
Contemplações
Francisco Gil
Man Ray: O violino de Ingres
- Partilhar 23/03/2025
Man Ray foi um
dos fundadores do dadaísmo nos Estados
Unidos. Conheceu os surrealistas em
Paris quando se mudou para a cidade no
verão de 1921. Inicialmente, dedicou-se
à fotografia, tirando retratos de
amigos e colegas, nos quais criava uma
atmosfera mágica através de efeitos
especiais de iluminação. Com a ajuda de
Jean Cocteau, Man Ray tornou-se o
fotógrafo de retratos dos principais
intelectuais e artistas de Paris, entre
os quais Gertrude Stein, Constantin
Brancusi e Marcel Proust. Depois de se
mudar para a rue Campagne-Première,
onde também vivia o fotógrafo Eugène
Atget, Man Ray descobriu uma espécie de
forma de fotografia pré-fabricada, um
processo que criava imagens sem a
intervenção do artista ou mesmo de uma
câmara. As suas “Rayografias” -
contornos de objetos em papel
fotográfico sensível à luz - foram
expostas pela primeira vez na primavera
de 1922.
Para criar uma
Rayograph, um objeto só tinha de ser
exposto à luz. Isto significa que uma
Rayograph era uma obra de puro acaso
que se criava simplesmente a si
própria. Era uma imagem de
transformação e alienação, um conceito
que se enquadrava na perfeição no mundo
intelectual dos surrealistas. Um dos
primeiros trabalhos publicados com este
novo processo fotográfico foi um
portefólio de doze imagens de Man Ray,
acompanhado pelo ensaio de Tristan
Tzara “Les champs délicieux” (Os campos
deliciosos), publicado em 1922.
Por outro lado, o sentimento de
alienação produzido por outras
fotografias de Man Ray baseia-se na
interação entre imagem e título. O
Enigma de Isidore Ducasse é o título de
uma fotografia de um objeto embrulhado
num cobertor e atado com corda,
enquanto Le violon d'Ingres (O
Violino de Ingres) alude aos dois furos
que Man Ray desenhou nas costas de um
nu feminino. O artista reinterpreta a
forma arredondada da jovem mulher,
transformando-a na caixa de ressonância
de um instrumento musical,
desencadeando assim toda uma cadeia de
associações, em grande parte inspirada
pelo título do quadro.
Pensamos
instintivamente na importância dos
instrumentos de corda para os cubistas,
que incorporaram bandolins, violinos e
guitarras nas suas complexas naturezas
mortas. Enquanto no Cubismo Analítico
eram apenas objectos sem vida e sem
sexo, o “violino” de Man Ray confere à
fotografia uma aura erótica. Este facto
é sublinhado pela referência ao pintor
classicista Jean Auguste Dominique
Ingres e ao seu famoso Banho Turco, em
que a figura central é um nu de costas
para o espectador. É precisamente pelo
facto de Ingres a ter desenhado com uma
precisão tão fria que ela irradia tanta
sensualidade. O turbante usado pela
modelo de Man Ray retoma o ambiente
oriental de Ingres, mas é também um
comentário irónico sobre o erotismo
frio da cena do banho turco. O título
Le violon d'Ingres alude
também à longa tradição da música como
alegoria do jogo amoroso. Na perspetiva
de Man Ray, o instrumento está
simplesmente pronto e à espera do
solista.
(Adaptado de um texto de Cathrin Klingsöhr-Leroy)
Man Ray
Le
violon d'Ingres, 1924
- Ano VI • 69 • 2025