 a Desenho. Este facto não o
impediu de plagiar os “comics”
norte-americanos, associando a
florescente indústria cinematográfica à
sua própria experiência como escuteiro
e criando a “United Rovers”, suposta
firma dedicada à realização de “filmes
cómicos” como os de “Totor, C.P. dos
Besouros” (1).
Se a falta de
precisão no traço revelou um amador
inseguro e ainda ignorante na maioria
das técnicas do desenho, a forma
direta, elucidativa e plena de humor
como a história nos era legendada,
fazia com que a sua leitura se tornasse
uma fonte inesgotável de aventuras
imaginárias onde os jovens buscavam a
realização dos seus sonhos. Outras
personagens saem do lápis de Hergé: “Jo
e Zette” (João e Maria - a que mais
tarde se juntaria o macaco Simão),
“Popol e Virgínia” e “Quick & Flupke”.
Este último disputaria com Tintin o
primeiro lugar no coração de Hergé.
1929, durante a crise, aparece o
“Petit Vingtième”. Com uma vasta
galeria de personagens, da qual
sobressaía Tintin, Hergé vira-se para a
comercialização dos seus trabalhos.
Principia como publicitário, alcançando
grande sucesso com várias realizações
de apurada técnica. Este êxito
permite-lhe dedicar-se inteiramente à
banda desenhada. Funda com outros
jovens desenhadores o “Petit Vingtième”
(em tradução livre - o pequeno século
vinte) onde editará a maioria das
aventuras de Tintin.
Esta
publicação foi a resposta europeia à
invasão dos “comics” norte-americanos
que dominavam mercado mundial. O
período de recessão que se surgiu à
crise de 1929 permitiu a Hergé
conquistar um lugar no topo da
hierarquia da banda desenhada. À volta
deste pequeno número de génio, outros
talentos vão aparecendo: Edgar P.
Jacobs (2), Jacques Martin (3), Paul
Cuvelier (4), Jacques Laudy (5) e
muitos outros. Hergé adquiria a pouco e
pouco uma escola de autores que
captarão o seu estilo - a conhecida
escola de Bruxelas.
O
segredo de Tintin. Quem é esse
pequeno herói de idade desconhecida,
que com o seu fox-terrier sai
triunfante de todas as situações?
Tintin, nasceu fruto dos anseios e da
imaginação de Hergé que, inicialmente o
fez repórter do “pequeno século vinte”.
Graças ao sucesso das pranchas de
“Tintin no país dos sovietes” foi
necessário criar personagens
secundárias, do tipo: professor
Girassol / Tornesol (o génio
distraído), Dupond e Dupont (os irmãos
siameses), general Alcazar (aventureiro
sul americano, símbolo dos precários
regimes da região) e o capitão Hadock
(capitão beberrolas dominado pelo seu
imediato Alan torna-se presidente da
L.M.A. (6) e adquire o fantástico
castelo de Moulinsart onde o
insubstituível Nestor se encarrega das
tarefas domésticas). Várias dezenas de
outras criações povoam as histórias de
Hergé: umas aliadas ao herói, outras
pertencentes ao submundo (Rastapopoulos
e seus sequazes).
Hergé é
sobretudo um bom contador de histórias
que se tornou o sósia europeu de Walt
Disney. Possuindo arquivos extremamente
bem recheados, realizava, como Júlio
Verne, uma minuciosa pesquisa antes da
elaboração de cada álbum. Trabalhando
oito horas por dia e com uma vasta
equipa de desenhadores, letristas,
coloristas e numerosos técnicos,
reproduzia nos estúdios de Bruxelas as
paisagens de todo o mundo. Cada nova
edição merecia-lhe o carinho e o
cuidado de uma reestruturação do texto
e principalmente do grafismo,
melhorando o traço e atualizando os
desenhos.
Dois marcos:
Tintin no Tibete e Rumo à Lua.
Tintin, no seu peregrinar constante, da
Rússia pós revolução de Outubro aos
Balcãs abalados pelo embate das
ideologias fascistas, nazis e
comunistas; do Egipto faraónico à
Chicago da lei seca, controlada pela
Máfia; do Médio Oriente ainda pleno de
protetorados e onde já principiara a
corrida ao ouro negro, à América
Central, ontem como hoje povoada de
guerrilhas; do europeu caso de Maria
Callas, ao mistério do abominável homem
das neves; do antigo Congo Belga à
ignorada guerra do Chaco (7); dos
problemas das minorias étnicas –
ciganos, negros, índios - à guerra da
Manchúria; da ciência de Von Braun e
seus pares até aos enigmáticos e
omnipotentes OVNIS; captou a alegria e
o drama da vida atual.
Aquando
da sua última aparição em público (a 18
de março de 1981) Hergé encontrou-se
com Tchang Tchong Jen, o estudante
chinês que em 1935 o ajudou
consideravelmente a conceber “O Lótus
Azul” que viria a ser o herói de
“Tintin no Tibete”. “De entre os meus
23 álbuns não se deveria escolher mais
do que um para a posteridade. Gostaria
muito que fosse “Tintin no Tibete” o
escolhido. É uma bela história de
amizade. Quase uma história de amor” –
disse no inverno de 1979 durante as
comemorações dos “50 anos” de trabalhos
verdadeiramente divertidos. 1979 foi
sem dúvida um ano de consagração: os
correios belgas publicaram um selo com
a figura de Tintin; em Paris no “Hotel
des Monnaies”, foram desterradas duas
medalhas em tamanho natural, uma com a
sua efígie e outra com a do seu herói;
até os norte-americanos concederam-lhe
um Mickey. Esta célebre estatueta de
ouro não era atribuída desde a morte de
Walt Disney.
Hergé consagrou
“Tintin no Tibete”, mas para a maioria
dos jovens que vibraram com as
aventuras de Tintin, “Rumo à Lua” e
“Explorando a Lua” foram os álbuns que
mais atenção lhes despertaram.
Uma
das críticas mais célebres das que lhe
foram lançadas durante os seus 53 anos
de atividade, acusava-o de não saber
desenhar, baseando as suas criações em
planos técnicos. Se Hergé se rodeou
sempre de peritos das diversas matérias
que abordava, apenas a sede de saber e
o desejo de perfeição que o dominava
justificaram o ambiente tecnicista
presente nos seus trabalhos. O célebre
astrónomo Alexandre Ananoff, que o
auxiliou, como consultor técnico na
elaboração dos dois álbuns que trataram
a viagem e a exploração da Lua,
construiu maquetas das diversas partes
(15 elementos não separáveis) que
constituíam o foguetão de Tornesol para
que as vistas interiores fossem o mais
autênticas possível.
Hergé
retratou, 30 anos antes, todos os
problemas técnicos e humanos com que os
astronautas se debateram aquando da
real viagem à Lua: desde a descolagem,
a fortíssima aceleração, os diálogos
com a Terra, a alunissagem, os
primeiros passos na superfície lunar, a
vida a bordo da nave, a exploração da
Lua e o regresso, graças aos foguetões
auxiliares. Os mil pormenores descritos
na aventura permitiriam a elaboração de
um projeto espacial viável, se… o
professor Tornesol houvesse
especificado o funcionamento do seu
motor atómico, carburando a
Ternosolite (pseudo-combustível à
base de silicones).
“De Klare
Lijn” (a linha clara). Em qualquer
obra literária, seja ela um romance ou
uma banda desenhada, a análise crítica
primária vira-se para o aspecto
gráfico/estilístico e para o
significado e valor da obra, encarada
no seu sentido global. Se Hergé possui
tão vasta produção, aclamada por tão
grande número de leitores, então existe
algo nos seus trabalhos que atrai o
público. O sucesso que o próprio autor
dizia “não poder explicar” foi
interpretado pelos críticos como uma
bem-sucedida aliança entre um grafismo
inovador e um conjunto de narrativas
paralelas que dão ao leitor uma
expectativa permanente em relação ao
comportamento das diversas personagens
com os quais se pode identificar. A
aventura tocava o plano do real, com
personagens que, apesar de fictícias,
atuavam como o vulgar leitor,
conferindo um carácter humano à obra.
Este grafismo cognominado
“linha clara” (8) conseguiu uma
numerosa (e frutuosa) descendência,
quer entre os autores europeus quer
entre os artistas norte-americanos. Com
as personagens do criador, também a
escola ultrapassou as fronteiras
belgas. Edgar P. Jacobs, Jacques
Martin, Bob de Moor, Yves Chaland
(autor de Bob Fich) e Ted Benoît
reconhecem Hergé como o pai do seu
grafismo e do estilo claro e lúcido do
texto. Como refere Ted Benoît “a linha
clara continua sendo a melhor para
descrever a nossa época”.
Quer
na mente dos leitores quer nas pranchas
daqueles que prosseguem a sua obra,
Hergé e Tintin permanecem vivos e são
continuamente (re)descobertos pela
geração de jovens dos 7 aos 77 anos.
*com Mário
João Fernandes.
(2) Edgar Pierre
Jacobs, autor de “Blake e Mortimer”.
(3) Jacques
Martin, autor de “Alix”.
(4) Paul
Cuvelier, autor de “Corentin”.
(5) Jacques Laudy, fundou
com Hergé, E.
P. Jacobs e Paul Cuvelier, o Tintin
belga.
(6) L.M.A, liga dos
marinheiros antialcoólicos.
(7)
Guerra do Chaco: disputa entre a
Bolívia e o Paraguai pela posse do
planalto do Chaco Boreal, que ocorreu
entre 1928 e 1938. “O
Ídolo Roubado” foca essa guerra pouco
conhecida.
(8) “De Klare Lijn”,
conceito introduzido pelo holandês
Joost Swarte para definir o grafismo de
Hergé.
STRAAT: centro de arte urbana em Amesterdão*
- Partilhar 01/11/2021
Após alguns
anos de espera, o museu STRAAT em
Amesterdão abriu finalmente ao público.
Programado para abrir em 2020, a
pandemia veio atrasar
significativamente a sua abertura.
Entretanto, com o retomar progressivo
das atividades culturais que tanto
sofreram com as restrições à
proximidade física, é possível
finalmente desfrutar de uma das mais
singulares coleções de Arte de Rua, num
local único pela sua natureza. Se é
daqueles ou daquelas que gosta de
conhecer o que de mais contemporâneo se
faz, será uma boa ideia, caso se
proporcione, colocar este museu de
Arte de Rua
no seu mapa interativo do smartphone
quando visitar a interessante capital
dos Países Baixos.
*com Tim Marschang
(Graffiti Art).
Fortalecimento social por meio das artes
- Partilhar 04/10/2021
A organização
“Research at Americans for the Arts”,
defende o reconhecimento e o apoio para o
valor extraordinário e dinâmico das artes,
no sentido de que a educação artística é um
instrumento importante para a prosperidade
económica. Nesse sentido tem desenvolvido
uma série de ações especialmente dirigidas
às comunidades norte-americanas, cuja
organização política assenta em grande parte
no liberalismo económico.
Randy Cohen, um dos seus membros,
dá o exemplo de Thomas Südhof, Prémio Nobel
da Medicina de 2013, que numa entrevista à
revista médica Lancet, confessou que o seu
professor mais influente foi o professor de
fagote, descrevendo que foi a sua educação
musical que lhe deu os hábitos mentais que o
tornaram cientista, disciplinado,
desenvolvendo as suas capacidades criativas,
de comunicação e com um desejo imenso de
inovar.
Todos os estudantes
beneficiam da educação e ensino artístico.
Este é um conceito unânime na comunidade científica.
Haverá ainda, nalguns sectores, a ideia de
que o objetivo da educação artística é
formar os jovens para uma carreira nas
artes. Embora esse possa ser o destino de
alguns, todos os estudantes beneficiam
quando as artes fazem parte de uma educação
bem fundamentada. Segundo a Research at
Americans for the Arts, os estudantes
envolvidos nas artes têm melhores
classificações académicas, melhores notas
nos testes, menores taxas de abandono
escolar e maior aptidão para o ensino
superior. De facto, os estudantes com quatro
anos de aulas de artes e música no ensino
básico e secundário têm em média melhores
notas do que os estudantes com apenas meio
ano ou menos.
As Obras de Arte do Google
- Partilhar 01/09/2021
Levei algum tempo a pensar qual o tema que deveria abordar nesta minha rubrica. Veio à ideia o tema Obra de Arte, que é recorrente, mas tem sempre muito pano para mangas. Então decidi fazer uma pesquisa simples no poderoso motor de busca da Google, cuja palavra chave seria «obra de arte». Tinha curiosidade em saber o que me indicariam. Na categoria de imagens, surge em primeiro plano uma série de anúncios publicitários e de seguida um conjunto de imagens que pressupomos serem aquelas «obras de arte» mais valiosas para a comunidade virtual do ciberespaço. Provavelmente não deverão ser. O conjunto de imagens apresentado pelo Google é resultado de um sofisticado algoritmo, que deverá ter muitos procedimentos precisos que não passarão pela cabeça da maioria dos usuários da rede. Ficaremos sempre na dúvida se serão essas imagens as de maior impacto das artes visuais e indicado-nos os principais exemplos da arte ocidental.
Então o que temos?
Uma, a primeira: «A noite estrelada» de van
Gogh; quatro imagens de «Mona Lisa» de
Leonardo; «A rapariga com brinco de pérola»
de Vermeer; «A persistência da memória» de
Dali; duas imagens de «O grito» de Munch;
duas imagens de «Abaporu» da artista
brasileira Tarsila do Amaral; e «O
nascimento de Vénus» de Botticelli. Estas,
no meu computador, serão as Obras de Arte de
referência. Claro. E a acrescentar a tudo
isto, o facto de eu estar aqui a
apresentá-las, estou ainda a reforçar esta
lista que o Google me apresenta. Mas estas
serão mesmo as obras de arte de referência?
As mais belas e valiosas?
Já sabemos que Arte é
a expressão de ideais estéticos por meio de
algumas atividades humanas. A questão que se
pode colocar, é se o que considera
ideais estéticos poderá estar, ou não,
condicionado por princípios subjetivos que são promovidos pela
cultura e pelo poder dominante.
Pessoalmente, os exemplos promovidos pelo
Google são, para mim e para muitos de nós,
bons exemplos e representam algumas grandes obras da
pintura universal. O problema destes
algoritmos que valorizam aquilo que é muito
procurado, é que aumenta de forma
desproporcional o fosso entre as obras mais
conhecidas em relação às menos conhecidas,
ficando as muito conhecidas mais conhecidas
ainda e as menos conhecidas, esquecidas e
ignoradas.
Ser mais ou menos
famoso, para o algoritmo do Google não tem
qualquer relação com critérios de qualidade,
originalidade ou outros. O Google funciona
com quantidades. Uma obra passa a estar no
topo da lista se for muito falada e
procurada. É um critério irrelevante para os
artistas e autores das obras em questão – já
cá não estão no reino dos vivos – mas
provavelmente ajudarão a dar mais
visibilidade aos museus e centros de arte
proprietários das famosas Obras de Arte. Só
o MoMA (Museu de Arte Moderna de Nova
Iorque) tem duas das obras supramencionadas
em exposição. Arte é muito mais que obras
famosas, é muito mais do que aquilo que
repetidamente nos andam sempre as mostrar.
Retrato duma Lisboa marginal
- Partilhar 2/08/2021
Já lá vão os tempos em que só tinham direito a retrato os mui afamados nobres ou os Deuses e seus representantes em cenas mitológicas devidamente autorizadas. Ser retratado numa tela ou tábua pintada a óleo, não era para qualquer um. Mesmo hoje, em que os registos fotográficos se massificaram, os nossos mais altos representantes, fazem questão de serem retratados à pincelada por artistas reconhecidos.
Nos manuais escolares lembramo-nos de obras famosas, como o nascimento de Venus (Botticelli, 1485), Mona Lisa (Leonardo, 1517), ou o retrato de Dom Sebastião e seu cão galgo (Cristóvão de Morais, 1578) além das muitas cenas da vida de Cristo. Sem registos fotográficos, a pintura serviu durante séculos ao registo e perpetuação das elites na história dos povos. Depois, veio a invenção da fotografia e tudo se alterou.
Com a fotografia, surgiram novas correntes e movimentos artísticos que passaram a olhar o mundo com outros olhos, com outros valores. Desde o impressionismo ao abstracionismo, muitos "ismos" têm passado pela história da arte. Algumas das correntes mais interessantes desse período em que se abriram as portas das oficinas ao exterior, foram o realismo e o naturalismo. Movimentos artísticos que se baseavam na observação fiel da realidade e na experiência. Ao observar o comportamento das gentes, fixando a natureza dos locais, valorizando e contextualizando o espaço onde habita, o pintor elevava a um outro patamar a própria natureza humana na sua diversidade.
No início do século XX o pintor caldense José Malhoa, realizaria uma das obras mais icónicas da pintura portuguesa. Numa outra Lisboa, das gentes humildes, onde a sobrevivência era muito custosa, Malhoa percorreu os bairros populares de Alfama, Bairro Alto, até se centrar na Mouraria, onde encontrou dois típicos habitantes do bairro que concordaram em posar para o "pintor fino", como ficou conhecido o artista. Amâncio Esteves, fadista e sua amante Adelaide da Facada, vendedora de cautelas são os retratados na tela de José Malhoa.
Adalaide da Facada, assim conhecida por ter uma vincada cicatriz no rosto, vendia cautelas de dia e prostituia-se à noite. Representa a mulher desgraçada de uma Lisboa difícil para os menos abonados. Malhoa que se deslocava a casa da Adelaide na rua do Capelão para a retratar, bem tentou uma posse mais ousada, mas Amâncio, ciúmento, ameaçou-o e não o permitiu. Amâncio, passava as noites na boémia com a sua guitarra, onde tocava o fado, destino cruel de um homem revoltado pelas agruras da vida. Era um rufia, marialva, um marginal que entrava constantemente em desacatos que o levavam amiúde aos calabouços da polícia.
O "pintor fino" agarrou o casal e retratou-o. Deu um destaque invulgar à marginalidade, à Lisboa das tascas e tabernas, do vinho, do povo que vivia nas suas entranhas. Desta obra existem duas versões: uma de 1909 e outra de 1910. A versão de 1910 foi adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa e encontra-se hoje no Museu do Fado. A outra, pertence a uma coleção particular.
Ao longo de 63 anos de atividade, entre 1870 e 1933, José Malhoa pintou cerca de duas mil telas, das quais se conhece o paradeiro de algumas. Na sua obra predominam quase 900 retratos – maioritariamente fruto de encomendas.
*José Malhoa, O FADO, óleo sobre tela, 150 × 183cm, Museu do Fado, Lisboa
Exposição de píxeis impressos: que maçada!
- Partilhar 05/07/2021
Num artigo publicado em 2014 no «The Guardian», Jonathan Jones insurgia-se contra o facto de determinadas galerias de arte estarem a expor fotografias como se de telas se tratassem. Dizia que “é estúpido ver uma fotografia emoldurada ou iluminada por trás e exibida verticalmente numa exposição [...]. Uma fotografia numa galeria é um substituto, sem alma e superficial da pintura. Colocar impressões fotográficas é um desperdício de espaço, quando os curadores podiam fornecer iPads e deixar-nos “navegar” numa galeria digital que seria facilmente tão bonita e atraente quanto as impressões caras”.
O que se questiona neste artigo não é o valor objeto das fotografias, mas sim o seu estatuto como arte. A fotografia, pese embora as suas qualidades, não sendo um objeto único resultado da ação manual e criadora do artista – é uma impressão – jamais se poderá comparar aos artefactos clássicos, únicos, pensados e realizados mecanicamente pela mão humana e de elevado valor estético reconhecido pelas elites. A fotografia é o que é. Uma representação, um mero desenho de luz, que como qualquer outro quadro pode e deve ser exposto sem soberba, em qualquer local. Se se olhar bem para a história da arte, verificamos que o conceito de exposição de quadros, para um público heterogéneo é relativamente recente. Em Portugal os museus de arte com as suas salas repletas de telas e tábuas pintadas, terão surgido há pouco mais de 100 anos. São museus abertos a todos os cidadãos para a fruição da pintura, escultura e demais artefactos provenientes de igrejas, palácios e casas senhoriais que foram expropriadas aquando da instauração do regime liberal. Salas de museu que servem também para preservar muitas das peças arqueológicas oriundas de sítios desprotegidos em risco de se perderem. Museus como mostruário do património da humanidade.
Se as salas dos museus servem para preservar e exibir peças descontextualizadas do meio para onde foram criadas, já as galerias de arte modernas são espaços especializados dedicados a exposições e à comercialização de “arte”. “Arte” tantas vezes de valor estético relativo. A fotografia, como expressão visual, também tem lugar nas galerias de arte. Seja como registo instantâneo de luz, ou como criação e manipulação para a construção de uma narrativa poética. Num mundo voltado para a informação rápida, fragmentada e efémera, a fotografia tem na sua génese a observação, a reflexão e a composição.
Se há desconforto em aceitar a exposição de impressões fotográficas numa galeria de arte, como se de telas a óleo se tratassem, imagine-se o escândalo para os mais incautos, quando galerias conceituadas disponibilizam aos visitantes, estranhas instalações com objetos do quotidiano, sem a “tal” vertente técnica e criadora de imagens consideradas “belas” desenvolvidas com a habilidade artística, dos génios da pintura mundial. Habituámo-nos a ver a arte como representação (mimesis) de algo tal qual nos é mostrado pela natureza. Vemos a arte como o produto final de um processo criador complexo, tantas vezes desvalorizado em relação ao seu resultado. Mas esse é o contexto dos antigos. No contexto atual, da arte como expressão, como refere Marlene Fortuna, a obra tem sempre anexada os estudos sobre o processo da sua criação, os chamados bastidores da criação. Ou seja, análises críticas e avaliação não só da obra acabada – “expressão final”, mas do percurso criador que deve incluir a análise da materialidade da construção, manuscritos, rascunhos, documentos de processo, materiais utilizados pelo artista para chegar ao resultado final (tinta, cor, voz, palavra, ferro, som, etc.), tentativas de acertos e erros, caos e ordem no percurso das ideias e decisões.
A arte deste tempo
mais que um produto final não será um processo de
criação? De forma objetiva ou relativa, mais
ou menos bela, através de imagens fixas, de
sons, de movimentos, a arte não é sempre uma
forma de comunicação?
Atividades de primeira e de segunda categoria
- Partilhar 01/06/2021
A cultura e a
organização dos reinos na Europa após a
queda do império romano no ocidente, apesar
de condicionada pelos princípios religiosos,
incorporou contudo a base filosófica dos
grandes pensadores das civilizações
clássicas grega e romana. A formação e a
educação dos jovens das classes
privilegiadas, obedecia a critérios que
foram consolidados ao longo dos séculos. Pensadores como Platão
(428-347 a.C.) ou Aristóteles (384-322 a.C.)
elaboraram importantes reflexões sobre a
importância da educação na vida social dos
cidadãos.
Para Platão em "A
República", a educação era primordial na
formação e seleção dos mais adequados para
altos cargos na administração e governo.
Como opositor às correntes ideológicas que
defendiam a retórica e a argumentação para o
conflito como forma de liderança política e,
que era principal causa da decadência de
Atenas, Platão defendia a formação de
governantes íntegros, onde a arte suprema
era a arte de governar. Considerava no campo
da educação, que as Artes Visuais eram de
menor importância, porque através delas não
se podia chegar ao conhecimento, já que a
escultura e a pintura não eram mais do que
imitações de imitações, um processo que
significava copiar algo que tinha uma
existência anterior.
Já Aristóteles, no
seu “Tratado de Política”, refere-se a
quatro ramos importantes da educação dos
cidadãos: letras, ginástica, música e
pintura. Estes quatro ramos completam um
todo que Aristóteles considerava o mais
importante para o bem-estar. No campo das
artes considerava a música como uma das
atividades mais propícias à boa vida,
proporcionando um prazer intrínseco adequado
aos momentos de lazer, bem como um meio
importante para a educação cívica e moral.
As preocupações
com a “educação” desde a antiguidade à idade
média, aplicavam-se sobretudo, ao pequeno
grupo de crianças oriundas das classes
aristocráticas. Para os rudes dos reinos
cristãos, bastava alguma instrução
religiosa. A educação e formação dos homens
livres no período medieval, baseava-se nas chamadas artes
liberais, isto é, nas capacidades
intelectuais em sete grandes áreas do
conhecimento: a Lógica, a Gramática, a
Retórica, a Geometria, a Astronomia, a
Música e a Aritmética. Às destrezas técnicas
e manuais, como a arte da pintura ou
escultura, consideravam-se artes mecânicas,
de categoria inferior.
Na Roma antiga, as
artes visuais tinham uma importância social
relevante, uma vez que era comum os cidadãos
mais abastados recolherem peças de arte,
proporcionando um elevado estatuto social
aos “artistas” que estavam empenhados em
fazer cópias das obras gregas mais
representativas. Escultores, pintores e
arquitectos para alcançar uma posição de
destaque, investiam numa longa formação,
como refere Vitruvius (c.70 a.C-25 a.C.) no
seu tratado “De architectura”:
“deve...
[o arquitecto] saber escrever e desenhar,
ser instruído em geometria e não ser
ignorante em óptica. Ter aprendido
aritmética e saber muito de história, ter
estudado bem filosofia, ter conhecimentos de
música e algumas noções de medicina,
jurisprudência e astrologia”.
A visão
hierárquica da sociedade e do trabalho, que
ainda hoje é preponderante na organização
social, só começou a ser posta em causa com
as revoluções liberais, quando se começou a
defender uma sociedade justa na distribuição
de oportunidades e recursos.
Mesmo após a
instauração da democracia e do liberalismo
no mundo ocidental, continuam a existir
divergências profundas sobre a valorização
das atividades humanas. O pensamento antigo,
baseado em Aristóteles, instruía-nos a
pensar que alguns homens nasciam para ser
senhores e outros para ser escravos; os
primeiros mandavam, os segundos obedeciam.
Cada um teria de cumprir o papel para o qual
foi destinado pela natureza desde o momento
do seu nascimento. Aos senhores, a natureza
deu-lhes a razão e a inteligência – a
cabeça; aos escravos a força física – os
braços.
As concepções antigas
na organização social, são hoje ainda
responsáveis por alguns entendimentos e
desentendimentos sobre a importância e o
valor subjetivo das atividades humanas. No
campo do ensino e da educação artística a
dicotomia entre belas-artes e artes
aplicadas ou utilitárias é fruto desses
preconceitos sobre o status das atividades
humanas, ainda condicionadas à
hierarquização social. Apesar do
conservadorismo dominante, para que não haja
um retrocesso histórico não podemos pôr em
causa o valor e a importância de todas as
partes na construção de um todo, que é o
conhecimento e o desenvolvimento social. Na
construção de uma sociedade mais justa e a
valorização de todas as suas partes deve
continuar a ser portanto, o nosso foco
principal.
* Desenho de Jean-Baptiste Debret, “Voyages au Brésil: Retour d’un proprietaire” (1834-1839)
A Arte da caligrafia como valor terapêutico
- Partilhar 1/05/2021
A palavra caligrafia tem origem no grego «kalligraphía» e que dizer escrita bela. Em Portugal, Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592) é conhecido como o primeiro autor de um tratado sobre o tema: Tratado da Letra Latina (1560-1561). Com a introdução da tipografia no século XV, os humanistas europeus, sobretudo italianos, desejaram ver impressas as suas obras com tipos desenhados com régua e compasso, numa harmonia assente em ‘proporções ideais’. Essas proporções ideais reflectiam de certa maneira, a magnanimidade do homem do Renascimento como forma de afastamento em relação aos preceitos medievais, onde as letras eram traçadas à medida do olho, seguindo os cânones da ortodoxia monástica.
A caligrafia é uma arte visual, muito associada ao desenho, consistindo no traçado regular e elegante de uma determinada forma de escrita. É a arte e o estudo da escrita à mão. Na história das civilizações percebemos que desde as placas de argila em escrita cuneiforme da Mesopotâmia (3200 a.C.), hieróglifos egípcios, ou caracteres chineses, todos eles desenvolvem uma forma de destreza motora que, idependentemente da sua função primordial: ser lida e compreendida, são antes de mais, verdadeiros desenhos esteticamente cuidados.
Se no passado a arte da caligrafia, fazia parte do currículo base da formação dos jovens aristocratas, hoje, na nossa sociedade tecnológica, a arte da caligrafia pode constituir um importante recurso para terapias baseadas na interação entre o sujeito criador, o trabalho artístico desenvolvido - a criação - e, em casos específicos, um terapeuta. O recurso à imaginação, simbolismo e metáforas enriquece os processos, desenvolvendo uma expressão emocional significativa e um maior autoconhecimento. O ato caligráfico exerce fantasia, imaginação, capacidade de abstração e capacidade de improvisação.
Por exemplo, na arte caligráfica islâmica, formada por um texto legível, sendo uma criação baseada no alfabeto árabe, é o meio utilizado para escrever o conteúdo do livro sagrado dos muçulmanos: o Alcorão. Portanto, é a arte da palavra sagrada, caracterizada pela perfeição, beleza, repetição e movimento.
Ibn Jaldún (1332-1406), historiador e teórico do pensamento filosófico islâmico diz que "a escrita são traços que desenham as palavras percebidas pelo ouvido e que expressam, por sua vez, um conteúdo da alma". A importância da arte caligráfica para os povos islâmicos é perceptível na sua máxima expressão nos diferentes edifícios sagrados e monumentos, na interiorização e busca pela felicidade e equilíbrio espiritual na relação dos crentes com Deus.
Na arte caligráfica islâmica podemos destacar valores como o toque de pena ou toque da caneta que deve ser suave para um desenho fluído e natural sem repressão, peso ou sofrimento dando liberdade ao movimento da caneta e da mão; o movimento da mão que deve ser moderado. A lentidão extrema produz um sinal deselegante, enquanto a pressa pode causar uma escrita irregular e muito desigual. Quanto maior o domínio, melhores e mais harmoniosos os movimentos. Quanto mais experiência e perfeição, mais liberdade e fantasia; a concentração também é muito importante, pois por meio dela o sujeito consegue afastar-se do mundo exterior e preparar um ambiente propício para imergir num espaço único, o dos seus sentimentos; a respiração deve ser bem controlada. O movimento traçado com a inspiração difere muito daquele feito com a expiração. A respiração influencia o traçado e caracteriza o movimento. Momentos de pausa são fundamentais para um adequado processo e resultado final.
Como terapia, a Arte
Caligráfica pemite desenvolver o
autocontrolo, segurança e autoconfiança, a
capacidade de concentração e o
desenvolvimento de uma boa respiração. Como
refere a Sociedade Portuguesa de
Arte-Terapia, é através da mobilização das
pulsões inerentes ao processo criativo
próprio e ao fazer artístico que se propicia
a sua satisfação e alterações interiores. A
facilitação da tais transformações
significativas e integradas em tomadas de
consciência pode ser importante para
promover a riqueza, a vitalidade e a
qualidade da vida psíquica.
Ver mais
em:
https://doi.org/10.1590/S1414-98932014000100011
Na primavera de 1914
é declarada guerra entre as principais
potências europeias. O conflito foi
provocado pela crescente desconfiança e
forte militarização entre a informal
“Tríplice Entente” — os Aliados
(Grã-Bretanha, França e Rússia) e a secreta
“Tríplice Aliança” (Alemanha, Império
Austro-Húngaro e Itália). Durou quatro anos
e ficou conhecida como “A Grande Guerra”. Um
conflito intenso, onde morreram quase 60 por
cento dos intervenientes nas batalhas.
Inicialmente neutral, Portugal entra na
guerra em 1916 ao lado dos Aliados, depois
de aprisionar navios
alemães e austríacos que se encontravam
fundeados no estuário do Tejo. Portugal
mobilizou mais de cem mil homens para a
guerra. Cerca de oito mil morreram nas
trincheiras da Flandres ou nos campos de
batalha em África. Nesse ano de 1916, quando o país
se mobilizava para a guerra, Amadeo de
Souza-Cardoso, artista visual de Manhufe,
Amarante, com 28 anos, expõe em Lisboa cento
e catorze pinturas, reunidas sob o título
«Abstrações». Um grande escândalo na época
em que Portugal, país conservador na
periferia da Europa, tinha algum pejo na
aceitação das novas correntes artísticas,
onde o figurativo e o academismo davam lugar
a movimentos, como o cubismo ou o
abstracionismo. Amadeo, que em 1905
começara a estudar arquitetura em
Lisboa na
Academia de Belas-Artes, mudou-se para Paris
no ano seguinte e por lá permaneceu durante
8 anos. Viveu uns tempos no bairro de Montparnasse,
estudou nos ateliers de Jules Godefroy, Freynet e conviveu com vários criadores da
sua geração, tornando-se amigo de artistas
como Modigliani, Robert e Sonia Delaunay.
Foi o único pintor português a
conhecer e conviver com os maiores pintores do seu tempo:
Matisse e Braque, por exemplo.
Amadeo de
Souza-Cardoso começa por ser influenciado
pelo estilo arte nova. Depois experimenta um
estilo híbrido em que associa essas formas
lineares ao cubismo e ao futurismo,
utilizando linhas geométricas curvas. É um
artista de vanguarda no seu tempo o que
contribuiu para algum esquecimento
da sua obra e do seu valor cultural durante várias décadas. Participou no
Salon des
Indépendants (1911, 1912 e 1914) e em 1913
participa na primeira grande exposição de
vanguarda nos Estados Unidos, o
Armory Show,
ampliando as suas referências ao
Expressionismo alemão que terá grande
influência no seu trabalho. No início de 1918,
surge uma epidemia na Europa que irá infetar
e matar milhares de pessoas em todo o mundo.
Ficou conhecida como “pneumónica”, a gripe
provocada pelo vírus influenza H1N1. Entre
setembro e novembro desse ano, chegaram ao país,
milhares de pessoas retornadas das colheitas
em França, além de milhares de repatriados
portugueses que voltavam dos cenários de
guerra. De norte a sul de Portugal, iriam
morrer da doença um total de 50 a 70 mil
pessoas. Amadeo seria um dos infetados,
assim como várias outras pessoas da sua
família. Morreu no dia 25 de
outubro de 1918 em agonia respiratória,
tinha 30 anos. Amadeo fez parte duma geração
que foi duplamente sacrificada: uns morreram
em batalha outros caíram pela pneumónica,
numa época em que a informação era escassa
e as condições de vida muito severas. A
Grande Guerra terminaria oficialmente às 11
horas e 11 minutos, na manhã do dia 11 de
novembro de 1918.
Na década de 1980, a
maioria das obras que pertenciam a particulares
foi adquirida pela Fundação Calouste
Gulbenkian. No museu de Arte Moderna desta
Fundação em Lisboa, podemos descobrir
alguns importantes trabalhos deste pintor
talentoso e original, que absorveu muitas
das vanguardas europeias do seu tempo e que,
infelizmente, não pôde oferecer ao mundo
todo o valor da sua arte.
* Tela e Madeira, Óleo e Colagem, Sem Título, 1917 [ Amadeo de Souza-Cardoso ] - Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
Um dos grandes
problemas ambientais no mundo é o excesso de
lixo que é produzido. Cada produto
industrial que se consome, vem acondicionado
numa embalagem que invariavelmente é
colocada no contentor do lixo ou abandonada
algures. Apesar de nos últimos anos ter
havido uma maior preocupação na reciclagem e
reutilização de determinados materiais, o
facto é que em muitos locais do mundo, o
lixo é ainda atirado para o chão, para os
rios e ribeiras, acabando no mar.
São conhecidas as
enormes ilhas de plástico e microplástico
que flutuam nos oceanos [nature.com].
A maior dessas ilhas, no Pacífico Norte, tem
uma superfície maior que as todas as ilhas
do Reino Unido. A gravidade da situação é
tal, que os milhares de toneladas de lixo
que formam estas impressionantes ilhas, são
apenas uma pequena parte do problema, já que
a maior parte do lixo existente nos oceanos
acumula-se debaixo de água. Se não houver
uma mudança na forma como tratamos o
ambiente, em breve haverá mais plásticos do
que peixes no mar. Além do lixo que se
acumula longe do nosso olhar, há o lixo que
percorre milhares de quilómetros pelos
oceanos entre continentes e chega ao litoral
e praias de todo o mundo. São os mais
diversos objetos que dão à costa e que são
recolhidos pelos serviços de limpeza e
voluntários, de maneira a mostrar a todos
uma praia limpa de lixo visível.
Nos territórios
protegidos, reservas da biosfera, a beleza
natural é muitas vezes agredida com o lixo
internacional que é encontrado nas suas
praias. É o caso da reserva protegida de
Sian Ka'an, na costa caribenha do
México, património mundial da UNESCO e uma
das regiões do planeta com maior
biodiversidade. Em Sian Ka’an têm sido
encontradas embalagens de plástico de mais
de 50 países e territórios diferentes, como
refere Alejandro Durán, artista visual
mexicano, que usa o lixo que recolhe nas
praias para produzir as suas obras e alertar
para o problema do lixo nos oceanos. Alejandro Durán,
ao visitar pela primeira vez a reserva de
Sian Ka’an em 2010, ficou impressionado com
a quantidade de lixo que se encontrava
espalhado na praia. Decidiu então recolher
o lixo com outros voluntários, organizá-lo
pelas diferentes cores e formatos e
fotografá-lo. Ao longo deste tempo tem
recolhido as mais diferentes embalagens das
mais diversas origens: potes de manteiga
do Haiti, garrafas de água da Jamaica,
embalagens de produtos de limpeza e de
beleza dos EUA, Coreia do Sul, Noruega,
escovas de dentes, brinquedos, talheres de
plástico, etc, etc. Os seus primeiros
trabalhos realizados consistiram na
organização de grande parte do plástico
recolhido, sendo que a cor preponderante era o
azul. Ficou famoso o pequeno arranjo
enquadrado com o
céu e as águas azuis das Caraíbas: uma
obra efémera e ecológica. Com o lixo
recolhido e organizado nas suas diferentes
cores, Alejandro, tem organizado diferentes
instalações, com um plano muito simples:
usar o lixo recolhido e reutilizá-lo em
diferentes instalações. O seu plano
passa também por envolver as comunidades neste seu
processo de arte ecológica.
Hoje, a sua intenção é simples:
recolher o lixo, exaltá-lo, colocá-lo num
pedestal e exibi-lo.
Ver mais:
alejandro_duran_how_i_use_art_to_tackle_plastic_pollution_in_our_oceans
A partir da segunda
metade do século XVIII, num período rico em
mudanças, como seja a revolução industrial, a
independência norte-americana, ou a queda da
monarquia em França, fez com que muitos dos
paradigmas vigentes se alterassem
radicalmente. No mundo das artes e da
expressão visual e plástica em particular,
essa rutura com o passado também ocorre
nesse período. As artes visuais estiveram durante
séculos condicionados, sob o conceito
limitado das habilidades mecânicas, num
mundo fechado e imutável. É com as mudanças que ocorreram
com as revoluções operadas pela
industrialização e pelo declínio progressivo
do antigo regime aristocrático que surgem
novas filosofias e doutrinas que mudarão os
sistemas de ensino na Europa. Em Portugal,
as mudanças político-sociais produzem não só
o nascimento do ensino público secular, mas
também abrem caminho a uma valorização das
chamadas artes mecânicas e, claro, à criação
de um sistema público de formação artística. Será no século XX que
a educação artística se tornará uma área
fundamental nos currículos da Educação
Básica obrigatória. A mudança significativa
ao longo do processo de modernização
educativa surgiu com as novas interpretações
que as questões artísticas passaram a ter em
todo o sistema. A educação artística passa a
não se limitar apenas à formação específica
de artistas e torna-se uma área fundamental
na construção da pessoa humana. Se no contexto
medieval, a formação de artistas é organizada
com base na relação mestre-aprendiz,
confinada à oficina e assente em pedagogias
alicerçadas na destreza manual e na manutenção
do gosto e valores estéticos clássicos. Com
o desenvolvimento industrial e mercantilista, a formação artística
irá quebrar os seus
compromissos com os interesses corporativos,
sai da oficina, e passa a ser realizada em
aulas públicas que gradualmente ganham
prestígio social, até serem integradas na
Universidade na segunda metade do século
XX. Todavia, quer no ensino artístico, quer
no ensino geral, as pedagogias conservadoras
irão manter durante muitos anos os aspetos
“académicos”, centrados nos resultados
finais, como intransponíveis na didática das artes
plásticas e visuais. Com a queda
progressiva do regime aristocrático que ocorreu no século XIX
em Portugal,
para além da implementação das aulas
públicas para a formação de artistas, existe
a progressiva integração da educação artística
no domínio da educação formal. No início, a
Educação Visual e Plástica nas escolas
públicas, financiada pelo Estado, tinha
funções claras: a aplicação da aprendizagem
à formação profissional e à indústria. Será com as mais
recentes teorias, enfatizando a Educação
pela Arte e a Educação Estética, onde se
destaca mais do que a criação, a
criatividade, mais do que o artista, o
homem, e mais do que o especialista, o
cidadão, que a Educação e Expressão Visual e
Plástica serão constituídas como áreas
inclusivas de todo o sistema educativo.
* Uma aula tradicional numa escola primária
no início do século XX.
Isto a propósito
das incertezas quanto ao futuro dos
negócios, dos projetos, da vida que tanto
gostamos de ter devidamente programada e
assegurada. Em tempos de crise, são os mais
aptos os primeiros a tomarem a dianteira
para se adaptarem às mudanças. Grandes ou
pequenos, fortes ou fracos é na capacidade
de adaptação que está a sobrevivência.
Os gritos de
insatisfação perante as incertezas, ou ondas
de indignação que agora se levantam devido à
pandemia, fazem parte da natureza humana.
Ainda bem que assim é. Quer dizer que não é
fácil navegar em pequenas cascas de noz que
à primeira vaga se viram e à segunda se
afundam. Ter alguém que nos diga por onde ir
e o que fazer, requer um menor gasto de
energia, mas por outro lado retira-nos boa
parte da liberdade e limita-nos as escolhas.
A importância de ser dono e responsável
pelas nossas decisões, coloca-nos diante das
incertezas e vulneráveis perante o dinamismo
dos contextos onde nos situamos.
Na atividade
artística o que mais prevalece são as
decisões individuais e a aptidão especial
para quebrar regras. Os artistas, pela sua
irreverência, estão situados
nas margens da normalidade social e em tempos
de constantes confinamentos e receios nos
contactos físicos, a atividade cultural e
artística é das que mais se tem retraído. Os
mares por onde navegamos, são tortuosos para
todos, mas nas pequenas cascas de noz há
grande dificuldade em nos mantermos à tona.
Há que se reinventar e encontrar novas
estratégias para sobreviver. São tempos
estranhos mas também de novas oportunidades.
Mais que exigir
soluções à medida dos nossos pequenos
umbigos, há que repensar estratégias e
adaptarmo-nos aos novos contextos de uma
forma mais abrangente, onde haja lugar para
todos. Claro que o mundo é injusto. Pena que
essa perceção de injustiça só venha à tona
quando nos toca diretamente na pele.
Porventura é por isso que as injustiças
continuem a prevalecer. Enquanto estivermos
apenas preocupados com a nossa pequena casca
de noz, até no mar pacífico dificilmente
encontraremos uma brisa de vento que nos
permita chegar a um bom porto. * «O elemento humano, insignificante e perdido, encontra-se irremediavelmente submetido à voragem
violenta das ondas.», Naufrágio de um Cargueiro, 1810 [ Joseph Mallord William Turner ] - Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal
John French Sloan
foi um pintor que se destacou a representar
a Nova Iorque de inícios do século XX.
Nascido e criado na Pensilvânia, EUA, onde
incentivado pela família estudou desenho e
pintura, desenvolveu com outros companheiros
um estilo neorrealista que marcou a arte
norte americana onde se destacam pinturas
representando a vida cosmopolita daquela que
mais tarde viria a ficar conhecida como a
Big Apple. O seu trabalho em
Nova Iorque começou em 1904, tinha 33 anos.
Observava e representava a cidade numa
perspetiva realista, destacando quadros do
dia-a-dia nova iorquino. O importante eram
as pessoas e de como interagiram nos espaços
públicos. Nas suas obras destacam-se cenas
da rua, restaurantes, salões de beleza,
pátios, etc. capturando e interpretando a
essência da vida dos bairros de Nova Iorque.
South Beach é um
bairro de Nova Iorque, situado na costa
leste de Staten Island. Possui uma praia com
o mesmo nome. Quando Sloan a visitou pela
primeira vez em 1907 sabia que a mesma era
frequentada sobretudo por pessoas da classe
trabalhadora e não perdeu a oportunidade de
a retratar, no seu ambiente humano tão
característico.
A sua obra
South Beach Bathers (1908), representa
uma tarde na praia passada por pessoas
comuns: uma mulher em pé ajeita o cabelo no
chapéu enquanto interage com um grupo de
amigos num piquenique algo incomum, ao jeito
de
Le déjeuner sur l'herbe (Manet,
1863). Incomum porque no grupo de banhistas
devidamente equipados com os fatos de banho
da época, está um homem vestido como um
executivo saído do
escritório com um caranguejo na mão. É um
piquenique de cachorros quentes e
caranguejos pousados num pequeno lenço
estendido na areia. Não há talheres, não há
bebidas, é um piquenique bem estranho que
nos leva a pensar no ridículo da situação.
Ao contrário da
famosa
obra de
Manet
que pretendeu escandalizar a sociedade
conservadora parisiense de finais do século
XIX, esta obra de Sloan pela situação
ridícula representada, mostra-nos, talvez,
aquele que foi o piquenique mais exótico de
South Beach com caranguejo e cachorro
quente, numa amena tarde de verão. A pintura, como a
fotografia ou o cinema, permite montar
quadros e cenas ao detalhe que são uma
perfeita mentira, mas tão próximas da
realidade que facilmente as aceitamos como
verdadeiras. E o inverso também é real.
Quando hoje vamos a uma praia e encontramos
um grupo de amigos, uma família, usando
máscaras cirúrgicas, diríamos mesmo que
estamos diante de uma cena neorrealista, só
imaginável na mente de um artista. Daí a
beleza da arte: uma interpretação da
realidade, uma mentira que é real.
Amadeo: no cruzamento das vanguardas europeias
Ver mais
em:
http://hdl.handle.net/10362/46954
Washed Up: uma instalação ambiental
A educação artística na formação geral
A voragem violenta das ondas
Uma cena na praia
* South Beach Bathers , [ John French Sloan ], 1907-1908, óleo sobre tela, 66,04 x 80,65 cm - Walker Art Center, Minneapolis, EUA
O Triunfo da Morte
- 04/2020
Ao longo da história
da humanidade, foram registadas várias
epidemias provocadas por bactérias e vírus.
Uma das mais antigas, talvez seja a de
430-427 a.C. em Atenas na Grécia. Mas a mais
devastadora foi a chamada peste negra que no
século XIV matou aproximadamente 25
milhões de pessoas na Europa. * O Triunfo da Morte, [Pieter Bruegel, o Velho], 1562-1563, óleo sobre madeira, 117 x 162 cm - Museo del Prado, Madrid
Quando se fala dos
principais atores da história, nos livros,
na escola, no cinema ou na TV, o que vemos
são referências a grandes figuras masculinas
que terão influenciado a humanidade e a sua
história ao longo de séculos. Nesse grupo de
pessoas, destacam-se os cientistas, líderes
religiosos, militares, políticos e
filósofos. São poucos os artistas e poucas
as mulheres referenciadas. As artes, como as
entendemos hoje, com a sua forte componente
prática e manual, é tendencialmente
considerada uma atividade menos nobre que as
atividades predominantemente intelectuais. Sendo a nossa
sociedade, uma sociedade patriarcal baseada
fundamentalmente em valores
judaico-cristãos, onde o patriarca tinha sob
seu poder a mulher, filhos, escravos e
demais animais domésticos, não é de
estranhar que a história se faça no
masculino. O masculino visto como força
física e mental, poder, coragem,
agressividade, centrado na figura do homem
másculo e viril.
Não se estranhe
assim que predominem nos livros oficiais, os
homens como as grandes figuras da humanidade
e que mais influência tiveram na sua
história. Michael H. Hart em 1978 no livro
A Ranking of
the Most Influential Persons in History
apresentou uma classificação das pessoas
mais influentes da história e nenhuma delas
é uma mulher. Em Portugal, foi só
após a instauração de um regime liberal no
século XIX que foi possível uma mulher – em
1889 – concluir um curso superior na
universidade. Na questão do direito de voto,
só em 1911 uma mulher pôde votar em
Portugal, após requerimento para tribunal,
onde obteve sentença favorável. Na religião, nas
ciências e nas artes, os livros estão cheios
de nomes masculinos que fazem parte do nosso
imaginário na liderança e nas vanguardas. As
mulheres dificilmente tiveram um espaço de
destaque na história antiga da humanidade. Nas artes plásticas,
em Portugal, e no período anterior à
revolução liberal do século XIX, conseguimos
encontrar um nome feminino: Josefa de
Óbidos, a pintora do século XVII que se
especializou nas naturezas mortas e que foi
uma rara exceção à regra, quebrando muitos
dos cânones de uma sociedade conservadora,
ao estabelecer-se profissionalmente como
pintora. Foi só no século XX, que viriam a
destacar-se outros nomes como Aurélia de
Sousa (1866-1922), Vieira da Silva
(1908-1992), Menez (1926-1995), Maluda
(1934-1999), Paula Rego (1935) e Graça
Morais (1948), entre outras. Recentemente
temos assistido ao grande impacto mediático
de Joana Vasconcelos cuja obra assenta na
apropriação, descontextualização e subversão
de objetos pré-existentes e realidades do
quotidiano. Nos tempos atuais,
devido à globalização e à maior abertura
social e cultural da nossa sociedade, outras
mulheres têm desenvolvido atividade
artística na área plástica e visual,
revelando grande capacidade criativa e
particular sensibilidade estética. Um dos casos mais
interessantes é o de Susana Piteira, que tem
trabalhado sobretudo a pedra, com
intervenções sobre o território, seja rural
ou urbano. Um dos aspetos mais salientes na
sua obra, é a profundidade na definição das
formas, onde o objeto artístico ganha uma
forte dimensão poética, revelando
interessantes cumplicidades com o meio onde
se inserem. É neste contexto, de
diversidade e igualdade de oportunidades,
que é estimulante olhar o mundo e os outros
– na sua singularidade – e valorizar a
expressão livre e a intervenção nos
diferentes contextos, sem preconceitos nem
amarras. A
educação garante a apropriação colectiva dos
instrumentos do conhecimento, o
desenvolvimento de competências de autonomia
de aprendizagem, sentido crítico e criativo
e a participação cidadã. No século XIX quando
se pretendeu criar uma escola pública para
todos os moços e meninos (1), muitas vozes
se insurgiram, perguntando o que seria deste
país se toda a gente soubesse ler, escrever
e contar. Quem iria lavrar as terras? Quem
iria plantar as batatas? Nessa altura, no
tempo dos reis e das rainhas, mais de 75 por
cento da população portuguesa não sabia ler
nem escrever. Os ofícios aprendiam-se
sobretudo com familiares. Desse modo, a
criação de escolas primárias no país em todo
o século XX, serviu para dar às crianças,
não só a instrução – os conhecimentos, mas
também uma educação para o desenvolvimento
de competências. Depois, surgiram as escolas
comerciais e industriais e o ensino superior
politécnico, visando a formação de
profissionais nas diferentes áreas. Nas
artes visuais, criaram-se as escolas de belas artes
de Lisboa e do Porto, onde se ingressava com
uns 14 anos de idade e cujo ensino tinha como
princípio a sua aplicação à indústria. Como em outras áreas
do conhecimento, na vertente da educação
visual e artística – que é um âmbito
privilegiado para a contemplação, reflexão e
intervenção crítica – o que se continua a
fazer no ensino básico, embora por vezes não
pareça porque há algumas e boas exceções, é
continuar com os processos educativos do
passado, porque foi com esse modelo que a
maioria dos professores aprendeu. Nas últimas décadas,
sobretudo nos meios académicos, coloca-se em
causa os modelos únicos de
ensino-aprendizagem na educação visual,
centrados em conteúdos e técnicas e, onde
mais que educar e formar cidadãos autónomos
e interventivos, se continua a promover um
ensino muito vinculado ao antigo sistema
produtivo segundo pseudo-orientações
superiores. O que importa hoje,
nas escolas públicas do ensino básico, é que
se fomente uma educação artística para a
compreensão crítica da cultura visual e não
para o ensino de técnicas e performances do
passado. Esse é um desafio evidente quando
se analisa alguns horários e currículos das
escolas de 1.º ciclo e 2.º ciclo que de
interdisciplinaridade e flexibilidade
curricular têm muito pouco. Nesse aspeto, o
mais preocupante talvez seja o
conservadorismo e persistência dos modelos
antigos por parte de alguns pais e
educadores que continuam a ver a escola como
uma escola do século passado: uma escola
onde se preparam as crianças para a
resolução de fichas, testes e exames.
Então o que temos?
– Temos uma escola que educa para a
competição aguerrida, com classificações
para tudo e para todos e que em lugar de
integrar, promove a exclusão e rejeita a
diversidade.
(1)
António Aleixo, poeta
popular dizia que a senhora rica teve um
menino, e a pobre pariu um moço.
Segundo os
dicionários e enciclopédias, o conceito de
Arte é uma atividade humana ligada a
manifestações de ordem estética. Diz
respeito ao que se considera ser uma
criação dos humanos, quando são aplicados os
saberes e o domínio teórico e prático na
produção de artefactos – escultura, pintura,
música, etc, para serem admirados e fruídos. Os artistas,
criadores de arte, são os autores de algo
novo, original, que se destaca de outros
trabalhos, pela excelência das técnicas
utilizadas e pela criatividade demonstrada
em relação ao comum e usual. O adjetivo
criador – aquele que cria, que inventa algo
novo – tanto aproxima o/a artista de Deus ou
dos Deuses (os criadores de todo o
universo), como ao mesmo tempo reduz a sua
criação a um patamar inferior em relação à
obra natural. Por exemplo, a representação
de uma árvore em desenho, pintura ou
escultura, pode ser considerada uma obra de
arte pela complexidade das técnicas
utilizadas ou pela originalidade da sua
representação. No entanto, o elemento
natural representado, por ser uma “criação”
da natureza, é a obra original, é o modelo
primordial. Este é o entendimento clássico
da obra artística na representação da
natureza: uma mera cópia da criação divina. Em contraste com
o antropocentrismo dominante,
sensibilizados pela proteção da natureza e
pela sustentabilidade, assistimos hoje, à
fruição e contemplação da criação natural
como se de uma exposição artística se
tratasse. Em muitas regiões com paisagens
naturais protegidas, existem percursos e
itinerários para uma aproximação e
valorização dos espaços naturais e de outros
olhares para a natureza não humanizada. No planalto do
Colorado, situado no continente americano, a
oeste das Montanhas Rochosas, existem
algumas das mais impressionantes obras
naturais formadas pela erosão. A ação do
tempo: as chuvas, os ventos, as variações de
temperatura formaram ao longo de milhares de
anos paisagens naturais que impressionam,
não só pela dimensão, mas sobretudo pelos
detalhes, pela originalidade e diferença com
outras formações mais ou menos comuns do
espaço natural. É por isso que grande número
de visitantes se deslocam todos os anos aos
famosos parques naturais americanos situados
no planalto, como o Antelope Canyon, Bryce
Canyon, Grand Canyon, Zion, entre outros. No Utah, perto de
Moab no Arches National Park, existe um arco
natural em arenito vermelho com
aproximadamente 15 metros de altura e com
uma forma tão interessante, que passou a ser
um dos símbolos do próprio estado do Utah.
Conhecido como Arco Delicado (Delicate
Arch) é, de facto, uma autêntica maravilha da
escultura geológica. Para se chegar ao arco
há que fazer um percurso de alguns
quilómetros por uma área árida, numa
exigente caminhada, o que torna ainda mais
gratificante o encontro com o arco natural. Têm-nos ensinado,
ao longo do nosso percurso de vida, a
apreciar e fruir as mais variadas criações
humanas, mas o prazer e fruição que se sente
no contacto com obras naturais, fazem-nos
refletir sobre a própria dimensão humana. O
deslumbramento que muitos visitantes sentem
e exprimem perante as paisagens naturais,
são o reflexo de uma progressiva mudança de
paradigma, onde se começa a valorizar cada
vez mais o todo a que pertencemos e a urgente necessidade
de se defender o património natural, um bem comum de todos e para todos. (2019-09-13)
Cinco artistas em Sintra é uma obra de 1855 da autoria de Cristino da Silva (1829-1877) que regista um país conservador, desigual, em confronto com os novos paradigmas socioeconómicos do século XIX após a chamada revolução liberal.
Na atividade artística, a norma antiga ditava que o mestre e os seus discípulos trabalhassem na oficina com base na observação
de modelos à luz da vela e cópia e adaptação de gravuras. Os trabalhos, na maior parte das vezes elaborados por um coletivo, não eram assinados já que o sistema de mercado e de autor não estava instituído. A oficina de um mestre pintor, com os seus assistentes e aprendizes, era uma fábrica de peças, um centro de mão de obra para todo o tipo de pinturas e arranjos estéticos. Até 1834 o funcionamento das oficinas, dos artistas e de todos os ofícios manuais era regulado por um grémio — uma ordem profissional — que ditava quem podia ou não podia exercer a profissão. Com a instauração de um regime liberal, o grémio — chamado de Bandeira de São Jorge — foi suprimido, criaram-se as Academias de Belas Artes em 1836 e passou, em parte, a ser mais livre o exercício artístico em Portugal.
A pintura de Cristino da Silva, integrada no romantismo português, revela os novos conceitos da atividade artística
no país, que abandonava pouco a pouco as premissas antigas. Neste retrato pintado, vemos os artistas no exterior da oficina no registo de observação da natureza. Vemos a sua cara, a sua assinatura. A pintura romântica, transmitia uma visão melancólica do mundo, acentuando o egocentrismo e a valorização dos contextos locais, em oposição aos registos anteriores que evidenciavam o formalismo na composição e as temáticas históricas e mitológicas, como reflexo do racionalismo dominante.
A valorização do trabalho artístico e do artista como pessoa é destacado nesta obra, onde é evidente a clivagem social entre os personagens representados. Por um lado, os cinco artistas em destaque e reconhecíveis* que olham no sentido do observador da tela e ostentam uma indumentária urbana, por outro, as figuras populares, anónimas — os chamados saloios das zonas rurais de Lisboa — que observam o trabalho artístico: um velho, uma mulher, um jovem, e três crianças.
Esta visão social, com uma evidente assimetria entre o urbano e o rural, onde uns posam para o retrato pintado como figuras principais e os outros fazem apenas parte da paisagem, resulta de uma construção social secular que promove a desigualdade. É neste contexto de rejeição ao passado, que ao longo de todo o século XX surgiram grandes mudanças sociais como a emancipação feminina, quando as mulheres reivindicaram direitos jurídicos iguais aos homens, ou a educação universal, como direito de todos e de todas.
As melhorias em infraestruturas que surgiram em Portugal no século XIX após a chamada revolução liberal, chegaram, como se sabe, bastante atrasadas em relação ao que já acontecia noutros países europeus. As primeiras estradas de terra batida (pelo método McAdam) são deste período, onde se demorava umas 34 horas de Lisboa ao Porto numa carruagem puxada por duas parelhas de cavalos. Os primeiros liceus criados em cada uma das capitais de distrito, começaram a ser instalados a partir de 1836, sendo que em Faro só foi criado por decreto em 1851.
A nova visão do mundo preconizada no século XIX, permitiu abrir novas portas para um
novo contexto social que se desenvolveria posteriormente de forma abrupta e descontrolada. Hoje, no rescaldo de tantas mudanças, necessitamos ainda rever os desequilíbrios sociais e naturais que as diferentes formas de liberalismo não resolveram e que de certa forma acentuaram e continuam a acentuar. *
Cinco artistas em Sintra, de Cristino da Silva (1855). Os cinco artistas são Tomás da Anunciação, em primeiro plano, Francisco Metrass, seguido de Victor Bastos, Cristino da Silva, e José Rodrigues, sentado no chão
. (2019-07-29) Quase todas as atividades humanas resultam em eventos sociais. Eventos sociais onde as pessoas combinam encontrar-se. Não há muitos anos, um estudo concluía que a motivação principal para as pessoas se deslocarem a um festival musical, a uma feira, ou a outra qualquer festa popular, não era especificamente apreciar a atuação artística de alguém em especial, mas sim, conviver com os seus amigos, com a sua família. Outro dia, um jornal televisivo fazia uma reportagem num dos muitos festivais de verão que se realizam por aí, perguntando a uma jovem qual a sua opinião sobre a performance de um conhecido artista musical, a que a jovem respondeu, não ter conhecimento sobre esse momento específico. Afinal, a sua presença no dito festival, servia apenas para passar bons momentos num acampamento em interação com os seus amigos. Estar com os pares, pessoas que partilham interesses idênticos, é uma das necessidades principais de todos nós. Como hoje somos muitos, mas mesmo muitos, mais que no tempo das descobertas, é natural que hoje, 600 e tal anos depois, existam mais feiras medievais, que na dita Idade Média e, por conseguinte, mais encontros e interações. Como nos festivais de verão, festas, feiras e quejandos que quase todos os dias são noticiados, também os eventos menos populares, mais dirigidos a determinados grupos sociais, têm como principal propósito criar as condições favoráveis ao encontro de pessoas. É por isso que o momento mais alto de uma exposição ou do lançamento de um artefacto cultural, é a sua inauguração, o encontro e a partilha. É o momento em que as pessoas se encontram para cumprimentar os artistas, para apreciar a sua obra e, sobretudo, para se encontrarem, para se verem e serem vistas. Em Faro, há um belíssimo teatro, o Teatro Lethes, em cuja organização arquitetónica interior, há um aspeto delicioso: nas primeiras frisas junto ao palco, é mais fácil admirar a plateia e quem nela está sentado, do que propriamente o palco. Disse-me um amigo, que a posição das referidas frisas era estratégica: servia sobretudo para que determinadas pessoas da sociedade farense de então, pudessem também ver e ser vistas pelos outros em momentos culturais importantes. É por isso que os acepipes (comidas e bebidas), são tão importantes nos eventos culturais e interações sociais. É ao redor do alimento que melhor se convive, tornando os eventos, quase todos os eventos, momentos sublimes por natureza, onde podemos demonstrar o que há de melhor em nós próprios: cumprimentar e ser cumprimentado, a pertença ao grupo, o nosso bom gosto e a particularidade da linha estética com que nos apresentamos aos nossos pares. * Imagem do filme “Pollock” de Ed Harris: “Opening Peggy Guggenheim´s Art of This Century Gallery”. (2019-07-02) Obras que se auto destroem ou que foram criadas para serem destruídas, instalações ou exposições de obras com discutível valor estético. Parece que este passou a ser o novo paradigma das artes visuais nos últimos anos. É certo que na antiguidade o conceito de arte era substancialmente diferente. Arte, para os antigos, dizia respeito às atividades dos nobres, sobretudo à atividade intelectual. Com a modernidade, iniciada com a chamada revolução industrial, o conceito alargou-se e começou a incorporar não só os valores estéticos, mas também outros valores, como os de mercado. O conceito de beleza e de obra de arte, amplamente difundido em praticamente todos os manuais escolares, que repetem ano após ano as mesmas imagens, dão-nos a ilusão que a arte e os valores estéticos das suas obras se situam inevitavelmente entre Leonardo da Vinci e Salvador Dalí. Isto é, a Arte para a cultura ocidental tem sido sobretudo a produção de objetos para serem admirados e o próprio ato de contemplação. O urinol de Duchamp, exposto hoje na Tate Modern em Londres – uma réplica de 1964 de um original comprado pelo artista numa loja de material de construção em 1917 e enviado para uma exposição em Nova Iorque que o rejeitou – marca, talvez, o início do conceito de que é mais importante a ideia da obra do que o labor do artista na sua criação. O próprio Platão, há mais de 2300 anos, também considerava que pintores e escultores se limitavam a copiar a natureza. A natureza, ela sim – para Platão – é
a verdadeira obra, o resultado do ato sublime dos deuses que a idealizaram. Quando recentemente uma obra de Banksy se auto destrói após ser leiloada, o que nos quer dizer? Uma ação de marketing devidamente orquestrada? A contestação aos princípios do mercado? A valorização da ideia em oposição à contemplação do objeto? Certo é que as vanguardas artísticas cada vez mais se afastam dos conceitos de arte, quer como objetos ditos “belos” para serem contemplados, quer como de objetos ditos “valiosos” para serem vendidos e comprados. Hoje, cada vez mais, Arte é forma de expressão e como forma de expressão a Arte é comunicação e é tudo. Se no século XIX expropriaram e retiraram obras das igrejas e palácios para os museus, se no século XX se começaram a produzir obras para galerias comerciais, parece que todo esse paradigma se reconstrói, sem limites. Provavelmente hoje, as manifestações artísticas são uma habilidade, um jeito de comunicar, de contestar e, sobretudo, uma forma de alimentar os egos nesta sociedade consumista. (2019-06-11)
A
peste negra foi provocada pela bactéria
"Yersinia pestis", comum nos ratos e
transmitida aos humanos pela pulga desses
animais contaminados. A proliferação rápida
da peste deveu-se às más condições das
habitações sem sistema de saneamento básico,
reduzidos ou inexistentes hábitos de higiene
corporal e a existência muito elevada de
roedores nas cidades e casas, o que
facilitou a disseminação das pulgas e da
bactéria causadora da peste. A peste atingiu
tudo e todos, quer nas cidades como nos
campos, embora nas cidades, pela maior
aglomeração de pessoas, tenha sido mais
devastadora.
A morte, que de tempos
em tempos assolava as cidades através de
microrganismos invisíveis ao olho humano,
fazia emergir o medo e o desespero, não por
se ter chegado ao termo de uma jornada
dignamente cumprida, mas por um desconhecido
desígnio de antecipação de uma travessia
difícil para um outro "lugar" em que a
maioria não estava preparada.
A obra
O Triunfo da Morte de Pieter
Bruegel, o Velho, realizada entre 1562-1563,
simboliza os vícios mundanos sendo esmagados
pela morte, representada aqui por um enorme
exército de esqueletos. A devastação atinge
indiscriminadamente as várias classes
sociais. Como pano de fundo, uma paisagem
destruída pelas chamas sob um céu negro,
representando um mundo em "apocalipse", onde
árvores carbonizadas são decepadas pela
morte. Na linha do horizonte, barcos em
chamas afundando-se. À frente, em primeiro
plano, vemos a morte varrendo o espaço
outrora humanizado. O rei, nos seus últimos
momentos de vida, abandona o seu tesouro e a
morte, cavalgando com a sua gadanha, conduz
os vivos sem qualquer esperança de salvação,
para uma grande urna funerária.
Pieter Bruegel, o Velho, pintor da Flandres
da segunda metade do século XVI apesar de
ter viajado pela península itálica e ser um
artista do renascimento, manteve sempre a
sua ligação à cultura popular medieval,
desenvolvendo um mundo fantástico e
visionário tal como Hieronymus Bosch. Esta
representação
— O Triunfo da Morte, se bem que pode estar
vinculada às guerras entre católicos e
protestantes ocorrida no seio do Sacro
Império Romano Germânico no século XVI,
conduz-nos também às imagens da morte
generalizada,
provocada pelas epidemias recorrentes da
Idade Média. Hoje,
sabe-se que a proliferação de bactérias e
vírus se dá sobretudo pela
mobilidade e proximidade de
pessoas em espaços reduzidos. A obra de Bruegel no
contexto atual de globalização e de grandes
metrópoles superpovoadas é um alerta para a
necessidade de mudança de paradigma em
relação ao nosso modo de vida no meio
natural a que pertencemos.
O Espaço da Arte
Artes na escola para quê?
Francisco Gil
A paisagem natural como elemento de fruição
Francisco Gil
Cinco artistas em Sintra
Francisco Gil
A importância dos acepipes
Francisco Gil
A beleza da Arte e a Arte sem beleza
Francisco Gil