Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Retrato duma Lisboa marginal

Já lá vão os tempos em que só tinham direito a retrato os mui afamados nobres ou os Deuses e seus representantes em cenas mitológicas devidamente autorizadas. Ser retratado numa tela ou tábua pintada a óleo, não era para qualquer um. Mesmo hoje, em que os registos fotográficos se massificaram, os nossos mais altos representantes, fazem questão de serem retratados à pincelada por artistas reconhecidos.

Nos manuais escolares lembramo-nos de obras famosas, como o nascimento de Venus (Botticelli, 1485), Mona Lisa (Leonardo, 1517), ou o retrato de Dom Sebastião e seu cão galgo (Cristóvão de Morais, 1578) além das muitas cenas da vida de Cristo. Sem registos fotográficos, a pintura serviu durante séculos ao registo e perpetuação das elites na história dos povos. Depois, veio a invenção da fotografia e tudo se alterou.

Com a fotografia, surgiram novas correntes e movimentos artísticos que passaram a olhar o mundo com outros olhos, com outros valores. Desde o impressionismo ao abstracionismo, muitos "ismos" têm passado pela história da arte. Algumas das correntes mais interessantes desse período em que se abriram as portas das oficinas ao exterior, foram o realismo e o naturalismo. Movimentos artísticos que se baseavam na observação fiel da realidade e na experiência. Ao observar o comportamento das gentes, fixando a natureza dos locais, valorizando e contextualizando o espaço onde habita, o pintor elevava a um outro patamar a própria natureza humana na sua diversidade.

No início do século XX o pintor caldense José Malhoa, realizaria uma das obras mais icónicas da pintura portuguesa. Numa outra Lisboa, das gentes humildes, onde a sobrevivência era muito custosa, Malhoa percorreu os bairros populares de Alfama, Bairro Alto, até se centrar na Mouraria, onde encontrou dois típicos habitantes do bairro que concordaram em posar para o "pintor fino", como ficou conhecido o artista. Amâncio Esteves, fadista e sua amante Adelaide da Facada, vendedora de cautelas são os retratados na tela de José Malhoa.

Adalaide da Facada, assim conhecida por ter uma vincada cicatriz no rosto, vendia cautelas de dia e prostituia-se à noite. Representa a mulher desgraçada de uma Lisboa difícil para os menos abonados. Malhoa que se deslocava a casa da Adelaide na rua do Capelão para a retratar, bem tentou uma posse mais ousada, mas Amâncio, ciúmento, ameaçou-o e não o permitiu. Amâncio, passava as noites na boémia com a sua guitarra, onde tocava o fado, destino cruel de um homem revoltado pelas agruras da vida. Era um rufia, marialva, um marginal que entrava constantemente em desacatos que o levavam amiúde aos calabouços da polícia.

O "pintor fino" agarrou o casal e retratou-o. Deu um destaque invulgar à marginalidade, à Lisboa das tascas e tabernas, do vinho, do povo que vivia nas suas entranhas. Desta obra existem duas versões: uma de 1909 e outra de 1910. A versão de 1910 foi adquirida pela Câmara Municipal de Lisboa e encontra-se hoje no Museu do Fado. A outra, pertence a uma coleção particular.

Ao longo de 63 anos de atividade, entre 1870 e 1933, José Malhoa pintou cerca de duas mil telas, das quais se conhece o paradeiro de algumas. Na sua obra predominam quase 900 retratos – maioritariamente fruto de encomendas.

*José Malhoa, O FADO, óleo sobre tela, 150 × 183cm, Museu do Fado, Lisboa