José Manuel Simões

Insólita Viagem

José Manuel Simões


Baixada Fluminense, alucinado surf train, Morro de Canta Galo, maconha e polícia | Sintonize a realidade que deseja e essa é a realidade que terá | No reino dos sentidos | Nestes tempos, precisamos aprender a amar de novo | Mentes abertas, artenativa e um novo Camões | No templo de Hare Krishna | Filosofia de comboio | Trip to a déjà vu place | Bombaim: Às portas do Inferno | A dois passos do paraíso | Tremores |


Sintonize a realidade que deseja e essa é a realidade que terá

Ouviu o burburinho da cidade, a roda de samba em frente ao botequim, o entusiasmo latente dos cariocas pela proximidade do final da semana. No cimo do morro, o Cristo do Corcovado. Desde a chegada ao Brasil, fazia oito dias – Bíblia na mão aberta ao acaso na varanda ensolarada da Casa do Estudante do Rio de Janeiro – pedia que Ele lhe encontrasse um espaço para morar. Entre orações, fascínios e literatura, sentiu saudades da mãe e ficou como que temeroso do futuro ao ler Francisco Valverde Arsénio, a alma... A noite ... A alma e a noite: “pode a minha alma residir de forma axonométrica na minha cabeça, pode viver no meu caderno ou fora de mim, pode habitar na minha caneta e nas metáforas em tons de azul, que não sei se as anáforas impregnadas de palavras têm espaço entre as paredes para a guardar...”. Pousou o poema antes de o terminar e ficou ali, na parte de baixo do beliche, entregue ao destino, cogitando sobre o que o Brasil lhe reservava, o odor quente e seco da alma que não envelhece nem morre.

A manhã despertou e, qual obra divina, o diretor do albergue perguntou-lhe se queria tomar conta de uma casa em Copacabana. Ficou impressionado com a resposta ao que acreditou ser o poder da sua fé a mover o destino e lembrou-se de uma frase que nesse dia à tarde tinha ouvido proferir a um rapaz com trejeitos de arrogância e academismo, barba, óculos redondos, a mão agarrando com demasiado aperto a da namorada, uma menina de aspeto frágil, no Amarelinho da Glória: “tudo é energia e isso é tudo o que há. Sintonize a realidade que você deseja e inevitavelmente essa é a realidade que você terá. Não tem como ser diferente. Isso não é filosofia. É física”.

No carro do ano do diretor, foi conhecer o casarão ao lado do Clube Olímpico, Rua Pompeu Loureiro, a seguir a um dos túneis que rasga a floresta carioca, a Toneleiros, um edifício antigo, três andares ocupados por teias de aranha, um salão à entrada e duas portas imensas bordadas a flores de metal ocre, uma escadaria para o sótão onde a penumbra tornava o ar ainda mais fantasmagórico.

O doutor explicou que tinha sido doado por um ator e que só poderia ser usado para fins de arte dramática. Não tremeu com o desconforto mas quase se assustou ao pensar vislumbrar um vulto por entre a penumbra. O astral era tenso e o cair da noite não ajudava. Mas como recusar?

Chegou antes do repor da energia elétrica e da água potável e, depois de ter percorrido a pé o calçadão do Morro da Urca até ao fim da Avenida Atlântico, subiu ao bar do 30.º andar do Rio Othon, a vista sobre a cidade ainda viva na madrugada.

Duas cervejas, e a coroa ao lado, com o assumir da demente melancolia, levou-o para o motel mais próximo logo após cinco frases e poucos minutos. Sussurrou-lhe que o fedor suarento do sovaco a excitava e gemeu desmesuradamente. Já tinha percebido a libertinagem carioca; sexo, drogas e rock n’roll rimando com pós-adolescência, sede de soltar as amarras da que definia como sendo “a caretice portuguesa”, dos tabus e preconceitos que até então lhe tolhiam a sede de liberdade.

Ligou para os pais e avisou com uma convicção que o surpreendeu: “Desculpem mas não vou voltar para Coimbra. Vou ficar no Brasil. Adorei este país; o Rio, cidade maravilhosa, fervilha de vida; gosto deste dinamismo e alegria; vou ficar”. Telefonava de um orelhão, entusiasmado consigo mesmo e com a firmeza evidenciada na agilidade das palavras, como quase sempre que falava. “Não se preocupem comigo que tudo vai dar certo”. Do outro lado, a mãe chorava a sua ausência, amor supremo e incondicional, e ele, tentando consolá-la...: “sei que a mãe reza por mim e que tudo vai dar certo. Estou a trabalhar como ator na televisão. Em breve irão ver-me numa telenovela.”

Ficou com o pi pi pi do telefone desligado por mais alguns segundos encostado ao ouvido e perspetivou que essa ideia da televisão até que poderia ser uma boa. Perguntou a um transeunte onde ficava a TV Globo e apanhou o autocarro 732 seguinte. “O jovem não é daqui não!”, reparou a companheira de assento porque “a forma como se agarra aí no varão como se tivesse medo que o ônibus fosse virar é por não estar habituado”.

No Jardim Botânico cruzou-se com uma criança sozinha que lhe pareceu ter Trissomia 21. Parou, olhou-a nos olhos e pressentiu-a sem rumo. Aproximou-se, tocou-lhe os braços de mansinho, perguntou-lhe se a podia ajudar. Uma lágrima escorreu-lhe pelo rosto delicado. Confortou-a. Entre leves soluços, a criança balbuciou que se tinha perdido do pai. Uns parcos minutos e aproximou-se um conhecido ator que o cumprimentou com um gesto de gratidão. Reparando no seu “jeito estranho de falar”, questionou-o sobre as suas origens. “Hoje liguei para os meus pais em Portugal e disse-lhes que, quando as férias acabassem, ia ficar no Rio pois quero ser ator de telenovela”, aproveitou. O elegante senhor, aprumado no seu terno de linho, pegou o menino pela mão, “por favor acompanhe-nos que vou levá-lo ao gabinete de dona Guta de Matos”. Apresentou-o, “desculpe, qual é mesmo o seu nome?”, e saiu, que tinha que ir.

As paredes brancas decoradas com quadros retangulares com fotos de estrelas familiares, reconheceu o Dr. Mundinho Falcão – José Wilker – ao lado da Gabriela – Sónia Braga –, Tonico Bastos, Coronel Ramiro – o imenso Paulo Gracindo, dona Guta por baixo, cabelos brancos, corcunda, inteligentíssima.

Promovendo-se de forma espontânea e exagerada – características da sua emotiva personalidade –, mentiu-lhe que tinha participado em peças do Teatro Académico de Gil Vicente, que era aluno da Universidade de Coimbra, que amava a arte dramática; e mais umas tantas simulações em falsificada representação. “Sabe, você é jovem, bonito, elegante, mas tem esse sotaque carregado e não é sindicalizado. Vá no Teatro do Tabuado fazer curso profissional e entretanto fale com o Roberto Doverbal que ele lhe vai arrumar umas pontas e figurações”. Despediu-se com uma vénia e um beijo na mão que lhe entregara um papelinho azul com dois números de telefone. Na rua, extasiado e quase perplexo, indagou-se a si mesmo: “o que serão pontas e figurações?”

Roberto mandou-o estar às 11 horas na Globo, deu-lhe uma saia de veludo e uma seta de ferro bastante comprida. Ia fazer de egípcio no programa do Chico Anysio, ele e outro, um de cada lado da talentosa estrela que mudava de personagem “enquanto o diabo esfregava um olho” e fungava copiosamente, diziam nos bastidores que por causa do pó.

No dia seguinte passou a saber, à custa de tantas repetições, o que era ser figurante, dessa vez de cinema, no filme “Um trem para as estrelas”, do realizador Cacá Diegues, com música do eterno Cazuza. No seu jeito apressado, rapidamente percebeu que o cinema não se compadecia com a sua vontade de fazer rápido e bem.

Representou várias cenas por ali, no comboio, na discoteca, a ler um livro – “Atos de amor” – a Betty Faria com os seios nus na discoteca do degredo sexual, ele que no filme só apareceria ao minuto 1:00:48 durante 3 segundos. Entrou na telenovela “Roda de Fogo” e o prenúncio concretizou-se. Fazia de fotógrafo das modelos, a Bruna Lombardi a tentar interagir, e ele, inicialmente tão convincente, a retrair- se perante a eminência da paixão à primeiríssima vista de carne e osso. Meu Deus, a Bruna Lombardi com aqueles olhos a brilhar como azuis águas-marinhas perguntando-lhe de onde é que ele era, se de Itália, que “niente”, França, “mais non”, e a vergonha de ser confundido com um portuga Manoel ou Juaquim a deixá-lo sem jeito.

Rapidamente perdeu a timidez e quando certa noite conheceu Gabriel O Pensador ficou claro o quanto, sobretudo no Rio de Janeiro, era importante estar atento, esperto, aprender a derrubar barreiras e a superar preconceitos. Gabriel tinha a perna quebrada por causa de uma “peladinha”, estava pálido; DuArte vislumbrou toques de São Conrado onde o rapaz versado na rima e som cedo aprendeu a transpor o gradeamento do luxuoso condomínio fechado onde cresceu para ir curtir com os amigos da favela da Rocinha, uma das maiores e mais pobres do Mundo, do outro lado da avenida, depois do ponto de ônibus onde se topam bandidos de arma de fogo em punho à espera de decidir o assalto.


No reino dos sentidos

Em Marraquexe, a cidade imperial que na antiguidade deu nome a Marrocos, convergem nómadas e montanheses, mulheres vindas do Anti-Atlas, vendedores de porções mais ou menos mágicas, domadores de serpentes, domesticadores de macacos, arrancadores de dentes. Um verdadeiro espectáculo de cor e exotismo.

José Manuel Simões

“Comei e bebei; que vos faça bom proveito. Sentai-vos em fila sobre os almofadões”, recebe-nos Hayat, tímida, olhos pretos como carvão, mãos decoradas com hena em motivos que começam com uma simples figura geométrica, em círculo, bordada de flores que formam um colorido padrão “para dar sorte”. Aponta delicadamente um canto do restaurante e afirma convicta: “É assim que nos ensina o corão. A arte de bem receber é um dever sagrado e um código de honra para os marroquinos.”

Hayat parece ser, como o seu povo, determinada e crente. Inchalah - oxalá, se Deus quiser - é a palavra que invariavelmente usa para concluir as frases que expressa em francês simplificado. Inchalah, a palavra mais ouvida neste país profundamente ligado aos valores sagrados da monarquia e da integridade territorial.

Marrocos é um país em mudança gradual. Um país de jovens virado para o futuro. Dotado de uma invulgar abertura geográfica que favorece a unidade nacional e o reforço das suas especificidades, é um privilegiado testemunho da história da humanidade. Um marco menos simbólico, porém, que o islamismo, religião que é um dos pilares do sistema sócio-político local.

Convivem as raças berbere, tuareg e negróide. O traje tradicional, djellaba e kaftan, mistura-se com as vestes regionais que variam consoante as tribos. A cultura árabe, islâmica na sua variante malgrebe, a arquitectura de adobe, o Mediterrâneo ocidental e o Atlântico, os três mil quilómetros de costa, definem um país heterogéneo e exótico.

O interior, com os seus maciços montanhosos, filadeiros estreitos e vales profundos, comanda a vida da maior parte da população que, sobretudo a mais idosa, é regida pelas normas do corão. Mantêm-se as tradições seculares, reflectidas nas medinas onde se testemunha o antigo modo de vida magrebe. Costumes enraizados coexistem, todavia, com a herança ocidental: calor e frio, secas e inundações, planícies e cordilheiras, penhascos e bosques, tempestades de areia e de neve.

Desde o Estreito de Gibraltar até à Mauritânia, Marrocos é um país surpreendente que toca o reino dos sentidos, com quatro cadeias montanhosas e rios bordados por franjas verdejantes até às portas do deserto cruzando gargantas.

Na cidade imperial

Vindo da costa, para chegar a Marraquexe, passa-se por uma zona desértica onde se encontram cabras a pastar em cima de argânias – árvores que só existem em Marrocos e que dão uma noz da qual se extrai um óleo alimentar –, algumas com mais de mil anos. As cabras são às dezenas, pretas, brancas, amarelas, cada uma no seu ramo. “Elas adoram estas folhas e não hesitam em trepar-lhes até ao cimo para saboreá-las”, conta um jovem que procura vender o óleo e que tenta a todo o custo beijar uma turista ocidental.

Na cidade imperial que na antiguidade deu nome a Marrocos, berberes misturam-se com árabes, convergem nómadas e montanheses, mulheres vindas do Anti-Atlas vendem cestos, narradores de histórias, músicos, bailarinos, escritores públicos, vendedores de porções mais ou menos mágicas, curandeiros, domadores de serpentes, aguadeiros, acrobatas, domesticadores de macacos, comedores de fogo, arrancadores de dentes, misturam-se num espectáculo de cor e exotismo. Estamos na praça Jamaa Al Fna, a maior curiosidade turística local, centro de vida urbana nas suas múltiplas manifestações de gente entusiasmada e participante. Cenário de conto de fadas desperto todas as manhãs pela chamada do altifalante instalada no alto dos 70 metros da koutoubia, farol espiritual da cidade. Nas sinuosas ruas da medina, homens de passo apressado dirigem-se à mesquita de Ben Youssef, erguida junto à Medersa, a gigantesca Escola Coránica fundada pelo sultão Abou-el-Hassan, 1331-1349, e um dos mais importantes monumentos locais.

Surpreendem as parelhas de cavalos puxando charretes com turistas de todo o Mundo. Um dos cavalos que puxa a nossa carroça é um puro sangue árabe, pleno de elegância e um passado rico em nobres conquistas. Em direcção à Avenida Mohamed V, uma das maiores da cidade, passa-se pela koutovia, construção do século XII, e chega-se às portas da cidade, castanha, movimentada, viva, onde o antigo e o moderno se cruzam em harmonia.

Prazeres dos olhos

Caminhar nas medinas é uma curiosa experiência para os sentidos. Sons, cores, mulheres berberes vestidas com takcheta, cobertas com djellaba e foulard da mesma cor, de cócoras vendendo pão árabe, gente apelando para que se visitem as suas lojas: “Entrem só pelo prazer dos olhos”, dizem com veemência. No interior, roupas e artesanato árabe-muçulmano ou mourisco, podendo observar-se o cuidadoso trabalho dos artesãos de couro cosendo segundo métodos ancestrais.

A principal atracção turística da cidade fica no souk Elbahja, situado no coração da medina, sendo o mais extenso do Magrebe, com 600 hectares. Neste espaço, classificado como património da humanidade, misturam-se ruas labirínticas, odores a açafrão, cominho, pimenta negra, gengibre, cravo e flores de laranjeira com tapetes berberes e trabalhos em couro, barro, latoaria, cestos, jóias, bordados, objectos de quinquilharia, babuchas, balghas - sapatos típicos marroquinos -, meias de lã, malas coloridas dos tuaregues, música constante de tambores e flautas.

Antes de utilizar os dirhams, moeda marroquina equivalente a cerca de 10 cêntimos, é indispensável que se regateiem os preços. O guia, invariavelmente chamado Mustafá e invariavelmente vestido com um tarbouch na cabeça e um djellaba de linho, algodão ou cetim, ajuda na orientação por entre o labiríntico souk. Depois de entrar numa loja é difícil sair sem comprar nada. Servem-nos um chá de hortelã e menta, mostram-nos os tapetes um a um, insistem na venda. Ao voltar para as ruas do souk, se se sentir perdido, o melhor é perguntar por uma das inúmeras saídas que vão dar a Jemmaa el Fna, a já mencionada mítica praça da capital berbere e principal ponto de encontro da cidade. No meio da medina passa-se por esplanadas de cafés míticos, como o France e o Argana, ou pátios de restaurantes célebres como o Yocout e o Ryad Tamsna, locais de eleição e monumentos que testemunham a história de um povo.

No centro da medina o primeiro monumento que se vislumbra é a koutoubia, ex-libris local que, graças aos seus 77 metros de altura, serve como ponto de referência. Perto, o palácio da Bahia, construído no fim do século XIX - protótipo do palácio árabe - e o El Badi, provavelmente o mais belo palácio do mundo muçulmano, edificado entre 1577 e 1593 a mando de Ahmed el Mansour após a vitória sobre os portugueses em 1577; hoje em ruínas que servem de enquadramento ao festival folclórico realizado anualmente em Maio e Junho.

Paraísos botânicos

Os jardins de Menara, com um monumento com tecto piramidal reflectido nas águas paradas de um tanque com 200 por 150 metros, e os jardins de Majorelle, onde abundam bambus gigantes e papiros, são dois locais a visitar. Este último, criado em 1924 pelo pintor francês Jacques Majorelle, é um paraíso botânico às portas do deserto, sendo o seu actual proprietário o costureiro Yves Saint Laurent.

Conheça ainda a palmerie de Marraquexe, a cerca de 10 quilómetros da medina, imenso oásis tropical com cerca de 13 mil hectares de palmeiras irrigadas pelos khettara, engenhoso sistema de captação de água de poços e cisternas, alimentadas por um outro igualmente engenhoso sistema de galerias subterrâneas.

As avenidas são bordadas por flores, os espaços verdes bem cuidados, as ruas limpas como em nenhuma outra cidade do país, a muralha cinturada de rosas, a luminosidade invulgarmente bela.

Com estilo, elegância e personalidade, o hotel Mamounia merece, no mínimo, que se respire a sua arte, o conforto e o luxo circundante. À entrada, um porteiro fardado a rigor, vitrais, fontes, pedra talhada. Ao lado, um esplendoroso casino.

Pudicos e conservadores

Apesar de apenas 1,6% da população total aceder à Internet - nos Estados Unidos a percentagem é de 59% - proliferam os cyber cafés, dirigidos essencialmente aos turistas. No recomendado Albergue Ali - onde encontrei, deitado no terraço por debaixo das estrelas, um australiano recém viajado por Portugal - conheci Hadji que, aparentemente sem motivo, exclamou: “vocês, estrangeiros, não nos compreendem. Não compreendem que nós somos pudicos e conservadores”. E porque é que me dizes isso?, indaguei. “Porque está lá fora uma turista sentada numa cadeira a apanhar sol com uma mini-saia e isso, aos nossos olhos, não é correcto”. Perante a minha curiosidade, prossegue: “Há muitos estrangeiros ricos que chegam aqui e se instalam. Compram as nossas casas tradicionais e nem sequer se dão ao trabalho de compreender a nossa cultura e a nossa maneira de ser. Para além disso têm um nível de vida que corresponde a um verdadeiro insulto à miséria das gentes pequenas que habitam na medina. O fenómeno está a chegar aos limites e a prová-lo estão os cada vez maiores incidentes entre os residentes locais e esses novos emigrantes”. Das 40 mil casas tradicionais situadas no centro da cidade, classificada de património da humanidade pela Unesco, 406, ou seja 1%, são propriedade de não marroquinos.

O comércio, o turismo e a cultura, prosperam na cidade, graças à sua privilegiada situação geográfica, ponto de chegada e partida de estradas, confluência de norte e sul, deserto e oceano, riqueza histórica.

De madrugada ouve-se, cinco vezes quase seguidas, a chamada para a reza sagrada em nome de Allah. Infelizmente, o acesso às mesquitas - com excepção para o Mausoléu de Mohammed V, em Rabbat, o Mausoléu de Moulay Ismail, em Meknès, o Mausoléu de Moulay Ali Chérif, em Rissani e a Mesquita de Hassan II, em Casablanca - é proibido aos não muçulmanos. No entanto, e apesar de o islamismo ser a religião oficial, coexiste com outras confissões e credos, até porque isso está garantido na constituição. A vida religiosa segue, todavia, o calendário muçulmano.

De alguns pontos da cidade vêem-se as montanhas do Alto Atlas com as suas altivas silhuetas onde se pratica esqui, de Novembro a Maio. O ponto culminante deste maciço, o Toubkal, tem 4.176 metros de altitude.

Partimos em direcção a Sidi-Mokhtar, região desértica, onde se encontra um oásis junto a um rio completamente seco. Até Âit-Ourier, rumo a Taddert, já no deserto, percorrem-se montanhas cobertas de pedras com coloridos cristais, aldeias minúsculas com casas feitas da mesma pedra amarela, enormes maciços, íngremes, e o Atlas, imponente e dócil, lembrando praças enfeitiçadas com as suas torres hirtas afagadas pelo céu.


Nestes tempos, precisamos aprender a amar de novo

Música é união, comunhão, laços, emoção. Juntar mil músicos (!!!), cantores, guitarristas, baixistas, bateristas, de todas as idades, sexo, preferências sexuais e etnias, em locais de eleição em volta de canções emblemáticas que fazem parte da vida de muitos de nós, é algo de admirável.
A primeira destas canções que juntou mil músicos e que um amigo me deu a conhecer - daí se intitular “Rockin’1000” - foi gravada em Cesena e tinha como objetivo pedir aos Foo Fighters para irem atuar naquela região de Itália, “terra de paixão e criatividade”. Daí resultou “um milagre”, como o intitulou o sonhador desta ideia, Fabio Zaffagnini. A canção chama-se sintomaticamente “Learn to Fly” e pode ser ouvida e vista ao ponto de nos espantar. Não é certamente por acaso que o vídeo foi visto mundialmente por mais de 32 milhões de pessoas.

Depois desta, que ouvi vezes sem conta de seguida, encontrei outras canções memoráveis igualmente tocadas por mil músicos como “Bitter Sweet Symponhy” dos The Verve, Highway to Hell, dos ACDC, neste caso gravada no Estádio de França em Paris, e no mesmo local, em 2019, um tema conhecido de todos nós, “Smoke and Water”, dos Deep Purple. Regozijei particularmente ao ouvir os 1000 a interpretarem a minha banda rock francesa preferida de sempre, os Telephone, com “Un Autre Monde”!!!

De busca em busca, encontrei “I Was Made For Lovin’You”, dos Kiss, “Bohemian Rapsody”, dos Queen, “Another Brick In The Wall”, dos Pink Floyd - neste caso com 400 músicos e um coro de crianças - “Enter Sandman”, dos Metallica, com 500 músicos, “Where is My Mind”, dos Pixies, “21 Guns” dos Green Day tocada por 70 músicos no Strykovskiy Park, Samara, Rússia, “Should I Stay or Should I Go”, dos Clash ou, e neste particular por gostar muito da Holanda, dos holandeses e desta fabulosa canção do Neil Young, “Rockin in the free world”, gravada por 250 músicos no meio da cidade de Haarlem.

Sei que muitos vão considerar estas canções, aqui tocados e cantadas em simultâneo por centenas de pessoas no melhor da sua felicidade e emoção, muito barulhentas e nem sempre interpretadas em uníssono. Mas que importa isso?!... É rock, e por rock ser, deve ser tocado muito alto, muito vivo, com muito sangue quente, vida em nós.

Nestes tempos em que não é fácil viajar, procurei várias vezes sonhar acordado sem sair do quarto, usando principalmente a música como catalisador, componente essencial da minha interna combustão. E, neste particular, duas canções ajudaram-me a processar reações, a acalmar, a encontrar caminhos alternativos à viagem, reagindo com uma menor ativação de energia, quase sempre parado, exercitando novos sentimentos e formas de amor, como a gratidão, nomeadamente a Macau por me ter poupado ao vírus, e à vida que me concedeu o privilégio de entre milhões de espermatozoides me deixar nascer. É que, desculpem-me algum exagero, encaro o facto de ter nascido como sendo o maior milagre da minha existência. E sim, as duas canções foram, são, “Live Lounge Allstars - Times Like These”, BBC Radio 1 Stay Home Live Lounge, cantada e tocada a partir de casa por músicos que na sua maioria desconhecia mas que me continuam a deixar em mim esta sensação de que em tempos como estes em que vivemos, devemos aprender a amar de novo.

A outra é “Stop Crying Your Heart Out”, BBC Radio 2 Allstars, escrita e composta por Noel Gallagher, interpretada por inconfundíveis vozes como as de Bryan Adams, Cher, Lenny Kravitz, Kylie Minogue, Robbie Williams, entre muitos outros, unidos em solidariedade, comunhão de afins, laços de irmandade, emoção até às lágrimas, compaixão, amor pelo próximo.


Mentes abertas, artenativa e um novo Camões

Horas depois de ter chegado a Macaé, ao percorrer sem direção a rua principal, a Rui Barbosa – que escreveu “De tanto ver triunfar as nulidades, De tanto ver prosperar a desonra, De tanto ver crescer a injustiça, De tanto ver agigantarem-se os poderes nas mãos dos maus, O homem chega a desanimar-se da virtude, a rir-se da honra, a ter vergonha de ser honesto” - ouviu alguém a declamar poesia. Parou; identificou o lugar concreto de onde vinham as vozes, abriu uma porta, subiu uns degraus, abriu uma outra porta, entrou e surpreendeu-se com tanta gente bonita. Findo aquele poema, dito por uma voz musculada, passaram-lhe o microfone para a mão. Com o ritmo cardíaco em aceleração súbita, fez uma emocionada colagem de palavras suas e de outros poetas portugueses: “Bate levemente, Como quem chama por mim, Será chuva ou será gente, Gente não é certamente e a chuva não bate assim”. Olhando na direção de uma menina, aos seus olhos a mais formosa, prosseguiu, agora mais excitado que nervoso: “É fogo, Fogo que arde sem se ver, Uma luz, Um brilho, Olhos raiando por te ter, E um coração, Um coração a bater”. Entre aplausos alguém pegou o microfone de volta: “diretamente de Portugal...Camões!!”. E assim ficaria conhecido em Macaé e no Brasil: Camões, o poeta.

A qualquer bar que fosse pediam-lhe para recitar um poema. Cada vez mais ousado, convicto, subia a uma cadeira e recitava, de improviso, deixando jorrar as palavras, soltas e com sentido, sempre emotivo, laivos de performer e alguma arte, quase sempre dramática, a voz grave, metálica, conectado com a terra e o espaço celeste.

Um argentino que estava hospedado no 3 estrelas onde Camões já dava cartas ao balcão, sobretudo pela simpatia e fluência de línguas, convidou-o para uma festa na Praia dos Cavaleiros. Para sua surpresa era o mesmo grupo, o da poesia, que fazia uma festa transmitida ao vivo pela Rádio Macaé e onde a elite cultural local revelava palavra lavrada em mel. A dois passos do mar e do vento que soprava solene, a carne vazia abandonada.

A casa, que viria a ser o Tóquio Bar, tinha jardim, um telhado de pagode chinês, vidro e madeira. O ambiente estava esplendoroso, com gente ilustre e muito charme. Um rapaz que mais parecia uma boneca de porcelana falava que “com algumas pessoas você perde tempo; com outras você perde a noção do tempo”; “os abraços foram feitos para expressar o que as palavras deixam a desejar”. Alguém recitou Joaquim Pessoa focado na vida, que “é exigente porque é generosa. É dura porque é terna. É amarga porque é doce. É ela que nos coloca as perguntas, cabendo-nos a nós encontrar as respostas. Mas nada disso é um jogo. A vida é a mais séria das coisas divertidas”.

Dauro Franco declamou “Só um Deus pode ter a vida eterna ou mesmo um curto instante entre as suas pernas”. Camões escreveu para a mesma menina, a Norinha Borges, por quem pensou estar apaixonado desde que lhe tocou o olhar, primeiro minuto lá na casa da rua Rui Barbosa onde, numa banheira sem água, tinham acabado a noite a poetizar. Subitamente ouviu alguém a recitar o que tinha acabado de escrever para Norinha. Aquilo era confidente, pensou, algo envergonhado, recostado num sofá do primeiro andar. Desceu as escadas e viu-a abraçada a um jovem que o olhou com carinho, um olhar que parecia dizer “seja bem-vindo porque vem por bem mas ela já tem namorado”. Fernando Marcelo, o namorado, poeta, ativista, ecologista, cultura enraizada em dois pais cultos; a Lucy, psicóloga, fazendo a diferença com sensibilidade e bom senso, recebendo o Outro de mente aberta; e o Guarasil, um homem que apesar de ouvir mal via muito além.

Fernando Marcelo era sobretudo um dinamizador cultural. Tinha um jornal, o “Artenativa”, onde as gentes das letras, das palavras e das imagens davam asas à liberdade de criar para uma imensa minoria, e um varal de poesia que ajudou a mexer com as consciências e a colocar em causa o estabelecido. Ihoanna e Marcelo Puertas, filhos acabados de serem bebés e a darem os primeiros passos com as palavras - Marcelo guarda religiosamente o seu primeiro poema, escrito a duas mãos com Camões - também estavam por ali a beber da cultura. Martinho Santafé, copo na mão e palavra solta, usava o microfone: “Meu amor, eu e você temos algo em comum. Você bebe coca-cola e eu bebo rum”.

No final da noite, Camões rolava na relva daquela casa de charme - onde viria a morar durante um ano - com a cunhada de Martinho, bocas entrelaçadas em prazer, Santafé dizendo um poema que Camões nunca esqueceria: “o pássaro elétrico emite passaportes para o céu. Na orquestra dos fios rima voo com azul. Deflorando a manhã como um helicóptero bêbado”. Fernando Marcelo proferia em tons de amor que “onde quer que vá levarei sempre comigo a sensação de que uma parte de mim anda por aí em forma de mulher, vento ou poesia”. Sandra Oliva Wyatt construía jogos magníficos com as palavras, poemas sem fronteiras: “Aponte, para dentro de si, a ponte que religa a natureza que aflora fora, sem nunca abdicar de sê-la”, vampirizando palavras que escorriam húmidas na noite suada, a brisa do mar, a madrugada deliciosa, a saliva discorrendo pela boca. “Visão de poesia sugando o poema para dentro deflorando no poeta a sentida inspiração!”. Sandra tinha um jeito de tratar as palavras que era novo para Camões, uma desconstrução criativa que desconecta as sílabas e as deixa voar até às suas próprias nuances, poemas in memoriam, metamorfose também de corpo que forja “a forma da madeira esculpindo a derradeira hora. As cinzas são restos mortais das brasas que pai aqueceu do frio a família descendente de agora. Lágrimas são transformadas em canto que ri e chora. O amor é feito de asas...”. Havia a presença inspiradora de Cláudio Porto que a doença levou; Bebeto, sublime, escrevia muitas vezes em retribuições e suspiros de Rainer Maria Rilke: “Mais do que a volúpia e dor Maior que a vontade e resistência Solitária forma silenciosa e durável De amor e desejo. Vejo nos animais encontro nas plantas. Não por gozo Nem por dor Mas por necessidades maiores Que a volúpia Que a vontade e resistência. Vida que se renova. Ondas de espumas brancas Abri-me os olhos. Sorrisos, crianças, seres alegres Sémen que se faz fruto. Ilhas da vida Transbordai em mim sua fecundidade Tornai-me grávido Em constante maternidade Solitária, de beleza e amor”. Paulinho Moraes servia com requinte, um sorriso único finalizado com uma risada inconfundível, os olhos a fecharem-se na cabeça ligeiramente tombada em bailado sincopado de muitas boas ondas. Artur Gomes, homem de Campos e de gumes, declamava, pausadamente, “com os dentes cravados na memória Soletro teu nome C a b o f r i o barco bêbado naufragado fora do teu cais Caminho marítimo para as Índias por onde talvez já passou meu pai”.

Camões sentia-se em casa, piscou o olho a Martinho Santafé depois de ter declamado “Um urubu pousou em minha sorte”; pegou em “A nau dos corvos” de Ruy Belo que estava em cima da mesa e que mesmo lhe parecendo descontextualizado apreciou. “De súbito ao cair de mais um ano sou por instantes sinto-me ao cair da tarde do sol que antes brilhante é luz lustrosa e pegajosa agora à superfície da calçada na humilhante morte de quem era alto eterno e dominante sou ao cair da tarde de um ano que cai eu o poeta o instalado o mais que muito aburguesado um coletivo passageiro num elétrico mas só supostamente anónimo ou popular...”. Aldo César escreveu-lhe alguns dias depois: “A paixão que ti demora, É a fórmula da tua vida, E a vida de tua paixão, É a forma sem norma, É a fórmula de ti, Nesse imenso cubículo espacial que é seu útero in te ira mente universal”.

Por vezes, encontravam-se para recitar poesia, dando vida e voz a uma arte tradicionalmente oral, improvisarem, escreverem a várias mãos. Uma das mais frequentes parcerias era a que unia Camões, Dauro Franco e Fernando Marcelo: “E a lua se põe em mim escandalosa Pouso um beijo na rosa Pantera negra Enterrada no jardim Em ocaso, luz e por de mim”. Fernando improvisava “Quando minha língua Entra em ti Teu sabor geme”, Camões respondia com “Cores de luzes Caras de seres Poetas cantando saberes”. Camões jorrava poesia da alma enviada aos corações que acolhiam o seu corpo em abraços de mãe. Sentia-se confortável por entre sorrisos encantados e esperanças sem fim. As suas manhãs acordavam sem muitas vezes ter dormido, melodias soando com o sol a querer brindar alguma felicidade que sempre existia por ali, rendendo graças à Primavera, a da poesia e a do amor, lembrando Bertolt Brecht: “Se não houver frutos Valeu a beleza das flores Se não houver flores Valeu a sombra das folhas Se não houver folhas Valeu a intenção das sementes”.

Foi então que apareceu Danjavi – que lhe chamava Joma Dassissi – para lhe alimentar o ego, dar-lhe muito e bom sexo, partilhar poesia. Ela escrevia-lhe “És como tímido e escandaloso És como o mar imprevisível Dependes da Lua” e ele respondia-lhe “Encontro-te nos carinhos que me fazem crescer, Caminhando no cume de minha montanha, Meu sonho real de ser totalmente feliz”.


No templo de Hare Krishna

Um grupo de jovens, vestes laranjas e um tufo de cabelo na cabeça rapada, aproxima-se da linha 7 e por lá fica a cantar: “Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare”. São devotos de Krishna, conheço o cântico, sorrio. Decido ir ter com eles e meter conversa com uma moça morena. Chama-se Nooran e tem um olhar puro e magnético. Convida-me a ir com eles a uma cerimónia num velho templo perto do Regency Hotel. Aceito pelo fascínio que ela me desperta e pela minha busca interior, mas não imaginava que por lá iria ficar durante 22 dias, com Nooran sempre por perto, afável, como se me quisesse proteger. Ou seria converter?

Deixei-me levar, entrando num estado de oração e meditação, o culto da alma que sei nunca morre. A atmosfera é solene, a paz reina no ar, oro, oro muito, peço a Deus que me mostre o caminho, que me encha o coração de alegria. Rezamos em círculo, um terço enorme de bolas de madeira na mão, esporadicamente comemos, apenas o essencial, frutas e vegetais. Nenhum dos elementos do grupo come carne, bebe álcool, fuma ou toma drogas. Constato que vivem juntos, em comunidade, têm os mesmos hábitos, costumes e normas, cultivam a alma em função de um ser superior, Krishna, mensageiros do que acreditam ser uma divina graça. Tal como eles, também eu acredito numa outra vida para além desta e daqui. Fico amigo de Nooran e de Hari-Nam, nome que significa servente das missões de canto de Krishna, jovem de traços orientais de ascendência vietnamita, uma bolsa branca na mão com as peças de madeira correspondentes a cada oração ou hino que canta em tom leve, quase em surdina, hinos de amor, por vezes acompanho-a ajoelhando-me, agradecendo, adorando, orando. A música de cítara inebria-me os sentidos, também eu canto, eles dezenas, talvez centenas de vezes ao dia, “Hare Krishna, Hare Krishna, Krishna Krishna, Hare Hare, Hare Rama, Hare Rama, Rama Rama, Hare Hare”.

Por vezes, ainda de madrugada, acordamos ao som de uma voz gravada: “a tua alma foi-te dada no momento em que foste gerado, fruto da relação entre os teus pais. Aquando da tua formação tens a consciência da vida que tiveste anteriormente; esqueces no momento em que nasces, quando puxam a tua cabeça, desmaias e entras neste plano. Esqueces então todo o teu passado para começares a viver uma nova vida, aprendendo as coisas erradas que já os pais dos teus bisavós lhes ensinaram, mas agora em ti, cada vez mais errado através dos tempos”, reforça.

Richiquiche, “servo do amor divino”, gosta de me falar. Em longos monólogos revela que acredita que há́ apenas um só́ Deus. “Crito, Buda, Jeová, Krishna, são apenas mensageiros em diferentes tempos e lugares desse mesmo e único Deus, supremo”, exclama, convicto, antes da 15.ª oração do dia.

Quando não reza Richiquiche é um falador; os seus monólogos duram horas, as ideias correm-lhe depressa, a vontade de falar desse Deus é tão grande que não se consegue conter. Sorri sempre. Tal como todos os outros, parece ser realmente feliz.

Tem 27 anos. Pergunto-lhe se pensa ficar aqui durante toda a sua vida: “estou certo disso. Que iria eu fazer numa reles vida material?”, responde-me com uma luminosidade no olhar que me espanta. Mesmo que, aparentemente, privados, sem mulher ou homem, diversão ou arte, conseguem um estado de aparente contínuo bem-estar. “Para que iria eu trabalhar no mundo material? Ganhar dinheiro, comprar uma casa e um carro, correr de um lado para o outro apressado e sem paz? Aqui só́ como o necessário, não tenho problema nenhum, não olho para o relógio nem preciso de cumprir horários, não me canso, vivo em paz e serenidade. Mesmo quando cuido de uma das nossas dez vacas, cultivo os nossos legumes, cozinho para todos ou vou espalhar a nossa palavra à cidade, sinto-me bem. Sinto-me sempre bem. Porque penso e canto o nome de Krishna. Sabes, estou certo de que, se cumprir sempre para com Ele, nunca nesta vida irei voltar a sofrer ou a ter problemas. Porque iria viver a má vida material lá de fora se poderei ser feliz todos os dias da minha vida aqui dentro?”. Acrescenta Hari-Nam: “Observa uma foto de quando eras pequeno e compara com o que és agora. A tua alma é a mesma, apenas o teu corpo se vai transformando. Então, o que achas? Deverei eu, deveremos nós, cultivar o nosso corpo, dando-lhe carne, ou alimentar a alma, meditando, fazendo orações ao nosso Deus, o todo poderoso? A mente está sempre a fugir do nosso corpo, a pensar no passado, a programar o futuro, mas nunca ou raramente a viver o presente, o momento. Sou de e para Krishna, adoro-O”, aponta para uma menina pequena de estatura, pureza no olhar. Tal como todos os outros, crê que foi Deus que me trouxe até aqui.

“Foi a sorte, a mão de Krishna que com a sua bênção e o seu poder me indicou o caminho. Como o indicou igualmente a ti no momento em que te aproximaste de Nooran”, acredita Hari-Nam, inspirando-me confiança.

A campainha soa no silêncio da madrugada, todos se levantam ao amanhecer, com o nascer do sol, o toque indicando que brevemente o pequeno-almoço estará́ preparado. Depois de um banho numa casa de banho bastante rústica dirijo-me ao templo central onde todos se encontram de cabeça no chão a rezar a oração de agradecimento pela refeição que se irá seguir.

“Primeiro, temos que oferecer a comida a Deus, pois tudo o que fazemos e tudo o que temos a Ele o devemos”, refere Nooran, já na mesa, curiosamente uma frase que a minha avó me costumava dizer no mesmo tom. Pergunta-me se acredito na imortalidade do espírito, se acredito em reencarnação, se acredito nos ensinamentos do Livro dos Espíritos, se Deus habita em mim. Aceno-lhe com a cabeça em sinal afirmativo. “Então acredita que o teu espírito foi planeado para viver esta tua reencarnação.”

Naquele momento percebi que não valia a pena. Não valia a pena correr, sofrer, pensar demais, preocupar-me com o que quer que fosse. O que tiver de acontecer, acontecerá, disse para mim mesmo, compreendendo que quando sofro não mudo nada e que o meu êxtase não é garantia de tranquilidade duradoura. Tudo virá a seu tempo, independente dos meus desejos. Aconteça o que acontecer, quando acontecer, como acontecer, ou mesmo que não aconteça, o importante é estar em paz.

Sinto-me bem, consciente que o poder do amor a Deus pode transformar todos os problemas numa gota de água, que esse poder é a chave de tudo, uma parte do nosso amor incondicional, não palpável, não carnal. O que neste momento sinto é uma felicidade serena e silenciosa que me faz bem, talvez reflexo do trabalho interior que tenho vindo a fazer. Há́ quantos dias cheguei aqui? Mais do que nunca estou a aprender a conhecer-me, a valorizar-me, a celebrar o meu amor ao supremo. Uma felicidade que cura as minhas mazelas, as que me assolam desde pequenino, uma felicidade leve, verdadeira, simples e constante. A decisão de receber Deus dentro de mim é só́ minha, depende apenas do meu interior, da minha força, querer, vontade, mas mesmo essa decisão eu não quero tomar agora. Procuro-me e isso é o bastante.


Filosofia de comboio

As últimas réstias de sol tentam romper por entre as frestas da imunda janela do comboio, lá fora as árvores raras, o coração vazio da Índia, as palavras dos meus companheiros de improvável viagem coladas em desalinho aprumado, saltando das caraterísticas geográficas para a economia, da cultura para a política. “A primeira-ministra Rajive Gandhi foi assassinada por movimentos extremistas que não aprovaram a sua decisão de enviar tropas indianas para o Sri Lanka. É preciso não confundir Rajive com Indira Gandhi, aquele morto pelos sikhs, gente que se cobre da cabeça aos pés, que possui a sua religião própria e os seus templos em toda a Índia”, conta, pausadamente, Sitaram. Joginder completa: “A Índia é muito difícil de entender. É quase um sub-continente, com castas e religiões antagónicas. Nem nós mesmos nos conhecemos”. Recordo-me de um poema de Poliana Oliveria: “Hoje acordei com vontade de ser mais eu, de me olhar no espelho e falar que eu quero, eu posso e consigo. Que sou muito além do que imagino; que posso surpreender-me comigo mesma, e que a minha felicidade não depende de ninguém além de mim...” M.Ahmled – leio-lhe o nome do lado esquerdo de uma blusa verde escura - vem à carruagem perguntar o que queremos comer. As opções são escassas: sopa de tomate, chapati, arroz branco cozido com carne e legumes e frango de caril.

Sitaram é bancário. Comunica com Joginder em inglês, “a língua que une o nosso povo”. Sitaram fala tamil, Joginder punjab da zona de Punjabi, línguas que não se cruzam nem se compreendem. Oficialmente falam-se 14 idiomas em toda a Índia. Na prática existem centenas. Inúmeros dialetos numa mesma região. Tão diversos como este país de castas e gente tão estranha, capaz de provocar no forasteiro os sentimentos mais antagónicos. Uma das mordomias de viajar em 2a classe a.c – com ar condicionado – é ter direito a um lugar num compartimento com quatro camas. O revisor confirma o bilhete e distribui um pacote de papel contendo dois lençóis, um cobertor com a inscrição Central Railway e uma pequena toalha de rosto que entrega juntamente com uma almofada. Caiu a noite. O comboio continua a sua marcha sem que se saiba bem em que direção segue. Lá fora escuro breu da cor da minha t-shirt, calções e chinelos. Será que a “Briosa”, equipa onde o meu avô Francisco Meireles, formado em medicina e a pessoa que mais influenciou a minha carreira profissional, jogou e nos ensinou a gostar, ainda está a lutar para subir de divisão?

Fecho os olhos. Bato com os dedos no gémeo esquerdo como se tocasse as teclas de um piano. Sei que existe por aqui um pacto de não-violência e de respeito por todas as formas de vida animal e que muitas divindades são associadas a animais: Vishnu ao leão, Shiva ao touro, e Ganesh a meio homem meio elefante a quem se reza antes de um compromisso importante. É ele que remove os obstáculos do caminho, que nos protege do mal, que nos alivia o karma. Em Bombaim vi uma escultura de Ganesh olhando-me intrigado, observando os meus movimentos com uma expressão de curiosidade. Uma vaca passa indiferente pelo meio da estrada, as motas desviam-se para não lhe tocarem, lembro-me que as vacas são sagradas desde que impediram a sua matança em tempo de seca e fome.

Chega a comida, oleosa, cheia de condimentos, intragável, servida num prato de latão. Não vou conseguir comer. Quem me dera estar agora no Hytt Regency de Bombaim onde fiquei com os meus pais da outra vez que andei por aqui. Certa manhã ofertaram-nos um sublime pequeno-almoço com longas taças de prata repletas de um espumoso lassi, bebida feita de iogurte com água, sal e esperiarias com sabor de baunilha. Que delícia. Tão delicioso como um doce indiano frito, em forma de espiral, embebido em melaço. Nunca me esqueci do nome: jalebis. Ui. Esta sopa tem uma cor estranhíssima, vermelho florescente. É, como toda a comida indiana, condimentada e agressiva. No entanto, convenhamos, está de acordo com o clima e com as condições de higiene locais. O picante mata os vermes.

Joginder discorre agora sobre o corpo humano. Considera o fígado um dos órgãos mais importantes e dá uma receita feita à base de frutas diversas para o limpar. Infelizmente, não conheço a maioria dos frutos mencionados, nem me parece que a maior parte exista na Europa. “A medicina tradicional indiana, feita à base de frutos e plantas, é simples, mas muito eficaz. Por meras 10 rupias qualquer pessoa cura uma doença. Aliás, a eficácia da cura pelas plantas remonta ao tempo de um português, Garcia da Horta, que em 1534 embarcou para a Índia como físico do futuro governador Martim Afonso de Sousa e, em Goa, iniciou a obra Colóquio dos Simples e Drogas e Cousas Medicinais da Índia ao mesmo tempo que exercia medicina numa clínica privada. Parece que usava a abelmosco para cólicas intestinais, biliares ou renais, sistema nervoso e espasmos uterinos e a beringela para combater a obesidade e as doenças do fígado. Foi também esse seu compatriota que primeiro descobriu o algodoeiro e as propriedades terapêuticas do amendoim, que para além de fornecer vitaminas possui um óleo que serve de veículo medicamentoso. Segundo rezam as crónicas sobre esse livro indo-português que não teve grande circulação e quase desapareceu, deve-se a este médico um dos mais relevantes estudos sobre o nome, a origem, o uso e a utilização pelos médicos e físicos indianos das plantas medicinais oriundas do nosso país.”

A conversa corre mais solta do que o comboio, lento, salta de cidade em cidade, passa por Bombaim, “terra de sete rios, uma quase ilha cheia de detritos”, vai até às mais-valias do Sul, “mais culto e mais civilizado. Lá, as pessoas são unidas, a educação é maior.”

Sitaram abana a cabeça para cima e para baixo e não em ondulações para o lado, como a maioria dos indianos. “Porque sou do Norte e no Norte a linguagem gestual é mais próxima da da Europa. Não tão excessiva, contudo, quanto a dos latinos”.

Faz pelo menos uma hora que o comboio está parado nesta estação. Venho à janela, mas não consigo ver o nome. Sitaram vai abrindo o livro dos seus conhecimentos. Lá fora um pobre bebe arrack, o chamado “licor do interior”, bebida dos mais desfavorecidos, feita à base de um líquido extraído dos coqueiros e depois destilada. A mais consumida tem um sabor a rum e é fabricada localmente de forma artesanal. A maioria, todavia, toma chá com leite e certamente demasiado açúcar. De uma outra cabine, um rádio mal sintonizado soa uma música de Mehdi Hassan, ligeira, poética, de nome ghazal. Os poemas são recitados com alma e acompanhados por uma melodiosa cítara. Gosto desta magia, da atmosfera cinematográfica, do astral pacientemente envolvente.


Trip to a déjà vu place

The term déjà vu is French and means, literally, "already seen". I’m sure that all of you have experience this at least once or have felt you have witnessed a current situation before, although the exact circumstances of the previous encounter are uncertain or perhaps imagined. This experience is usually accompanied by a compelling impression of familiarity, and a sense of "eeriness", "strangeness", or "weirdness". The phenomenon is rather complex, and there are many different theories as to why déjà vu happens. I’m telling you this because some years ago I went to Laos to give a public lecture. I crossed the border at Mukdahan (Thailand) and went to Savannakhet Town, founded around 1600 and colonized by the French between 1893 and 1953. I can tell you that you feel the French influence in the air, in the historic buildings, in the streets where there’s a mix of Vietnamese and Chinese citizens. Right away, I had a strange feeling of déjà vu, an overwhelming sense of familiarity with something that shouldn't be familiar at all, because, at least in this life, I had never been there before. I went to Talat Yen Plaza, a long rectangular shape surrounded by old colonial houses, to the Catholic church, to the Theatre “Lao Chaleun” – someone explained to me that “chaleun” means “civilization” in Lao – with it’s façade in the Art Deco style that spread throughout the world between the 1910s and 1930s, and suddenly it seemed to me as if I had been in that very spot before.

After the lecture, some of the other panelists and I decided to go for a drink at a local pub. A beautiful girl dressed in red came and stood nearby, starting to talk in French and touching my leg very softly. I invited her to dance and was intending to take her with me when she said: “Don’t act like an elephant in a forest! You can’t touch a girl while you are dancing!” I slept alone that night. Next day, I took Route n. 9 and saw the dramatic contrast between the peacefulness of the area today and what it must have been in the past, as evidenced by the craters left by air bombing. I travelled in the direction of Ban Sepon Kao, a few kilometers east of the current Sepon. The little village is located on a riverbank and still bears the wounds of war. The shattered entrance to the local bank is an eloquent witness to the past. Again, I had a strange feeling of déjà vu. Some years ago, I made a regression, and seemed, in a past life, to have lived somewhere in Laos or Vietnam. You may not believe in such things, but I can promise you that – for sure in this life – I had never been in those places before. Swiss scholar Arthur Funkhouser would describe this incidence as déjà visité ("already visited") or déjà vécu ("already experienced or lived through"). I know that I am not the only one to have had this feeling – at least 70 % of the world population reports having experienced some form of déjà vu. I also know that there is much speculation as to how and why this happens. Several psychoanalysts attribute déjà vu to simple fantasy or wish fulfillment, while some psychiatrists ascribe it to a mismatching in the brain that causes the brain to mistake the present for the past. Many parapsychologists believe it is related to a past-life experience. Do you agree?


Bombaim: Às portas do Inferno

Um táxi amarelo e preto, enferrujado, cobra-me uma fortuna, deixa-me no meio de homens em tronco nu a dormirem no ladrilho de uma suposta agência de viagens. Aproxima-se um mini bus, alguém insiste para eu entrar, oferece-me hotel e haxixe de Caxemira ou de Abgani. Diz que um “é puro e o outro tem químicos”. Não durmo há 24 horas nem sei quanto pesam dez gramas nem quantos euros são cem rupias. Já estou dentro da viatura em movimento quando constato que o homem tem cara de bandido. Lá fora há gente espalhada em cima de tábuas e carros de mão, cartões de papel que cobrem as pedras da calçada. Está escuro e abafado.

Não demorou até chegar ao hotel, guardado por um homem alto e magro, vestido de preto, bigode farfalhudo maior que o rosto. Sento-me no sofá, sempre com o cara de bandido a acompanhar-me, sorriso amarelo e olhar posto em permanência na tentativa de me sacar dinheiro. Diz que os colegas que estão na recepção comentam que eu devo ser israelita: “É que eles são muito amigos dos indianos”, explica, falsamente cativante. O empregado, tratado com desdém pelo que diz ser patrão, traz-me um chai, chá com leite com uma quantidade inacreditável de açúcar, o outro a insistir na transacção da droga, eu que já lhe havia dito que não, ele a repisar, negociante, chato.

Na rua a madrugada, o cenário decrépito. Respiro o colapso de Bombaim, percebo que a proeminência local foi coisa do passado, aquando capital económica e maior mercado da Índia. Na penumbra, aproxima-se um idoso, ar sábio pelos óculos redondos, longas vestes sujas e barba branca. Pela primeira vez ouço a inevitável questão repetida até à minha exaustão, agora leve, curiosa: “Where come from?” Depois, parcas palavras para pedir dinheiro.

Entra um homem no hotel, camisa às listas aprumadas, bigode, cabelo cortado à escovinha. Arrota insistentemente enquanto fala, senta-se ao meu lado sem me dirigir palavra. Parece-me debilitado e doente. Recordo-me que por aqui a malária ataca, violenta, que o surto da doença está a provocar complicações ao nível do cérebro, rins e pulmões. A ameaça está a tomar proporções gigantescas. Nos subúrbios da cidade morrem famílias inteiras.

O negociante volta a atacar a presa, uma mão em cima da mesa, outra pousada nos quadris com a palma enrugada. Arrota quatro vezes consecutivas e, para acalmar a dor de cabeça do colega dá-lhe uns incisivos golpes na testa com a ponta dos dedos.

O homem alto, de bigode maior que a face, abre a porta a um jovem com tiques femininos, sorriso matreiro nos lábios curvados. Chama-se Aditya, é bem-humorado e assumido: “Ser gay na Índia é algo de muito complexo. Os indianos não são tolerantes e eu nunca fui aceite pela sociedade por causa das minhas tendências sexuais. Mesmo no meu círculo social ninguém – nem mesmo a minha família – me aceita. Ainda acredito que os gays e as lésbicas vão transformar o século XXI na mesma escala em que Einstein mudou o XX. Devido ao nosso activismo, as categorias humanas não são mais masculino, feminino, neutro. Queremos direitos iguais e pretendemos mudar a nossa classificação. Não podemos continuar a ser marginalizados”, diz-me, panfletário, sem que lhe tenha perguntado nada.

Ao seu lado, Ismael dos arrotos conta que é casado e tem dois filhos mas, “tal como a maioria dos indianos, tenho algumas amantes, casadas, que estão sempre disponíveis para fazer amor comigo. Tu mesmo tens quantas quiseres. E não precisas de usar preservativo. Quando se acaba a relação lava-se o pénis com a própria urina. É assim que se desinfecta. Aliás, a urina é um bom remédio para muitas doenças. Se tiveres uma contusão ou um hematoma bebes a primeira mijada da manhã e ficas bom num ápice”. Reafirma que experimentou “várias vezes” e garante a eficácia da receita. Parece-me que estou a ouvir Marlon Brando no papel de Coronel Kurt em Apocalipse Now: “o inferno é bom para ti desde que consigas sobreviver por lá”.


A dois passos do paraíso
José Manuel Simões

Naquela manhã de 1 de Janeiro de 1994 acordei com uma irresistível vontade de partir. Estava em casa de um amigo médico em Olinda, Pernambuco, Brasil, a passagem de ano havia sido fantástica mas algo me dizia que tinha que ir embora. Deixei um bilhete ao meu amigo a dizer “vou ao Deus dará” e apanhei um autocarro até João Pessoa, na Paraíba, onde, devido à data festiva, não encontrei lugar para pernoitar. Nisto, vejo no mapa da região o nome Baía da Traição, recordando-me de uma aldeia indígena ali perto por onde tinha passado meia dúzia de anos antes, com direito a umas fotos rápidas e medo de que os índios fossem hostis. Foi para lá que fui.

Na manhã seguinte, depois de ter constatado que os donos da pousada tinham sido assaltados, parto à redescoberta dessa tribo do Nordeste brasileiro. A pé, pela praia fora, sem mais ninguém, cheguei a um lugar em que a falésia se rompia em vários caminhos, tomei uns banhos de mar e subi. Do cimo do morro vejo aproximar-se um ultraleve demasiado baixo, aparentemente desgovernado, a menos de 100 metros de mim é empurrado pelo vento e despenha-se. “Ó meu Deus, o que é que aconteceu”, pensei, em pânico. “Não há nada que eu possa fazer. O melhor é ir pedir socorro, tentar arranjar um transporte que os conduza a um hospital”. Deixei a mochila e os chinelos e, com os pés a ferver na terra quente corri até à aldeia onde encontrei um grupo de índios que não entendiam a minha língua e aflição e a todas as minhas palavras respondiam com um sonoro “é” acompanhado de sorrisos. Em desespero, enxergo um índio a cavalo, peço-lhe com firmeza que vá até à Baía da Traição chamar um carro para socorrer os sinistrados, finalmente consegui fazer passar a mensagem.
Enquanto o cavalo galopava toda a aldeia se dirigiu para o local do acidente. Encontrámos dois homens que definhavam a olhos vistos, um com fraturas expostas, sangue a jorrar, o outro com uma cabeça três vezes maior que o normal. Aparentemente salvos da agonia e da morte lenta, vejo-os partir num táxi enquanto me afastava a chorar com o peso das emoções. Já fora da tribo chegaram uns fulanos junto a mim, “amigo, vamos comemorar”, comemorar o quê, “foi um milagre estar ali naquela hora. Você salvou nossos colegas”.

No dia seguinte voltei à Aldeia Galego dos índios potyguara e fui recebido como herói, voltando quase todos os anos àquele lugar, um dos mais bonitos do Mundo. Tinham passado oito anos desde o insólito acontecimento da queda do ultraleve e, concluído que tinha o mestrado em comunicação e jornalismo, decido ir fazer a minha tese de doutoramento em etnomusicologia sobre os ritmos dos potyguara, acabando por casar na aldeia com uma descendente de índios e fazer a casa precisamente no local onde o avião caiu.

Mais recentemente fui conduzir uma reportagem jornalística para a televisão sobre esta reserva indígena que é um dos últimos paraísos de homem e, para dar credibilidade ao trabalho, fui procurar os acidentados do ultraleve. Ao contrário do que se dizia na aldeia, estavam ambos vivos. Um deles, em lágrimas, agradeceu, a Deus e a mim, por estar ali naquele momento, enfatizando que me devia a vida. Na reportagem, retratámos essa história em paralelo a um modus vivendi que mantém traços que remontam a séculos antes da chegada do colonizador, com os seus pagés, feiticeiros, caciques, curandeiros e todo um território reserva e património natural da humanidade que abriga espécies em vias de extinção, dando a conhecer a Portugal índios que dançam em círculo e rezam aos deuses da natureza em comoventes preces numa língua secular, o velho tupi. Deus, ou Tupã, como eles enfatizam em olhos elevados aos céus, parece ter-lhes respondido à vontade de se agarrarem às raízes de uma terra que deve ser sagrada. Uma terra que se não é o paraíso está a menos de dois passos dele.


Tremores
José Manuel Simões

No próximo dia 10 de Setembro vai fazer 18 anos que estava em Nova Iorque, hospedado no Roosevelt Hotel, a centenas de metros de onde horas depois aconteceria a tragédia. No fim da tarde desse mesmo dia, eu, o Luís Figueiredo Silva, então no Correio da Manhã, e o Alexandre, do Expresso, íamos para entrar no elevador de uma das torres para vermos a metrópole lá de cima e, já com o bilhete nas mãos, visivelmente arrepiado, vocifero: "desculpem, mas eu não vou. Estou a sentir-me mal, uma má vibração horrível, espero-vos aqui em baixo". "Então camarada Zé, o que é que se passa?", questiona-me o Figueiredo Silva enquanto por debaixo das mangas da camisa lhes revelo a pele de galinha, o suor frio a começar a escorrer-me pelo rosto. "Se tu não vais nós também não vamos". Como não os consegui demover sugeri que apanhássemos o metro até ao outro lado do rio Hudson com o objectivo de tirarmos umas fotografias com as torres ao fundo. Garante-me o Luís que guarda religiosamente essa imagem onde por baixo de nós três e das torres está inscrito: 10 de Setembro de 2001. Obviamente que não vislumbrei a tragédia que se iria seguir, mas posso garantir-vos que passei o dia inteiro com um intenso temor de que algo de muito grave estava para acontecer. Nessa manhã de 10 do 9, antes de entrevistar os Incubus — razão pela qual estávamos em Nova Yorque — passeei pela China Town e, por entre o frenesim da metrópole, sirenes de ambulâncias, mendigos a dormir no chão e chineses reafoitos, parei um minuto e disse para mim mesmo: “esta cidade está à beira de um colapso”. Mais à frente entrei numa loja de roupa usada e - fico hoje pasmado com o tamanho da coincidência - comprei um casaco dos bombeiros locais, azul e com uma fita amarela florescente na manga, que nunca usei e acabei por dar ao Igor Gandra, director do Teatro Ferro do Porto, talvez ele o fosse usar numa das suas performances. Ao início da noite, no hotel onde estava hospedado – e isto não é certamente coincidência - o sistema informático avariou, deixando os recepcionistas à beira de um ataque de nervos. Paga a fatura de valor aproximado, a caminho do aeroporto John F Kennedy, rebentou uma trovoada impressionante, horas seguidas de relâmpagos, chuvas torrenciais. Ainda entrámos no avião mas demorámos umas cinco horas a descolar. Li os jornais de ponta a ponta e às tantas, nos resultados e classificações da Regional de Coimbra, minha cidade natal, lia-se: Ala Arriba 0 - Febres 3. Repeti alto e o avião irrompeu numa ansiosa gargalhada geral. Ao anúncio de partida, comecei a bater palmas no que sou seguido pelos passageiros. Quando chegámos a Portugal a tragédia já tinha acontecido. Liga-me o Luís horas depois: "Tudo isto me parece um sonho. Ainda ontem estavámos para entrar lá, tu todo arrepiado, nervoso, a suar. Como é possível teres sentido esta desgraça?”

H
oje, aqui sentado no sofá da minha casa em Zhuhai, na China, lembro aquele episódio e revejo mentalmente as imagens daquela cidade hiper-real, mítica, frenética, a cidade que muitos consideram a capital do Mundo, vivendo numa vertiginosa irrealidade feita de esquecimento, errância e blasfémia. De onde quer que se chegue ali pela primeira vez, tem-se a sensação de que, de súbito, nos tornamos crianças, pasmadas e atentas aos enigmas que vão surgindo ao redor. O jogo pode ser atraente ou perturbador. Contrariamente a outras cidades idealizadas com deslumbre, Nova Iorque não dececiona, mas pode assustar.