Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Atividades de primeira e de segunda categoria

A cultura e a organização dos reinos na Europa após a queda do império romano no ocidente, apesar de condicionada pelos princípios religiosos, incorporou contudo a base filosófica dos grandes pensadores das civilizações clássicas grega e romana. A formação e a educação dos jovens das classes privilegiadas, obedecia a critérios que foram consolidados ao longo dos séculos.. Pensadores como Platão (428-347 a.C.) ou Aristóteles (384-322 a.C.) elaboraram importantes reflexões sobre a importância da educação na vida social dos cidadãos.

Para Platão em "A República", a educação era primordial na formação e seleção dos mais adequados para altos cargos na administração e governo. Como opositor às correntes ideológicas que defendiam a retórica e a argumentação para o conflito como forma de liderança política e, que era principal causa da decadência de Atenas, Platão defendia a formação de governantes íntegros, onde a arte suprema era a arte de governar. Considerava no campo da educação, que as Artes Visuais eram de menor importância, porque através delas não se podia chegar ao conhecimento, já que a escultura e a pintura não eram mais do que imitações de imitações, um processo que significava copiar algo que tinha uma existência anterior.

Já Aristóteles, no seu “Tratado de Política”, refere-se a quatro ramos importantes da educação dos cidadãos: letras, ginástica, música e pintura. Estes quatro ramos completam um todo que Aristóteles considerava o mais importante para o bem-estar. No campo das artes considerava a música como uma das atividades mais propícias à boa vida, proporcionando um prazer intrínseco adequado aos momentos de lazer, bem como um meio importante para a educação cívica e moral.

As preocupações com a “educação” desde a antiguidade à idade média, aplicavam-se sobretudo, ao pequeno grupo de crianças oriundas das classes aristocráticas. Para os rudes dos reinos cristãos, bastava alguma instrução religiosa. A educação e formação dos homens livres no período medieval, baseava-se nas chamadas artes liberais, isto é, nas capacidades intelectuais em sete grandes áreas do conhecimento: a Lógica, a Gramática, a Retórica, a Geometria, a Astronomia, a Música e a Aritmética. Às destrezas técnicas e manuais, como a arte da pintura ou escultura, consideravam-se artes mecânicas, de categoria inferior.

Na Roma antiga, as artes visuais tinham uma importância social relevante, uma vez que era comum os cidadãos mais abastados recolherem peças de arte, proporcionando um elevado estatuto social aos “artistas” que estavam empenhados em fazer cópias das obras gregas mais representativas. Escultores, pintores e arquitectos para alcançar uma posição de destaque, investiam numa longa formação, como refere Vitruvius (c.70 a.C-25 a.C.) no seu tratado “De architectura”:

deve... [o arquitecto] saber escrever e desenhar, ser instruído em geometria e não ser ignorante em óptica. Ter aprendido aritmética e saber muito de história, ter estudado bem filosofia, ter conhecimentos de música e algumas noções de medicina, jurisprudência e astrologia”.

A visão hierárquica da sociedade e do trabalho, que ainda hoje é preponderante na organização social, só começou a ser posta em causa com as revoluções liberais, quando se começou a defender uma sociedade justa na distribuição de oportunidades e recursos.

Mesmo após a instauração da democracia e do liberalismo no mundo ocidental, continuam a existir divergências profundas sobre a valorização das atividades humanas. O pensamento antigo, baseado em Aristóteles, instruía-nos a pensar que alguns homens nasciam para ser senhores e outros para ser escravos; os primeiros mandavam, os segundos obedeciam. Cada um teria de cumprir o papel para o qual foi destinado pela natureza desde o momento do seu nascimento. Aos senhores, a natureza deu-lhes a razão e a inteligência – a cabeça; aos escravos a força física – os braços.

As concepções antigas na organização social, são hoje ainda responsáveis por alguns entendimentos e desentendimentos sobre a importância e o valor subjetivo das atividades humanas. No campo do ensino e da educação artística a dicotomia entre belas-artes e artes aplicadas ou utilitárias é fruto desses preconceitos sobre o status das atividades humanas, ainda condicionadas à hierarquização social. Apesar do conservadorismo dominante, para que não haja um retrocesso histórico não podemos pôr em causa o valor e a importância de todas as partes na construção de um todo, que é o conhecimento e o desenvolvimento social. Na construção de uma sociedade mais justa e a valorização de todas as suas partes deve continuar a ser portanto, o nosso foco principal.

* Desenho de Jean-Baptiste Debret, “Voyages au Brésil: Retour d’un proprietaire” (1834-1839)

 
>