Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
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Se eu tivesse alma
- Partilhar 01/03/2023
...E perguntaram-lhe,
assim de chofre, se tinha alma. Co’a breca,
pensou. Este gajo é um gozão. Quem se
preocupa com tal coisa nos tempos que
correm? Ironizou-lhes “Será que a Virgem
Maria tinha mesmo alma?”
As mulheres
não têm alma. Para quê? Têm corpo. Para
acamar os heróis. Depois das suas graves
investidas sem solução de continuidade
(muitas vezes) pelos mundos da caserna, da
política, da técnica. Da investigação. Dos
negócios. Das artes. As mulheres não têm
alma. Têm mãos. Para um bom bacalhau-à-Brás,
para um notório cozido-à-portuguesa... Ou
para o requinte de um tricot, à noite,
enquanto vêem a novela.
As mulheres
não têm alma. Têm olhos. Para perscrutar o
sarampo que desponta no rostozinho inocente
dos herdeiros. Ou para descobrir uma nódoa
de gordura na gravata de seda, no fato de
linho do marido, do companheiro. E têm
pernas para irem ao super-mercado ao
voltarem do emprego, à lavandaria, à
farmácia. Para levarem os putos ao
cabeleireiro, à ginástica, à Cambridge, à
Alliance, ao dentista, ao oculista, ao
oftalmologista. Ao ocultista! Ao pediatra, à
radiografia, às análises, à natação, à
escola, ao colégio. À festa de anos dos
amigos.
Têm olhos. Para fechar. Aos
apelos que venham lá de fora. Aos atropelos
do parceiro.
...Já com tanto com que
se entreter, para que haviam de ter alma?
Estava num grupo de amigos, naquela
mesa, no café, entre as bicas e os pasteis
de nata. Discutiam modernidade,
pós-modernidade, o caraças. “Gosto desta
ideia”, dizia um deles, “só o fragmento é
bom”.
Fragmentos, pensou. Tenho a
alma fragmentada. Nós. Nós, as mulheres, é
que somos feitas de fragmentos. Puzzles
desmantelados, já com peças de menos. Com
eles, passa-se absolutamente a mesma coisa –
mas eles têm alma, não dão por nada.
A Virgem Maria, segundo consta, era casada
com São José. Segundo se diz, foi a mãe de
Jesus... Mas querem que a gente acredite que
ficou sempre “virgem”... Quer dizer, ao fim
e ao cabo – negam-lhe a alma! ...Santo
Agostinho, o grande Doutor da Igreja –
segundo e conforme a minha sábia professora
de Religião e Moral nos idos anos da década
de ’50 – afirmava do alto da sua cátedra que
"A mulher é uma besta insegura e
instável"...
Enfim... Como todos
estes conceitos deixaram rasto... Em todos
os grandes quadros que conheço, a pobre
Senhora é sempre pintada com o olhar
orientado para baixo, num toque de grande
modéstia, como quem tem medo de existir...
como quem tem medo de aparecer... de se
pronunciar, ou de ser...
...Ao longo da
História da Pintura, em quadros com rostos
femininos, repete-se o mesmo olhar pudico,
aliás, a mesma ausência de olhar! – os olhos
das mulheres retratadas, sem excepção,
continuam a seguir o modelo da Mãe de Deus –
“mãe amantíssima” – que nunca se atreve a
erguer o olhar, nunca se atreve a olhar o
seu retratista de olhos nos olhos... De
igual para igual...
Sem dar pelo que
dizia, sentenciou “se vocês se assumissem,
em fragmentos ou segmentos – ou com ou sem
sedimentos, mas se vocês se assumissem.
Ficávamos todos mais próximos”.
Nenhum
deles podia descobrir o fio daquela meada.
Olharam para ela, num rictus subtil, entre o
sarcasmo e a condescendência. “Que é que
disseste?”
Levantou-se. Foi pagar a bica
e o pastel-de-nata ao balcão. De longe,
acenou-lhes “Tenho um fragmento quase a
voltar para casa. Chega sempre esfomeado”.
Pelo caminho, olhou os farrapos de nuvens
transparentes decorando a fatia de céu
apreensível entre os renques das casa, como
pequenas rosas num vaso vidrado, ao canto de
uma varanda. Se eu tivesse alma. Se eu
tivesse tempo para ter alma...
Arte:
(1)
Nascimento de Vénus, de Sandro Boticelli.
(2)
Madonna de la Humildad, de Fra Angelico.
(3)
Virgem (Teótoco) de Vladimir.
(4)
Madame Récamier, portrait par
François Pascal Simon, Baron Gérard,
1802
Do Anti-Judaísmo ao Anti-Semitismo, Sionismo e anti-Sionismo
- Partilhar 06/02/2023
Os jornais noticiaram
que Annie Ernaux, a Nobel da Literatura de
2022, foi criticada por Israel por ter
integrado uma manifestação a favor da causa
da Palestiniana – Anni Ernaux foi acusada de
“anti-semitismo”.
Este meu apontamento
tem por fim recordar o que têm sido
Anti-Judaísmo e Anti-Semitismo, expressões
da rivalidade entre Cristãos e Judeus ao
longo da História. Por seu lado, o
Anti-Sionismo é outra coisa.
O
Judaísmo é mais que um povo. É uma religião.
Desde que alguém queira converter-se, poderá
tornar-se Judeu – desde que, evidentemente,
se queira inteirar e adoptar, a Religião e
Tradições, e mesmo a Língua.
No entanto,
o Judeu reconhece-se pela via materna. O
Judeu tradicional identifica-se pela
linhagem materna, pois “a mãe, sabe-se
sempre quem é, embora o pai... pode saber-se
ou não se saber... Sobretudo em épocas muito
mais beligerantes, em que havia rusgas,
pogroms, guerras... violações...”
Quanto
ao racismo contra os Judeus, tem assumido
sucessivamente, no decorrer dos séculos, as
formas de Anti-Judaismo e Anti-Semitismo.
I – Para compreender o racismo
anti-judaico
O Cristianismo sempre
hostilizou os Judeus. Este posicionamento
deriva das afirmações, feitas nos
Evangelhos, de que os Judeus crucificaram
Jesus Cristo.
Primeiramente, a
oposição cristã aos Judeus manifestou-se sob
a forma de Anti-Judaismo. No mundo cristão,
os Judeus eram tão rejeitados que não lhes
era permitida a integração no seio da
população dominante. Por outro lado, eles
próprios se mantinham à margem das
sociedades onde se instalavam – mantinham
vestuário próprio, mantinham a sua religião,
e o que porventura mais estranheza
levantaria, além da prática da circuncisão,
mantinham liturgias religiosas próprias nos
seus templos – as sinagogas.
Este
pormenor foi-me explicado por dois Amigos
que conheci em Joanesburgo, Judeus, grandes
conhecedores da História Judaica:
– Já
viste o que seria, nas povoações ignorantes
da Idade Média, fanatizadas num Cristianismo
inculto e supersticioso, observarem
permanentemente aquelas pessoas vestidas de
modos diferentes? Já viste o que seria a
curiosidade, certamente insatisfeita, quanto
ao que se passaria nos templos dessas
populações marginalizadas? Facilmente
acreditariam que essas populações estranhas
estariam possuídas pelo Diabo, praticando
feitiçarias...
No interior do mundo
cristão, acontecia outro paradoxo. Negócios,
empréstimos em numerário, especulação
pecuniária – eram vistos como “actividades
impuras” – Fora com as 30 moedas que Judas
vendera Jesus Cristo...
Mas alguém teria
que desempenhar essas funções, tão
necessárias à vida económica... Os negócios
e a especulação foram, assim, deixados nas
mãos dos Judeus. Ou seja, para essa
população “impura”, ficavam os negócios
“impuros”. Entretanto, com isso, muitos
Judeus prosperavam, criando maiores ou
menores fortunas. E esse facto tornou-se
mais um argumento contra eles, gerando
certamente, muitas invejas...
Um dos meus
Amigos era oriundo da Lituânia. Como exemplo
da situação das populações judaicas na
Europa Oriental, ele contava-me como, na
Lituânia, sob o poder dos Czares, os seus
antepassados tinham sido discriminados...
Mal uma família começasse a apresentar algum
progresso e bem-estar, surgiria um argumento
para que se visse perseguida e
expropriada... Membros da sua família, desde
o século XVI – tanto quanto a memória pôde
investigar –, foram emigrando para onde se
lhes proporcionasse. Actualmente, há núcleos
de descendentes desses emigrantes em todos
os continentes. Eu conheci este meu Amigo na
República da África do Sul, onde também se
encontravam inúmeros familiares seus.
Mas
este primitivo anti-Judaismo não era apenas
de carácter religioso.
Baseava-se também
no antigo conceito de que “a qualidade” da
família se transmitia através do sangue. O
estatuto de “nobre” ou de “vilão” era
transmitido pelo sangue, pela linhagem.
Conceito de grande peso na vida social, que
se prolongou desde a Idade Média até ao
século XIX...
II – Anti-Judaismo
O anti-judaismo medieval tem pois base
nos conceitos de hereditariedade, tem “base
no sangue”. Baseava-se no conceito de
“sangue impuro”, uma vez que maculado pelo
crime colectivo da morte de Jesus Cristo.
Por diferentes razões, o sentimento adverso
aos Judeus já se manifestava no mundo
romano. Os Judeus tinham oposto grande
resistência à conquista de Roma. Mais, não
querendo submeter-se, muitos fugiram da
Palestina. Foi a segunda “grande diáspora”,
que ocorreu no século I dC, na sequência da
conquista da Palestina pelo general romano
Tito, no ano 70 (da era cristã).
Assim,
verificou-se grande fluxo migratório, e
muita gente procurou refúgio em ambas as
margens do Mediterrâneo, da Ásia Menor ao
Norte de África ou ao Sul da Europa. Foi a
denominada Segunda Diáspora (1).
A esta
fase da dispersão do povo Judeu, pertenciam
os Judeus que na Alta Idade Média chegaram à
Península Ibérica, à qual chamaram SEFARAD e
que a si próprios se denominavam de
SEFARDITAS. Aqui, foram objecto de leis
rigorosamente discriminatórias,
segregacionistas, por parte dos Visigodos
cristianizados. Viveram relativamente melhor
nos territórios de domínio muçulmano do que
nos territórios de domínio cristão. Nos
territórios de domínio muçulmano, as
populações peninsulares que aí permaneceram,
Judeus ou Cristãos, desde que pagassem os
seus impostos e respeitassem as leis e a
ordem pública, eram livres de praticarem a
sua religião, língua e costumes. Os Judeus
peninsulares da Idade Média viveram o seu
auge cultural, no mundo muçulmano
peninsular, no século XII. Tiveram então
grandes poetas, filósofos, místicos,
“cientistas”.
No século XVI, com a
unificação da Espanha pelos Reis Católicos,
os Judeus, como se sabe, foram alvo da
grande expulsão, tendo sido acolhidos em
Portugal. Mas depressa a pressão da Espanha
se fez sentir, e os reis portugueses
exigiram-lhes a conversão ao Cristianismo.
Exigência que levou imensas famílias a
fugirem da Inquisição peninsular e a
procurarem refúgio quer na Europa do norte –
onde se tornou notável a colónia de
Amesterdão – quer na Europa mediterrânica e
pelo Norte de África, até ao Império
Otomano. Criaram assim grandes núcleos em
vários países de então. Dos muitos que
fugiram para Itália, quando a Inquisição aí
começou a intensificar-se e a criar malhas
mais apertadas, procuraram refúgio na Grécia
e regiões vizinhas, até ao Império Otomano
(actual Turquia).
Os Judeus levaram
consigo, e conservaram, a Língua que
falavam, os costumes, o vestuário da sua
tradição, a sua música. Ficaram conhecidos
como “os Ladinos” – sendo este termo a
derivação fonética do termo “Latino”, pois
na verdade eles falavam tanto o Português
como o Castelhano, línguas “latinas”.
III – Os Asquenazes
Vejamos
agora os Judeus do norte da Europa,
conhecidos como ASQUENAZIM, ou ASQUENAZES –
nome derivado do termo com que na Língua
Hebraica da Idade Média se designava a
Alemanha.
Há uma lenda que diz que vários
povos se encontravam em guerra. O rei dos
KHAZARES, um povo turcomano, não-semita,
interrogou-se por que razão um dos seus
oponentes ganhava todas as batalhas...
Então, chegou à conclusão de que esses
vencedores eram Judeus... Daí, ter optado
pela conversão em massa do seu povo ao
Judaísmo.
Mas essa lenda perdeu
fundamento quando foram feitos testes
genéticos. Estes indicaram que os Judeus
Asquenazes teriam origem no Sudoeste Europeu
mediterrânico e no Próximo Oriente.
Ter-se-iam fixado no norte da Europa, em
regiões que hoje são a Polónia, a Hungria e
a Ucrânia, na altura em que Carlos Magno
reinava no ocidente. (2)
Também estas
populações eram alvo de discriminação. Entre
as características culturais que os
distinguiam, estava a sua língua, o YIDDISH,
uma fusão de elementos da língua alemã
arcaica, do hebraico e do aramaico, que
primitivamente até se escrevia com
caracteres hebraicos.
Uma Amiga que
conheci durante a minha permanência em
Joanesburgo, deu-me um exemplo de como
acontecia a discriminação. Por alturas do
século XVI ou XVII, na Polónia, um crime
tinha acontecido numa povoação. Não se
descobrindo quem teria sido o criminoso,
dois aldeões, Judeus, foram acusados do
assassinato e condenados à morte.
Por se
tratar de uma acusação arbitrária que
condenava dois inocentes, dois rabinos, um
deles antepassado dessa minha Amiga,
ofereceram-se para subir ao cadafalso e
serem sentenciados em vez dos inocentes,
pais de família... Acontece que, no fim da
sua vida, o criminoso confessou... Os dois
rabinos foram considerados “santos”. Durante
alguns séculos as suas sepulturas foram
objecto de culto, até que foram profanadas
durante a Segunda Guerra Mundial...
Podemos ter uma ideia do que eram e como
viviam as populações Asquenazes, pelo filme
que fez época no início dos anos ’70 do
século XX, “Um violino no telhado”.
Um
legado importante destas populações é a sua
Música. Os músicos populares, os músicos
ambulantes, eram chamados para festas
familiares, nas celebrações de circuncisões
ou de casamentos ou outras. Esses músicos
deslocavam-se de terra em terra. Nas
estalagens, cruzavam-se com músicos Ciganos.
Do convívio entre todos eles, nascia um tipo
de música muito peculiar, simultaneamente
alegre e nostálgica – a Música Klezmer.
IV – Anti-Semitismo
Em meados do
século XIX, com o desenvolvimento dos
estudos de Linguística, surgiu a ideia de
que os Judeus são Semitas. Assim, chegou-se
à conclusão de que a sua Língua original é
uma língua semita.
Foi no século XIX que
o Anti-Judaismo – baseado como vimos, na
linhagem – se transformou em Anti-Semitismo.
Enquanto o Anti-Judaismo, antiquíssimo de
muitos séculos, assentava numa discriminação
não só de linhagem mas também de religião, o
Anti-Semitismo vai assentar numa
discriminação linguística.
Mas não só
linguística. Continuou a ser importante
saber a origem genética das populações que
se dizem “judaicas”. Passou a ser importante
a origem das famílias, e a “pureza de
sangue”... O “sangue puro” seria o sangue
ariano... Outras etnias, como Judeus e
Ciganos teriam “sangue impuro”...
É nesta
definição que se fundamenta a perseguição
aos Judeus, no Terceiro Reich, dando assim
lugar ao drama abominável do Holocausto.
V – O Sionismo e a Palestina. O
estado de Israel
Como sabemos, o
século XIX foi uma época de grandes
“nacionalismos”. Foi no século XIX que se
definiram – de forma definitiva, ou quase
definitiva – as fronteiras dos países
europeus.
Foi nesse ambiente de definição
de nações, países e fronteiras, que começou
a teoria Sionista, que considerava e
defendia que os Judeus, para se precaverem
de novas desgraças e novas hecatombes,
precisavam e deviam regressar à Palestina,
terra dos seus antepassados. Essa aspiração
a um “estado próprio” foi reforçada pela
repercussão do “caso Dreyfus”, ocorrido em
1894.
O “caso Dreyfus” foi tanto mais
chocante quanto a França já tinha
reconhecido, desde 1791, o estatuto de
igualdade cívica aos Judeus.
É assim que,
em 1896, Theodor Herzl publica “Der
Judenstaaf” (L’État des Juifs”) obra que
terá grande impacto, pois aí se apela à
criação de um estado judaico.
“Sionismo”
deriva do nome de “Sião”, o nome do monte
onde outrora se erguia o Templo de
Jerusalém.
Com o Sionismo, o Judaísmo
mudou de tom. Deixou de ser uma afirmação,
ou definição religiosa, e passou a ser um
movimento político: considerou-se que outros
povos tinham ocupado a antiga terra de
Israel, ou seja, a Palestina.
O Estado de
Israel surgiu após a II Guerra Mundial.
V- Conclusão
A verdade é que
entre a Segunda Diáspora e o final da
Segunda Guerra Mundial, decorreram 2.000
anos. As populações que não fugiram aos
Romanos, permanecendo nas suas terras
ancestrais, ficaram sujeitas às inúmeras
mudanças políticas e religiosas ocorridas ao
longo destes vinte últimos séculos –
nomeadamente a criação do Império Otomano.
Com o decorrer dos séculos, essas populações
assimilaram Língua e Religião diferentes.
Mas – geneticamente – Palestinianos ou
Judeus – são o mesmo “povo”.
Na
sequência da segunda Guerra Mundial, deu-se
a imigração dos Judeus Europeus para a
Palestina, com a bênção dos países da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos... A criação
do Estado de Israel pressupôs a usurpação
dos territórios da Palestina aos seus
habitantes de sempre. O mundo assistiu
calmamente a uma invasão e uma ocupação
perpetradas de forma arbitrária e cruel.
O Anti-Sionismo
O
Anti-Sionismo distingue-se do Anti-Judaismo
e do Anti-Semitismo. Os dois últimos foram
movimentos racistas baseados nas diferenças
religiosas e de costumes.
O Anti-Sionismo
não é um “racismo”. O Anti-Sionismo é um
movimento político.
O Anti-Sionismo
opõe-se à ocupação arbitrária da Palestina.
Pois assistimos, impotentes, a ver serem
cruel e arbitrariamente expulsos pela força,
da faixa ocupada pelo estado de Israel e de
todo o seu território ancestral, os
Palestinianos, os habitantes tradicionais
dos territórios da Palestina.
Os
noticiários e as televisões informam-nos
sobre a Resistência Palestiniana como se de
actos ilegítimos de puro terrorismo se
tratasse.
Devemos precaver-nos da
propaganda que ignora os motivos do
Anti-Sionismo, insistindo em que todo o
mundo é Anti-Judaico. Nem mesmo a
historiadora Annette Wieviorka, no seu
excelente artigo na revista L’Histoire
Nº493, de Março de 2022, dedicada à análise
dos fenómenos racistas, perde palavras a
mencionar o Sionismo nem esclarece o porquê
da oposição internacional anti-sionista de
figuras notáveis que denunciam esta
ocupação. Conclui apenas que “temáticas
antigas se misturam às novas.”
Recordo
com veneração o Professor Freitas do Amaral,
que, quando entrevistado por um canal de TV
sobre as revoltas na Palestina, afirmou – e
cito de memória:
“Quando um povo tem que
enviar os seus jovens para este tipo de
atentados, é porque o seu desespero é muito
grande.”
Assim, a acusação de
Anti-Semitismo, formulada contra Annie
Ernaux, obedece a uma inverdade. Annie
Ernaux não se manifesta como Anti-Judaica ou
Anti-Semita. Annie Ernaux não está a tomar
parte numa manifestação racista:
Annie
Ernaux está a tomar parte numa manifestação
política, de oposição ao Estado de Israel
que instalou, ele sim, um estado racista
pela usurpação de territórios de um povo do
qual – cúmulo dos paradoxos – até é
geneticamente aparentado.
No entanto,
Annie Ernaux não é uma voz isolada. Também o
teólogo e escritor Leonardo Boff diz que a
grande contradição de Israel é ter sido
vítima do nazismo no passado e hoje, no
presente, utilizar os mesmos métodos contra
os Palestinianos.
Israel/Palestina:
Papa pede fim de «espiral de morte»
Também o Papa Francisco se tem manifestado
contra a violência que se abate sobre o povo
da Palestina.
“Perante milhares de
peregrinos reunidos na Praça de São Pedro,
Francisco dirigiu-se diretamente “aos dois
governos e à comunidade internacional para
que se encontrem, já e sem demora, outros
caminhos que incluam o diálogo e a busca
sincera da paz”. (3)
(1) O exílio em
Babilónia, na Antiguidade, foi considerado a
Primeira Diáspora.
(2) Sobre a origem
dos Khazares, há duas obras interessantes.
“A Décima Terceira Tribo”, de Arthur
Koestler, publicada em 1976.
“O Vento dos
Khazares”, de Marek Halter, romance, ficção
de inspiração histórica, publicado em 2003.
“Na época em que Carlos Magno é coroado
imperador do Ocidente, em que o Império
Cristão de Bizâncio alarga as suas
conquistas até à Rússia, em que o Grande
Califa de Bagdade propaga a fé em Alá,
algures entre as montanhas do Cáucaso e a
embocadura do Volga, um reino converte-se ao
judaísmo: é o princípio da aventura
extraordinária dos Khazares” – conforme se
diz na contra-capa da tradução portuguesa.
Além da reconstituição possível do que teria
sido esse Passado semi-esquecido, este
romance entrelaça muito bem esse Passado
remoto e os interesses do Presente nas
riquezas do subsolo em gás-natural,
petróleo, etc, que estão na origem de tanta
perturbação política actual, com recurso à
guerra.
(3) Jan 29, 2023 :
https://agencia.ecclesia.pt/portal/israel-palestina-papa-pede-fim-de-espiral-de-morte/
Votos para 2023
- Partilhar 02/01/2023
“Julga a pessoa pela
forma como reage ao fracasso, não ao
sucesso” – teria dito Martin Luther King (1)
Julgar o Outro pelo modo como reage ao
fracasso, e não ao sucesso?
Teria Luther
King falado exactamente assim?
Se vemos
que o fracasso abate, e aniquila, anula os
ânimos a tanta gente, deprime, e desanima –
não vemos que o sucesso arrasta tantas vezes
ao orgulho desmedido, à arrogância, à
tirania?
Eu continuo de olhos postos no
conceito de “justa medida” dos antigos
Gregos.
Ainda vejo o Professor Padre
Manuel Antunes a apresentar a Poesia de
Arquíloco de Páros, e o célebre poema sobre
a contenção, a auto-vigilância de todas as
horas, que marcou a minha vida:
Coração, meu coração,
que afligem penas sem remédio,
eia!
Afasta os inimigos, opondo-lhes um peito
adverso. Mantém-te firme ao pé das ciladas
dos contrários. Se venceres, não exultes
abertamente.
Vencido, não te deites em
casa a gemer.
Mas goza as alegrias,
dói-te com as desgraças,
sem exagero.
Aprende a conhecer o ritmo que governa os
homens.
O mesmo ideal encontrei depois, no Baghavad Ghita:
“Penetrado do espírito de yoga, ó príncipe, realiza os teus trabalhos e mantém-te em sereno equilíbrio, na certeza de que tanto o sucesso como o insucesso são bons. Essa serenidade interior é yoga.”
A serenidade com que
viveu a sua missão, sabendo a que fim ela o
conduziria, diz-me que Luther King viveu a
sua vida dentro desse sentimento-conceito de
serenidade do Baghavad Ghita.
Será que no
seu íntimo, Luther King sentia que tinha
fracassado?
A sua luta não era a luta de
uma só vida, mas a de muitas gerações. E,
como repetidamente vemos, tantos anos
passados, o seu sucesso está sempre a ser
posto em causa... A sua luta não tem fim,
pois inscreve-se na luta eterna entre o Bem
e o Mal.
O Bem e o Mal, este dilema – ou
dicotomia – que nenhuma religião explicou
até hoje. Não explicou, e muito menos, nunca
resolveu.
Como dizia Graham Green (2)
numa entrevista, “o mal reside no coração do
homem”... Por isso se diz que os anjos, no
mito do presépio, cantam “Paz na Terra às
gentes de boa-vontade”...
Oh, sim,
necessitamos de PAZ.
Não só a Paz a
nível internacional, mas também e acima de
tudo, Paz nos nossos corações para
encararmos com serenidade e lucidez os
momentos difíceis, a idade que avança...
Oh, sim, e Paz também nos momentos de
alegria e bem-estar para os podermos
usufruir em plenitude.
Paz, ainda, no
nosso contacto com a Natureza, imagem
visível e sensível não só da magia do Poder
Divino como reencontro connosco próprios,
como reconforto e inspiração.
Que venha
em Paz o novo ano de 2023.
Myriam Jubilot de
Carvalho
Noite de 31 de Dezembro de 2022
(1) Martin Luther King
– (1929-1968) – Gandhi (1869-1948), Jesus
Cristo, morreram do mesmo modo, morreram às
mãos dos seus inimigos, que não suportaram
as suas mensagens de Paz, ou seja, a
Dignidade na Igualdade fraterna de Direitos
e Deveres.
(2) Graham Green – (1904-1991)
– escritor e jornalista inglês, católico.
Foi várias vezes apontado como candidato ao
Prémio Nobel.
Bom Natal de 2022
- Partilhar 09/12/2022
Com votos de
BOM NATAL, deixo algumas sugestões de
leitura para estas férias! São obras que
considero muito interessantes, obras que por
diferentes vias nos levam ao mundo do
Maravilhoso e da Fantasia.
*
Começo por Naguib Mahfouz, o escritor
egípcio laureado com o Nobel da Literatura
em 1988.
Em “As Noites das Mil E Uma Noites”,
Naguib Mahfouz faz uma continuação das
Mil e Uma Noites originais!
Dizendo isto, logo se imagina todo o sabor
dos antigos contos orientais – mistérios,
amor-paixão-segredos-traição, génios,
encantamentos, fantasia transbordante – mas
também uma apurada observação social
manifestada pelo contraste entre fausto e
miséria; a tudo isto se juntando uma grande
sabedoria própria da filosofia ‘soufi’...
Tudo se fundindo entre bem e mal, real e
imaginário, de forma a que o próprio real se
transfigura, tornando-se fantástico...
Enfim, toda a intriga é caldeada por
imensíssima ternura pelo ser humano.
*
E temos agora a obra de Michel
Tournier, "Gaspar, Belchior & Baltasar",
publicada em França no início dos anos 80.
Nesta
obra, Michel Tournier dá vida a cada um dos
lendários Reis Magos! Para nosso deleite,
Michel Tournier dá vida a estas figuras
misteriosas. Neste conto, Gaspar é rei de
Meroe, Baltasar é rei de Nippur, sendo
Belchior um príncipe de Palmira! Cada um
deles vai falar de si próprio, contando-nos
a sua história na primeira pessoa! Pelo
meio, passa toda uma meditação sobre a Vida,
a Existência, o Amor, o Tempo, a
Solidariedade, o Outro...
Para nossa
surpresa, também o Boi e o Burro dizem de
sua justiça. Mais – e aqui vemos a mão do
grande escritor que é Michel Tournier – é o
Burro quem nos narra o nascimento do Menino!
Há ainda a história pessoal do Rei Herodes
narrada pelo próprio!
Finalmente, e
aqui de novo se patenteia o génio do
escritor, há a história de um quarto rei
Mago, aquele que, segundo uma lenda ortodoxa
russa, chega atrasado e perde o seu encontro
com o Menino... E ele explica porquê...
Resta ainda dizer que é tudo narrado com
muita filosofia, muita poesia, imensíssima
delicadeza – a obra de um sage!
*
Tanto a obra de Naguib Mahfouz,
como esta de Michel Tournier, partindo de
histórias conhecidas, levam-nos a novos
enredos!
...Finalmente, aconteceu
que ao ler esta narrativa sobre o nascimento
do Menino divino, regressou subitamente à
minha memória aquele poema de Augusto Gil
que andava pelos livros escolares antigos –
um poema narrativo que nos conta o
apaziguamento que se deu na Natureza à hora
em que nascia Nossa Senhora. E fui reler o
poema. Maravilha-nos o paralelismo que surge
entre estas duas obras! Em ambas se opera
uma transfiguração acontecida na Terra à
hora do nascimento da Senhora, e à hora do
nascimento do Menino! E que maravilhoso
poema – já não tanto pelo tema, que já de si
é belo e cheio de ternura, mas pela
engenharia linguística patenteada na sua
construção!
Sabemos que certas
técnicas e gostos literários passaram de
moda... Mas o poema “Natividade” contém algo
de épico na sua narrativa dinamicamente
sensual, na alternância dos ritmos, na
variedade de imagens, rondando o
‘maravilhoso’ na solução do seu breve
enredo!
*
Por fim, uma breve
reflexão...
No nosso tempo de extrema
liberdade criativa, porque não voltar a ler
com veneração e respeito os grandes
“artistas da palavra”, que nos precederam? A
nossa Literatura recente não pode resumir-se
e confinar-se a Fernando Pessoa! Fazendo-o,
consentindo-o, estamos a auto limitar-nos!
As grandes rupturas artísticas que
na Europa se manifestaram a seguir à
Primeira Guerra Mundial, no início do século
XX, visavam uma intensa procura de novos
caminhos nas Artes. Sabemos que a renovação
é necessária! Sem renovação, ainda hoje nos
encontraríamos na Idade da Pedra... Mas a
seguir à ruptura, seguiu-se o grande
movimento do Surrealismo.
...Por isso
a minha mensagem de Natal vai no sentido de
que precisamos de conservar a Magia, o
Encanto, a Fantasia! E obviamente, a
Ternura, a Solidariedade!
*
Informação útil:
Naguib Mahfouz – “As
Noites das Mil E Uma Noites”, edição
portuguesa em 2009, pela “idea y creación
editorial, s.l.”
Michel Tournier
– “Gaspar, Belchior e Baltazar”, ed D.
Quixote, 4ª ed, 2011
Augusto Gil –
“Alba Plena”, publicado em 1916.
Um brinde, pela manhã
- Partilhar 30/10/2022
Como sempre, ao
acordar, após o pequeno-almoço, dirigi-me à
varanda e abri as janelas da marquise. A
manhã estava fresca, luminosa mas fresca...
Princípios de outono... Cheguei-me ao
parapeito, e como sempre, admirei a vista
maravilhosa que se espraiava na minha
frente... O amplo Largo, sem construções que
impedissem a brisa do Rio de se difundir
pela cidade...
Ia a reentrar em casa,
quando me apercebo de um breve ruído nas
minhas costas... Uma coisa suave... mas
audível...
Virei-me para trás...
Surpresa...
Um periquito acabava de
aterrar – não sobre o parapeito da varanda,
mas suavemente, no chão...
– Olha o
brinde com que a manhã me saúda! Sejas
bem-vindo...
Perguntei-lhe donde vinha,
o que lhe tinha acontecido... Mas o bichinho
preferiu guardar segredo... Apenas estendia
as asas sobre o pavimento... Vi que
tremia...
– Estás ferido? – perguntei...
– Tens fome?
Correndo o risco de que ele
levantasse voo e voasse para longe,
desviei-me quase sem me mexer, entrei na
sala, e fui rapidamente à cozinha...
Que
é que eu faço? – perguntava a mim própria...
Um pouco ao acaso, abri de par-em-par as
portas do armário, em busca de alguma
sugestão – pedindo aos Deuses que a avezinha
não se lembrasse de continuar no seu rumo de
acaso...
Alpista? Oh, ainda há aqui um
resto... Quem sabe, um pouco de cuscuz...?
Peguei numa mão-cheia de cuscuz e alpista,
também numa banana, e regressei, ansiosa, à
marquise... Oh, que bom, ele ainda lá
estava!
Lentamente, suavemente,
abaixei-me sobre as pontas dos pés, e a
alguma distância, depus na frente dele,
aquela refeição improvisada... O meu
visitante devia estar assustado, debilitado,
com fome talvez, e debicou... com cautelas
mil, como se os grãozinhos pudessem
agarrá-lo, ou fazer-lhe algum outro mal...
Vendo-o mais tranquilo, com cuidados
redobrados, avancei a mão direita... e sem
dificuldade alguma, agarrei-o... ou foi ele
que se deixou agarrar...
– Estás
habituado às pessoas – disse-lhe...
Tinha tido um canário, que certa manhã se
tinha evadido... A gaiola estava limpa,
devoluta, à espera de novo ocupante... E lá
o encerrei...
– Quando estiveres
recomposto, deixo-te partir... – disse,
antecipando o desgosto de o perder...
Deixando o passarito bem aferrolhado,
arranjei-me e fui ao super-mercado. O meu
objectivo – trazer-lhe um reconfortante
repasto de bananas, mangas, mamão, verduras
frescas...
Os dias passaram... O meu
novo amigo já cantava. As suas penas azuis,
suavemente azuis, a cabecita parda, todo ele
tinha recuperado do esforço do voo e da fuga
que o tinha trazido até mim... As suas
áreas, embora indecifráveis, eram cada vez
mais frequentes!
– Estás feliz? –
perguntava-lhe...
Ele movia a cabecita em
sinal de assentimento!
– Muito bem,
compadre! Acho que gostas de ouvir a minha
voz! Eu também adoro ouvir a tua!
Passou
um mês, passaram dois...
Pensei que o
meu amigo já estaria tão habituado comigo –
e grato, porque não? – que experimentei
levá-lo até à janela da cozinha...
Depus
a gaiola sobre a máquina de lavar roupa, e
abri um pouco a portinha para que ele
recebesse mais ar! E ele cantou, cantou,
enquanto eu arrumava a louça na máquina!
Tranquilamente, vim ao computador, como
sempre... A curiosidade de ver os mails...
Quem se lembrou hoje de mim?...
Esqueci-me das horas. Estive compenetrada! E
mais um conto saiu do dedilhar do teclado...
Enfim, eram horas de preparar o almoço...
Regressei à cozinha...
Uma aragem
entrava pela janela... Cheirava a mar! A
cidade, entre o Rio e o Mar, por vezes
enche-se deste aroma marinho e de gaivotas!
Algumas, têm ninho sobre a chaminé do meu
prédio! É um prazer ouvi-las grasnar!
O
meu periquito abanava as asitas...
Persuadi-me de que cantava com mais energia!
Eu vivia feliz com este companheiro
discreto! As suas áreas deliciavam-me.
A
aragem que entrava pela janela ficou mais
intensa... O outono tinha avançado, havia
mais vento... Um vento húmido, ameaçando
chuva...
O periquito deixou de cantar.
Eu, entretida nas minhas lides, nem
reparei...
Na sua sensibilidade voadora
de animal provido de asas, e sabendo que as
asas foram feitas para voar – o meu
amiguinho sentiu no biquito, intensamente, o
aceno das ramadas das árvores da rua...
...Olhei para ele... E vi...
...Muito ao
de leve, eriçou as penas das asas, a
auscultar as correntes de ar que lhe
chegavam pela janela...
Sem um pio, sem
uma área de despedida, alongou o seu corpito
aerodinâmico... Esticou, abriu as asas...
tomou balanço...
Esta luz coada
- Partilhar 28/09/2022
Talvez o vento,
baloiçando-se nestes fetos arbóreos
Talvez este céu encoberto de Outono
Talvez esta luz coada pelas vidraças
embaciadas...
Quem se baloiça? O
vento? As folhas? O monumental eucalipto que
lá de fora faz de catavento?
As telhas
humedecidas pela chuva miudinha...
O
cortinado de cambraia ondulando na janela...
A minha taquicardia clamando por socorro...
“Já viste a prenda que eu te trouxe?” –
diz ele, ternamente...
Uma serpente. Que
se vai desenroscando aos sons ondulantes das
flautas de Orfeu inundando os buracos
esfarelados das paredes, cheios das avencas
frescas, gigantescas, da ribanceira da
ribeira
Mas ela não se assusta.
Acaricia a serpente! Acaricia-o a ele nos
sons redondos que da flauta, se evaporam no
ar...
Tomam forma no escuro os tons
dourados dos trompetes, da voz rouca de Nat
King Cole, das suas ‘Autumn Leaves’...
Ergue-se cada vez mais, a serpente.
“Buonanotte amore, tu va dormire e sogni ”.
Não, não é Nat King Cole, é Nini Rosso...
Mas a serpente... Cinge-lhes os corpos.
Aperta-os, cada vez mais, cada vez mais.
Cada vez mais
Buona notte ovunque tu sei
Buonanotte a te, che sei lontano.
Estrelas na noite
- Partilhar 09/09/2022
Retira os óculos,
para descansar um pouco. Os olhos. E a
curvatura recôncava do nariz.
Da janela
da sala avista, de onde em onde, pequenas
ampolas eléctricas. Povoando a noite. Seus
brilhos redondos, interpretam-nos,
grosseiramente, seus olhos míopes. Como
imensas estrelas. Deslocadas. Ou
terrivelmente brancas, ou agressivamente
amarelas, ou suavemente. Verdes.
Estou
cada vez pior, pensou. Vou acabar ceguinha
de todo.
Liga o rádio.
*
Índia...
A tua imagem...
Sempre comigo vai...
*
Oh, há quanto tempo não ouvia isto…
Canção que tinha sido tão familiar. De tão
insistentemente repetida. E, agora. Na bela
voz da Gal Costa... Parecendo-lhe ainda mais
bela...
*
Vai até à janela. Chega o
nariz à vidraça. Que a separa do frio e da
noite. E da distância. O bafo quente da
respiração faz-lhe transpirar o vidro…
Distraidamente, ergue a mão. Para apanhar
uma dessas estrelas. Caídas. Lá tão longe.
E, no entanto, tão perto.
A mão
tropeça-lhe na janela.
Cada vez pior,
sorria consigo própria. Cada vez pior,
sorriu. Sem se aperceber. De que sorria...
Eu acordei a cantar
- Partilhar 08/08/2022
Eu acordei a
cantar
Minha guitarra também
Guitarra
canta baixinho
Ajuda-me a recordar
Abre as janelas devagarinho
Minha mãe dos
meus amores
Traz as andorinhas ao ninho
Protege-as dos predadores
Guitarra
princípio e fim
Nunca te afastes de mim
A guitarra é a minha Arte
Faz parte da
minha vida
Canta e chora
– quando
chegas – quando partes
Minha voz, minha
alma ferida
Sou Zé Maria Guitarra
Pinto a vida, engano a morte
Pinto e
canto, e sempre a mesma garra!
Amante e
companheira! – e minha sorte
Fui ao jardim da Celeste...
- Partilhar 01/06/2022
Encontro
refúgio, recolhimento, silêncio, entre a
multidão, no pleno da esplanada borbulhante
das confidências murmuradas, dos ruídos
fumegantes dos carros, da avidez dos pombos
por migalhas.
Passam as mães com os bebés
pela mão, regressando das aulas. Como
actores de novela, beijam-se fornicantemente
alguns pares de jovens namorados. A carrinha
vermelha dos Correios parte depois de
recolhida toda a espécie de mensagens.
Velhotas passeiam-se de braço dado e
sentam-se nos bancos públicos sob as
avantajadas copas verdes dos plátanos do
Largo, chilreantes do recolher dos pardais.
Quem aqui faz falta é o Grande Rei...
Quando acampou junto a Atenas, Ciro ficou
fascinado com aquelas árvores que antes
nunca tinha visto! Mandou juntar todas as
joias de todas as concubinas, e com elas
ornamentou as copas que falavam com o
vento... Depois, sob elas mandou montar a
sua real tenda e aí se recolheu! Ao fim de
uma semana de inerte espera, os generais
começaram a ficar impacientes... E foram
instar o Grande Rei a considerar que não se
encontravam em digressão de férias, mas que
se tinham deslocado até ali, desde a
distante Pérsia... para fazerem a guerra...
Uma ambulância aflita irrompe Avenida acima
e passa vertiginosa, galgando os sinais
luminosos... Os Deuses te acompanhem!...
Acendem-se as luzes das montras, que o
quadrado de céu, visível daqui, parece uma
flor que se fecha ao anoitecer.
Encostados às costas dos bancos públicos,
velhotes trôpegos discutem as últimas
reivindicações dos sindicatos – enquanto na
mesa ao lado da minha, entre girafas de
cerveja, os calores da Justiça e da
Solidariedade são absorvidos pelo jornal
A Bola.
À minha frente, um fulano
meio grisalho e meio careca coça o cachaço
enquanto aprecia o traseiro da moça que
serve de mesa em mesa. Levanta-se,
cavalheiro, um cidadão Afro para
cumprimentar uma Amiga que passa, elegante,
com o lulu pela trela. Uma fulana reboluda
investe por entre o plástico branco das
mesas, para vir dar o beijinho-da-praxe a um
fulano de calças de ganga esburacadas nos
joelhos, à minha esquerda.
Que hei-de
beber que me mate a sede? O néctar de
pêssego será demasiado doce, a cerveja
cair-me-á na fraqueza, o café não me deixará
dormir, e já está demasiado frio para me
decidir por um gelado. Como está sujo o chão
da esplanada. Quanta beata, quanta
embalagem de açúcar vazia, quanto maço de
cigarros amarfanhado pelas mãos... Passa o
velho porteiro da empresa onde trabalho,
aquele que pediu a reforma antecipadamente,
esperando que sem os esforços que a
profissão implica, a dor que lhe rói o
fígado lhe dê um pouco de tréguas, e o deixe
durar mais algum tempo... E que os Deuses o
protejam!
Decido-me pelo néctar de
pêssego. As lojas vão fechando. Os
frequentadores da esplanada vão-se
retirando. São horas de jantar. Engulo o
néctar de pêssego de um trago, sem lhe
sentir o doce viscoso que no entanto,
noutras alturas, me tem deliciado.
Quem
pudesse estar ao teu lado. No meio da
balbúrdia, abro uma clareira de um silêncio
que só eu oiço, para o povoar com a tua
presença. Mas há dias em que me foges, e não
consigo ultrapassar a distância. Então, nem
o próprio trabalho me preenche e ao
regressar a casa, meto-me na cama, no quarto
obscurecido, até me doerem os rins.
Depois, volto a sair... Pode acontecer que
me cruze com alguma Amiga, ou Colega, com
quem trocar dois dedos de conversa. Penso em
ti como se o pensamento pudesse trazer-te
corporalmente para junto de mim, quero
sentir o teu corpo e meto-me no carro, em
direcção ao mar. Na praia, quase noite, já o
frio ameaçará congelar-me a garganta...
Definitivamente, hoje não consigo de modo
algum sentir-te ao meu lado. Nas minhas
costas, há pessoas que tossem enquanto
dissertam sobre os problemas das
Forças-da-Ordem...
Que se lixem todos.
Que se lixe todo este mundo, e os outros que
se lixem também. Que eu hoje estou sozinha.
E se consegui estabelecer a clareira que me
garante o silêncio, não consegui, no
entanto, preenchê-lo contigo...
As copas
dos plátanos baloiçam-se na aragem deste fim
de tarde... Onde quer que me encontre, o
chilrear ensurdecedor dos pardais a amalhar,
transporta-me ao jardim junto à Doca...
Faro... Tenho uns sete, oito anos... Muitas
mães, à tardinha, trazem as crianças para
brincarem. Sentam-se nos bancos... Sob as
copas frondosas dos plátanos do Jardim
Manuel Bívar, habitadas à tardinha pelo
chilrear alucinado, estonteante,
ensurdecedor, dos pardais que amalham, não
se cansam de conversar! Há uma menina mais
crescida, um pouco mais corpulenta, muito
mandona. Organiza as brincadeiras com
autoridade! Joga-se ao manecas,
fazem-se rodas para o trapinho queimado,
salta-se à corda! A minha mãe bem pode
sentenciar – Não é o jardim da Celeste,
é “Eu fui ao jardim celeste”! Mas ninguém
liga... E chega a vez do Mamã, dá
licença? Queres banana, ou ananás? e
acaba tudo a jogar aos 5 cantinhos, a
jogar ao coito!
Bem precisava
agora dos teus braços para me acoitar...
Myriam Jubilot
de Carvalho
Almada, esplanada do Café
Central
Só as MULHERES podem ser Mães!
- Partilhar 02/05/2022
De facto, o Dia
das Mães só poderá ser "feliz" quando todas
as Mães do mundo puderem criar os Filhos em
Paz, na Igualdade de Direitos e na Justiça,
nos devidos cuidados de Saúde, na frequência
plena de uma Escolaridade satisfatória! De
facto, no reconhecimento pleno dos seus
Direitos de cidadãs em pé de igualdade com
os seus companheiros!
Procurei na Net
imagens adequadas ao Dia Das Mães. Enfim,
todas as imagens que encontrei,
representavam as mães... branquinhas,
branquinhas de pele branca! Representativas
de um mundo – uma parcela do mundo – onde os
sistemas de vida já tiveram oportunidade e
tempo para evoluir em ordem a um objectivo
de Igualdade de género e Justiça Social.
Então, agora que o mundo europeu está
comovidíssimo com as mães de pele branca que
procuram refúgio contra as balas, deixo aqui
uma imagem de uma mãe que não tinha pele
branca. Em homenagem a todas as mães que
morrem nas chacinas contra os Índios, que
morrem de fome em algumas zonas do Globo. Em
homenagem a todas as Mães que morreram no
Mediterrâneo – para quem as portas não se
abriram. Porque ao contrário do que vemos
presentemente, houve discussões, acordos,
percentagens, numerus clausus...
A Guitarra
- Partilhar 01/04/2022
A palavra
GUITARRA vem do Grego KITHARA - κιθάρα.
Diz-se em geral que a GUITARRA é o resultado
da milenar evolução da KITHARA, e esta por
sua vez, era uma LIRA (λύρα) que tinha
evoluído e crescido em dimensão e fabrico –
era uma lira em ponto grande, e em madeira,
tendo o número de cordas subido para 15 ou
mesmo para 18.
A LIRA comportava 3, 5 ou
7 cordas, e a caixa de ressonância era uma
carapaça de “tartaruga”. As cordas da lira
eram fabricadas a partir de tendões.
Por
vezes, torna-se difícil encontrar o
equivalente para certos termos. Em inglês ou
francês, leio que a caixa de ressonância da
lira era uma carapaça de “tortue”.
“Tortue” significa genericamente, tartaruga,
como se sabe. Pelo que tanto se refere às
tartarugas marinhas, grandes como é sabido,
como às tartarugas de água doce, muito mais
pequenas...
Penso que a caixa de
ressonância da lira da Antiguidade, que era
um instrumento de pequena dimensão, seria
feita de uma carapaça de algum animal
semelhante às tartarugas... mas seria um
animal pequeno; e a concavidade era tapada
por pele de vaca bem estendida.
Na
cítara (KITHARA), a caixa de ressonância era
em madeira, e os braços, frequentemente,
eram em marfim.
No entanto a GUITARRA vem
de muito mais longe. Vem da CÍTARA dos
Egípcios. Mas era de origem asiática. A
cítara egípcia podia ter de 5 a 18 cordas.
Também os egípcios tinham uma espécie de
cítara que passou à tradição ÁRABE, o
TAMBOURAH.
A Poesia de carácter
pessoal, de expressão e expansão dos
sentimentos, é designada como POESIA LÍRICA
exatamente porque era acompanhada pela Lira.
Poesia e Música são certamente irmãs gémeas
– ou antes, irmãs siamesas! Nasceram juntas,
uma a acompanhar a outra.
Estes
instrumentos estão documentados em pinturas,
as mais variadas, ou são visíveis nas
esculturas... Mas não pertencem aqui ou ali,
a uma ou outra cultura... Eram comuns às
diferentes culturas da Antiguidade, e
apresentavam muitas variantes. A Música, tal
como a Poesia ou as outras artes, não tinha
fronteiras. Podia apresentar características
próprias em diferentes regiões, mas não
tinha fronteiras. Tal como hoje.
Gosto de
olhar as Artes e vê-las em perspectiva,
desde a sua origem imemorial. Os
instrumentos musicais são um dos muitos
testemunhos de que o ser humano é dotado de
sensibilidade, desde sempre! E é esse legado
de sensibilidade que nos cumpre preservar, e
nos salva da barbárie – que, infelizmente,
também faz parte da natureza humana, mas que
temos que constantemente educar e
re-educar...
As Pepitas-de-Ouro de Almada
- Partilhar 27/02/2022
O topónimo
ALMADA deriva do Árabe al-ma’adana que
significava “a mina”. Em tempos do domínio
árabe-berbere, houve exploração de ouro na
zona da Adiça, praia de extenso areal a sul
da Fonte da Telha. Actualmente conhecido
como Praia da NATO.
A mina
esgotou-se. Mas Almada conserva as suas
pepitas de ouro...
Cacilhas
6 da tarde, fim de Agosto – Cacilhas
está em obras.
Parece que finalmente vai
nascer uma zona de descanso e deleite junto
ao Rio... Será?... Será desta?!
Fim de
Verão. Turistas de dentro, e turistas de
fora.
Gente que sai para Lisboa. Gente
que mora na Margem Sul e agora regressa a
casa. Gente que aqui desembarca para,
simplesmente, ir jantar à Costa... – ou
simplesmente, para aqui vir jantar junto ao
Rio!
Abanquei numa esplanadazinha
abrigada, à base da ladeira Carvalho
Freirinha.
– “Carvalho Freirinha, um
herói almadense da Batalha da Cova da
Piedade”, travada em 1833, durante a Guerra
Civil (1). Uma batalha aliás decisiva, que
deu a derrota final às forças miguelistas.
...a Guerra Civil, no século XIX...
Também se lhe chama “as Lutas Liberais” ...
...Há coisas para mim mais difíceis de
compreender que as “contas” ... As “contas”,
os “problemas” ... Assombraram-me a
infância; garantiram-me o eterno desprezo da
família... Se fosse hoje, alguém teria
alvitrado algo como “A Menina é disléxica,
mais, além de Dislexia também é sofre de
“Discalculia” ... Mas ao que parece, nada
disso tinha ainda sido identificado. E
Dislexia mais Discalculia valeram-me a fama,
mil vezes difundida e repetida, de burra,
burrinha, estúpida...
...A Dislexia vem
acompanhada de “compreensão lenta” ...
Parece que os estímulos captados pelo
cérebro, em vez de atingirem de imediato o
alvo que os tornará inteligíveis, muito pelo
contrário, percorrem longos percursos até
atingirem o cerne da interpretação...
...Talvez devido às minhas
super-extraordinárias capacidades de
compreensão lenta, há coisas que eu nunca
percebi... Nem certamente hei-de vir a
perceber. A Guerra Civil, no século XIX,
aqui, entre nós, na nossa casa... A Guerra
Civil de Espanha, cerca de um século depois
da nossa... A Revolução Francesa, a
Revolução Russa... porquê? ...Por que razão
será preciso tanto sofrimento, tanto
estertor, para que se possa dar um passo em
frente no caminho de uma vida social mais
justa, mais igualitária, com uma
distribuição de possibilidades mais
equitativa para todo o mundo? E porque é que
uma vez vitoriosa, a luta libertadora se
converte em nova opressão?... Porque é que
“Tudo deve mudar para que tudo fique como
está”?
...Tanta reflexão, apenas porque
vim a Cacilhas neste fim de tarde de fim de
Verão... Felizmente, algo se interpõe, de
momento, entre as minhas reflexões e o mundo
que me cerca – Um cartaz anunciando um
concerto de André Rieu.
Buldózeres e
escavadoras. Já estão em descanso – já hoje
trabalharam muito. Autocarros que chegam,
autocarros que saem.
Estou aqui nesta
esplanada abrigada do vento. Aquilo que se
pode designar como “café de bairro”.
Clientes atrás de mim, falam alto. Cantam.
Cabo-verdianos cantam em crioulo, doces
melodias dolentes. Que bem que se está aqui!
Toda a gente se conhece.
No meio do
bulício, gente que chega, que sai dos
Cacilheiros, gente que parte – e aqui, neste
canto de um paraíso não identificado, toda a
minha gente se conhece. Em volta de umas
b’jolas, tagarelam e cantam.
Chega
mais um companheiro que já cantou “com um
grupo senegalês em Sesimbra e Porto Côvo”!
Agora, todos falam um franco-inglesu
meio tuga, meio crioulo. Párias em busca de
um mundo, de um sítio onde ganhar a vida...
“É preciso dar no duro...”
– Sim, é
preciso dar no duro.
É preciso ser bem
acolhido!
Adoro Cacilhas, uma das
muitas “pepitas de ouro” de Almada. Este ir
e chegar, este vai e vem, este duro ter e
não-ter e não se conformar, este correr
mundo em busca de um lugar...
O azul do
céu começa a esmorecer... A aragem da tarde
começa a arrefecer... É fim de Agosto...
Cacilhas-pepita-de-ouro de toda a gente, de
todo o mundo.
Um cão senta-se ao lado da
minha mesa. Mas é conhecido de um dos
clientes, e ambos regressam a casa, mochila
ao ombro...
(1)
Batalha da Cova da Piedade
*
“Tudo deve mudar para que tudo fique
como está” – A desiludida frase final do
romance de Tomasi de Lampedusa, “O
Leopardo”.
Serra da Arrábida
- Partilhar 30/01/2022
A Serra
ergue-se na sua imponência além da estrada.
Do outro lado da barreira natural, erguida à
nossa esquerda, fica o Mar Oceano.
A
estrada rústica, de terra batida, segue,
sinuosa, a interiorizar-se cada vez mais no
interior da Floresta. Dizem os entendidos
que é “a última floresta mediterrânica”,
conservando ainda exemplares da Era
Terciária. Não sei identificá-los,
profundamente o lamento, apesar de ser tão
antiga que me sinto aparentada com esses
sobreviventes dessas épocas ultrapassadas,
enigmáticas, misteriosas...
A estrada
segue. Enquanto descemos, é sempre em
frente. Há nuvens, suaves, trazidas pela
aragem. A hora luminosa do canto das aves já
passou. E agora, sob este calor do meio da
tarde, impôs-se, quente, este silêncio
abafado e húmido.
Estacionamos o carro
numa encruzilhada amena. Outros caminhos
seriam possíveis, mas escolhemos este – e
aqui, está-se bem.
Retiramos do
porta-bagagens as cadeiras de campismo.
Instalamo-nos à sombra aconchegante das
árvores de nomes desconhecidos. Essa
incógnita não nos perturba. Abençoada,
acolhedora, a sua quietude muda, convida-nos
a este silêncio comunicante!
Foi este
imponente silêncio que inspirou monges e
poetas a procurem esta Serra como cenário da
sua meditação e inspiração. Sebastião da
Gama, ou Frei Agostinho da Cruz, os mais
conhecidos. Séculos os separam e, no
entanto, viveram o mesmo fascínio, e a mesma
bênção.
Esta aragem, mais leve que a
respiração... Uma ou outra folha seca
balançando-se ao vento como num berço...
E este silêncio...
Vêm sublimar um
pensamento actualmente recorrente... Um dia,
um dia que finalmente virá, um dia, quando o
meu coração mergulhar no vale do Eterno
Silêncio – estará Anúbis à minha espera?
Será o meu coração mais leve que esta
aragem, mais leve que esta folha seca
balançando-se ao vento como num berço?
Que amuleto, então, me ajudará?
Terei, ao
menos, sobre o coração, um pequeno
escaravelho de lápis-lazúli para me
proteger?
Será, ao menos, o meu coração
mais leve que a pena de Maat?... Ou que esta
folhinha morta que se desprendeu da árvore e
vem balançando, suavemente, harmoniosamente,
ociosamente, em direcção ao chão para se
refundir no eterno húmus vital?...
Não sei de quem saiba pintar a Luz
- Partilhar 30/12/2021
Caminhar de forma
sagrada,
É fazer da vida uma arte.
Viver cada
momento como se fosse o último,
Dar cada passo
como se fosse o primeiro.
Palavras
atribuídas ao Chefe Alce Negro (*)
(1863 - 1966)
Actualmente, vejo com
frequência, invocar “a Luz Branca de Deus”. Ora, é
bom lembrar que há conceitos, na Cultura Ocidental,
que têm sido corrompidos por séculos de preconceitos
que fundem numa amálgama conceitos sociais,
conceitos religiosos e conceitos culturais e
étnicos... Regra geral, considera-se que a cor e a
luz brancas simbolizam ideais de Bem e de Pureza.
Subentendendo-se que opostamente, a cor preta
simbolizará o Mal e a Perversão. Quem não se lembra
que um castigo infligido às crianças, ainda nos
princípios do século XX, era o encerramento no
“quarto escuro”?
A Luz, em si, não tem cor.
Quem consegue fixar o Sol? A luz solar é
esbraseante, esfuziante, queima os olhos se
tentarmos fixá-la. Não é “branca”. E não há
alternativa – também não é amarela.
Enquanto
falantes – enquanto seres humanos que precisamos de
comunicar – servimo-nos de metáforas. Na tentativa
de comunicar certos conceitos, no decurso do tempo
histórico, algumas metáforas se tornaram passíveis
de ser usadas com perversidade. Figura nesse caso o
adjectivo que menciona a cor “branca” enquanto
aplicável a uma definição de um qualitativo de Deus;
lembremos mesmo que na linguagem pictórica,
servimo-nos das tintas branca ou amarela para
exprimir essa mesma abstracção...
Isto
parece um problema de lana caprina, conversa
pueril, ou inútil. Mas muito pelo contrário, é a
imensa base de uma confusão secular que tem sido
responsável pela marginalização, inferiorização e
martírio de gerações de seres humanos.
As
palavras que usamos estão carregadas de História,
como sabemos. Uma História que está mais colada a
nós do que a roupa com que nos vestimos. E no
entanto, pensamos com mais atenção na escolha do
vestuário, do que nas palavras com que
comunicamos...
...Pois quando usamos palavras
com as quais corremos o risco de condenar os nossos
semelhantes ao sofrimento ou à morte, não estamos a
comunicar, mas sim a assumir, unilateralmente, um
direito ao qual ninguém tem direito algum. Refiro-me
à “nossa cultura ocidental” porque é a única que
conheço, porque vivida por dentro...
Não
estou a discutir o conceito de “deus”, quem é, se
existe, ou se não existe. O tema desta crónica não é
religioso; apenas se situa no âmbito da Linguística
e da História das Mentalidades, e incide apenas
sobre a palavra em si:
A palavra “deus” deriva
muito remotamente da palavra indo-europeia que
significava “luz”. Todos sabemos que os povos
primitivos adoravam o Sol – o “pai”, fonte de
energia e de vida, tal como adoravam a Terra, a
“máter”, a “mãe” donde nascem os alimentos, donde
brota a própria água. A palavra foi evoluindo ao
passar para as antigas línguas da Europa. Parece que
a palavra “Zeus”, designação do poderoso deus da
cultura da Grécia antiga, ainda seria aparentada com
a palavra original.
O que interessa, nesta
crónica, é apenas uma questão de vocabulário –
alia-se a ideia da divindade à cor branca, e numa
sequência de oposição lógica, a ideia do “mal” será
associável à cor preta. Este conceito foi imposto
aos povos não-europeus pela colonização – o “deus
dos brancos” seria “branco”... logo, seria “bom”...
e o mais que não fosse “branco”... “bom” não
seria... Esta dicotomia tem impregnado inaceitáveis
comportamentos que têm manchado a História da
Humanidade.
Os povos antigos tinham
respeito pelo poder mágico das palavras, acreditando
que elas têm o poder de veicular energias positivas
ou negativas.
Não posso afirmar que as
palavras tenham poderes mágicos. Mas posso afirmar
que sendo o meio de comunicação mais comum a todos
os seres humanos, à medida que os meios de
comunicação são cada vez mais universais, elas
deverão ser usadas com o maior conhecimento quanto
ao seu valor semântico. A história das palavras
dá-lhes um peso que se torna por vezes
insustentável. Sempre que ao longo de séculos se
afirmou que a “luz divina” é “branca”, contribuiu-se
para condenar impunemente aos maiores sofrimentos,
todos os seres humanos dotados de pele não-branca...
Hoje, em véspera de passagem de ano, véspera
da entrada num Ano Novo, expresso o meu voto de que
todos nós usemos as palavras com a devida reverência
e respeito, cientes do poder que elas contêm – e
que, para que esse poder seja sempre benéfico, o seu
significado seja ponderado com o coração.
* Sobre o Chefe
Alce Negro, breve biografia: [wikipedia]
*
“La historia de San Alce
Negro, un mito de la cultura hippy” [web]
Um Natal diferente
- Partilhar 09/12/2021
Natal nos trópicos! Um
sonho para os europeus. Tropical New Year’s Eve.
Banho de mar em pleno mês de Dezembro. Como
seriam os portugueses sem o seu imaginário
povoado dos mitos cor-de-rosa das praias de
além-mar e areal sem fim? Oh, estas ondas
de suave vai-e-vem das terras de Vera-Cruz.
Sento-me na praia. Alheia ao afogo com que naturais
e turistas se gozam do sol e do prazer de mergulhar
nas salsas águas dos mares do sul.
Natais da
minha infância. Igualmente decorridos sob a doçura
de um clima assim ameno. Não exactamente a mesma
coisa, bem entendido, há diferenças. Os natais no
Norte de Portugal serão autênticos natais de postal
ilustrado, com frio e neve, e lareiras, luvas,
cachecóis. Pantufas. Mas no Sul, é muito diferente,
com o seu clima de excepção.
Antigamente, os
portugueses não se metiam ao mar, em dezembro. Agora
é fácil, fazem surf, body-board, têm
os fatos isolantes. Mas na época que neste preciso
instante está a acampar na minha mente, nada disso
estava na moda, aliás, pergunto-me se alguma coisa
desse tipo existiria. Apenas os nórdicos, com
diferente sensibilidade ao frio, se metiam ao mar,
no inverno.
Aqui, na Bahia de Todos os Santos,
estou mesmo dentro de um natal de verão! Mas a
imagem que agora me absorve é a Rua de St.º António.
A câmara municipal de Faro tinha brindado a
cidade com uma inovação de peso. Tinha montado
iluminações festivas na rua principal, e havia
pequenas lâmpadas coloridas suspensas em arcos
metálicos, montados sobre a rua! Nunca antes tinha
acontecido nada assim! As pequenas luzes suspensas
brilhavam furiosamente, acompanhadas de canções de
natal, em inglês! Gravações indefinidamente
recomeçadas ao longo da noite! As melodias
amplificadas pelos largos altifalantes de brilho
bronzeado, campânulas cor de chumbo, pendurados nas
sacadas das casas, com seu reflexo de pequeninas
luzes como minúsculas estrelas! Foi aí que fiz o meu
primeiro contacto com as famosíssimas gingle
bells e silent night. E havia quem
soubesse contar a história do nascimento dessas
canções. Gente que sabia tanto! Como a minha família
era culta.
Temperatura primaveril. Noite de
inverno, límpida, como só no Algarve! A cidade em
peso veio para a rua passear. Foi uma consoada de
modernização, de progresso, de entusiasmo! Quem
nessa noite teria ido à missa-do-galo? Qual o quê?
Famílias inteiras, dos avós aos netos, passeavam Rua
de St.º António acima, Rua de St.º António abaixo,
gingle bells e mais gingle bells, pela
cálida noite adentro.
Não era com as canções, tão
repetidas que até já cansava, nem com as luzinhas
ridículas, penduradas sobre a rua em arquinhos de
marcha de S. João, nem com o passeio rua abaixo/rua
acima já tão monótono que dava a volta ao estômago,
que me vibrava o coração. O meu coração vibrava
porque ele estava ali. Ainda agora, aqui
mesmo, à beira do Atlântico Sul, recordando essa
noite mágica, sinto uma estranha e indizível
comoção. Mas já não é por ele. Não; que a
vida passou. É por mim, a jovem que eu fui.
Nessa época eu não teria mais de quinze anos; ele
era um pouco mais velho. – Com seu jeito de
homenzinho, todo assumido, a pera crescida, o
sorriso auto-satisfeito. Aquele andar seguro.
...Tanta gente ao nosso lado. Porém, era ele,
e só ele, quem eu via sobressair do grupo.
Monopolizando a atenção das outras jovens que lhe
puxavam pela conversa, as mãos nos bolsos das
calças, o peito inchando e atirando a cabeça para
trás conforme ria; mas sorrindo no olhar, olhar que
sempre que podia me dirigia a mim, só a mim. Pelo
menos, era o que eu imaginava... Ainda hoje, ele
está ali a sorrir para mim, aquele sorriso que me
ficou eterno...
Dir-se-ia que toda a sua
performance perante o grupo se destinava apenas a
seduzir a deferência com que eu o contemplava. Ainda
hoje estou para saber – teria ele tido
consciência do encantamento com que eu o via? Ou
seria apenas o efeito daquele céu tão límpido e
cintilante na noite escura, daquela temperatura
maviosa, juvenil, em pleno inverno?
Dentro de
dias, aqui na Bahia, vai ser a passagem de ano. O
povo virá à praia celebrar Yemanjá, a deusa dos
mares e das profundezas das águas, mãe da
fertilidade e da fecundidade, mãe maternal, sempre
pronta a amamentar as crianças sob o seu domínio,
mãe delicada. Mas de espada em punho para defender
os seus filhos. Porque não fui eu afilhada de
Yemanjá? Porque nunca lhe lancei flores ao mar?
Fala-se tanto em deuses, deuses diversos... Por que
nunca ao pé de mim se falou em Yemanjá? Talvez nunca
me tivesse ficado este vazio na mácula do coração,
esta sensação insatisfeita que me faz sentir sempre
a falta premente de um algo indefinido que nunca se
encontra.
O casal que me acompanha sai da água,
pingando dos pés à cabeça – “Porque não vens
nadar? Está boa!” – “Não, não, está fria. É
muito fria para mim”.
Dentro de dias, vai ser a passagem de ano. O povo vai descer à praia e
vai passar a noite sambando para ajudar o ano novo a
romper na alvorada. E lançar ao mar pétalas e
corolas de flores em honra de Yemanjá, a deusa que
amamentou seus filhos até os seios lhe crescerem
desmesurados. Yemanjá que evadindo-se da humilhação
que lhe causou seu segundo marido, abalou sem olhar
para trás, em direcção a ocidente. Também eu me
tenho esforçado por me evadir, tanto da minha
própria memória, como por vezes da própria
realidade... E certamente me tenho orientado para
ocidente, o lado do ocaso, da Sabedoria. O lado onde
o sol se põe. Cada dia que passa, é mais um passo
para ocidente.
Yemanjá transformou-se em rio. E
com a ajuda de Xangô, seu filho, venceu Okêrê, seu
marido, a montanha. Dirigindo-se sempre para
ocidente, chegou ao mar, ao oceano. Tornou-se
imortal.
Homenagem a Greta Thunberg
- Partilhar 02/11/2021
Lemos nas
notícias:
“A cimeira do clima das Nações
Unidas, de que deverão sair compromissos
firmes para conseguir cumprir o Acordo de
Paris e reduzir emissões globalmente, tem
este domingo seu início formal em Glasgow,
na Escócia. Reúne milhares de especialistas,
ativistas e líderes políticos.” (1)
***
Apesar de toda a nossa legítima
preocupação quanto aos problemas
climatéricos que vivemos, sabemos que as
oscilações climáticas têm os seus ciclos.
Toda a vida as houve... Não esqueçamos que a
Europa viveu a "Pequena Idade do Gelo" entre
os séculos XIV e XIX e que este período de
arrefecimento do Globo teve graves
consequências. Os camponeses dos países como
Inglaterra e Holanda adoptaram novas
culturas, como é o caso da cultura da
batata, e essa alteração dos hábitos
tradicionais, quer de cultivo quer
alimentares, foi determinante para a
sobrevivência dos povos do norte europeu.
Entretanto, países como a França, viveram
épocas de grandes fomes, uma vez que ao
problema climático se juntavam as
consequências das guerras em que a Europa
nessas épocas se envolveu, pois as tropas
que cruzavam os campos devastavam e pilhavam
terrenos e culturas. Sabemos hoje que essa
dependência da Agricultura em relação ao
Clima foi mais uma das causas da Revolução
Francesa...
No que toca às oscilações
climatéricas, no dia 05 do passado mês de
Outubro, a LUSA noticiava (2):
Ana
Monteiro, professora catedrática e
investigadora do Departamento de Geografia
da Faculdade de Letras da Universidade do
Porto, afirma que "no caso climático, o
discurso do combate é perigoso, porque nos
dá a impressão de que a ciência e a técnica
são capazes. Não são, não é possível".
A
Professora Ana Monteiro acrescenta:
"Abomino a expressão 'combater' as
alterações climáticas. Não vamos combater
nada, temos de nos adaptar – é outra
postura. Quando digo combater, estou a
assumir uma posição de controlo, pelo menos
vou lutar para ganhar. Quando eu me adapto,
é como num casamento, ou numa amizade (...),
vou tornar-me menos vulnerável àquilo que eu
acho que me incomoda", afiança a cientista,
que acrescenta:
"Adaptada não quer dizer
que não tenho riscos. Quer dizer é que tenho
conhecimento desses riscos e impermeabilizei
o solo, escolhi modelos construtivos, levo
um ritmo de vida e uso formas de me
transportar que me tornam menos vulnerável,
porque mexer no sistema climático, não há
ninguém que mexa". E diz ainda, "NÃO
APRENDEMOS NADA" com a pandemia.
*
Mas
de facto, não temos só o problema das
alterações naturais do ciclo da Natureza...
sabemos com perfeito conhecimento, que foram
e continuam a ser, as grandes indústrias, os
grandes potentados económicos, que deram
uma mãozinha à Natureza.
E escusamos
de nos choramingar, pois todos nós, países
ditos civilizados, temos usufruído daquilo
que se convencionou considerar como “avanços
tecnológicos”! O benefício que a Humanidade
tirou destes avanços tecnológicos dos
últimos séculos, ao início da Era
Tecnológica, foi, porventura, inconsciente
dos resultados funestos que daí adviriam...
Mas desde que se tomou consciência dos
problemas de poluição atmosférica, poluição
de terras, rios e mares; problemas de secas
advindas, por exemplo, da grande
desflorestação – que é que se tem feito?
É este detalhe que pode, e deve ser,
repensado – se os grandes poluidores
quiserem fazê-lo...
É aqui que entra
o valor dos grandes activistas que têm
actuado a nível individual, dando origem à
movimentação de grupos de intervenção cívica
que se têm formado por todo o Planeta.
Mas não chega... A par de um retrocesso no
caminho destrutivo levado a cabo pelos
grandes poderes económicos, terá que haver
um decisivo compromisso individual! Bruce
Chatwin, já em 1987, na sua obra
“Songlines”, cita o provérbio indiano:
Life is a bridge.
Cross
over it, but build no house on it
–
A vida é uma
ponte.
Atravessa-a, mas não construas nela nenhuma
casa.” (3).
Jesus
Cristo, segundo rezam as crónicas, também
disse, no famoso e magistral Sermão da
Montanha: “Considerai como crescem os
lírios do campo: eles não trabalham nem
fiam, contudo vos digo que nem Salomão em
toda a sua glória se vestiu como um deles.”
...A nossa “civilização” ultrapassou em
muito esta sabedoria, e o resultado está à
vista. Prestando novamente atenção a Bruce
Chatwin, vemos esta lúcida antevisão das
difíceis mudanças de hábitos que nos
aguardam, e que todos sem excepção vamos ter
de observar e respeitar, de bom gosto ou a
contra-gosto – “O mundo, se algum futuro
tem, há-de ser um futuro ascético.”
“Adaptação”, foi o que fizeram os camponeses
antigos dos países do Norte europeu... Eram
iletrados, mas souberam compreender as suas
dificuldades, e como torneá-las! E é isso
que todos nós, gente instruída e culta,
teremos de nos prestar a conseguir. Quanto
mais cedo, melhor!
(1) -
SIC Notícias, 31.10.2021 às 9h54 - Cimeira do Clima COP26
(2) -
Lusa.pt, 05.10.2021 às 09h07 - Alterações climáticas
(3) - O provérbio indiano
citado por Bruce Chatwin em “Songlines” –
Life is a bridge. Cross over it, but build
no house on it – vem na página
219 da tradução portuguesa, “Canto Nómada”.
A observação de que “O mundo, se algum
futuro tem, há-de ser um futuro ascético”,
vem na página 164.
As três estranhas
- Partilhar 25/09/2021
Vou a descer a
Avenida da Liberdade, vou com o meu pai e o
meu irmão. As árvores avolumam-se de um lado
e outro, os prédios erguem-se altos,
cor-de-rosa, sem brilho. Uma rapariga vem
ter comigo. Está perdida. Saiu do hospício,
não sabe quem é. Pede ajuda, mas não tem
documentos com ela. Apenas um talão de uma
compra qualquer, sem indicação de qual a
loja ou supermercado, sem data, sem
endereço, sem preço algum... Pergunto-lhe:
Sorrow, my brother
- Partilhar 09/09/2021
Para o meu
irmão Vincent, dito van Gogh
A Arte é uma
paixão. Um fogo.
“Sorrow”
Quem entende a força
com que fizeste “Sorrow”?
Myriam Jubilot de Carvalho, Agosto 2017
Imagem: Old Man in Sorrow (On the Threshold of Eternity) (oil on canvas, 32x25-1/2 inches), belongs to the Kröller-Müller Museum in Otterlo, Netherlands.
Na praia com Pasternak
- Partilhar 23/08/2021
Hoje aceito o convite e venho até à praia com Pasternak. Conversa para cá e para lá, as palavras são como as cerejas, e vou usufruindo deste testemunho, na primeira pessoa, sobre a época literária em que viveu a primeira parte da sua vida.
Neste momento, é impressionante o seu testemunho sobre a morte de Tolstoi, a sua interpretação da sua personalidade e do seu papel na História Humana. Boris Pasternak está sentado a conversar comigo. A sua infância, os seus pais, ambos artistas, a imensidade de verstas da planície rural da Rússia de há cerca de um século atrás. Delicio-me a ouvi-lo. Parece que eu própria estou lá com ele, comungando das mesmas emoções.
...O ruído das ondas... Esta eterna rebentação azul e branca, este som-de-fundo constante e redundante, este eterno retorno, este imenso matiz do azul do céu – a tornar-se mais pesado ao cair no horizonte sobre o azul do mar. Aguarela que desce do compacto longínquo até à transparência esverdeada da praia. Como teria sido a escrita destes dois monstros sagrados se tivessem sido embalados pelo mar, como eu, desde o nascimento? Como teriam escrito, se em vez de atravessarem a imensidade das verstas rurais, tivessem atravessado o mar azul, num veleiro já com motores a vapor, tendo apenas por limites o mesmo céu, como Conrad? Que palavras, que metáforas teriam escolhido, se em vez das infindáveis planícies nevadas tivessem inspirado este aroma de areia molhada, rochedos limosos, conquilhas, búzios, lingueirões?
É domingo. A população da Grande Lisboa inunda as praias. Como, que digo eu? Do Minho ao Algarve, a costa portuguesa é inundada pela população nacional e pelos turistas que vêm de todos os lados e recantos da Europa. É este fascínio pelo Sol, o Azul sem fim, a Liberdade.
Levantamos os olhos do papel, Pasternak e eu, e comentamos. Tolstoi teria apreciado esta paz. Esta paz que se desprende deste ir e vir das pessoas nesta marginal batida pelo vento dos princípios de Julho. Há quem passeie as crianças carregadas de brinquedos de praia, os eternos baldinhos e pazinhas, formas para moldar bolos de areia e torres de castelos. Há quem passeie os cães, eternos companheiros, levando-os cuidadosamente pela trela. E há os solitários. Os grupos. Os casais. Famílias inteiras, dos avós aos netos.
Os ciclistas. O carro lento sempre presente dos Bombeiros. Jovens. Velhos. Meia-idade. Polícias na ronda. Escoteiros, mochilas às costas, sacos, lancheiras recheadas para todo o dia. Chapéus, bonés, largos decotes, Tshirts aconchegadas, Tshirts soltas. Cores neutras, cores vivas, elegâncias, deselegâncias. A dinâmica das pranchas de desporto, a pachorrice dos guarda-sóis. Bandeira vermelha, bandeira verde. Amarela, como hoje, está vento...
Que no meio de tanta paz, não nos falte nunca o toque neurótico. Já são horas de almoço. O casal que se senta à nossa frente, com um bebé. Ainda não deve ter um ano. Vejo com os meus olhos bem treinados que o bebé já está cansado. Está impertinente, choramingas. São horas do seu almoço calmo, em casa, ou na praia debaixo de uma fresca sombra. Mas não hoje... Os pais sentam-no. A criança rejeita a chucha. Choraminga. A mãe diz-lhe com severidade: Estou muito zangada contigo; estás a portar-te mal. Dão-lhe um brinquedo de plástico vermelho. Ele joga-o ao chão. Metem-lhe outra vez a chucha: Deixas-nos em paz um bocado? O bebé chora. É o pai quem se condói. Levanta-se, toma a criança ao colo, e vai dar uns passinhos na marginal, para o distrair. Depois voltam. Já a mãe comeu a sande, já está mais serena. Deixa o menino sentar-se ao seu colo e brincar-lhe com o colar.
Lembro-me da experiência dos patinhos amarelos que apanham choques eléctricos ao nascer, e ficam sempre dedicados à sádica máquina amarela, como se esta fosse a mãe de carne e osso.
...Eu sei que as pessoas estão cansadas, vêm para a praia para descansar, amanhã é novamente dia de trabalho. Mas onde ficou a ternura?
A empregada da esplanada traz-me a bica. Loira, olhos verdes. Vê o livro aberto de borco sobre a mesa, reconhece a foto da capa:
– Pasternak? A sióra gosta de Pasternak?
É russa. Estudou psicologia, mas ainda não domina suficientemente o Português para se aventurar a exercer a profissão aqui.
– Gostava de falar mais có a sióra, mas
‘tou na hora de serviço...
– Com certeza, fica para depois!
A vasta Europa. Vasta, esta grande mancha no mapa-múndi, a casa de todos nós. Cabemos cá todos. Se soubermos.
Myriam Jubilot de Carvalho, Julho 2017
Romaria
- Partilhar 12/08/2021
Passaram os bombos. Encheram de pam-pam-ratapum a rua inteira e redondezas.
Nos alto-falantes espalhados pela cidade canta o nacional-cançonetismo. O céu azul fluorescente, fosforescente, brilhante, esfuziante, incandescente, veio ajudar à festa. E a banda dos Bombeiros sobe a Avenida, vira à
direita e continua, e sobe depois à esquerda e continua, e continua ladeira acima. Vai a fanfarra, vão as cornetas, vão os trompetes e mais as flautas. Vão os trombones e os oboés. Não falta nada – que é Primavera. E o ratapum lá vai, lá sobe, é o compasso, lá vai a marcha. E a miudagem e os folgazões lá vão atrás. E os curiosos, de cada lado da rua, enchem os passeios e os seus ouvidos se preenchem de ratapum.
Dirigem-se ao coreto no meio do Jardim.
É aquele coreto que estava a morrer, naquele Jardim que estava a morrer. Já não servia nem para os velhotes que nos tempos idos ali se sentavam a conversar. Nas noites de lua, nas noites de breu, o velho Jardim de vistas para o Rio servia de albergue para os vadios. Ali dormiam e se injectavam e defecavam...
Mas veio a Câmara limpar o Jardim. Redimi-lo da decadência. Dar-lhe alma nova e nova decência. Fez restaurantes de esplanada panorâmica. São caros pra burro – são para os turistas, o boom da actualidade. E as bandas que já foram a expressão da alma da cidade passam a elemento decorativo, a mero chamariz como parte do investimento dos novos planos de fomento...
Fomentem à vontade e que fermente o vosso fomento. Mas sobrevivam as bandas e as fanfarras, e o ratapum que me atordoa e faz lembrar que enquanto viver a vida é boa.
Passam os bombos. Da minha janela os vejo passar na curva da rua, na curva do Rio, espantando os pombos. Lá vai com eles aos tombos o meu coração com um calafrio de lua em lua... Ó tio! Ó tio!
Ai como eu gosto
Destas lindas crianças
Que brincam livremente
Nos cais de Cacilhas e Trafaria
Ai como eu gosto
Da menina de tranças
Que olha e não se cansa
Que olha e não se cansa
Que olha e não se cansa…
As Mulheres e a Maternidade
- Partilhar 26/07/2021
Neste primeiro quartel do século XXI, a questão da
Maternidade ainda continua a servir de
argumento a favor da vinculação da Mulher
aos limites da vida doméstica.
Argumenta-se que a função maternal deve ser
exercida pela Mãe, e que a função maternal
das Mulheres não é contabilizável.
Assim, argumenta-se que é deplorável que se
pense em atribuir uma remuneração à Mulher
se for apenas doméstica... Pois que se
estará a mercantilizar a sagrada função da
Maternidade.
1-
Obviamente que o
Amor e o empenho na educação dos filhos não
são coisas contabilizáveis.
Mas esse
Amor e empenho são tanto da responsabilidade
materna como paterna.
Obviamente que é
comovente admirar o quadro idílico da mãe
que vive exclusivamente para o marido e para
os filhos.
Mas a realidade não é assim
tão idílica: A mulher que não tem profissão
remunerada fica na dependência do marido. Se
o marido for boa pessoa, a vida decorrerá
com normalidade...
...Mas. E se não for?
Argumentar-se-á que as desilusões que
surgem após o casamento, tanto podem afectar
o marido como a esposa...
...Mas. Ter
dinheiro próprio, garante, em última
análise, o sentimento de autonomia
psicológica. Se a mulher não tiver a sua
garantia de independência, ficará para
sempre numa posição subalterna: terá que se
rebaixar a qualquer manifestação de
supremacia, despotismo, ou maus tratos.
Igualmente mau – quando a Mulher se revolta
e sai de casa, ou quando se queixa a pedir
ajuda, muitas vozes se levantarão contra
ela, que “não soube perdoar”, que “não soube
compreender e aceitar o seu marido que vem
esgotado do trabalho”, e outros mimos
conhecidos...
2-
Sempre as
classes mais favorecidas tiveram criadagem.
O facto de se entregar a educação dos
filhos a terceiros goza de longínqua
tradição na Europa. A própria palavra
PEDAGOGO deriva do nome dado ao escravo que,
na Grécia da Antiguidade, era o educador do
rapazinho. Depreende-se daqui que só pessoas
abastadas tinham o seu PEDAGOPGO para educar
os seus jovens.
Na Roma da Antiguidade,
por seu lado, era um luxo e um requinte ter
um PEDAGOGO grego para educar o jovem
patrício.
Não vale a pena percorrermos a
história da aristocracia europeia para
constatarmos que os rapazinhos de sangue
real tinham os seus AIOS, frequentemente,
fidalgos de elevada estirpe. Que por via
dessa função educativa ainda mais ascendiam
na escala social. O primeiro exemplo mais
conhecido deste facto, na História de
Portugal, será o de Egas Moniz, aio do nosso
primeiro Rei.
No quadro do Iluminismo
português, tivemos o Real Colégio dos
Nobres, fundado em 1761. Onde só era
admitida a frequência masculina. Foi extinto
depois da reforma liberal, em 1837, tendo
dado lugar à Escola Politécnica de Lisboa.
Ainda no século XIX, as Mulheres das
classes favorecidas não iriam à
Universidade... Aprendiam a ler em casa,
para lerem romances. As meninas tinham as
suas preceptoras, e aprendiam Francês, e
tocavam piano. Aprendiam também a bordar, a
fazer rendas artísticas, aprendiam a
pintar... Mas os trabalhos femininos não
eram dignos de serem considerados como Arte.
Eram classificados como “Artes Menores”,
“Artes Aplicadas”...
Quando, finalmente,
em meados do século XX, se consentiu que as
Mulheres tivessem emprego, não se lhes
reconheceu a finalidade de se realizarem
profissionalmente. Mesmo nas classes médias,
não se assumiria que era consentido às
Mulheres saírem de casa para irem para o
mundo exterior às quatro paredes domésticas.
O facto de disporem de dinheiro seu, punha
em causa a autoridade dos seus homens e o
seu sentido de posse. Assumia-se o trabalho
feminino como um entretém, apenas “para que
tivessem o seu peculiozinho”, para que
“ganhassem para os seus alfinetes, para não
ficarem pesadas aos maridos”...
Ainda
numa primeira metade do século XX, em casas
abastadas, também as mulheres não tomariam
conta da educação dos filhos, pois além da
cozinheira e da criada de fora (para as
limpezas), haveria também a criada dos
meninos... Para esta função de “tomar conta
dos meninos” acontecia, até, tomarem-se os
trabalhos de meninas ou adolescentes
“pobres”, para entreterem as crianças
“ricas”...
Actualmente, com os pais e
mães empregados, recorre-se aos infantários,
equipamento social que muito se disseminou a
seguir à Revolução dos Cravos.
Anteriormente, essa função dos infantários
era desempenhada pelas AMAS, mulheres
domésticas que se encarregavam de cuidar dos
bebés de mães empregadas.
3-
A
propósito da inferiorização das mulheres até
muito recentemente, só exemplificarei com o
facto de que em França, as Mulheres só
tiveram direito de voto a seguir à Segunda
Guerra Mundial.
4-
Actualmente,
fala-se de que em caso de divórcio, à mulher
que foi doméstica toda a sua vida, deverá
ser atribuído um X (no fundo, um "dote")
para que possa recomeçar uma nova vida.
É a esse propósito que se contra-argumenta
com o conceito de “mercantilização” da
função feminina...
Na realidade, perante
os factos enunciados, nem sequer percebo o
que isso quererá dizer... Pois quem pôs a
sua vida ao serviço de outrem, quem dedicou
o seu tempo a trabalhar para "os outros" -
mesmo que estes "outros" sejam a sua
família, tem obviamente direito a uma
compensação! Pois o dinheiro não representa
um "pagamento", sendo apenas um "símbolo".
No entanto, a componente afectiva e
emocional que o trabalho exclusivamente
doméstico, ou de cuidadora de crianças – e
já agora, de idosos –, implica, com o
requerido carinho e dedicação, não são
elementos mensuráveis em dinheiro. Apenas o
reconhecimento e a gratidão poderão de
alguma forma compensá-lo.
5- Para
concluir:
A posição da Mulher tem sido
vista com arrogante perversidade ao longo da
História.
A prepotência da Sociedade
sobre a Mulher tem sido tão forte, que no
início do século XXI da era de Cristo, ainda
é preciso perder-se tempo a argumentar sobre
o tema...
A situação da Mulher foi de
dependência ao longo da História do
patriarcado. Tanto nas classes
aristocráticas como na burguesia poderosa, a
mulher era mantida tanto quanto possível
numa relativa ignorância, para mais
facilmente ser dominável, manipulável,
submissa. Além de que era peça negociável
para arranjos de casamento que favorecessem
os interesses económicos e de poder das
famílias. Eram casamentos forçados, com o
consolador argumento de que "o Amor vem
depois, vem do hábito"...
E foi, também,
com o fundamento idílico, da mulher como
“fada do lar”, que se perpetuaram os
argumentos que a mantiveram nessa situação
de ignorância e dependência económica ao
longo dos séculos.
Terminamos com o
enunciado já clássico:
Educação
igual para todos
Trabalho igual -
Salário igual
Igualdade de Direitos
Claro e eficaz direito à Defesa, em caso de
ser vítima de
supremacia ou de agressão.
Dos desideratos acima mencionados, os dois primeiros já estão garantidos, pelo menos teoricamente.
Falta garantir os dois últimos, tanto na teoria como sobretudo na prática.
Myriam Jubilot de
Carvalho
Dia da Mãe, 2 de Maio de 2021.
Fernando Reis Luís: um poeta algarvio
- Partilhar 22/06/2021
O Homem e o Mar
“O mostrengo que está
no fim do mar
Nesta colectânea,
Marés & Maresias,
Fernando Reis Luís, poeta algarvio,
confirma-se como mais um poeta do mar, em
Língua Portuguesa. O mar – que é tema
natural dos povos que o têm por paisagem,
cenário, e horizonte, e povoa a poesia
portuguesa desde os seus primórdios
medievais. A abrir a colectânea, um poema
que lhe anuncia o percurso temático, uma
viagem ao eu
interior. No poema seguinte,
Cabo Ocidental,
desenha-se o promontório de Sagres e São
Vicente.
Em 1929, um outro
poeta algarvio, Cândido Guerreiro, dedicava
uma colectânea de sonetos ao mesmo cabo –
“Promontório Sacro”.
Há, porém, uma
profunda diferença entre
Marés & Maresias
e Promontório
Sacro. Neste
último, o mar insere-se no imaginário
colonial e imperial português, ainda ao
gosto sobrevivente do Romantismo
conservador. O mar é uma exaltação da
grandeza da alma lusa, na linha da épica
camoniana. É, assim, um tema exterior ao Eu
poético, e uma explanação de mestria
versificativa. Em
Marés & Maresias,
pelo contrário, o mar é metáfora e
interiorização do tema da viagem, da
aventura, do confronto com os monstros (mostrengos)
que assaltam o desafio que é viver.
Na poesia de
Fernando Reis Luís há uma interiorização da
paisagem e do horizonte, e o mar torna-se
essência e motor da linguagem poética.
Enquanto em Camões e Cândido Guerreiro o mar
foi um motivo épico, em Fernando Reis Luís o
mar torna-se um motivo lírico – lírico no
sentido etimológico, de
criação poética de
expressão subjectiva, destinada a ser
acompanhada pela lira.
O verso de
Fernando Reis Luís flui livre, e
desenrola-se num caleidoscópio de
vocabulário escolhido, embora de modo algum
pretensioso; é uma navegação metamorfoseada
em palavras. O
barco
– o sujeito poético – navega entre o mar e o
céu, exaltando não só o desejo de aventura,
mas a própria aventura de viver. Faz uma
releitura dos eternos temas da efemeridade
da existência humana, e da recordação da
juventude, mas de forma pessoal, sem cair em
tons de nostalgia. Mesmo o tema da viagem,
quase obsessivamente repetido, nada tem a
ver com as costumadas referencias à “gesta
marítima” , reportando-se sim à viagem
interior que só pode ter como porto de
chegada a Sabedoria, num confronto entre o
Homem e a sua força interior, com a Vida,
como o Velho e
o Mar de
Hemingway.
De facto, já é mais que tempo de libertarmos a nossa alma colectiva dos mitos do Passado, e criarmos caminhos novos.
Prefácio de “Marés & Maresias”
Myriam Jubilot de Carvalho,
15 de Novembro de 2014
Uma lenda Grega que é um exemplo de Serenidade
- Partilhar 1/06/2021
“Omnia mea mecum porto”, a célebre frase de Bías, de Priene
BÍAS é um dos
lendários “sábios da Grécia” – “sábios”, na
acepção de “filósofos”. Bías, um filósofo,
terá vivido no século VI aC. Seria natural
de Priene, na Jónia – antigo nome de uma
região da Anatólia (na Turquia actual).
* * *
Nunca esqueci esta
história, e uma ou outra vez a contei aos
meus alunos.
As Mulheres e o Silêncio
- Partilhar 22/05/2021
“Para cada homem, há sete mulheres e meia” – dito popular
1.
A sociedade
monogâmica europeia vem da tradição romana.
No entanto, nem por isso os Romanos
demonstravam maior respeito pelas Mulheres,
pois acontecia que jogassem as esposas aos
dados, ou trocassem de consorte entre
amigos, por tempo indeterminado.
No mundo visigótico
não era assim. Os Visigodos eram polígamos.
Pelo menos, nas classes altas. Era
necessário garantir a transmissão da
linhagem, e das heranças, nessa época em que
a mortalidade infantil era elevada.
No Islamismo, o
Profeta Maomé manteve a poligamia, como
forma de garantir a subsistência e o
estatuto das mulheres. Em caso de viuvez, o
irmão do defunto deveria casar com a viúva,
não por “abuso de poder”, mas sim para lhe
garantir abrigo e dignidade.
Obviamente, nessas
épocas recuadas, a Mulher não tinha os
mesmos direitos que o Homem, e quer no
casamento polígamo, quer no casamento
monógamo, a Mulher era propriedade do Homem
a quem devia manter-se humildemente submissa
e sempre eternamente grata. Até porque num
mundo de severa divisão do trabalho, à
Mulher de qualquer estrato da sociedade
estava reservada a salvaguarda do gineceu.
De qualquer modo,
vemos que a instituição do casamento
polígamo não era como vulgarmente se diz,
uma instituição bárbara e lasciva, mas uma
forma considerada viável de garantia de uma
sociedade digna...
Um dia, um jornalista
ocidental perguntou à princesa indiana
Gayatri Devi (1919-2009), educada em
Inglaterra, e que tanto fez pela elevação do
nível educacional das Mulheres indianas
criando escolas para meninas, como é que uma
“mulher educada no Ocidente” se permitira
casar em regime de poligamia. E a sua
resposta foi simples, directa e eloquente:
—
2.
Na realidade, as
estatísticas mundiais dizem que o número
humano de machos e de fêmeas é bastante
equilibrado: aproximadamente 1,01 homem para
1 mulher.
3.
—
Só encontro uma
resposta:
—
É por isso que uma
das principais medidas a que se lança mão
quando se quer levantar o nível da
consciência individual e social da mulher, é
fomentar a Educação!
Educação igual para
todos
Os meus votos, hoje,
dia 8 de Março de 2021, é que a Educação
chegue a todas as Mulheres do Mundo, e que
ela seja o instrumento, a alavanca que faça
subir a sua consciência dos seus Direitos e
da sua Dignidade!
Mês de Março
Dia Internacional da Mulher, Dia da Árvore, Dia Internacional da Poesia
- Partilhar 21/03/2021
Começo pela Árvore, e
regresso ao Jardim do Éden,
Ninguém sabe onde
fica, ou onde ficava....
A
infância...
Locus poeticus
Primaveras de lendas
Mulher, ou Árvore,
bilros e rendas
Myriam
Jubilot de Carvalho
Dia da Árvore - Dia da Poesia
Uma justaposição bem pensada
- Partilhar 21/03/2021
Hoje, em vez de
recordar algum poema que me tenha marcado,
se é que isso fosse possível, pois são
inúmeros os poemas que nos marcam ao longo
da vida, prefiro recordar três grandes
Poetas que marcaram a minha formação
enquanto pessoa pensante.
= "Vozes da
Poesia Europeia" - 3 volumes, publicados
pela COLÓQUIO LETRAS; Nºs 163, 164, 165. Em
2003.
Outros grandes
Poetas poderia hoje evocar. Sem dúvida.
Lenda de Muqaddam Ibn Muafá, Al-Cabrí
- Partilhar 20/02/2021
À memória de
minha avó Maria Carlota da Ascensão Jubilot
Madrugada. Suave, a brisa refrescava o
alpendre a um canto do jardim. Grande, o
grupo que desde o cair da tarde ali se ia
juntando em volta da fogueira que os
escravos não deixavam esmorecer. A Primavera
já se instalara mas as madrugadas eram ainda
muito frias, ainda se sentia a necessidade
do conforto das mantas de lã de ovelha em
entrelaçados brancos e castanhos, estendidas
ao longo dos largos almofadões. E havia
também muito com que aquecer o corpo, por
dentro. Não faltavam os vinhos, os assados,
os frutos, mas também os sumos, e para os
mais enregelados, as infusões de ervas
aromáticas ou as vigorosas chinitas, ainda
sabendo a figo. Oh, tudo isso a par do
estímulo de companhias esbeltas, delicadas,
perfumadas, primorosamente vestidas,
sedutoras... E mais os apelos da
conversação! Dissertações sobre a situação
agitada que se vivia no Emirato... Mas acima
de tudo as controvérsias sobre o sentido da
Vida, seus terríveis dissabores, sua
efemeridade... Mas acima de tudo os seus
prazeres! E o sentido do Amor.
– Senta-te aqui, ao meu lado – disse ao
jovem. – Tenho aí onde podes escrever, pega
numa pena, tenho as palavras a dançarem-me
na mente...
Mamma ayy habibi
– Ainda sabes o que
isto quer dizer? – perguntou Muqaddam.
– Mãe, que amigo!
– É o que isto quer dizer? Bem me parecia...
– E insistiu – Continua, continua! Vocês
deram-me uma noite de sonho! Eu nunca tinha
ligado a estas cantigas, e agora estão a
parecer-me tão belas! Parece que as oiço
pela primeira vez!...
Ké faré mamma
E depois, transpondo
para Árabe, a refrescar a memória do velho
Mestre:
– Que farei, mãe,
Novamente, no seu
dialecto familiar:
Sabes ya mio amor
Já sabes, meu amor,
O sol saía agora completamente. Cantava a
Primavera na brisa ainda fresca da manhã. O
velho aedo disse ao ajudante:
Tanto amare tanto
amare
– Muito bem! É linda, mesmo linda! – O velho
pensou um pouco... – Agora, vamos arranjar
rimas, quero palavras do povo, ajuda-me a
pensar!
*
Naquela noite terá nascido, de facto, um
poema novo.
Um estranho poema que condensava num só
sentimento, numa só expressão, as suas duas
Línguas, como um colar de pérolas de duas
voltas; e forte e eterno, como o seu
cinturão de lantejoulas. Por essas ambas
razões, lhe chamou MOAXA’HA.
BIBLIOGRAFIA
principal:
***
Uma versão prévia
deste conto foi publicada no blogue (Por
Ondas do Mar de Vigo) em 6 de Agosto de
2012: