Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Man Ray: O violino de Ingres

Man Ray foi um dos fundadores do dadaísmo nos Estados Unidos. Conheceu os surrealistas em Paris quando se mudou para a cidade no verão de 1921. Inicialmente, dedicou-se à fotografia, tirando retratos de amigos e colegas, nos quais criava uma atmosfera mágica através de efeitos especiais de iluminação. Com a ajuda de Jean Cocteau, Man Ray tornou-se o fotógrafo de retratos dos principais intelectuais e artistas de Paris, entre os quais Gertrude Stein, Constantin Brancusi e Marcel Proust. Depois de se mudar para a rue Campagne-Première, onde também vivia o fotógrafo Eugène Atget, Man Ray descobriu uma espécie de forma de fotografia pré-fabricada, um processo que criava imagens sem a intervenção do artista ou mesmo de uma câmara. As suas “Rayografias” - contornos de objetos em papel fotográfico sensível à luz - foram expostas pela primeira vez na primavera de 1922.

Para criar uma Rayograph, um objeto só tinha de ser exposto à luz. Isto significa que uma Rayograph era uma obra de puro acaso que se criava simplesmente a si própria. Era uma imagem de transformação e alienação, um conceito que se enquadrava na perfeição no mundo intelectual dos surrealistas. Um dos primeiros trabalhos publicados com este novo processo fotográfico foi um portefólio de doze imagens de Man Ray, acompanhado pelo ensaio de Tristan Tzara “Les champs délicieux” (Os campos deliciosos), publicado em 1922.

Por outro lado, o sentimento de alienação produzido por outras fotografias de Man Ray baseia-se na interação entre imagem e título. O Enigma de Isidore Ducasse é o título de uma fotografia de um objeto embrulhado num cobertor e atado com corda, enquanto Le violon d'Ingres (O Violino de Ingres) alude aos dois furos que Man Ray desenhou nas costas de um nu feminino. O artista reinterpreta a forma arredondada da jovem mulher, transformando-a na caixa de ressonância de um instrumento musical, desencadeando assim toda uma cadeia de associações, em grande parte inspirada pelo título do quadro.

Pensamos instintivamente na importância dos instrumentos de corda para os cubistas, que incorporaram bandolins, violinos e guitarras nas suas complexas naturezas mortas. Enquanto no Cubismo Analítico eram apenas objectos sem vida e sem sexo, o “violino” de Man Ray confere à fotografia uma aura erótica. Este facto é sublinhado pela referência ao pintor classicista Jean Auguste Dominique Ingres e ao seu famoso Banho Turco, em que a figura central é um nu de costas para o espectador. É precisamente pelo facto de Ingres a ter desenhado com uma precisão tão fria que ela irradia tanta sensualidade. O turbante usado pela modelo de Man Ray retoma o ambiente oriental de Ingres, mas é também um comentário irónico sobre o erotismo frio da cena do banho turco. O título Le violon d'Ingres alude também à longa tradição da música como alegoria do jogo amoroso. Na perspetiva de Man Ray, o instrumento está simplesmente pronto e à espera do solista.

(Adaptado de um texto de Cathrin Klingsöhr-Leroy)

Man Ray
Le violon d'Ingres, 1924