reflexões in verso
Afonso Dias
vem aí...
- Partilhar 30/12/2022
vem aí...
não será ainda o tempo
das
fanfarras
virão talvez serôdias
as cerejas
serão mais duvidosas
as certezas
há que ter afinadas
as guitarras
cavalo peado não
trota
no cascalho
dá-lhe rédea
alumia-lhe
o caminho
uma côdea
e uma lasca
de toucinho
acalentam em estradas
e atalhos
se é muito o frio veste
a roupa
velha
da que te vem do tempo
dos reis magos
mas aos filhos não
faltes
com os afagos
de
algodão e linho
e lã de ovelha
e de ternura nas mãos
plena e
clara
lambuza-te sem temor
do
exagero
perfuma a cama e a açorda
com o (melhor) tempero
para a
vida que aí vem
e é tão severa
das efemérides
- Partilhar 25/11/2022
das efemérides
a
bosta comendada é tentadora
o
vislumbre da mama é sedutor
escorre
baba a gula desalmada
mas está tão
cara a vida sô doutor
é chapa ganha e
gasta sobra nada
mas há sargos na
cova do vapor
talvez ajeite a janta
se os catar
tenho é que aprender a
esbracejar
e treinar as braçadas um
bocado
pode ser que atravesse o tejo
a nado
e ainda chegue ao resto de
repasto
a reforma espreme-me a
coragem
e a algibeira rota é uma
aragem
que espalha espirros pelo
peito fora
o carrocel parou pois é
agora
que eu vou dar a voltinha já
fechada
o algodão doce não me sabe a
nada
nem lembranças me vêm de namorar
quando a falta que fazia era cantar
vou é ao mar da palha mijar de alto
e a segurança social tomar de assalto
pode ser que venha o euromilhões
e
ainda me vão ver nas digressões
ah faz anos o 25 de novembro
ena com
caneco grande assombro
com tanta
trapalhada mal me lembro
da elke sim
a alemã acolhedora
cantava-se então a
guantanamera
e comia-se arroz para a
caganeira
ora nova corrida nova
metáfora
que sempre se aprende outra
maneira
golpe de vista
- Partilhar 29/10/2022
golpe de vista
aos burocratas bem sucedidos meus amigos
mais ou menos
(já que acordei bem disposto)
ó que belo olho de vidro
refulgente
que até semelha em brilho
o diamante
quase parece o traste
inteligente
sendo apenas um cegueta
um pedante
mas tem curso de lacaio é
um
pingente
um berloque do poder
o meliante
nada cria que se veja
pois não pensa
do outro olho é vesgo
e não lobriga
a mor distância que a
pró-
pria barriga
perito é só em
rimel e
cagança
não vê ponta
de corno
a avantesma
é um
espectro de pus um
avejão
um
molusco gastrópode
uma lesma
uma
bosta de trampa
um cagalhão
que deus noss’nhor nos forneça ‘ma
infinita dose da sua mais santíssima
paciência
que ajude a penar esta
penitência
crónica de agosto (em dois tempos)
- Partilhar 08/08/2022
crónica de agosto (em dois tempos)
tempo primeiro
tão amigos que
somos e tão tolos
zurzíamos nos
fachos que nem ginjas
já o sol se
punha pela cerveja abaixo
da goela
depois veio-te a covid
e foi uma
semana sem ver gajas
vá lá que havia
sopa congelada
a pressa que eu
tinha em ir à fonte
que é estéril
como o bispo do seixal *
(bom negócio
de esquerda dos valentes
e coçar bem
as virilhas dá comenda
canta a conta
camarada a conta)
já a
meteorologia é uma vaca
arde a serra
ribanceira abaixo
cinzento é de cinza
este fumeiro
e o covão d’ametade **
vai enxuto
“leva nisto e não chove”
diz-se em lagos
n’igreja de
santo antónio *** brilha a talha
tinha eu tantas saudades tinha tinha
e atracou o comboio fez cem anos
* restaurante no seixal
** lugar ao
cimo do glaciar de manteigas
*** em
Lagos
tempo segundo
vive o
vírus
verga a viga
vilegiatura
vigiada
vigilante
diligente
diligencia
a dedada
formatada
formatura
olhós três
da vida
airada
olho por olho
é bisolho
não é terçolho
o hordéolo
é rima
mal
amanhada
uma maçada
qualquer maré
do mar é
e é do
banheiro
a braçada
anca coxa
perna e pé
anatomia
artilhada
não baza israel
de gaza
mas
não goza
com a maralha
que
acordada
é teimosa
e tem a meta
traçada
na síria é
o que se vê
só metralha
desvairada
iemenita
a tormenta
seca de sede
esventrada
ucrânia
martírio cego
zaporíjia
atomizada
o papa faz
homilias
e as rezas
não dão em nada
esganai
os filhos da puta
antes da noite
fechada
a geostra-
tégia é uma
valentís-
sima
cagada
em alexandrino
da insónia
- Partilhar 19/06/2022
em alexandrino
da insónia
gelada vinha a noite que de enfado
fervia
e a madrugada tonta sonâmbula
riscava
a sombra do meu melro planava
as colcheias
que floriam aladas pelo
mestre da vigília
invadiam os gatos o
casario altivo
pé ante pé subiam ‘té
ao silêncio nu
lá fora a
humanidade ó desordem das horas
p’lo
mercado vagueia à luz do tempo cru
imundos são os pombos que cagam as
varandas
(natureza imperfeita haja
deus que lhe acuda)
de alerta tudo
vejo nesta atalaia azul
e ao
despertar serôdio eu solto a caramunha
que ao menos a poesia me adormente a
alma
se o corpo não comando todo em
nervos aceso
que a boa musa cante uma
cantiga branda
e a paz me embale ao
colo da bonançosa lei
fundido seja o
ferro que as insónias ateia
e
floresça o sossego em leve sinfonia
a um irmão do meio
- Partilhar 13/06/2022
a um irmão do meio
pertenço a uma ampla e generosa
irmandade, com um irmão de sangue —
pilar maior
do meu edifício interior
— e vários irmãos que a vida, generosa,
me ofereceu:
irmãos do meio
sempre estarás
irmão do meio
eu
sei
porque tu és de ficar
e até
mesmo quando
o absurdo paradoxo
metafísico
me fizer ausente
das
vespertinas tertúlias
arrítmicas e
perfeitas
onde sempre foi possível
encontrar o olhar exacto
e ver
nítidas as certezas
em redor da mesa
franca
enlevada de vinho fresco
e
risos luz
quando eu me ausentar
pelo incerto fogo
com o enfado
dos fados
consumado
e a desvalida
voz
ajoelhada
sei que me trarás
ainda uma vez
irmão do meio
o
transtorno risonho
dos teus arpejos
brutos
e as migas verdes
da tua
terra plana e franca
e haverás de
mergulhar
o olhar tranquilo
sempre mais fundo
no código das
dúvidas
que não alcanço
irmão
do meio
incansável conquistador
de ternas mágoas
sei que lograremos
alcançar
em desacordo pleno
os
desígnios ainda nem sonhados
e que
fazem falta
como bem sabemos
vila franca de xira
- Partilhar 29/05/2022
vfx
1969 no funeral de alves redol
era um tempo de pranto recolhido
e o respeito viu-se profanado
as
bestas atearam a algazarra
e a
guarda brandiu as baionetas
esfacelada foi a brita de soluços
tropel de ferros palha blanco abaixo
chispavam os cascos nas escadarias
e voaram paralelos das calçadas
indignava-se o sangue franco e leve
que vinha honrar o homem que partia
um algoz tombou de borco na calçada
era novembro em vila franca e frio
e nunca mais a noite foi serena
para
quem a alvorada conspurcava
do louvor e da mentira
- Partilhar 29/04/2022
do louvor e da mentira
é manca a mentira
ainda mais a bênção
fendida é a parábola
que desde a
escritura
eleva a palavra
ao pico
do céu
purifica-se o canalha
no gesto da benzedura
e se envolve no
fedor
a assinar a redenção
do
pecado da vileza
o pus em que se
lambuza
na alameda dos desvios
a verdade é a cabra-cega
e a mentira
caga-tacos
que é baixinha e
sorrateira
lá do bojo bolça podre
faz batota pela medalha
e no colo
generoso
de deus padre espírito santo
nas boas graças se aninha
(parece
deus distraído
em parte incerta
tomado
ai jesus que estou lixado)
e
eu persigno-me
eu
genuflicto-me
eu arrasto-me
eu
arrojo-me
eu penitencio-me
eu
cilicio-me
eu humilho-me
eu
vexo-me
eu atormento-me
(e o
divinal conforto não me acolhe
nem me
sossega o da autoridadezinha)
socorre-me o camões
amigo velho
“os bons vi sempre passar no mundo
graves tormentos...”
e então
arrenego-me
arrepelo-me
excomungo-me
anatemizo-me
amaldiçoo-me
abrenuncio-me
vade-retrío-me
satanizío-me
mas
fatigo-me
enfado-me
enjoo-me
ai…
até que por fim
apaziguo-me
tranquilizo-me
sereno-me
conformo-me
resigno-me
e concluo
uma vez mais
estupraram-me
de novo
das guerras
- Partilhar 11/04/2022
das guerras
a
mulher abusada no ventre de tudo
é um novelo de luto
que me envolve
na notícia diária
estupro alarve;
uma criança a florir
morte no sorriso
é bênção nula do
natal que vem avesso
escárnio da
natureza retorcida e ferro
sobre a
pureza da neve em flor inerte
ecuménica a dor de verbo e a prece
diversas como a indiferença tanta
e a
maldade cinzenta tão fervente
que
deus nem imagina a geografia
que a
rosa dos ventos não acolhe
plena que
é de norte e sul e este e oeste
ó
maldade maior és cega e surda
e não
lambes do vento todo as lágrimas
de
sangue e sal das latitudes doidas
a dor viva iemenita e palestina
ou tibetana ou síria ou afegã
e
ucraniana sede justos
pese o diverso
carimbo dos ferretes
é igual na
mulher mágoa chaga inteira
tão grande
é e sem caução do poder cego
que tudo
pode em todo lado e é sempre igual
indiferente é o sotaque e a gravata
barbaridade é o que barbariza
e
nada floresce sobre o entulho
de
betão de música e de ossos
fazer mal
é maldade sempre ouvi
pecadora maior
a indiferença
e o poder de deus (dos
deuses) feneceu
pela areia pela
lama pela neve
leva a mulher os
filhos e a vida
poesia do útero e
vital encargo
não dar a outra
face é dignidade
(as lágrimas
daquele homem que dor tanta)
vergonha
é ser capaz de não chorar
recomeços
- Partilhar 02/04/2022
recomeços
o
desamparo da memória
ralenta as cores
e enxota os sons
emudecem os
guisos
das seis papoilas
sisudas
cinzentas e desasadas
na ladeira sem
erva
na fuga da memória
pelas
esquinas
os passantes não passam
arrastam silêncio
imóvel e sombrio
sem livros e cerveja
não se
abraçam os homens
porque
acabaram
os golos
nas balizas que já não há
a ternura ausenta-se
suspensa e
serena
e não há frio
há
silêncio apenas
pausam as
vitórias
nas pedras por legendar
infinita é a pedra intocada
e a
memória que perdura
em vida fresca
vitoriosa é a calma
plena paz
prime time
- Partilhar 01/03/2022
prime time
a
senhora da tv
teve um orgasmo
ortofónico
e dois
e mais
até
que por fim
articulou consolada
“ai a guerra meu deus !...”
mas deus
não estava
prá ditadura do prime
time
não estava para aí virado
para aí vidrado
para a guerra
nem de frente
nem de costas
estaria mais de soslaio
de viés
na
esguelha
no sossego
dos
santuários
quiçá mais disponível
para rezas
vigílias calmas
civilizadas
como o chá de camomila
que apazigua pela sonolência
e pelo
sexo nunca
ai o sexo
esse
descabelado,
desembestado
destrambelhado
descontrolado
todo
tremuras e “chiliques”
que não
pacifica
antes acende os carnavais
mas enfim
enxota as aranhas
e
sossega
os temporais
os
interiores
mas os demais
dos
negócios
da indiferença
dos lucros
dos eunucos
que vestem trajes de
medo
fardam velho e vingativo
e
trazem o pecado antigo
que sempre há
e que tem
de expiar-se
de pagar-se
agora ou logo
como é de lei
como
é da lei
do castigo
ejaculai
metralha
eu vos digo
pagai com
metralha nova
a velha metralha
tatuada
de silêncio morto
(mais
velha é a estupidez
do que o divino)
é preciso
que haja sempre alguém
sempre novo
de novo
a pagar o
pecado
da mãe
da avó
do avô
do tetravô
de herodes
de judas
de stalin
de hitler
da harpia que
os pariu
da mulher que os rejeitou
do phalo que não se ergueu
do pai
tirano
da santa ingrata
da santa
ingrácia
que não acaba uma obra
que não acaba
ámen
caríssimos
irmãos
odiai-vos uns aos outros
(e
nem perdoeis
os inocentes
os
colaterais)
queridos poetas
por onde andais
a minha porta está
sempre aberta
entrai
poema do borda d’água
- Partilhar 06/02/2022
poema do borda
d’água
cada dia é de seu santo
e hoje 6 de fevereiro
domingo e sem
pinga d’água
é o da santa doroteia
e mais de são paulo miki
(escrito
assim mesmo com K)
certifica o
borda d’água
almanaque lá de casa
longevo como o dianho
de noventa e
três invernos
mais vos digo que
lá li
que neste dia nasceu
em mil
seiscentos e oito
um menino que
haveria
de vir a ser o vieira
que
conversava com os peixes
e sermoava
aos escravos
em terras de vera cruz
onde floriu o carnaval
mais a santa
bossa nova
ambos ora amordaçados
pela bolsonaria peste
e as coroas de
veneno
(mas por onde é que eu já
vou
que ainda acabo no amor
ou a
falar passarinhos)
o borda d’água
é que veio
visitar este poema
apareceu-me ele em seia
ali à serra
da estrela
pela mão da mulher búlgara
a quem eu dei os dois euros
que
melhor gastei na vida
sábio das
ervas de cheiro
e dos tempos de
plantio
de chuvas neves e orvalhos
do oráculo das luas
dos dias disto e
daquilo
de festas e romarias
de
horóscopos e purgas
que limpam o
intestino
de rezes e pastorícia
mestre em marrãs parideiras
conhece os santinhos todos
o meu
mestre borda d’água
que me alagou a
lembrança
e me trouxe felicidade
(e a falta que ela me faz)
e com
fumos de hortelã
me deu estes versos
tolos
que ora aqui vão perfumados
ficai ainda a saber
que o sábado
dia 20
‘inda do mês fevereiro
tem
por santo o eleutério
e nele nasceu o
nemésio
da terceira o bom poeta
e
é o dia mundial
da justiça social
vem tudo no borda d’água
que é
culto e tem serventia
ora lede ora
estudai
6.2.2022
69 adolescente
- Partilhar 16/01/2022
69
adolescente
quando eu morrer fala comigo que
eu
estarei lá como no tempo súbito
em
que primeiro nos encontrámos
e havia
uma encosta de rosmaninho
a trepar ao
topo das coisas loucas
o sonho
animava os homens dizia o
poeta e a
voz do manel trovador
trazia um
sorriso morno e grave
a derreter
surpresas e a inaugurar
a vitoriosa
revolução de cada dia
sedentos
éramos de flores e de cantigas
e
sabíamos o ritmo exacto dos girassóis
a dialética era então uma cachopa
linda
no tempo das certezas
sabíamos as dúvidas
e viajávamos
estradas que ainda não havia
quando eu morrer olha-me serena e que
os olhos com que me vejas vivo e sempre
venham de nuvem flutuem o tejo de
aventuras
e afrontem o horizonte
ainda além
onde no mouchão por cima
da maré alta
a ternura toda ainda lá
está que eu sei
16.1.2022
boca de cena
- Partilhar 28/12/2021
boca
de cena
fino fresco e
sempre jovem
dói o amor
de mansinho
como as saudades boas
que trago fundas no peito
as saudades
de sentir
o que sentia nas vezes
em que fui feliz e tanto
que até os
sonhos seguiam
pelo caminho dos
sonhos
e as certezas eram certas
e
as horas pontuais
e digo-vos
porque o sei:
muito bom é gostar
muito
de lugares coisas pessoas
e
também de ter saudades
mas que as
saudades boas
não ardam em nevoeiro
que embota o exacto tino
que deslinda
o bom caminho
porque é preciso ter
pressa
e há tantos passos a ir
(a contar do dia de hoje
nos 100
anos que hão-de vir
estarão mortas as
pessoas
que vivas estão agora
e
sabe-se lá que mais
surpresas virão
aí)
tanta dor tão pouco tempo
quem se atreve na conjura
quem ousa a
subversão
lembram a urgência do
amor
de que o Eugénio falava ?
é
agora é agora
e é por isso saber
que tenho de ter aberta
a cortina
deste palco
e mantê-la escancarada
plantar degraus e estender
a rampa
dos precisados
da plateia ao
proscénio
que é aqui de onde se
alcança
a fila de lá do fundo
para que possas subir
tu e ela e eles
e elas
mágica conjugação
com a
cara aberta e o braçado
das máscaras
que frequentas
a anunciarem sombras
medos dúvidas equívocos
e as certezas
que houver
e ainda as marés
propícias
que cativam a marinhagem
com o cio do mar magano
traz
lágrimas arco íris
matizes loucos de
luz
e dores de luxúria e espanto
flores e pó deserto e verde
traz
harmonias vibrantes
“canta que
ninguém te afronta”
sobe até aqui
à ribalta
traz o que te cabe dentro
e desvenda plenamente
tudo o que é
memória velha
e carrega uma ciência
amalgamada nos olhos
que sabe os
saberes de tudo
traz os meninos
corados
lisos de pele e sorriso
mas também as fomes doidas
hirtas de
gelo transidas;
nas lembranças
que trouxeres
embala também os
homens
que erguem aos arranha céus
os píncaros de néon
calos de tijolo e
penúria
e tardios se aconchegam
em tremuras de tugúrio
com filhos de
olhos redondos
todos de súplica e
espanto;
homens arma ferro e lama
fome e fronteira cerrada
barco
náufrago infectado
tempo e pó
desamparado;
desamarra as tuas
mãos
e oferece-as como guarida
àquelas mulheres sombra
que sibilam
no silêncio
uma novena de medo
temerosa e ofendida
e aos
meninos surpresa
que posam
infernizados
nas teias da
indiferença
puta velha e proxeneta
anafada de miséria
com eles canta o
um-dó-li-tá
que enxote a bruxa pra lá
e grita pela urgência
dum tapete
de cetim
que se estenda sobre os
cardos
que só picam pés de pobre
tanta dor tão pouco tempo
vida
breve vida breve
quem se atreve ai
quem se atreve
28.12.2021
poema para jovens como eu
- Partilhar 30/11/2021
poema para jovens como eu
enorme era o quintal e era o tempo
gigante o pai e forte mais que a noite
a distância mais longa do que o vento
desmesurada a espera pela aurora
tudo
era imenso na verdura
pequeno era só
eu sei-o agora
no tempo cresce o
corpo mirra a ideia
mingua o linho
novo em água fresca
encolhem os
lugares e as figuras
passo a
passo menos são os passos
carecidos
pela fome do caminho
e se tudo se
aclara na viagem
mais pequeno se faz
o que atrás fica
atenta pois nas
redes e nos ecos
que mordem as
canelas da frescura
lembra-te antes
do vermelho gordo
que tinham os
morangos pelas leiras
no tempo em
que tudo era à medida
do tamanho
exacto da doçura
sempre que
voltares à casa velha
verás a antiga
escola pela sombra
que alaga o
cristalino nos teus olhos
e apouca a
redonda arquitetura
sem arestas a
acoitar papões
(que grande era o
recreio que afobava
no um-dó-li tá do
mata e dos piões)
melhor que não
voltes antes deixa
no teu olhar que
tudo guarda inteiro
o tamanho das
coisas que elas tinham
no corpo que
elas são o que elas eram
e se
quiseres há-de quedar intacta
a
estatura de tudo a verdadeira
como
ela era antes da saudade
que sempre
se quer alongar sozinha
conserva
os risos claros desdentados
e os de
dentes novos incompletos
a
caçoarem dos teus nervos inquietos
30.11.2021
trava línguas sanitário
- Partilhar 23/10/2021
trava línguas sanitário
vêm no vento venenoso
crestados coiros curtidos
brando bando de abetardas
a alisar lisos alísios
em azáfama as azêmolas
de azia azeda azoadas
cargas carregam custosas
mas curvam costas corteses
em vénias de viés viscosas
arre corre cabra crebra
ralha a velha e ajoelha
ao altivo altar que alteia
a fé que febril se finca
na devida devoção
e anciosa a anciã
tonta bronca atarantada
tontices tartamudeia
catequisa o catecismo
administrativado
e leis leais lerdas ledas
levitam leves ao largo
parvas patranhas pategas
sem semelharem semente
vereadeia o vereador
do encargo encarregado
incham bichas tou lixado
bichos no bucho estrebucham
nemátodos ascarídeos
ditas lombrigas que à bruta
me desarrumam a alma
intempera-se-me o intestino
- salva sanita saneia
que a tripa do tipo trippa
resolve e devolve a calma
23.10.2021
o meu sítio
- Partilhar 26/07/2021
o meu sítio
no
meu sítio
(que
é onde eu quero)
sei aonde estão
a
cómoda
a prateleira
o estendal
a paisagem
o computador
as
fotografias
as flores
e sei
o
lugar da mesinha dos segredos
à
cabeceira da cama certa
com a gaveta
velada
maçónica
atulhada de
truques
e duendes cúmplices
porque é no meu sítio
(por muito que
o meu sítio mude de sítio)
que
está o altar da segurança
e o azeite
sem acidez
a alumiar o apetite
e o
leito ajeitado
ao baloiço das
madrugadas exactas
e eu preciso
sempre e tanto
de voltar ao meu sítio
que é onde sei que é
a certeza
às vezes distrai-se o amor
e
perde-se
no meu sítio
(que é os
meus sítios todos)
e a perdição de
amor
instala sempre um frio
muito
azul
com ressonâncias boreais
cálidas e mentirosas
a prometerem
ondulações brandas
onde a beleza
prometida
só gela inércia lúgubre
e mais nada
mas tudo é perfeito
e resolúvel
no meu sítio
essa é
que é essa
e surge sempre na carência
dos actos
um gesto sábio
que vem
porque é preciso
a desenhar os
caminhos
por onde seguem as horas
e porque é tudo verdade no meu sítio
o medo fica sempre lá fora
arredado
dos lugares de abrigo
que ergo em
volta
de todos os sítios
do meu
sítio
às vezes
arrepios
impertinentes
afloram tolos
pele
adentro
mas são de afecto
apenas
e fazem falta
regularmente a
insónia
vem aos solavancos
e o
tempo fica desolado
e bêbado
a
cambalear as horas
porém outras vezes
a insónia vem clara e recheada
de
poemas e afagos
ou de preguiça
a
reclamar vigília
ampla e generosa
qual ama de leite
flamenga e plena
e pela vigília viajam risos
e
embaraços
com pessoas
e luz
inquietação
e sombras
tudo
falta
e tudo há no meu sítio
e é
assim que tem de ser
no meu sítio
até há
uma voz permanente
a ditar
acordes a jobim
e uma canção de paul
simon
a tecer as cortinas
que não
há
“let us be lovers...”
sem o meu sítio
cá dentro
não
teria para onde voltar
depois de ir
26.7.2021
zanga e frutos vermelhos
- Partilhar 4/05/2021
zanga e frutos vermelhos
s. teotónio martírio
de mui longes himalaias
ferve em mirtilos e amoras
especiarias no vento
acenam reis do oriente
às framboesas que choram
ao sudoeste acabrunhado
arribam bandos de pobres
mais pobres que na charneca
onde a pobreza é secura
silêncio desembestado
monta a banca no convés
o corleone assanhado
camarata sem chuveiro
poupa na água da rega
o metro quadrado é cego
e é cego o papel selado
não venham cá com o governo
se o sef não fala pobre
venha o oftalmologista
fazer o nó da gravata
ao ministro enevoado
caem pobres na falésia?
floresce a infecção?
proteja-se o contrabando
salve-se a conta-corrente
e a alta-cilindrada
para quê tanta ralação?
são só pobres quase nada
e a indiferença ecoa
no peito dos himalaias
não deixes que no teu peito
o que é bom se desvaneça
e o caril esvoaça a lua
e o estado não estuda o molho
que no oriente em odemira
fede algemas requentadas
suor de almas penadas
que penas penam cá longe
só a santa paciência
cofia o bigode à morsa
e azeda-me a brotoeja
que até o surrealismo
se me entra em ebulição
iscas com elas entoam
serenatas aos pategos
e a água benta do caldo
fede na boca ao ventura
e o xico do cêdêesse
que sim sem saber o quê
valha-me o s. teotónio
boa pessoa acho eu
cuidai lá de quem precisa
digo eu à governança
bandidos é na cadeia
acreditai no que digo
e acendei os sorrisos
só para quem os merecer
pronto
4.5.2021
a consciência
- Partilhar 29/04/2021
a consciência
a consciência é uma casa
romance de abril
- Partilhar 10/04/2021
romance de abril
cheguei nu e
enfezado
(e já me foge a
ideia
nas vésperas
rezava o terço
e já pingava o
almesse
o xixi era lá
fora
vestida a camisa
breve
e o salazar
sempre velho
(as miúdas eram
giras
faziam tanta
impressão
velhice é só o
que fica
e o pouco comer
que tinha
(e um medo
redondo vinha
há já quarenta e
sete anos
poetas voaram
leves
e é assim que
vamos indo
com cuidado
10.4.2021
sombra e cor
- Partilhar 26/03/2021
sombra e cor
poema para a Carolina
as luzes
aludem à luz
e a cor ajeita-se
e a treva não
é bem vinda
por isso se
inclina
e a sombra não
desce
pois é aí que a noite se
recolhe
na plenitude
do silêncio
por isso a
sombra não tem cor
e mesmo que a
anunciação do sol
e há uma
paleta de abelhas
numa orgia
de pólen
com mel
é sempre certa
25.3.2021
poesia nossa de cada dia
- Partilhar 4/03/2021
poesia nossa de cada dia
tem a altivez da esteva
dos caminhos é maestra
não está sentada no horário
o mestrado em vadiagem
não usa grau ou canudo
sendo livre é prisioneira
4.3.21
olhar
- Partilhar 22/02/2021
olhar
mesmo de soslaio
dilata a pupila
trata-se de olhar
seja a piscar, a
contemplar, a observar, a fitar, a
espreitar, descortinar, a mirar, a
piscar, a avistar;
de microscópio, de
telescópio, do miradouro…
é limpar a ramela
que não seja nunca
22.2.21
intimidade
- Partilhar 24/01/2021
intimidade
olho aquela
exacta criatura
reparo que tem
um corpo
indiferente ao
género
minucioso
fixo-me
no seu alvo
não me é
permitido
(é verdade que
o deleite mais
aceso
consigo
distinguir
verduras ou
encontros
…………..
voltou-se
mas não consegui
decifrar
apenas anotei
que tudo quanto
eu vejo
que o íntimo da
minha
resta ao
não-entendimento
e o total repúdio
24.01.2021
lábios rubros
- Partilhar 15/01/2021
lábios rubros
não me importa o
tempo que não estás
liberdade hás-de
chamar-te
e o medo há-de
ausentar-se
e a cara dos
homens feios
e fingirão a
grândola
mas quando chegar
e numa festa as
mulheres
em esperança
fresca
em ampla flor
15.01.2021
vem aí...
- Partilhar 29/12/2020
vem aí...
não será ainda o
tempo
das fanfarras
virão talvez
serôdias
as cerejas
serão mais
duvidosas
as certezas
há que ter afinadas
as guitarras
cavalo peado não
trota
no cascalho
dá-lhe rédea
alumia-lhe
o caminho
uma côdea
e uma lasca
de toucinho
acalentam
em estradas
e atalhos
se é
muito o frio veste
a roupa
velha
da que te vem do
tempo
dos reis magos
mas aos filhos não
faltes
com os afagos
de algodão e linho
e lã de ovelha
e de ternura nas
mãos
plena e clara
lambuza-te sem
temor
do exagero
perfuma a cama e a
açorda
com o (melhor) tempero
para a vida que aí
vem
e que é tão cara
29.12.2020
põe coentros no ovo
que o perfuma
- planta mais
verduras
-
romance do negacionismo
- Partilhar 10/12/2020
romance do negacionismo
há um che bar em pristinacomo é que o che da
argentina
e como é que
sagres tem
(mas porquê este paleio
o trump fede a
bedum
o bolsonaro arrota
e em vagas de
estupidez
as coisas que eles
inventam
antes a poliomielite!
razão tinha-a o meu
pai
cale o bico engula o
chip
vacina
contra o fascismo
a estupidez é
velhaca
então tim-tim por
tim-tim
mas a quem há-de
interessar
vão lá sujar o
inferno!
vade retro lá
para trás!
feminina, a paz
feminina, a paz
quando as mulheres
forem
não é da natureza
feminina
há uma fragrância
há uma estética que
da mama
suave estética
que não tolera
só as mulheres
conhecem
deveriam pois ser
as mulheres
será bom
burocracia
burocracia
o regula-
a
manifesto II
manifesto II
daqui deste
pedestal
é um jogo de aventuras
fala de passos e gestos
e vos declaro o intento
e nessa longe distância
tremei de desassossego
se os olhos tiverdes cegos
e na rota sinuosa
não vos deixo ao desamparo
havemos de ter à proa
é um fado é o meu fado
eleita e aclamada
e pela qual
vale pena
soneto
o meu lugar
não me anima a intriga, faz-me azia
e a clubes de fãs não sou atreito
eu em grupos de moda não me ajeito
faz-me o verniz das unhas alergia
aquilo por que tenho simpatia
mora sossegadinho aqui no peito
com cantigas e abraços bem ao jeito
da vida com verdade e poesia
é tanto o brilharete, a lantejoula
tanto salamaleque afiambrado
e tão farta a finesse decantada
que eu quero escapulir-me a tal gaiola
no espaço dos amigos do meu lado
está sempre a minha porta escancarada
poemas da pandemia
poemas da pandemia - IV
hoje dei por
mim a pensar desertos
poemas da pandemia - III
este nevoeiro
poemas da
pandemia - II
tenho mais o que
cozinhar
mas essa morte
morreu
e aqui estamos
assim estando
um anonimato
pandemia
e o medo voou ondas
de vazio
cancelados foram
despertar
despertar
depois do longo sono
e da apatia doce
chegou o espanto feio
de carvão e aço
a desvendar o medo
e revelou-se um
inferno
que do céu não vinha
parido
pela cloaca
da ganância
fétido dos
bolores
e do veneno
cinza
então acordaste
para o verde
que
esmorecia triste
e vestiste
as rendas
de bilros
da avó
que velava desde o
longe
e recolheste o azul
da
madrugada antiga
e amassaste o pão
cheiroso e fresco
e despertaste
para
os guizos
com o melro
e a erva
e
os ovos loiros
da satisfação clara
então
esvaziaste os bolsos
da
roupa nova
de que não tinhas falta
e
atravessaste a rua
devagar
a caminho
das contas claras
e do sossego da
descoberta
que sorri e assobia
com as
crianças todas
e os animais
que nadam
e voam
e caminham
e se movem
como
as ideias
e o olhar
então
bebeste um vinho feliz
e foste novo
assim serás
26.1.2020
sabedoria
sabedoria
sei dos
treze biliões
e meio
de anos do
universo
dos quatro biliões
e meio
de tempo da nossa terra
sei da magia
genética
e do código às bolinhas
que
põe o azul nos olhos
ou o preto nos
cabelos
sei de classes
e famílias
dos animais e das nossas
e das
plantas
e das aves
e mais dos outros
bichinhos
e duns tantos bicharocos
que vagam
voam
vagueiam
tontos
de tanto
labor
sei de modos e
balanços
de modulações tonais
de
paletas e esquadrias
de regras e
temporais
de revoluções perdidas
de
maldades infernais
de mares e condimentos
óvulos e embriões
do vai-vem das
estações
de parténons e sinais
de
tábuas que ditam ordens
que ninguém
respeita mais
sei de molhos e
mezinhas
de tizanas e de vinho
sei de
mozart e camões
de tropeços no caminho
sei de quixote e ghandi
de males de amor
sei demais
filosofias viagens
dulcineias imortais
de risos sei e de
sonhos
e da essência da espera
do
mistério dos amigos
do sabor a primavera
não sei contudo a ciência
que conduz
à alquimia
ao ouro desta incerteza
que
apenas balbucia
o fio da inteligência
que saboreia o saber
que está na
tranquilidade
sei de prodígios
celestes
sei os desastres humanos
mas em resumo e verdade
não sei demais
sei de menos
30.12.2019
romance IV (da ria formosa)
romance IV
(da ria formosa)
leve e formosa é a ria
morada de pão e água
e
homens sal e marisco
no
bailado das marés
cujas
se elevam no embalo
das
medusas que esbeltas
coram vergonhas à vista
do hippocampus guttulatus
cavalo marinho chamado
altivo como um solista
em
ondulante bailado
na
transparente humidade
e tantos que a ria tinha
e que agora já não tem
pois que da china a crendice
de ressuscitar firmezas
e
saudosas competências
da
endocrinologia
fez voar
redes furtivas
e pelo
espanto embarcou
o peixe
da extravagância
rumo à
insana tolice
e o
hippocampo abalado
fez-se
deserto na ria
certo
é que rara santola
e
alguma ameijoa boa
inda
por ali passeiam
com
lingueirões e douradas
pequeninas dos viveiros
mas o berbigão a monte
que em tempos foi tapete
de areias que mal se viam
debaixo da tal fartura
já
não se pisa na borda
da
laguna espoliada
da
população que tinha
pois que até a holotúria
pepino do mar chamada
que
não tinha serventia
na
petisqueira de amigos
é
rapinada pela névoa
e
pela sombra é levada
a
ser manjar do japão
servida em prata lavrada
pobre ria transvestida
em estaleiro e vazadouro
que a navegar-lhe saudades
‘inda tem gente teimosa
que semeia amor na água
espelho que não se acanha
de brilhar a correnteza
ninfa é a ria formosa
tão de mágoa e de beleza
de esperança tão sequiosa
11.11.2018
e holotúrias roliças
asmática papelada
romance III (peregrinar a miséria)
Afonso Dias
romance III
(peregrinar a miséria)
sombra imensa
do passado
salpicado
de esqueletos
com
muita cruz e crescente
a arrastar romarias
à
rés do arame farpado
como rosário de
enguias
na correnteza
do mar
de sargaço
sempre longe
enxurradas de mulheres
em febril sonambulismo
com meninos e meninas
desabridos de fadiga
e homens cor de tristeza
peregrinam em demanda
do verde azul dum
destino
tão promessa
e incerteza
tão
miragem de milagre
que mal se sabe se há
vêm do longe mais
ermo
que há na rosa
dos ventos
dos dois
pontos cardeais
feitos de pedra e
metralha
fome a
rodos medo e sangue
vêm do sul e do leste
onde o inferno parece
ter instalado as
lixeiras
da imundície
mais podre
de que a
maldade é capaz
são rios de gente e
brilho
nos olhos que
avistam seda
e portas
escancaradas
de
braços brancos à espera
mas só rouquidão
fardada
e muralhas de
indiferença
acham à
porta do céu
fechada
a sete trancas
e onde
a humanidade
se escondeu
4.11.2018
romance II (medo)
Afonso Dias
romance II
(medo)
é o
sábio desconforto
não há areia que enrede
o medo essa mula velha
no cerne do pesadelo
afinal passada a nuvem
e o pavor que no tempo
e hologramas de pedra
romance I
(no mercado)
Afonso Dias
O Romance é uma forma poética construída em versos de sete sílabas
métricas - Redondilha Maior - e que, geralmente, conta uma história ou
fantasia a partir de situações reais ou imaginadas: júbilos e desgostos
amorosos, sorte e azar, aventuras e tormentas, vitórias e fracassos,
chacotas e lamentos...
No Séc. XX muitos foram os poetas que mantiveram o Romance nas suas
escrituras: Lorca, Gedeão, Ary, Cecília Meireles, são exemplos disso.
Tal corrente ainda não foi quebrada. Quer por escritores de poesia, que
por repentistas populares que continuam a debitar as suas décimas com
mote. No Alentejo, no Minho, nas Beiras, nos Açores.
Trago-vos um modesto Romance e, nas próximas edições, seguirei por aqui.
romance I
(no mercado)
o filho está em
bordéus
“se fosse
surrealista
era
picasso” decerto
“dê licença que me
sente
agora que vou para
velho
fique sabendo o
amigo
não se esqueça do
que digo”
não me esqueço meu
amigo
1.11.2018
* imagem: detalhe de Les Demoiselles d'Avignon (1907) de Pablo Picasso
egipto
Afonso Dias
estive no Egipto, gostei e trouxe isto:
egipto
na rota do cairo
só os camelos
passam
pelo cu benzido da agulha
e
arrastam a cinza do deserto
rumo a mais
deserto
e a mais cinza
todavia
adivinha-se um fogo
na moleza da cáfila
e é perfeita a luz
devoto mahmadou
muçulmano bom
amigo farto
erguido em poucos dias
doou-me o sorriso
mais limpo que se pode
e há uma infusão de menta
a
santificar o entendimento
esgotada a pedincha
o preço é
revelado
e a perfeita serenidade
releva longínquas
reverências
a
navegar
secura
sobre os egípcios
empilham-se
gigantescas
as sombras
de pedra
de
submissão
e de martírio
com vales de
reis
e pirâmides
em mágica
maravilhosa
e absurda criação
uma massa de
anos e anos
e
séculos
e mortos
e ossos
e mortos
mais ossos
mais pedras
e sangue
e
mais pó
e oásis
que só há
muito
longe
e não se pode
quanta dor
transportou
nefertiti
e Cleópatra
até ao folclore
nas margens do corão
com mar vermelho
wind surf
e bikini
que as mulheres
dali
mal ousam
e muitas são
as mulheres que
recolhem
trejeitos e sorrisos
nas
vestes de noite
e menoridade
litúrgica
e sombria
- apenas se adivinha um vislumbre
de lágrimas -
divido-me entre
a beleza
plena e sublime
e o mar
vermelho de
dor
daquele deserto infindo
e ali à beira
a palestina
de
lágrimas acesas
a arábia de petróleo
meca
e esperança inerte
a síria sempre
mártir
em mar vermelho
de sangue
navegada
e israel a pairar
sob o “céu
cinzento”
da american navy
sempre em
riste
o sorriso limpo
de mahmadou
de doçura tanta
é esperança pouca
que
ele merecia ter
muita
e que eu não trouxe
porque não havia
21.7.2019
poesia aos molhos
Afonso Dias
“A propósito de certos meios que só aceitam uma poesia muito etérea, distante, metafísica. Com pessoas e ralações sociais é que nunca.”
poesia aos molhos
sigamos
pelo bom caminho
regurgitemos
eructemos
uma poesia de etiqueta
sossegadinha quieta
comportada no
cantinho
da poesia delicada
com’ássim
delicodoce
mimozinha e arrumada
de
bochechinha espremida
por dois dedos
ternurentos
e beijinhos gordurosos
dos
que se dão aos rebentos
amorosos
não queremos dona urraca
deixar que as
ralações
- as sociais qué’dizer -
nos
infectem a poesia
- a que já pegou de
estaca
nas tertúlias preciosas -
deixemo-la arredada
da carne mal amanhada
e com bactérias manhosas
já não sei
quem foi que disse
que as rosas senhor as
rosas
as do colo da rainha
e o amor
aos molhinhos
choroso e com rodriguinhos
é que se devem cantar
e mais as
cogitações
matafísicas e tal
quem sou
eu para duvidar
de tão sábia indiferença
afinal
então com vossa licença
venho já: vou só bolsar
4.6.2019
inventário
Afonso Dias
inventário