Os novos medievais
Margarida Vale
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Joana, a Louca
- Partilhar 01/03/2023
Fernando de Aragão e Isabel de Castela
fizeram de Espanha uma potência destinada a
desempenhar um papel fundamental nos anos
vindouros. Pelo casamento, conforme costume
da época, realizaram a união de duas grandes
coroas ibéricas. Completaram a Reconquista
contra os muçulmanos, impuseram ao país um
catolicismo austero com uma feroz
perseguição aos judeus.
É nesta época
que a viagem de Cristovão Colombo se
realiza, já que Isabel o soube ouvir e
acreditar. Esta descoberta, de uma América
que se ansiava, será o prelúdio da
constituição de um novo Império, o hispânico
no Novo Mundo.
No reinado de Joana e
no de seu filho, Carlos V, durante três
décadas, os conquistadores espanhóis criaram
uma nova forma de viver. Providos de cavalos
e de armas de fogo, as tropas de Cortés e de
Pizarro vencem, sem qualquer dificuldade, a
resistência dos Incas, e dos Aztecas. São
desfeitos estes impérios, incluindo o Maia,
para dar lugar a uma sociedade colonial.
O ouro era o mote principal, extraído
das minas de Potosi e de Zacatecas, vem
trazer riqueza à metrópole, permitindo à
monarquia espanhola um poder nunca visto.
No Outono de 1509, Fernando, o Católico,
manda encerrar a sua filha Joana, herdeira
do trono do Castela, no castelo de
Tordesilhas. A pobre e infeliz rainha tem 30
anos e é cognominada la loca. Até à sua
morte, em 1555, todos os actos oficiais
levam o seu nome mas ele nunca sai da sua
prisão.
Segundo consta, pelos
documentos, foram razões de estado que
favoreceram este estatuto. Fernando e depois
Carlos V, filho de Joana, acomodam-se com a
sombra da rainha enclausurada cuja perda da
coroa protelam em declarar. A sua
"melancolia", termo usado para justificar o
terrível acto de encerramento, favorece as
intenções, bem pouco se lhe deseja a cura.
O isolamento agrava a loucura de Joana
que se recusa a lavar e até mesmo a se
lavar. Todavia a rainha conserva-se, aos
olhos do povo, como uma figura tutelar e,
perante os mais fantasistas, um recurso
possível contra o rude poder de Carlos V.
Na verdade nada predestinaria Joana a um
tão sombrio destino. Segunda filha dos reis
católicos, Fernando II de Aragão e Isabel de
Castela, nasce em 1479. A sua beleza tocante,
segundo algumas fontes, recorda a sua avó,
Joana de Portugal, uma vítima de
perturbações mentais. Contudo a infante
revela-se inteligente. Dedica-se à música e
aprende línguas facilmente. Contudo é um
pouco estranha e introvertida, pois é a
única, de entre os irmãos, que não deixa
qualquer tipo de correspondência.
Como qualquer infanta, o seu destino estava
traçado e seria um peão de cariz diplomático
de grande valor. O arquiduque Maximiliano da
Áustria pede-a em casamento para o seu
filho, Filipe, o Belo. Esta união, de enorme
importância na história moderna, prepara o
domínio dos Habsburgos em Espanha e que
perdura até 1715.
Casada por
procuração, em Valladolid, no Verão de 1496,
com dezassete anos vai ter que deixar a sua
família e embarcar para os Países Baixos, ao
encontro do seu esposo, que ainda não
conhece. Ao fim de uma tremenda viagem de
dois meses, Joana desembarca na Zelândia
onde causa grande impacto nos flamengos. A
sua entrada é um momento de glória. Bem
recebida, é aplaudida com entusiasmo.
A lenda conta que os dois esposos se
apaixonaram tão profundamente, um pelo
outro, que não largaram as mãos,
contrariando o protocolo da época. Ele.
Filipe, é um jovem amável, espiritual mas
também um obstinado político. Ela faz valer
os seus direitos de esposa à sucessão de
Espanha. Ora, a herdeira titular é a filha
mais velha, a rainha da Portugal. Fernando e
Isabel inquietam-se com tal atitude tanto
mais que Joana os ignora por completo. Tendo
sido uma solitária, nutre pelo marido uma
enorme paixão enciumada que vive de forma
extrema e dolorosa.
Os dois terão
seis filhos, entre os quais o Imperador
Carlos V e Fernando I. com o passar do
tempo, o comportamento de Joana apresenta
alguns sinais de debilidade mental, o que
inquieta todos os que a rodeiam. Um
emissário vindo de Sevilha observa-lhe uma
perturbação. O que se passa é que Joana se
sente humilhada pela desconfiança dos pais,
pelo comportamento do marido que a trai
desde o início do casamento e que delapida o
seu apanágio.
Desaprova as escolhas
políticas do marido, não vê com bons olhos
que ele, manobrado pelo ouro francês, aceite
em 1499 render homenagem ao novo rei de
França, Luís XII, pela Flandres e o Artois,
províncias que ela considera suas e se sente
lesada. Afinal a sua inteligência e a
capacidade de decisão está a ser colocada em
causa e ridicularizada. Joana sente-se
impotente.
Nesse mesmo ano
desaparece, com D. Manuel, o último herdeiro
em linha directa de Isabel e Fernando. Joana
é chamada a reinar em Castela, Aragão e nas
Índias recentemente descobertas. Os reis
católicos alarmam-se por ver comprometida a
sua obra nas mãos de Filipe, o Belo, a sua
obra de unificação. Este mostra-se
indiferente perante as propostas de França e
de Inglaterra, as vizinhas dos territórios.
O bispo de Toledo sugere que Joana é um mero
e reles instrumento nas mãos de Filipe, o
seu marido.
Joana tenta em vão reter
Filipe em Espanha, cuja austeridade abomina
pois a sua conduta era outra. Desconfiada
das infidelidades de seu marido, Joana vai
ao seu encontro. Outros diriam que não se
queria confinar em Sevilha. Quando se junta
ao marido é uma mulher possessiva, uns
ciúmes doentios e exige ser servida apenas
por criadas mouras.
A morte de Isabel,
a Católica, provoca uma reconciliação
provisória. No seu testamento a rainha pede
aos súbditos para considerarem Joana como a
sua rainha e proprietária dos domínios.
Apesar das reticências de Fernando, o casal
chega a Espanha para tomar posse da herança.
Pelas cortes de 1506, é proclamada rainha.
Uns meses mais tarde Filipe desaparece,
vítima de um resfriado. Joana afunda-se numa
escuridão estranha e muito profunda. Não
aceita a morte do marido e recusa-se a
abandonar o caixão tanto que manda
embalsamar o corpo. Deixa de tomar decisões
políticas, o que fica nas mãos do seu pai,
Fernando, que estava em Nápoles, regressa
para assegurar a regência, de modo triunfal.
É então que manda enclausurar Joana no
castelo de Tordesilhas, onde se instalara
perto da capela funerária do seu marido.
Contudo Joana é uma mulher apetecível pelo
seu património. Henrique VII de Inglaterra
pede-a em casamento e trocam-se
embaixadores. Os espanhóis assustam-se pois
entendem que a rainha está a ser alvo de
manipulação. Os opositores fazem recair nela
todas as esperanças e assim, dão corpo ao
mito que se cria.
Durante as
perturbações que se seguem à morte de
Fernando, os comuneros, que recusam o poder
de Carlos V, conseguem uma entrevista com
Joana, em 1520. Pedem-lhe para exercer as
prerrogativas reais. Contudo em 1521, os
rebeldes são destroçados e Joana não voltará
a sair da sua solidão. Com o passar dos
tempos acaba por perder a razão e fica
completamente perdida. O mito ficou e ela
morreu em 1555, esquecida por todos.
Certos amores são tão destruidores que
transformam quem os sente. Joana, a mulher
cheia de capacidades, ficará para a História
do mundo como alguém incapaz e que termina
os seus dias sem noção da realidade e
convencida de que estava num tempo que já
não existia.
Lucrécia Bórgia
- Partilhar 31/01/2023
O nome Bórgia está ligado a Roma, de onde a
família é originária e à história da igreja,
à qual forneceu dois papas: Alonso Bórgia,
eleito sob o nome de Calisto III e Rodrigo
Lançol e Bórgia, ou seja, Alexandre VI e
ainda um santo, Francisco de Bórgia.
Com dois filhos bastardos de Alexandre,
César e Lucrécia, os Bórgias, um nome
inconfundível, participaram activamente na
vida política e religiosa da península,
envolvida nos tormento das guerras da Itália
e da Reforma Luterana. Francisco, foi
vice-rei da Catalunha antes de ingressar na
ordem jesuíta e se tornar o seu geral,
serviu Carlos V e militou na Contra-Reforma
católica.
Alexandre VI, Bórgia de
nascimento, é o exemplo de uma grande senhor
libertino tornado papa por mera promoção
familiar. Sobrinho de Calisto III, é eleito
para o mais alto cargo da igreja sem nada
mudar mo seu modo de vida e, mais em
particular, sem romper a ligação profunda
que tinha com a sua amante Vanozza Catanei.
Enquanto pontífice, mostra-se um hábil homem
de estado, mas nunca um pastor.
Depois dele, Júlio II e Leão X, levam vidas
menos dissolutas. Contudo a sua acção mais
política e o seu papel de mecenas faustosos,
como a construção de S. Pedro, o
embelezamento do Vaticano e as muitas
colecções, fazem-nos parecer, de novo, mais
como soberanos temporais do que modelos de
fé.
Durante todo o dia 4 de Fevereiro
de 1501, os canhões do Castelo de Sant'
Ângelo, em Roma, não pararam de troar. A
filha natural do papa Alexandre VI, um
Bórgia, acabara de desposar o herdeiro do
ducado de Ferrara, tendo, assim, ingressado,
por meio de um dote muito generoso, numa das
mais importantes famílias de Itália. Tem 21
anos e Afonso é o seu terceiro marido.
O primeiro foi afastado por seu pai, o
segundo assassinado pelo seu irmão. Se ela
teve algum papel nestes desfechos, a verdade
é que nunca se saberá mas a fama , a
reputação explosiva, será uma autêntica
perseguição.
Alexandre VI é ainda o
cardeal Rodrigo Bórgia quando, em 1480, a
sua favorita, Vanozza Catanei traz Lucrécia
ao mundo. Eclesiástico muito sensual, já tem
filhos de outras ligações e Vanozza ainda
lhe dará três rapazes, César, João e Jofre.
Antes da Contra-Reforma, e este terá sido um
dos motivos para o clamor dos descontentes,
os prelados levavam uma vida de grandes
senhores, sem nada de humildade, sendo que a
situação de Rodrigo muito comum. Raro é o
facto de continuar a procriar e ter uma
verdadeira paixão pela sua progenitura.
Doze anos após o nascimento de Lucrécia,
em 1492, Rodrigo torna-se Papa sob o nome de
Alexandre VI. Instala a família num palácio
contíguo ao do Vaticano, Santa Maria in
Portico. Além de Lucrécia e de Vanozza,
vivem ainda no aplácio a sumptuosa Júlia
Farnésio, a sua nova comcubina e a mãe
desta, Adriana de Milão. Lucrécia vive feliz
com estes três mulheres que a cuidam com
amor e carinho,
Os mais altos
dignatários, cardeais ou embaixadores, vêm
submeter as suas petições às mulheres do
Papa, mesmo que todos façam olhos de não
querer saber ou ver. A expressão foi citada
por Savanarola, o que clama, de forma
violenta, em Florença, contra os muitos
pecados do chefe da igreja.
Alexandre
ama a filha e preocupa-se em lhe arranjar um
bom casamento. Tem apenas treze anos mas é
um bom partido, sobretudo por ser uma
rapariga bem atraente. A sua beleza
tornar-se-á célebre pois as pinturas
retratam-na com um corpo esguio, longos
cabelos que tem a ousadia de soltar ao
vento, o que vai contra todas as convenções
e olhos de um azul sombrio.
Como se
tal não bastasse, o seu dote, muito
generoso, ainda inclui dinheiro e benefícios
eclesiásticos, o que parece ter sido o maior
chamariz de todos. Ser da família do Papa é
um privilégio que poucos podem conseguir,
O marido escolhido é João, conde de
Pesaro, um membro de uma poderosa casa dos
Sforza, senhora do Ducado de Milão. O papa,
em breve, entende ter sido uma má escolha,
já que o conde não tem qualquer hipótese de
vir, algum dia, a herdar o Ducado. Além
disso novas circunstâncias políticas tornam
esta união complicada.
As guerras de
Itália começaram, o rei de França, aliado
dos Sforza, parte em conquista do reino de
Nápoles, dependência de Aragão. O Papa não
pode, de forma alguma, aceitar que os
territórios que controla, no centro de
Itália, fiquem entalados entre potências
aliadas entre si, defende os Aragoneses. Os
Sforza, conscientes da situação, fazem
correr o boato de que o Papa está disposto a
assassinar Pesaro, com a conivência de
Lucrécia.
É assim, com este episódio
que Lucrécia vai ganhando fama de
envenenadora, de mulher de mau carácter, de
assassina sem pinga de emoção. Alexandre,
para libertar a filha, tem um meio mais
simples do que o veneno, a dissolução do
casamento.
Intimado a reconhecer que
não consumou a união, João Sforza deixa
entender que o Papa quer a filha de volta
para ser bel prazer, um incesto depravado. É
a ternura do pai pela filha que está em
causa e corre toda a Itália. Um boato que
cresceu de forma descontrolada e carregado
de ódio de repúdio.
Estas horríveis
calúnias, que teriam como missão denegrir e
rebaixar a imagem de Lucrécia, não impedem o
aparecimento de inúmeros pretendentes que
aspiram à mão da jovem, para assim obterem
favores do Papa. César Bórgia, irmão de
Lucrécia e o braço temporal do pai, comanda
os seus exércitos e aspira a uma união com o
reino de Nápoles.
A ideia será uma
união com Afonso de Biscèglie, filho
bastardo do soberano. As bodas são
celebradas em 1497. Contudo é o próprio
César que, em 1500, após outras tomadas de
decisão, assassina friamente o jovem marido.
Lucrécia nada tem a ver com assunto mas toda
a Itália a aponta como culpada. A jovem, a
quem ninguém pede opinião, volta a casar um
ano depois.
O novo eleito é o Duque
de Ferrara. Como Lucrécia já não é uma
menina, o pai decide confiar-lhe
responsabilidades. Aos 19 anos nomeia-a
governadora de Spoleto, alto cargo até essa
altura, reservado aos prelados. Lucrécia
sabe como governar e organiza um corpo de
polícia ou ainda tem a capacidade de impor
tréguas à cidade vizinha.
Em 1501,
durante algumas semanas, é encarregada de
dirigir a igreja enquanto o Papa visita os
seus territórios. Instaladas nos aposentos
pontifícios, trata de assuntos correntes e
abre o correio oficial. Contudo é no papel
de Duquesa de Ferrara, um principado muito
próspero às portas e Veneza, que Lucrécia
atinge a sua verdadeira dimensão.
Acolhida inicialmente com alguma suspeição,
em breve irá conquistar todos os seus
súbditos pela constância que coloca na
governação. Leva para o ducado poetas, como
Pietro Aretino e outros que possam divulgar
a sua poesia e assim enaltecer a cultura da
época. Faz do ducado um local de
conhecimento,
À morte do Papa, em
1503, retoma o grande sonho dos Bórgias de
constituir um Estado territorial na Itália
central e converter-se em auxiliar do seu
irmão César, recrutando tropas para ele. O
novo Papa, Júlio II, odiando os Bórgias,
desencadeia inúmeras hostilidades contra o
Duque de Ferrara, em 1509, que, contra ela,
permanece fiel ao rei de França.
Como
outrora, Lucrécia, na ausência do marido
retido pela guerra, toma em mãos os assuntos
de Estado e prossegue a resistência até à
morte de Júlio II, em 1513. É provável que
houvesse aqui uma conotação religiosa pois
em 1519, no ano da sua morte, a Duquesa, a
filha do chefe da igreja católica,
converte-se à Reforma, proclamada apenas
dois anos antes pelo ex-monge Lutero.
Esta mulher, que conhece como ninguém os
costumes da Igreja romana, vai pelo campo
dos que a querem transformar. Na verdade é
uma atitude lógica e consistente pois estava
ciente de que os princípios não eram
cumpridos. No entanto a historiografia
católica não lho perdoará: os horrores que
lhe são atribuídos pelos contemporâneos,
serão repetidos ao longo dos tempos por
gerações de autores.
Uma mulher não
tinha o direito de ser inteligente nem
independente. Caso o fosse e demonstrasse,
como foi o caso de Lucrécia, caíam sobre
elas, os maiores insultos e calúnias. Todas
as humilhações que sofreu, não tendo sido
poucas, não a demoveram dos seus intentos
nem de provar a sua garra única.
Epifania - Dia de Reis
- Partilhar 30/12/2022
Integrado na quadra natalícia, pois até aos
Reis é Natal, o dia de Reis traduz um dos
mais relevantes episódios tradicionais que
estão associados ao nascimento de Jesus
Cristo. Comemorado no dia 6 de Janeiro,
excepto nos lugares de santo de guarda, que
se pode festejar no domingo entre os dias 2
e 8 de Janeiro.
A Epifania, cujo nome
ancestral entre os cristãos era Teofonia,
englobava na sua origem a maior parte das
celebrações a Cristo, o seu baptismo, a sua
vida e o seu sofrimento na Terra bem como os
seus milagres. A partir do ano 54 separou-se
da Natividade, o nascimento, da Epifania,
que passou a ser uma festa exclusivamente
dedicada aos Reis Magos.
A data
fixada no ano de 1164, 6 de Janeiro,
pretendia assinalar a viagem dos três Reis
Magos vindos, segundo o evangelho, dos seus
longínquos países do Oriente até Belém,
guiados por uma estrela, para render
homenagem e oferecer os seus presentes a
Cristo recém nascido.
De seus nomes
Gaspar, com olhos amendoados e barba fina
,Baltazar, negro e imponente e Melchior ou
Belchior, o mais velho e de longa braba
branca, os Reis Magos pagãos simbolizam a
riqueza, o pder, a ciência e a homenagem de
todod os povos da Terra a Cristo Redentor.
Paramentados com as suas vestes
preciosas, tiaras sobre a cabeça e os
tesouros nas mãos, assim se apresentam
perante o menino, que apenas tinha pastores
à sua beira, a quem oferecem os seus
presentes. um deles três libras de ouro,
para o Rei, o outro três libras de incenso,
para o Deus e o outro, três libras de mirra,
para os restos mortais do homem.
Apenas S. Mateus narra o episódio dos reis
Magos no Evangelho e ainda afirma que estes
tiveram uma conversa com Herodes, que não se
repetiu, pois em sonhos foram aviados para o
não voltar a fazer.
São estes reis
que baptizam o manjar doceiro desta época, o
bolo-rei, uma espécie de pão doce recheado e
enfeitado com frutos secos e cristalizados,
com pinhões, amêndoas, nozes, figos, passas,
cerejas e abóbora, cuja tradição se espalhou
por toda a Europa e alguns países da América
Latina, mais concretamente o Brasil.
Esta era uma ideia retirada do bolo januar,
dos romanos, ou Saturnália, que trocavam
entre si no primeiro dia do ano. Era
acompanhado de um ramo de verdura, colhido
no bosque, dedicado à deusa Strena. Deste
nome deriva " as estreias ", expressão que,
em certas localidades do nosso país, serve
para definir o acto de oferecer presentes de
boas festas.
Recuando bastante no
tempo, "as estreias" relacionavam-se com
mascaradas, banquetes, jogos e outras
celebrações realizadas pelos povos pagãos,
de tal forma que no Concílio de Tours, em
567, foi sugerido que estas festas pagãs
dessem lugar às esmolas de carácter cristão
e litúrgico, de maneira a atenuar os traços
de politeísmo.
Ao bolo janual e ao
ramo de verdura, o hábito que os Romanos
perpetuaram, eram acrescidas pequenas
lembranças, como tâmaras, figos ou mel, com
os votos de bom ano, paz e felicidade. Mais
tarde esta singeleza não satisfazia e a sua
modernidade levou a algo mais valioso, o
ouro e a prata. Em diversos países tornou-se
costume introduzir no bolo uma pequena cruz
de porcelana, que se juntava à fava e depois
foi substituída por minúsculas figuras
humanas.
Ainda hoje esse hábito, do
brinde, se mantém e tornou-se uma tradição
bem curiosa, pois a expectativa é de ver
quem será o achador da fava, pois terá a
tarefa de oferecer o bolo seguinte. Alguns
disfarçam a sorte que lhes saiu mas, o
grosso, continua a tradição de o ofertar.
Associado à quadra natalícia
encontram-se as janeiras e os Reis, ou seja,
são peditórios cantados na noite de Natal,
de Ano Novo e de Reis. Talvez sejam uma
herança das próprias strenas romanas, uma
vez que tinham como missão o receber
dádivas.
Toda esta forma de se
iniciar o ano, remete para outras
celebrações, e tempos bem remotos, quando se
celebravam deuses e várias divindades pagãs
ou eram pedidas ou oferecidas dádivas do ano
comum, símbolo de bom augúrio, quer para
quem as pedia, quer para quem as doava.
O costume não se perdeu e grupos de
homens e mulheres, os janeireiros ou
reiseiros, acompanhados ou não por músicos,
percorrem os lugares, de porta a porta, a
pedir oferendas em troca da entoação das
"loas" ao Menino e das "janeiras" ao Reis.
Na região de Trás-os-Montes era costume,
nos quatro dias que antecediam os Reis,
juntarem-se rapazes e raparigas que
percorriam os lugares a pedir, de casa em
casa, as "janeirinhas". À frente do grupo
seguia um rapaz com uma candeia de azeite,
que voltava a ser cheia quando acabava,
pelos donos da casa seguinte. Em troca
recebiam chouriços, maçãs, passas,
castanhas, vinho e outros géneros, com os
quais organizavam uma festa, à volta da
fogueira, onde assavam e comiam os chouriços
e a restante comida.
Em Felgar,
realizava-se no dia 1 de Janeiro, a Festa
dos Rapazes, conhecida também pela Festa da
Senhora dos Moços, em que os rapazes, em
grupo, palmilhavam a freguesia fazendo um
peditório. As ofertas, chouriços, orelheira,
bolos, frutos secos, vinho e outros bens,
eram presos nos galhos de um ramo, o
"galheteiro", que cada um segurava na mão,
sendo as ofertas leiloadas no final da
ronda.
No Algarve perguntava-se
primeiro: reza ou cantiga? e, conforme a
resposta, assim os janeireiros rezavam ou
cantavam em troca das oferendas. Esta
tradição pode apresentar algumas variantes
mas a finalidades é sempre a mesma, uma
troca justa por algo que é feito, o recuar
aos tempos ancestrais da trocas por troca.
Em Niza, rapazes e raparigas
organizavam-se em grupos de quatro elementos
para cantar o "Menino Jesus", as "loas" de
Natal e os Reis, as "loas", antes e depois
do Natal. Escolhiam as casas que pudessem
ser mais rentáveis e, quando lhes abriam a
porta diziam: " Menino Jesus da Nazaré, quer
que cá cante?". Perante a resposta
afirmativa, entravam na casa, onde estava
reunida a família, quase sempre na cozinha e
começava a "loa".
Na zona de Beja, a
tradição constituía oferecer aos grupos que
cantavam as "loas" nas vésperas de Ano Bom
ou dos Reis, as populares "costas", uns
bolos feitos de massa semelhante à do pão, a
que se junta açúcar ou mel, sumo de laranja,
ovos leite e canela, moldados à mão e com
formas diferentes.
Durante anos, este
dia era especial, uma simbologia de grande
valor uma vez que a religiosidade lembrava a
pureza inicial de se cuidar de um ser
pequeno que, mais tarde, seria de grande
importância para uma comunidade. Com o
passar dos tempos, o dia perdeu-se em
Portugal mas em Espanha ainda é o de maior
entusiasmo, o dia da troca de prendas.
Vikings
- Partilhar 30/11/2022
Vikings. Este é o nome dado aos navegadores
escandinavos que entre os séculos IX e XI
realizaram incursões nas ilhas do Atlântico
e em quase toda a Europa Ocidental. São uma
antiga civilização que hoje compreende o
território que agora é ocupado por três
países europeus: a Suécia, a Dinamarca e a
Noruega. A sua cultura era baseada na
actividade agrícola, no artesanato e no
notável comércio marítimo.
Suscitando
alguma admiração nos outros povos e ainda
receio, os ingleses apelidaram-nos de pagãos
ou dinamarqueses, os francos de nómadas, os
irlandeses de estrangeiros e na Europa
central eram conhecidos por rua ou varegues.
Não se sabe ao certo a origem da palavra que
pode ter sofrido uma deturpação no seu uso.
Viken relaciona-se com fiorde ou ainda baía.
Por outro lado existe ainda a hipótese de
estar ligada a um verbo que significa evitar
ou esconder. O certo é que evitavam
confrontos, sempre que possível.
Cronologicamente esta civilização alcançou o
seu auge entre os séculos VIII e XI. A maré
das primeiras invasões começou em 856.
Conquistaram grande parte das terras
britânicas, estendendo-se até à Escócia.
Mais tarde, no século X, Eurico, o Vermelho,
explorou a Gronelândia onde estabeleceu uma
colónia e o seu filho, Leif Ericson explorou
o litoral norte americano, procurando
colonizá-lo, sem sucesso.
Eram os
melhores navegadores do mundo e sabiam
orientar-se pelo sol e pelas estrelas. Foi
assim que chegaram a França e aos Países
Baixos. Devido às baixas temperaturas, os
vikings tinham expressa necessidade de uma
vestimenta que lhes permitisse suportar o
frio. Assim, combinavam peças de tecido com
couro e peles grossas para manter o corpo
aquecido. Curiosamente apreciavam adornos de
metal e pedra que usavam com mestria.
Os seus barcos, os drakares ( dragões )
eram elaborados de forma bastante
inteligente pois podiam ter entre 20 e 40
pés de comprimento e 3 metros de largura.
Uma das vantagens é que eram mais fáceis de
manobrar facilitando as táticas de ataque e
de fuga. Igualmente navegavam nos mares e
nos rios porque o casco aberto era trincado.
De vela quadrada e remo-leme lateral na
popa, tinham 2 filas laterais de remos e uma
cabeça de serpente que servia para os
identificar.
As habitações eram
bastante simples. Madeira, pedra e relva
seca eram os elementos principais usados na
sua construção. Práticos e desembaraçados
por natureza, as casas tinham, por norma,
uma só divisão sendo que nas famílias mais
abastadas havia lugar a cozinha e quartos.
Inicialmente a organização era democrática
mas com o tempo os chefes passaram a assumir
uma maior importância.
A organização
familiar tinha traços patriarcais sendo que
o homem era o principal responsável pela
defesa da família e das várias actividades
que providenciassem o sustento. A mulher era
a responsável pelos alimentos e algumas
também se tornaram guerreiras sendo tão ou
mais destemidas que os homens. A educação
era exclusiva dos pais que passavam aos
filhos os ofícios e as tradições. Eram um
povo de cultura oral e não escrita.
O
rei estava no topo da autoridade, seguido
dos condes e chefes tribais que eram
respeitados por todos. As reuniões eram ao
ar livre onde se discutiam todos os assuntos
comuns, faziam as leis e definiam os
castigos a aplicar aos infractores. Existia
uma certa democracia nestas decisões pois
todos eram ouvidos com bastante atenção.
A sua mitologia é vasta e muito rica.
Politeístas convictos, os seus inúmeros
deuses funcionavam como consciência
colectiva e orientadora. Odin era o deus dos
deuses, Thor a divindade de maior
popularidade e tinha como missão proteger o
povo viking e o controlo do céu. Mas tinham
outros deuses que eram venerados de modo
particular.
Com a cristianização da
Europa durante a Idade Média, estes
guerreiros acabaram por se converter à nova
religião levando ao fim da sua cultura, o
que acontece entre os séculos XI e XII. Tal
ficou a dever-se aos conflitos, infindáveis,
entre os nobres ingleses e os da Normandia,
que tinham em mente os seus próprios
interesses e não os da comunidade.
Contudo as lendas e as superstições
sobreviveram ao tempo e tornaram-se uma
fonte de estudo para todos aqueles que se
interessam pelas civilizações que se
extinguiram. Hoje em dia estes países
preservam as suas tradições e fazem questão
de manter estas memórias tão vivas quanto
possível, quer através de museus ou de
inúmeras recriações históricas.
Por
serem tão interessantes e ainda mais
apaixonantes, um assunto que não se esgota,
foram tema de vários filmes e de séries que,
com detalhes e rigor, tentam recriar os
tempos da sua grande civilização e não os
deixar morrer na memória colectiva. É
preciso saber destrinçar entre a realidade,
a verdade e a ficção que serve para animar
dias que já se foram há muito.
A viagem de Marco Polo
- Partilhar 30/10/2022
Em 1298, na batalha de Curzola, as galeras
venezianas são desbaratadas pelas frota
genovesa. Este poderia ser um episódio, mais
um, da guerra que opunha as duas cidades
italianas mas a verdade é que o rumo a
seguir se alterou. Entre os vários
prisioneiros estava um Marco Polo que tinha
regressado da Ásia e tinha muito que contar.
tendo ficado encerrado durante um ano, vai
ditando as suas memórias a uma companheiro
de cativeiro. Os trabalhos forçados eram tão
penosos que Rusticiano de Pisa, escreve tudo
o que ouve. Nasce, então, O Livro das
Maravilhas do Mundo.
Marco Polo,
filho de mercadores, deixa Veneza e parte
para o Oriente da demanda de negócios que
possam enriquecer a família, Aventureiro,
sangue que lhe ficou de família,
aventurou-se no desconhecido com destino à
glória. O seu pai Nicolo e o seu tio
Matteo,tinham viajado pelo oriente, tendo
chegado à Crimeia, Ásia Central, Bucara e
depois atingiram a China. Em Pequim foram
recebidos pelo grão-cão Cublai, onde ficaram
hospedados para repousar.
Tinham
partido no ano de 1255 mas o regresso só
aconteceu em 1269, uns quinze anos de
excelentes aventuras culturais de que
resultaram um carta para o Papa, de Cublai,
pedindo-lhe que enviasse à sua corte cem
possuidores de conhecimentos, um pedido que
não podia ser satisfeito pela cristandade.
De qualquer das formas, os venezianos
organizaram uma nova viagem, levando alguns
presentes e uma mensagem do Papa. Marco Polo
tinha 16 anos.
A viagem dura quatro
anos, integralmente por via terrestre,
tendo-se dirigido para a Arménia,
atravessando a actual Geórgia, seguindo
depois para sul, até ao golfo Pérsico, para
retomarem o percurso tradicional das
caravanas. Esta é a rota da seda, no
interior das montanhas da Ásia Central,
atravessa o Pamir até Kachgar, Yarkand e
Khotan, passando pelos desertos que rodeiam
o Lob Nor, até à cidade de Ganzou.
Durante um ano realizam trocas comerciais,
muito benéficas, só retomando a viagem, no
ano seguinte, quando Cublai Cão envia uma
escolta para guiar os viajantes até à sua
residência de Verão em Shangdu, a nordeste
de Pequim, chegando em 1275. Cublai quer
saber tudo sobre os costumes dos ocidentais
e a ciência, ouvindo atentamente tudo o que
lhe é relatado. Enquanto o pai e o tio de
Marco Polo fazem negócios, o jovem torna-se
o chefe de missões que o levam ao Tibete,
China do Sul e à Birmânia. Durante três ano
é adjunto de um governador de uma província
e torna-se uma peça fundamental para a vida
de Cublai.
O seu regresso está
associado a algumas hipóteses. Uma delas
será o natural envelhecimento de Cublai e a
sua próxima morte, o que seria penoso. Outra
terá ligação com as saudades que sentia da
sua terra natal. Em 1291 os três, Marco
Polo, o pai e o seu tio, acompanham uma
jovem princesa que se vai casar na Pérsia.
Parte, depois, até ao estreito de Malaca e
seguem as costas da Índia, desembarcando em
Ormuz. Disfarçados de mendigos, transportam
pedras preciosas, escondidas na cintura.
retomam o percurso por terra até à Arménia e
o resto do percurso é feito de barco,
chegando a Veneza em 1295.
Os relatos
feitos pela família foram encarados como uma
fantasia, O pouco conhecimento que se tinha
do oriente, fazia soltar risinhos e
gargalhadas como se fossem meras invenções.
Só quando exibiram as riquezas mencionadas,
as pessoas acreditaram no que era relatado.A
descrição feita é a de um estado que apenas
se desconfiava, o Estado dos Cãos, ou seja,
a China momgol no seu apogeu.
O Livro
das Maravilhas do Mundo é rico em lendas e
Marco Polo conta tudo se qualquer juízo
crítico, regiões onde as pedras preciosas se
colhem como frutos, mares onde mágicos
encantam os tubarões enquanto os pescadores
apanham pérolas de grossura inimaginável e
tantas outras riquezas que o lado ocidental
do mundo não conseguia supor sequer.
Poder-se-ia dizer que havia exagero nos
relatos. Contudo era verdade.
Os
domínios por onde estiveram eram reais. As
narrações permitiram desenhar as primeiras
cartas destas regiões mal conhecidas. Marco
Polo era um jovem muito cuidadoso e foi tão
detalhado nas suas descrições que serviram
de muita inspiração para outros
aventureiros. Um deles,ganhou grande relevo,
Cristovão Colombo, anos mais tarde, parte
por via marítima em busca destas terras tão
fabulosas e cheias de riquezas.
O
ocidente sempre teve necessidade do oriente,
das suas múltiplas riquezas. Terá sido este
o mote das viagens, para encetar contactos
comerciais entre as duas regiões: italianos,
em particular venezianos, vão buscar ao
Leste sedas, pedras preciosas e especiarias,
indispensáveis para a alimentação. Muitas
das vezes serviam para disfarçar o gosto das
carnes que se comiam já estragadas.
A
Rota da Seda, utilizada na Antiguidade,
torna-se mais segura, após uma interrupção a
partir do século VII, com o estabelecimento
de uma potência que domina a Ásia Central e
a China no século XIII, o Império Mongol.
Este tem o seu apogeu no reinado de Cublai
Cão, de 1260 a 1294, estabelecendo a sua
capital em Pequim.
O interesse pelo
desconhecido bem como o gosto pelas viagens
vem de longa data. Durante anos o motor
seria o comércio e a necessidade de
satisfazer o interesse económico de alguns.
Contudo as descobertas e o fascínio que as
mesmas despertavam em quem as fazia,
impeliam à sua continuidade. O facto de
serem bem recebidos e ouvidos, mostrava o
grau de desenvolvimento de povos de quem se
ouvia falar mas pouco se conhecia.
No
século XVII, o jesuíta António de Andrade
percorre a Ásia e penetra, duas vezes, em
Caxemira e no Tibete tentando a sua
evangelização. O seu livro, Novo
Descobrimento no Gram Cathayo ou Reino do
Tibete, surge em Lisboa em 1626, oito anos
antes da sua morte, em Goa.
No século
XIX, o padre Huc partiu como missionário
para a China, em 1839, tendo ficado cinco
anos na Mongólia e entra em Lhassa no ano de
1844, onde permanece durante dois anos. De
regresso a Paris, em 1850, publica Souvenirs
d´um voyage dan la tartarie, le Tibet et la
Chine.
No século XX, Alexandra
David-Neel, com vinte e cinco anos, viaja
através da Ásia Central e, disfarçada de
mendiga, um hábito muito útil, percorre o
Tibete que se encontrava fechado ao
ocidente. Morre em 1969 deixando muitas
obras consagradas às suas viagens e ao
budismo.
Apesar de estar tudo
devidamente relatado, a falta de vontade em
conhecer a verdade, o que realmente
aconteceu, continua a ser a matriz directora
de muitos. Marco Polo foi um visionário, um
homem que viveu antes do seu tempo, ou seja,
foi um incompreendido e pouco valorizado.
Felizmente que, séculos mais tarde, os seus
estudos tiveram proveito.
A ponte de Londres caiu
- Partilhar 28/09/2022
O dia 8 de Setembro de 2022 abana o mundo.
Isabel, Lilibet, a rainha com o mais longo
reinado de Inglaterra, largou o mundo dos
vivos para se posicionar num outro patamar,
bem mais confortável onde as perturbações
são nulas, chegou à eternidade.
Elisabeth Alexandra Mary, abriu os olhos no
dia 21 de Abril de 1926, uma bebé que
assegurava a descendência dos Duques de
Iorque. Uma vida simples que nada teria de
vulgar mas que acabou por ser abalroada
pelos acontecimentos mundiais. Tornou-se a
mulher mais mediática do século XX e XXI.
Uma aura que não se evapora.
Não
estando na linha de sucessão ao trono nos
lugares cimeiros, o seu futuro seria
afastado das luzes da ribalta. Contudo a sua
educação foi especial, em casa, com uma
selecção rigorosa de docentes. Causas
exógenas levam o seu pai ao trono e a sua
precoce morte, coloca-a nos domínios reais,
com apenas vinte e cinco anos.
Cerca
de vinte milhões de pessoas assistiram à sua
coroação, uma cerimónia comentada anos e
anos, por quem assistiu. O seu vestido tinha
bordado todos os símbolos que ela
representava e estimava. Philip, o seu
marido perde todo o protagonismo provando
que o amor que os unia era sincero e muito
sólido. Uma postura que chocou o protocolo,
casar por amor.
Quinze primeiros
ministros serviram durante os seus setenta
anos de reinado, sendo que uns foram mais
mediáticos que outros. Winston Churchill e
Margaret Thatcher terão sido os que maior
rasto deixaram por razões bem diferentes. A
todos recebeu com a mesma classe e educação.
Privou com sete papas, em épocas
diferentes e nunca perdeu o sentido de
estado, em que foi exímia e exemplar. Ela
era a que tinha nas mãos um rol de países e
nunca vergou. O mundo girava e Isabel
avançava segura na marcha. Enviou o seu
primeiro e-mail em 1976, provando que estava
com atenção para as novidades, as
tecnologias.
Era a única pessoa que
estava autorizada a conduzir sem a
respectiva carta de condução, o que fazia
quando conseguia escapar à fria rigidez do
protocolo do palácio.Talvez sentisse alguma
tristeza por ver a casa onde tinha nascido,
em Mayfair, transformada num restaurante. As
raízes nunca se esquecem.
Aos seis
anos já tinha casa própria, a Little
Cottage, um privilégio único. Nunca deixou
de ser adepta do Arsenal e, contrariamente
ao que se ventilava, Isabel admirava Diana,
por quem tinha um enorme respeito. O seu
estatuto não lhe permitia emoções vulgares.
Talvez os ingleses não a tivessem perdoado
por ser rainha e não mulher.
A coroa
real pesa cinco quilos, um peso nada fácil
de suportar, tal como o ano de 1992, o que
apelidou de Annus Horribilis. Além do
divórcio de três dos seus filhos, Ana, André
e Carlos, um incêndio devasta o palácio de
Windsor e, como se não bastasse todas estas
terríveis ocorrências, uma grave crise
económica assola o seu reino tomando a
corajosa decisão de pagar impostos, de que
toda a família estava isenta.
Por ser
monarca foi presenteada com animais
exóticos, um elefante, uma onça, tartarugas
gigantes e ainda preguiças, que se encontram
no jardim zoológico de Londres para que
possam ser apreciados por todos. Os cavalos
eram um dos seus escapes e montava com
desenvoltura e elegância, gosto passado aos
seus descendentes.
Durante a guerra,
serviu como motorista e mecânica, o que
levou ao título carinhoso de Princesa
Mecânica de Automóveis. Sem medo, conduzia o
que fosse preciso para levar a sua missão
até ao final. Bombas podiam cair mas a
determinação de uma mulher não vacila
perante a necessidade de salvar vidas e de
servir o seu país.
Confessou que se
apaixonou por Philip com uns tenros treze
anos, amor que levou até à sua partida
física, com mais de oitenta anos e setenta e
três de casamento. Um homem que não pôde dar
o seu nome aos filhos e que ficou sempre na
sombra. Isabel honrou-o com uma enorme
dignidade na sua partida. A imagem que nos
chegou foi de uma viúva desolada com a
solidão.
Foi mãe de quatro filhos,
avó de oito netos e bisavó de doze crianças.
Números interessantes. Uma descendência mais
do que assegurada e abençoada com os genes
de uma mulher de grande garra e fibra, um
ser de cariz único. Alguém que não nasceu
para ser rainha mas que o foi de forma
exemplar. Soube ter a lucidez para
distinguir todas situações mas era afeiçoada
a um certo tipo de sapatos que usou durante
cinquenta anos.
A sua grande paixão
eram os cães, sobretudo os corgi, uma raça
curiosa. Tudo começou com Susan, a sua
adorada cadela, oferecida aos dezoito anos e
que a acompanhou na lua de mel. Todos os
seus cães, que gozam de mordomias, são
descendentes de Susan mas a linha terminou
agora pois os últimos cães, por padecerem de
tumores, foram esterilizados
impossibilitando a reprodução. Os mais
recentes patudos foram uma oferta do seu
filho Andrew.
Senhora de uma postura
irrepreensível, sabia estar em todas as
situações. A mala, imagem de marca, nunca a
abandonava assim como a cor, que tanto
gostava. A sua última fotografia mostra a
fragilidade de uma idosa mas com um extremo
sentido do dever. Com um kilt, por estar na
Escócia, acompanhado de um sorriso, de
bâton, um bom parceiro, era a imagem
perfeita da execução da sua função.
Trabalhou até ao fim. Começa agora a Missão
Unicórnio, por ter falecido na Escócia.
Portugal e Inglaterra têm laços muito
fortes. O Tratado de Windsor, assinado a 9
de Maio de 1386, estabelece uma ligação
política, comercial e pessoal, que perdura
até aos nossos dias. É a aliança mais antiga
do mundo. Uma das cláusulas menciona
bacalhau e tecidos para serem trocados por
vinho, cortiça, sal e azeite. O casamento de
D. João I com Filipa de Lencastre, em 1387,
no Porto, selou esse acordo.
Isabel
foi uma verdadeira estadista. O dever estava
em primeiro lugar e reinou, com pulso firme
e cabeça erguida, cinquenta e três países
que sempre lhe mostraram respeito e enorme
sentido de honra. Os ingleses estão órfãos.
E agora? Quem vai calçar os sapatos da
rainha? O mundo nunca mais será o mesmo.
Isabel foi A Rainha.
O mito nasce
agora. Isabel, Elizabeth, Lilibet, seja qual
for o nome atribuído, reinou durante setenta
anos. Governar tem outro teor e ainda há
quem se confunda com os termos e posições.
Foi uma mulher de garra forte. Quebrou
muitas convenções e alguns protocolos. Nunca
deixou de ser mulher e por o ser,
valorizou-as a todas, estando ciente de que
existiam barreiras e limitações absurdas. As
que a serviam eram remuneradas de forma
generosa sendo que algumas se tornaram mais
parceiras de negócios do que meras
funcionárias.
O seu chá era especial,
Earl Grey, começando assim o dia. Por ser
rainha não tinha gostos extravagantes nem
caprichosos. O bolo de bolacha,com cobertura
de chocolate era o seu preferido, uma
maneira de saborear o que a vida tem de
simples. Gostava de torradas com "marmelade"
e ovos mexidos mas estes teriam de ser de
casca castanha por serem mais saborosos. Os
seus gostos eram frugais, pois cresceu
durante os austeros dias da II Guerra
Mundial. Não dispensava os morangos de
Balmoral nem os pêssegos de Windsor. Para
finalizar o dia havia a sua taça de
champanhe.
Gostava de conduzir, o que
fazia amiúde para aflição dos guardas e
afins e era senhora de um refinado sentido
de humor. Multiplicam-se os ditos sobre a
sua postura irrepreensível perante
ignorantes e incultos. Sempre cheia de
classe, nunca perdia a compostura nem a
educação. Só mesmo americanos para não
reconhecerem a Rainha de Inglaterra quando
estão na sua presença e pedem para que a
monarca faça uma fotografia a outros.
Oh dear, dito pela voz de sua majestade,
com doçura e ironia, nunca deixará de ser um
som inolvidável e perfeito. Como será a
Inglaterra sem Isabel, a mulher que esteve
no comando durante os últimos setenta anos?
A rainha morreu. Viva a rainha!
O
correcto seria afirmar: Viva o rei, mas
Charles, o herdeiro do trono, terá uma árdua
tarefa pela frente. Pouco amado e cheio de
desaires na sua vida pessoal, apesar de
tantos anos de preparação, pode parecer, aos
olhos dos seus muitos súbditos, não estar à
altura de tão digno cargo. Que o tempo
mostre de que fibra é feito.
Guilherme, o conquistador
- Partilhar 28/08/2022
Em 1066, o exército de Guilherme, duque da
Normandia, um bastardo cheio de raiva,
lança-se na sua última invasão em
Inglaterra. A guerra não é entre os dois
povos, os Normandos contra os Anglo Saxões,
já que a situação é mais poderosa pois o que
está em causa é o trono. O dito da altura
refere que opõe três vikings, mais
concretamente o partido normando de
Guilherme, o partido anglo-dinamarquês de
Haroldo e ainda os noruegueses que foram
atraídos pelo irmão de Haroldo, Tostig,
aliado de Guilherme umas vezes e agindo por
conta própria nas outras.
A região
designada por Normandia, terra dos homens do
norte, surgiu em 911, através do tratado
entre o rei da Frância Ocidental, Carlos
III, o Simples e Rollon, o chefe viking. Os
termos acordados explicam que é atribuído
domínio aos vikings mediante o compromisso
de não voltarem a fazer raides contra o
território de Carlos. Para selar o acordo, a
filha de Carlos é dada em casamento a Rollon
que acaba por se converter ao cristianismo,
O principado, que passa a ducado, vai sendo
acrescentado com os seus legatários, duques
Guilherme Espada Longa e Ricardo que afirmam
o seu poder sem dar qualquer satisfação ao
soberano. O herdeiro, Guilherme, o Bastardo,
ultrapassa esses limites e entra num outro
patamar de ascensão da linhagem,
tornando-se, mais tarde, senhor da
Inglaterra.
Nascido por volta de
1027, Guilherme é filho natural do duque
Roberto, o Diabo. De figura um pouco
caricata, gordo, calvo e dotado de uma força
extraordinária, dominava com alguma clareza,
há 31 anos, a Normandia mesmo que usasse o
braço de ferro quando necessário. É neste
contexto que parte para a conquista de
Inglaterra. Dotado de uma limpa diplomacia,
mantém boas relações com o rei de Frância e
com o Papa, vendo nele um excelente aliado.
É um estandarte enviado pelo papa que
Guilherme fará flutuar em Hastings.
A
decisão de intervir é tomada em virtude da
crise da sucessão em Inglaterra. Conquistada
no século V por germânicos, anglos e saxões
e, mais tarde, cristianizada, entre os
séculos VI e VIII, a ilha permanece, no
século IX, um território retalhado e muito
cobiçado. O rei da Dinamarca, Canuto,o
Grande, dominou-o entre 1017 e 1035 mas a
independência é retomada em 1045 para
Eduardo, o Confessor, um anglo-saxão. A sua
morte, sem filho varão, dá início à guerra
com dois candidatos, Haroldo, o seu cunhado,
do partido saxão e Guilherme, duque da
Normandia e primo do falecido.
O
duque afirma os seus pergaminhos
hereditários, sendo ele descendente de
Ricardo e que o soberano o terá designado
como sucessor, em 1051, tendo, em 1064,
Haroldo reconhecido esta decisão. É este
dito, ou tese, que servirá de mote para
apresentar a invasão como um acto de defesa
dos seus direitos legítimos. Certamente que
os nobres se encontravam em desacordo mas a
luta era promissória e as armas estavam em
riste para o que pudesse vir a favor dos que
se consideravam em direito pleno.
A
operação é uma das grandes empresas de
pirataria normanda. A amplitude e a
logística foram excepcionais para a época.
Guerreiros bretões, franceses, do Mans, do
sul da Itália, envolvem-se na luta
reforçando o grupo. Esta parceria não era
desinteressada pois visava algum lucro e o
estabelecimento nesse tão desejado
território. Assim, reúnem-se cerca de 7000
homens, sendo uns 2000 cavaleiros, mas ainda
faltam os barcos para os transportar, o que
não foi complicado ao ducado pois fortuna
não lhe faltava.
A frota é reunida no
estuário do Drives mas a falta de vento não
os impele até à ilha de Wight onde estava
previsto o desembarque. Dirigem-se para o
estuário do Soma. Na noite de 28 de Setembro
de 1066, pôde ser aparelhada e, no dia
seguinte, o desembarque é feito em Pevensey,
ficando nas proximidades de Hastings. A
floresta serve de camuflagem e dá segurança.
Entre ditos e outras desavenças, a 25, após
uma marcha forçada, esmaga os invasores,
perto de York.
A 14 de Outubro,
Haroldo escolhe o terreno e coloca a sua
infantaria, armada com machados, na
colina.Os archeiros têm dificuldade em
atravessar esta dura muralha humana mas,
depois de simularem uma fuga, que acaba por
gerar o pânico, a contenda acende-se. No
meio da refrega e da confusão, a flecha de
um archeiro de Guilherme atinge o olho de
Haroldo que sucumbe, ferido de morte. Sem o
chefe e qualquer orientação, os saxões
abandonam o campo de batalha sem conseguirem
evitar um banho de sangue.
Guilherme
perdeu o seu rival e submete Dover e
Cantuária, ladeando Londres. No dia 25 de
Dezembro de 1066, em Westminster, faz-se
sagrar rei. O que se seguiu não foi fácil e
controlar dois estados, à falta de um
vice-rei, será um enorme desafio que leva a
revoltas e reviravoltas para conquistar o
norte, até à Escócia, em 1074. Os normandos
ocupam todos os cargos relegando os saxões
para planos inferiores. Passa a usar-se o
latim na administração e o francês na corte.
O regime senhorial foi poderoso e opressivo,
um feudalismo que deixou marcas profundas e
pouco simpáticas.
A história inglesa
começa no século V com a instalação, na
Bretanha insular, de um povo germânico, os
Anglo-Saxões. Assimilam os antigos
ocupantes, colonizam o país e mudam-lhe o
nome, England, terra dos Anglos.
Organizam-se em sete reinos rivais que se
foram cristianizando. Cerca de 795 começam
as primeiras intrusões escandinavas, que se
transformam, nos séculos IX e XI, em vagas
de conquista, que alteram todo o conteúdo e
equilíbrio demográfico, cultural e político.
Canuto, o Grande, consegue a unificação que
se vai fundir numa única dinastia
dinamarquesa. Esta terá um fim caótico, o
que permitiu a Guilherme tomar as rédeas da
luta.
Com um passado tão turbulento e
cheio de imprevistos e contendas entre as
famílias, não é de admirar que a questão
mais recente, o Brexit, tenha sido um
arremeçar de pedras para atingir alvos que
nem se sabe quais são. Gente que mostrou
dureza e luta mas, em simultâneo, muita
indecisão. O falado espírito britânico mais
moderno, fleumático, pode ser o resultado de
tantas bulhas e contendas e que, no final,
ficou tudo na mesma.
A preto e branco
- Partilhar 28/07/2022
Houve um tempo em que ainda se atiravam
ameixas e que podiam deixar nódoas sem que
as vozes dos que nada têm a dizer se
alterassem. Vamos envelhecendo e pouco
amadurecendo, ficamos mais desatentos e
cometemos mais erros. Pensar continua a ser
uma actividade subversiva e reservada apenas
a alguns. Os que muito apregoam, com tons
elevados e revoltados, são os primeiros que
apontam o dedo sem apresentar qualquer tipo
de solução.
Todos são amigos dos
desfavorecidos desde que eles não fiquem à
sua porta nem lhes tapem as vistas. Tudo bem
longe que, quem está em frente a um
computador, é um grande herói. Misturas só
para os gelados ou para o gin, que é coisa
de gente refinada e com educação e estatuto
social.
Portugal é um país racista ou
os portugueses são racistas?
Existe
uma cultura de base dum país e, quer
queiramos ou não, somos influenciados por
ela. É como a nossa família. Os hábitos
adquirem-se e são difíceis de perder.
Entendo que não se queira ser parecido com o
tio Manuel porque é gago e bisbilhoteiro mas
isso corrige-se. Agora ter herdado a
genética e os péssimos genes que nos fazem
parecer a tia Leonilde, com um bigode ainda
mais farto do que o do avô, é péssimo.
Assim funciona um país. Somos católicos.
Dizem. Quem vai à igreja? Quem conhece a
doutrina? Há uma enorme diferença. Amar o
próximo pode ser encarado de dois modos
diferentes: só se deve amar a quem partilha
a mesma ideologia ou a qualquer um? Começa
logo aqui a discriminação. Parece que se
trata de clubes onde a regra "menina não
entra" continua a vigorar.
Uma mulher
se tiver um determinado comportamento, que
não seja recatada, é vista como uma
perversa, uma doida e uma oferecida. Não
pode ser dona do seu destino nem do seu
corpo sem que venham as vozes danadas dar
opinião. Um homem é muito macho se tiver
muitas mulheres, muitos casos e enganar a
legítima com regularidade. Ainda há quem
pense assim.
Em tempos idos, as
mulheres podiam ser julgadas por ter
praticado um aborto. Um homem nunca. Dava
ideia que, em Portugal, as mulheres
engravidavam sozinhas. Mas quem é o Estado
para dar ordens sobre o corpo de uma pessoa?
Levantavam-se os velhos do Restelo e batiam
nelas. Mas as suas mulheres, as de lei,
praticavam abortos em clínicas e ninguém
sabia. As mulheres pobres ainda são mais
discriminadas do que as ricas.
A
eterna dicotomia branco-preto nunca se vai
esbater. Por muitos avanços que existam, por
muitas conquistas que se façam, a palavra
preto continuará a servir para insultar as
pessoas e a palavra branco torna-se neutra.
Criou-se o mito de que os homens pretos eram
máquinas sexuais e que as mulheres pretas
eram muito atraentes. Não se conseguem
entender os critérios de avaliação.
Os ciganos serão sempre olhados de lado. Mas
os ciganos são uma imensidão de pessoas
diferentes, de origens díspares e de raízes
culturais diversas. Emir Kusturica
mostra-nos vários modos de olhar para eles,
sobretudo na sua miséria física e na
psicológica. Na verdade ninguém gosta de
ciganos. Criaram-se ditados que deixam
marcas indeléveis sobre eles.
Ir às
compras onde os ciganos vendem tem o seu
charme. A feira de Carcavelos tornou-se um
must, um certo luxo que servia para mostrar
que quem lhes comprava as pechinchas, era
muito democrático e estava a prestar-lhes
uma grande ajuda. Mais falsidade. No fundo
estavam todos a enganar-se.
Podem-se
escrever tantas e tantas coisas sobre os
ciganos como se podem escrever sobre os que
não o são. Os ciganos são os malandros, que
só querem receber e não pagam. Quem são os
que devem à segurança social e ao estado?
Quem são os que não pagam os condomínios e
os colégios dos filhos? Quem são os que são
capazes de qualquer coisa para chegar ao
topo da empresa, mesmo atropelando todos os
outros? Estou a dar um pequeno exemplo.
Afinal quem é o cigano?
A verdade é
que não há quem queira ter ciganos e pretos
como vizinhos. Defendem-se dizendo que não
têm nada contra eles mas a sua presença, em
bairros sociais ou não, acaba por
desvalorizar as suas propriedades que foram
compradas e não emprestadas pelo Estado. Do
outro lado estão os outros, aqueles que
defendem que todos devem ser integrados e
não podem ser discriminados.
Mas
algum destes senhores ou senhoras já desceu
à Terra? Sabem do que estão a falar? Como
vivem nas suas torres de marfim, protegidos
e bem tratados, não sabem o que é a
realidade social a não ser num qualquer
manual ou num estudo. E se nos seus
condomínios vivem pretos serão todos com
estudos superiores e a ocupar cargos de
topo. Mas a sociedade não sobrevive com
esses, mas sim com todos, sobretudo os que
estão na sua base.
Portugal é um país
racista?
Pretos e brancos - check.
Mulheres e homens - check.
Ciganos -
check.
Conhecer a Arte
- Partilhar 29/06/2022
O tema da Arte ainda suscita muitas reacções
diferentes. É bom. É isso que se pretende. É
salutar. Uns gostam e outros não. É
inevitável. Agradar a Gregos e a Troianos é,
de todo, impossível. Mas o que podemos
considerar como arte? O belo, o agradável, o
atractivo, o que apela à emoção, ao
sentimento, o que nos consegue tocar e
despertar algo interior, será isto? É a
transmutação da realidade, o modo como o
artista sente, como pretende imortalizar um
momento ou um acontecimento, a forma pessoal
de sentir. É inato ao homem. Na sua longa
caminhada, desde o aparecimento neste
planeta, o terceiro a contar do Sol, aqui
mesmo, onde estamos, o ser que habita este
local, desde o fim da última glaciação, a de
Wurm, tem mostrado os seus dotes, evoluído e
entrado em mundos paralelos que deliciam
milhões e suscitam pólos opostos de
opiniões.
A descoberta de um osso
gravado, em 1834, na gruta de Chaffaud, vai
dar início a uma nova forma de analisar, não
só a História, como também a arte. O homem
pré-histórico tinha gosto pela arte, nutria
já um conceito de beleza ou simplesmente
obedecia a rituais religiosos e assistia a
cerimónias mágicas? Começam as teorias. Em
Lascaux, o "Caçador Ferido" dá o mote para
um debate que se mantém até aos dias de
hoje. O Paleolítico Superior é o maior
período da história da humanidade que durou
entre 8000 a 400000 anos. É de pensar que se
deram muitas ocorrências. Os registos estão
nas rochas, nas grutas, em locais
escondidos. Eram diários de luta, de fé, de
necessidades. É curioso que o apuro permite
verificar várias raças diferentes de
cavalos, tal é a perfeição. As cores são
fornecidas pela natureza, os ocres roxos e
amarelos, que são pintados com os dedos ou
com pincéis rudimentares, de pêlos de
animais e misturados com sangue e água.
A religião sempre ocupou um lugar de
destaque na vida do Homem. Na época cristã,
no início deste nova e revolucionária
religião, as catacumbas eram locais de
culto, de refúgio e, também, de manifestação
da arte. As paredes são cobertas de frescos
recriando as mensagens bíblicas de Noé, a
arca, Daniel e os leões, bem como Lázaro
saindo vivo do seu sepulcro. As referências
à cruz, símbolo novo, são dissimuladas e
subtis. O ícone maior será a Virgem, mãe de
Jesus Cristo, que representa a pureza, a
perfeição, a ausência de mácula e de pecado.
A alma é feminina sendo uma mulher de braços
entendidos, quando terrena e uma ave, quando
se trata do céu, local de recompensa para
quem pratica boas acções e cumpre os
preceitos estabelecidos.
A Arte
Gótica, que eclode na Idade Média, vai
renovar a visão recolhida e clandestina da
fé. As igrejas Românicas eram pequenas,
grossas, pouco elegantes, escuras e frias.
As góticas enaltecem o amor ao Criador,
tentam tocar o céu, chamar-lhe a atenção.
São dotadas de verticalidade, plenas de luz,
usando novas técnicas, como o arco quebrado,
a abóbada de cruzamento de ogivas, que
suporta um peso muito maior mas mantendo a
leveza da linhas, os arcobotantes,
auxiliares preciosos e as gárgulas, o
aspecto caricato e brincalhão. São pequenos
diabinhos provocadores, que olham os crentes
e os alertam para os perigos. Na verdade
incitam mais do que penalizam, mas este não
era o modo como se pensava na altura. Tinham
um enorme valor documental e pedagógico,
pois era a leitura dos analfabetos, que se
encolhiam com receio dos castigos futuros,
como o inferno.
O Barroco é uma arte
plenamente teatral, que busca o infinito e o
fantástico, cheio de pompa e esplendor. É de
uma ostentação tal que aquilo que não
aparece coberto, o despojado, pode parecer
pecado. O contraste de luz e sombra é
desenvolvido através da emoção, da
afectividade e do misticismo. É a arte dos
sentidos, visual, auditivo e olfactivo. O
efeito da talha dourada, a exuberância, é de
tal forma faustoso, que leva a crer que a
religiosidade e a vida mundana estão no
mesmo patamar, próximas uma da outra e não
num cenário fictício da realidade,
completamente teatral.
O Romantismo
vai mudar tudo. Cria uma ligação entre a
arte, a história e a literatura. Tem o
condão de ser uma corrente muito culta, bem
elaborada, que desenvolve temas como as
questões históricas e literárias, a
mitologia, o retrato, o sonho, as tradições
populares, a vida rural e a paisagem. Dá-se
a exaltação do rural, onde são encontradas
as raízes de um povo, na Idade Média, na
valorização do passado. A arte é inspiração
e criação, interioridade, isolamento da
alma. A luz produz efeitos que permitem a
sugestão, o deambular por aquilo que não é
mostrado mas que, quem vê, percepciona no
seu íntimo.
No início do século XX
surgem as vanguardas. Todas inovadoras,
cheias de energia, revolucionárias, com o
intuito de agitar mentes e uma sociedade que
dormia tranquila e sossegadamente. O
Fauvismo, agressividade e exaltação de cor,
o cubismo, escandalizando tudo e todos,
desmaterializando o clássico e dando uma
visão geometrizante, o abstraccionismo, que
rejeita a realidade concreta, o
expressionismo, pura emoção e subjectivismo,
o futurismo, combatendo a estética do
passado e dando primazia às tecnologias, à
máquina e o surrealismo, a projecção do
inconsciente que se liberta, após a
descoberta da psicanálise, por Freud.
Mas afinal o que é a Arte? A imitação do
real? A expressão do sentimento e de
emoções? A transfiguração da realidade? O
símbolo de algo ou a Arte é uma forma pura?
Durante muito tempo considerou-se que a Arte
consistia na habilidade e perícia na
produção de um determinado objecto. Mais
tarde, distingue-se entre artes liberais e
artes mecânicas. O Renascimento altera
mentalidades e enaltece o papel puro do
artista enquanto produtor de beleza e de bem
estar.
O artista é o génio, o que
está acima de todos. Para Kant existe uma
distinção entre "artes agradáveis" e
"belas-artes". As primeiras têm como
finalidade o gozo e as segundas são mais que
um prazer sensorial porque são um modo de
conhecimento. Posteriormente, as belas-artes
foram catalogadas em pintura, escultura,
música, literatura, dança, arquitectura e
eloquência que acabou por ser destituída
pela arte cinematográfica, a chamada sétima
arte.
A experiência estética só é
possível se houver uma relação
desinteressada pois não é uma atitude nem
prática e muito menos utilitária. O que se
retira do que se vê, é pessoal e não pode
implicar princípios morais nem políticos. Há
que haver um distanciamento psíquico pois o
sentir prazer, ou a sua ausência, pertence a
um outro campo. A arte como imitação do real
é limitante e cinge-se a uma mera cópia. O
artista não representa as coisas que vê, mas
o modo como as vê e imagina.
Cada
obra de arte leva a mundos imaginários ou
fictícios. Esta será uma modalidade
específica de vivência do mundo e da
organização humana. O que o artista cria é
uma transfiguração do real, uma recriação
podendo até parecer que seja impossível. As
portas da imaginação são vastas e largas,
podendo reflectir experiência pessoais, com
interpretações sensíveis e peculiares. Há
todo um enriquecimento que valoriza o que
quer libertar e partilhar. Na verdade é um
símbolo de sentimentos que tendem a elevar o
espírito humano.
Será que todos
entendemos a arte com a mesma sensibilidade
e o mesmo toque? Para uns será suave e doce
mas para outros ainda será rude e dolorosa.
Algumas obras são marcas de tempo, de
acontecimentos que não podem ser apagados e
registam comportamentos e modos de ser que
são antecessores dos actuais. É uma
existência humana crítica que dá a mão a
quem a segue. O escape à rotina pode ser
pacificador.
A experiência estética
exige uma atitude de distanciamento
psíquico. É um exercício bem simples: o
sujeito coloca-se perante o objecto que o
fascina, a sua contemplação como se a sua
personalidade tivesse sido filtrada e ficado
isenta de qualquer preocupação prática. Ser
belo ou feio prende-se com o prazer que se
sente na observação e sentir é o mais
subjetivo que pode existir.
Esfregar
manteiga numa lixa poderá ser uma tarefa
árdua mas escorregar numa casca de banana
continua a ser usual. A forma como cada um
percepciona o que ouve ou vê, é pessoal e
intransmissível, tal com a interpretação do
que lhe é dado ler. Sentir? Sinta quem
quiser.
Santos Populares
- Partilhar 27/05/2022
Junho tem um sabor especial pois é o mês dos
Santos Populares com festas e arraiais por
todo o país nas noites de Santo António, de
São João e de São Pedro, o que significa
libertação de rotinas e vida ao ar livre com
convívio até às tantas. Não que os santos
façam parte dos comes e bebes, mas por serem
o mote de tempo mais quente e alegria.
Em Lisboa, de 12 para 13 de Junho, dia
de Santo António é a noite mais forte, onde
tudo pode acontecer e as disputas entre os
bairros, os ditos populares, são feitas
através de um desfile na Avenida da
Liberdade que toma o nome de Marchas
Populares. Cada bairro faz o seu trabalho e
os preparativos são levados ao pormenor. Não
é à toa que se caçam padrinhos e madrinhas,
as ditas figuras públicas, para os
representar.
Esta artéria fica cheia
de gentes que querem apoiar os seus amigos e
vizinhos e, como tal, defendem as suas cores
e bairros. A cor é dominante e a música faz
parte do espectáculo que se quer
inesquecível. No final há a marcha que é
escolhida como a mais representativa e vai
dar glória ao bairro que a ganhou. Alfama,
Graça, Bica, Mouraria, Madragoa e tantos
outros, são nomes que vão ficando escritos
com o suor dos seus moradores.
A vida
mora nos bairros, com as conversas de janela
e de portas. Nos largos e vielas medievais,
come-se caldo verde e sardinha assada,
canta-se e dança-se pela noite dentro.
Qualquer tema serve para repartir e
festejar. A genética está impressa nestes
locais. A fé chega com a procissão de Santo
António que sai da sua igreja, no local onde
o santo nasceu, em 1193.
Santo
António tinha fama de casamenteiro e, neste
contexto, os Casamentos de Santo António,
uma forma simpática de haver uma festa para
os casais menos bafejados pelo dinheiro e
patrocinados pela Câmara Municipal, são
outro acontecimento alto desta data. O
desfile dos carros e o copo de água tem
transmissão pela televisão e a festa é para
ser levada muito a sério.
O Porto não
lhe fica atrás e, na noite de 23 para 24 de
Junho, quando se celebra o S. João, a festa
é inesquecível. São festas muito animadas,
em que a população vem para a rua comer,
beber e divertir-se pelas ruas dos bairros
populares, decoradas com arcos, balões
coloridos e manjericos. Como só acontece uma
vez por ano, anseia-se com ardor e paixão
sendo que a energia libertada é potente. É a
noite maior do Porto.
Não lhe falta
cor nem alegria nos bairros mais
tradicionais, como Miragaia, Fontainhas,
Ribeira, Massarelos e outros. Aqui, zona
mais a norte do país, os festejos assumem
outra dimensão e as tradições são outras.
Certos usos e costumes sofrem modernizações
e se, antigamente os foliões batiam com o
alho-porro na cabeça dos companheiros, hoje
usam martelinhos de plástico que, depois de
batidos nas cabeças, ninguém se zanga nem
leva a mal.
Alho porro que
simbolizava o membro masculino, o fálico,
exibido sem qualquer tipo de pudor. Também
havia os ramos de cidreira que as raparigas
passavam na cara dos moços casadoiros ou nem
por isso. Estes seriam símbolos dos pêlos
púbicos femininos e era uma oferta
irrecusável. Fernão Lopes refere-se a esta
festa com alegria. Uma colheita das boas.
Para culminar a festa há um exuberante
fogo-de-artifício, que é lançado à
meia-noite em pleno rio Douro. Os tempos
trazem novidades e também se lançam balões
de ar quente multicores, numa das mais
bonitas celebrações destes festejos
populares. A noite acaba para muitos junto à
praia, para ver nascer o sol ou para um
banho matinal, como manda a tradição.
Esta data é esperada com grande
expectativa não só pelos comerciantes como
também pelos muitos populares que se
orgulham dos seus bairros e fazem questão de
mostrar como cuidam deles com zelo e
carinho. É uma grande noite, de libertação e
o S. João, que é do povo que tanto o
apaparica e cuida, dá sempre o ar da sua
graça. Tristezas não pagam dívidas.
A
29 de Junho é a vez do
São Pedro, outro
santo popular que é celebrado em várias
localidades do país, como Sintra ou
Évora,
cidades Património Mundial. Évora, aliás,
tem a particularidade de celebrar dois
santos populares, pois realiza desde o séc.
XVI a feira de S. João, uma das maiores da
região sul de Portugal, comemorando também o
dia de S. Pedro como feriado municipal.
As zonas ribeirinhas nutrem pelo S.
Pedro um amor tão forte que se perde na
imensidão dos tempos. Os barcos seguem em
procissão e pede-se ao santo que a vida lhes
seja facilitada ou agradece-se todas as
benesses recebidas.O interessante é que a
procissão, no rio, é nocturna e não faltam
fiéis para nela participarem. O religioso e
o profano sempre de mãos dadas e em perfeito
entendimento.
S. Pedro era pescador e
foi o primeiro papa. Foi crucificado em
Roma, de cabeça para baixo, em 64. Negou
conhecer Jesus Cristo, três vezes, como ele
havia afirmado, mas deixou um legado que
ainda hoje é venerado. Não que seja
importante o papado mas por ter sido um
homem do povo, de trabalho e labuta.
Nestas festas resistem, com garra, algumas
práticas ancestrais como saltar a fogueira,
prova dos destemidos e oferecer à namorada
ou namorado, pequenos vasos com manjericos,
acompanhados de quadras escritas, que muitas
vezes falam de amor. Todas estas
festividades têm a sua origem no solstício
de Verão e ainda em antigos rituais de
fertilidade.
Depois de dois anos de
restrições, onde as ditas foram suspensas,
este ano será rijo em todos os sentidos. O
povo precisa de escape para o dia a dia, de
libertar as energias que foram sendo
recalcadas e enxovalhadas, Beber uns copos
de vinho ou de cerveja, com os amigos, é
sinal de alegria e comer umas sandes de
couratos e torresmos ainda dá mais pica para
continuar.
Quanto à sardinha, o peixe
que era rejeitado e apenas comido pelos
pobres, aburguesou-se e ficou tão fino que
nem todos lhe podem chegar. A sardinha
passou a senhora dona e o pilim para a pagar
ficou tão elevado que parece que se trata de
gente fina que gosta de ir ver os
pobrezinhos a brincar.
Maio
- Partilhar 27/04/2022
As festividades de Maio ainda não se
perderam no mundo rural. São elas que
continuam a regular os ciclos de vida e que
mostram o retorno à luz, ao ciclo das chuvas
e do vento que espalha as sementes pela
terra e que ensina aos homens o que são as
boas colheitas. Tudo voltará a germinar e
brotar em flor. A espera permite as festas e
a antecipação do futuro, a esperança que
teima em não esmorecer. Os dias quentes são
agora chegados e o cheiro doce que paira no
ar, empresta alegria para todos os que se
vestem de vida.
O pólen vaga pelas
ruas, em procissão solitária e beija os
receptáculos que se oferecem por prazer. A
vida continua o seu ritmo natural, como se
nada mais tivesse valor. É a dança da
juventude que se repete e entoa.Os arranjos
de flores são a mostra das artes populares e
as giestas são símbolos do que se deseja.
Tudo renasce como se fosse a primeira vez. A
natureza transforma-se e a religião
acompanha-a com modos peculiares e seculares
de devoção.
Os rituais e cultos
agrários, celebrados pelos antepassados para
festejar o fim do Inverno, são o despertar
vegetal que há muito se pretende. A volta
que tudo leva, ensina que nada se perde e
que tudo se muda, tal como o poeta escrevia
com sabedoria. Mudam-se os tempos e mudam-se
as vontades mas o que importa, as qualidades
são o motor de continuidade. As Maias, nome
atribuído às giestas, colocam-se nas
janelas, portas, postigos, fechaduras e
ainda nos outros locais bem visíveis da
casa, de modo a perpetuar a fertilidade.
Também podem ser vistas nos estábulos,
cancelas, carros da lavoura e até mesmo nos
animais. Uma superstição que não se perde e
que justifica o dito: se não fossem postos
ramos de giestas juntos dos pintos, anhos e
bacorinhos, o Maio prejudicá-los-ia. Uma
luta pela sobrevivência, um trabalho que
nunca pára e vidas que ainda seguem
calendários que nunca mudam.
Com o
passar do tempo, as tradições tendem a
modernizar-se e são agora os automóveis que
levam a decoração. Outros locais acrescentam
algumas flores, como jarros e malmequeres ou
ainda rosas silvestres, ao ramalhete. Estas
coroas enfeitam portais e janelas e a ideia
é não deixar entrar o diabo em casa. Ainda
se acrescenta o afastar o mau olhado e a
fome. Há de tudo, que as gentes do campo são
da luta e sabem como dar valor às
necessidades.
A origem deste culto
perde-se no tempo mas pensa-se que terá tido
origem numa lenda. O nosso país, tão fértil
nestas histórias contadas de geração em
geração, busca sempre sentido para tudo.
Dizia a mesma que os judeus assinalaram a
casa onde Jesus pernoitava, servindo-se de
um ramo de giestas. Quando voltaram no dia
seguinte, para o prender, todas as portas
estavam iguais, com ramos de giestas, o que
não permitiu que fosse identificada aquela
onde Cristo se escondera. Na verdade
tornou-se tão bucólico que as pessoas
repetem o gesto mesmo que desconheçam a sua
origem.
Quanto colocadas, em
raminhos, nas pessoas, as giestas tinham uma
função muito específica, que era irradicar o
carrapato, ou seja, a doença. O diabo teria
dificuldade de penetrar na alma de cada um e
assim estava a salvo. Há locais onde se usa
o termo burro, que está ligado ao tempo da
guerra pois nem todos tinham a possibilidade
de ter um cavalo. Em Trás-os Montes, burro é
o nome por que é conhecida uma aranha, um
bicho que ataca os palheiros e os dizima.
Outras localidades chegam a fazer
encenações tão rigorosas que colocam, nas
entradas das casas ou em locais públicos, os
maios, os bonecos vestidos com cores
garridas, segurando numa das mãos um pau e
na outra uma garrafa e um copo com vinho.
Podem existir algumas variantes mas a ideia
mantém-se, o afastar dos maus espíritos que
podem resultar em tragédias para muitos se
as colheitas não forem boas.
Maio
continua a ser a esperança de bem viver, o
querer continuar a jornada e a esperar que o
sol doure todas as searas. As colheitas são
o futuro mas esse constrói-se todos os dias.
As sementes são lançadas à terra com ardor
para que o seu crescimento se faça com
valor. Cada terra pode ter o seu uso mas
todas entendem que devem germinar.
Maio está mesmo a bater à porta e é para ser
vivido em pleno, sem máscaras que tapam os
sorrisos e as feições, sem restrições de
abraços nem quaisquer demonstrações de
afectos. Ser genuíno ainda é complexo e
duro. Tanta é a hipocrisia que circula que,
quem se mostra como é, facilmente será alvo
de quezílias e de apedrejamento.
As
tradições são gestos de cultura popular que
se eterniza. Os mais velhos são os guardiões
dos templos e cabe a eles serem os
divulgadores de tantos e tão proveitosos
saberes. Claro que os mais novos têm uma
palavra a dizer e esses, o sangue que vai
pulsar com mais intensidade, são a chama que
vai mais alto brilhar.
Maio também
nos remete para os casamentos e as noivas,
para o iniciar de uma nova caminhada, uma
casa que se vai fazendo, com dores e
carinhos, um ninho que tem sempre frutos
saborosos e apetecíveis. Para se dançar é
preciso um par e os noivos, são parte
integrante do baile que está prestes a
começar. Tudo leva o seu tempo e aqui também
há sementes que se vão abençoar.
Maio, maduro Maio, Maio que dá tanta vontade
de o abraçar. Um simples mês onde são
depositadas as cartas de futuro, escritas
com sangue de querer, os desejos mais
profundos, os sonhos que se eternizam e
ainda os segredos que, mesmo que não sejam
para se revelar, são todos para se contar.
Quaresmas
- Partilhar 26/03/2022
Tempo de reflexão e de abstinência para os
católicos, a Quaresma, que deriva do termo
latino quadragesima, representa os quarenta
dias de jejum de Jesus Cristo no deserto. Tal
atitude ficou a dever-se ao cansaço que
sentia e à necessita de repouso físico e
espiritual, antes de partir para a sua luta
apostólica.
Com início na quarta
feira de Cinzas, o encerramento dos festejos
do Carnaval, termina no Sábado Santo, que
antecede o dia da Ressurreição de Cristo, o
chamado domingo de Páscoa, festa da igreja
cristã, solenizada desde os primórdios do
cristianismo.
Este é o dia de triunfo
e da vitória de Cristo sobre a morte, a
recompensa dos esforços e dos sacrifícios em
prol da eternidade. Cristo deixa de morrer e
celebra-se, com alegria redobrada, a sua
volta. Aleluia! Palavra repetida por quem
sente Cristo como seu.
O que muitos
não sabem é que afinal não são quarenta dias
pois os domingos não contam uma vez que
estão excluídos da penitência. O dogma
perpetuado leva a que milhões de seguidores
aceitem as regras sem as contestar. O
caminho é de luz e deve ser seguido com fé e
disciplina.
A última semana de
evento, a Semana Santa ou da Paixão, vai do
domingo de Ramos, que simboliza a entrada de
Cristo em Jerusalém para celebrar a Páscoa
judaica, até ao Sábado Santo, que antecede o
dia em que a verdade é revelada. Cristo
afinal está vivo.
No que diz respeito
à calendarização, que como se sabe é móvel,
a Páscoa, a partir do século II, por
determinação do papa Vítor, em documento do
ano 190, era comemorada ao domingo. O
Concílio de Niceia, em 325, decretou que o
dia de Páscoa deveria ocorrer no domingo
seguinte ao dia 14 do mês de Nissan, o nome
do primeiro mês do calendário de Nipur, que
correspondia aos meados de Março ou de
Abril.
Com a moderna astronomia, pode
prever-se a posição dos astros e a Páscoa
teria como referência o Equinócio da
Primavera e a primeira lua cheia, fixando-se
no domingo seguinte, seja qual for o
calendário. O Conselho Mundial das Igrejas
tinha esperança de que a Páscoa ficasse com
uma data fixa, o que implicava o consenso de
todas as igrejas. Contudo, tal não foi
possível.
Durante o período entre os
Ramos e a Páscoa, o nosso país vive costumes
e praxes que merecem ser referidas em
detalhe. Uma delas menciona que não se devem
comer couves na Quinta Feira Santa, uma vez
que Nosso Senhor se escondeu num couval.
Outro hábito, mais difundido, é não comer
carne na Sexta feira Santa, por ser o dia da
morte de Jesus Cristo e ter estado exposto
numa cruz.
No Alentejo, mais
concretamente em Castelo de Vide, tal forma
de estar era tão respeitada que se queimavam
as panelas, ritual que consista em colocar
as panelas ao lume para fazer com que todo o
resíduo de gordura, que houvesse, se fosse
derretendo. Era esta a forma de purificação
para as panelas que iriam ser usadas na
quadra religiosa.
Quaresma implicava
recolhimento e silêncio, luto e penitência.
O mesmo se aplicava aos divertimentos e ao
quotidiano. Assobiar ou cantar eram pecados
que deviam ser evitados. Renunciava-se ao
prazer de comer e havia apenas uma refeição
por dia, composta de pão, legumes e água. A
labuta no campo era acompanhada de cânticos
religiosos.
Outra postura era a
ausência de matrimónios e se os houvesse,
não teriam a bênção desejada, que passaria
para os tempos vindouros. Alguns homens
usavam gravatas pretas e as mulheres vestiam
de luto, se bem que mais leve. Contudo as
cores garridas estavam banidas. Algumas
mulheres, das mais devotas, mascavam folhas
verdes das oliveiras, um castigo terrível.
Nas igrejas tapavam-se as janelas e os
vitrais, as flores eram retiradas dos
altares e os sinos não tinham ordem de toque
até ao final do período pascal. Em sua
substituição, existiam as matracas, que
tocadas nas ruas, chamavam os fiéis para os
actos litúrgicos. Estas matracas eram
manobradas por jovens, escolhidos pelo
padre, que levavam outros com eles.
As matracas eram feitas de madeira e de
arame grosso, que emitia um som cavo e
ritmado, com pancadas secas, a impor, de
certa forma, um luto de rigor pela quadra,
como obrigação dos crentes. Algumas vezes, a
matraca era passada de mão em mão, pelos
jovens, para dar mais ênfase ao ritual.
Março, marçagão, pela manhã rosto de
cão, à tarde Verão.
No final da época tudo
regressa ao habitual e a vida decorre sem
limitações que possam ser apontadas. Será
mesmo assim? Na verdade vive-se uma quaresma
há anos, um tempo de contrição e de
penitência onde o céu nem é invocado. O
inferno reside na Terra e os homens de boa
vontade têm outros interesses que a salvação
da alma.
A ideia de uma entidade
divina que a todos regula tem sido tema de
reflexão de quem quer entender. O povo, essa
amálgama de gentes que não se entende,
discorda e acorda e volta a repetir o que
disse e não disse. A quaresma evangeliza
durante o tempo regulamentar. O que cada um
sente não se enquadra em contextos.
Cada quaresma é única e mudam-se vontades
consoante os tempos. Há quem se tenha
remetido para uma quaresma contínua e dela
não queira sair. Outras querem quebrar os
votos e seguir até onde a luz possa indicar.
Os velhos hábitos são difíceis de erradicar,
tal como as arcaicas mentalidades que têm
muito terreno para se fertilizar.
Os
últimos tempos revolveram a terra e
desenterraram mitos, receios, crenças,
cismas e superstições que se querem
aniquilar. Ganharam força e novos adeptos,
cativaram os mais novos e voltaram à ribalta
com os mais velhos. Um retrocesso até aos
tempos mais escuros.
O senso comum
ganha nova dianteira, assim como os dogmas
que servem para muitos tapar. Agradece o
poder que descobriu uma suave e delicada,
sem qualquer tipo de esforço, maneira de a
muitos manipular. Haja saúde que o resto é
para continuar.
Os Caretos
- Partilhar 24/02/2022
Quando se fala em Carnaval, associam-se as
máscaras e a liberdade de se viverem uns
dias em que tudo é permitido. Das
variadíssimas manifestações que o nosso país
possui, merece particular importância a
festa que se realiza em Podence, cujos
figurantes estão, simbolicamente, ligados ao
espírito do mal. Para tal, os trajes
coloridos e as máscaras, faziam com que
todos se assustassem e levassem a sério as
superstições, que passavam de geração em
geração.
Aqui, a encenação meramente
pagã, levada a sério, está ligada às antigas
festas dos Romanos, as Lupercais, efectuadas
no dia 15 de Fevereiro, segundo uns, em
louvor a Pã, o deus dos rebanhos, dos
pastores e dos cabaneiros. Havia ainda quem
falasse em fertilidade que, nas terras frias
de Trás os Montes, era desejada como pão
para a boca. Outro aludiam a Luperco, deus
pastoril dos rebanhos e a protecção seria
contra os lobos.
O importante, na
Roma Antiga, seria o desfile pelas ruas,
onde grupos de homens semi nus, fustigavam
com peles de cabra, as mulheres que se
cruzavam no seu caminho, num ritual
punitivo, pretendendo mostrar que ficariam
fecundadas. Roma Antiga e Podence podem ser
muito afastadas, em tempo e geografia, mas
as ideias são semelhantes e a mensagem
passou.
O ritual perpetua-se de
domingo a terça feira de Carnaval graças à
actuação dos caretos que, percorrendo as
ruas, vestidos de forma colorida e tapados
para não serem reconhecidos, circulam pelas
ruas atrás das raparigas e das mulheres,
para as abraçar. Aqui o gesto toma o nome de
chocalhar pois é feito lateralmente e com
movimentos rápidos de semi rotação da
cintura. Como carregam chocalhos na cinta,
batem-lhes nas nádegas que acabam por
funcionar como verdadeiros chicotes.
Algumas moças, solteiras e casadoiras, ficam
de tal forma marcadas, que as nódoas negras
são indícios da sua procura e prestígio. Os
risos não faltam nem os gritos que se ouvem
na suposta perseguição. É uma festa que
mostra a pureza de sentimentos e a vontade
de se fazer a corte à moda ancestral. Os
papéis estão bem estudados e a alegria é
geral. Na manhã de domingo e na de terça
feira, era vê-los à solta em plena
perseguição. Depois passou para a parte da
tarde e prolonga-se pela tarde toda.
Os caretos são as figuras principais da
festa, os seres quase fantásticos destes
rituais lúdicos e pagãos, que passam de pais
para filhos e que se tornam uma forma de
união entre todos. Associados à ideia de um
espírito do mal, um mistério que fazia todos
tremerem, a forças sobrenaturais e ocultas,
a curandeiros e bruxos ou qualquer poder
diabólico, encarnam o próprio diabo,
Satanás, mas auferem de total imunidade
durante estes dias.
Tempos houve em
que eram a representação da justiça pois
faziam-na pelas suas próprias mãos, o que
deixa de acontecer durante o período do
Carnaval em que se transmutam e passam a ser
temidos e assustadores, situados num patamar
superior ao dos simples mortais. Os seus
comportamentos atrevidos e até mesmo
provocatórios, são agora olhados com
bonomia, o que não aconteceu durante épocas
anteriores.
Num escrito antigo é
mencionado que o careto podia levantar as
saias às raparigas, sendo que estas se
defendiam como podiam e não tinham o direito
de se considerarem ofendidas, mesmo que não
estivessem de acordo com aquele tipo de
brincadeira. Ainda assim, não podiam pedir
satisfações e, por isso, teriam que seguir
em frente sem saber quem as estava a
assediar. Antes, elas preferiam ficar em
casa mas, com o passar dos tempos,
afoitam-se e até são elas que os provocam.
Os Mafarricos trepam terraços e muros,
sobem a telhados, saltam portões, entram
pelas portas e janelas, podendo até mesmo as
arrombar, sem pedir qualquer tipo de licença
a ninguém. O que querem é chegar às moças
para que elas fiquem chocalhadas. Onde quer
que estejam, há algazarra pois só sabem
comunicar aos gritos, numa linguagem que só
eles conhecem. Podem até mesmo roubar peças
de vestuário ou de adornos e ainda apalpar
as moças, uma vez que gozam de imunidade.
As vestes usadas compõem-se de calças,
casacos com gorros e capuz, que são
confeccionados com lã ou linho, cobertos com
franjas de várias cores e com um rabo
comprido. Como adornos têm um cinto de
chocalhos, a chamada bandoleira, que são
duas grandes campaínhas sobre o peito e
ainda um pau ou uma bengala. A máscara de
latão ou de folha da flandres, é vermelha ou
negra e tem ainda um nariz a três aberturas,
que são para os olhos e a boca.
Carnaval é tempo de libertação, de soltar
demónios e de tudo permitir. A tão badalada
expressão " É Carnaval, ninguém leva a mal
", aplica-se em toda a sua forma. Podence é
apenas um exemplo do que se pode encontrar
pelo nosso país, um manancial de costumes e
alegrias que são património de todos e deve
ser partilhado. Apesar de ser um país
pequeno, as diferenças que se encontram são
enormes e fazem todo o sentido, pois a
geografia acaba por ser uma condicionante.
Torres Vedras pode ser a terra do
Carnaval por excelência mas tem um outro
aspecto a ser considerado. Por aqui são as
Matrafonas, os homens que tiram estes dias
para se fazerem passar por mulheres mas
mantendo todas as suas características
originais, o que lhes imprime uma maior
riqueza. Claro que o resultado é de
espalhafato e de muita alegria, aquilo que
verdadeiramente se pretende. A crítica
social está implícita e não há inocentes e
muito menos santos. Todos são visados.
A sociedade moderna tende a apagar estas
tão brilhantes marcas populares. É
lamentável que assim seja. Este é o nosso
passado, os passos que os antigos deram e
legaram às gerações vindouras. Podence fica
longe da capital, numa terra fria e cheia de
montanhas. O calor que une os seus
habitantes é que não se perde. Se cada um
fizer a sua parte, conseguir manter viva a
memória do que vale a pena, certamente que
nada se perderá e a riqueza do que fica é um
tesouro que todos vão querer guardar.
Ser Português, uma arte milenar
- Partilhar 28/01/2022
Vivemos num país tão banhado pelo mar e pelo
sol que até nos esquecemos de quem somos. E
como nos esquecemos é preciso explicar,
dizer quem é o português, aquela criatura
que consegue dar sempre a volta por cima.
Parece complicado mas não apresenta
dificuldade de maior. Querem saber como? É
um mero exercício visual e auditivo que não
necessita de requisitos prévios.
Vejamos:
Alguém tem um acidente grave e
fica praticamente danificado, tetraplégico,
condenado a uma cadeira de rodas. O que é
que se diz? Teve sorte, não morreu. A vida
perde toda a qualidade mas está vivo. Pois,
teve sorte. É à português.
Um estrangeiro dirige-se a um português
e pede-lhe uma indicação. Este não percebe
nada mas isso não tem importância nenhuma.
Puxa do seu linguajar, portugualês e pronto,
já está. Manda-o para um sítio qualquer mas
ele percebeu. Desenrascou-se. É à português.
Joga a selecção nacional, de futebol,
claro está! e todos são patriotas. Sabem
qual é a bandeira nacional, qual é o hino e
ficam todos orgulhosos. Defendem a pátria, o
seu âmago, a alma lusitana. Se alguém deita
o português "abaixo" ficam ofendidos,
respondem à letra e incham o peito. É à
português.
No Algarve, os naturais,
olham para as inglesas, holandesas,
estrangeiras em geral. Dão-lhes duas tretas,
engatam-nas e ficam convencidos que foram
grandes conquistas, pensam eles. São depois
relatos de safaris sexuais, quais autênticas
feras selvagens e indescritíveis, daquilo
que nunca aconteceu. Mas não faz mal.
Inventam. É à português.
Quando uma
mulher vai ao volante, apesar de, regra
geral, ser mais cautelosa e responsável, não
se escapa das piadas típicas do macho
latino. Mesmo que tenha conseguido contornar
um buraco gigante, evitado um acidente grave
e conseguido chegar à hora combinada, tem
sempre de ser rebaixada porque as mulheres
são um perigo ao volante. É à português.
Os meninos andam na escola. Não estudam,
não se aplicam, não querem saber e os pais
só se interessam com os resultados. Saber
não é importante, é irrelevante. Mesmo não
sabendo nada, não tendo tão pouco aberto os
livros nem dado atenção nas aulas nem, muito
menos respeitado os professores, acaba por
passar. O menino é esperto. É à português.
Ainda não chega? É preciso dar mais
exemplos? Não faltam casos curiosos para
relatar onde o homem, macho, sempre macho,
dá a volta por cima porque um latino é
sempre superior a qualquer outro ser humano.
Masculino ainda pode ter comparação mas
feminino nunca. O homem é sempre superior à
mulher. É à português.
O trabalho tem
de ser feito, é necessário apressar, o tempo
está a ficar apertado mas o responsável nem
está para aí virado. Aperta com a equipa,
tudo fica concluído a tempo mas sem
qualidade nem nível. Não tem importância.
Ficou feito, não foi? Está bom. É à
português.
Se as coisas começam a
ficar feias e complicadas no governo, a
crise instala-se e o futuro é negro, o
primeiro ministro pisga-se ou faz-se de
coitadinho. Vai para um lugar seguro,
confortável e com as costas quentes. Quem
fica desculpa-se com os outros. Não assume
nem o falhanço nem a incompetência. É de
homem. É à português.
Curiosamente é
este epíteto, esta palavra que acaba por
justificar tantas e tantas incongruências da
vida. Como é à português, está tudo bem,
está esclarecido. É toda uma apologia do
tanto faz ou está bem assim. Ser e fazer é
totalmente diferente mas, neste caso, acaba
por ser exactamente o mesmo. Ser português é
o mesmo que fazer ou deixar de fazer. É à
português.
Mas o português também
sabe como ser solidário e amigo do seu
vizinho ou até mesmo do desconhecido. Dá um
raminho de salsa, empresta um pacote de
açúcar, ensina como se faz um refogado, olha
para a roupa da vizinha, empurra o carro de
quem ficou sem gasolina, tira as medidas a
quem passa na obra, assobia como se fosse um
herói, arrota como um labrego, coça os
tomates só por prazer ou ajusta as mamas
para as realçar. É à português.
A
alma lusa não se perde no dia a dia. Há toda
uma panóplia de gerações que se foram
formando no universo nacional e que mostram
como se produz a força da união. O tempo das
caravelas já lá vai mas o desenrascanço
ainda está a funcionar. Há uma vizinha que
fica viúva e a do lado faz-lhe a companhia
de alívio para chorar. Um homem ficou só na
vida e outro, que o conhece bem, leva-o a
sair para se distrair. Os anos trazem ombros
e braços que se enrolam para a caminhada ser
mais leve. É à português.
O português
é de lágrimas, de desgraças, de meter a
colher onde não deve. Chora pela desgraça
alheia e arranca cabelos pela sua, é o
primeiro a parar para ver o acidente e dar a
sua opinião abalizada e correcta, sabe tudo
sobre a vida dos outros mas a sua deixa
escapar. Os filhos são os mais lindos e os
mais perfeitos mas os outros é que os
desencaminham. Nunca os próprios. Elas são
puras e atinadas e eles muito inteligentes.
Na verdade não há quem tenha defeitos a não
ser os outros. É à português.
E, para
finalizar, uma breve análise ao Hino
Nacional, aquilo que poucos sabem o que
significa. Heróis do mar, ou seja, aqueles
destemidos e corajosos homens que se
lançaram à aventura, ao incerto, num mar,
oceano manhoso, cheio de incertezas, numas
casquinhas de noz, naqueles embarcações de
brincar, nobre povo, quer dizer as gentes
que se destacaram, os primeiros numa Europa
que ainda estava em eterno conflito, nação
valente, superar piratas, corsários, medos,
superstições, tempestades, mitos, e imortal,
conforme dizia o poeta, " se vai da lei da
morte libertando ", fica para sempre.
Agora com mais força ainda, levantai
hoje de novo, sim, levantar mas não é o seu
lado mais caricato, mais mesquinho e mais
facilista. Levantar a fibra e a garra dos
que sem medos nem tontices, se lançaram a
aventuras que sabiam poder ter um final
menos simpático. Pensar dá trabalho, custa
muito e até pode fazer mal aos neurónios.
Pensar é uma atividade perigosa.
Se
os nossos avós, os do hino, fossem vivos,
ficavam muito desapontados e desiludidos com
os seus descendentes. Não era esta a raça
que eles queriam, que eles tinham em mente.
Dos fortes não parece haver rasto e os
fracos gostam de se afirmar. Na verdade
ainda estamos nas brumas mas falta chegar ao
esplendor de Portugal. Quando lá chegarmos,
quando finalmente estiver atingido esse
patamar, então sim, é à português!
A vida sabe como se reinventar
- Partilhar 28/12/2021
É comum que se pense nos desejos para o novo
ano que se avizinha. Cada volta ao sol, os
conhecidos 365 dias, são sempre desafios que
não páram de pregar rasteiras e espalhar
lamas escorregadias. Os planos, aquilo que o
ser humano tem por hábito delinear, podem
não ser concretizados e, como tal, há que
fazer um reforço para que os mesmos cheguem
a bom porto.
Para o ano que se finda,
o terrível 2021, certamente que a saúde terá
sido o tema mais badalado, a palavra que se
usou de forma quase gratuita e sem qualquer
sentido válido. É que em nome dessa mesma
saúde, a real e a tal, a verdadeira, foi
relegada para um segundo plano. Milhares de
consultas foram adiadas e, arrisco a
escrever, milhões de exames médicos não
chegaram a ser realizados, colocando em
risco a vida de quem deles precisava.
Pode parecer um paradoxo mas é mais uma
forma aligeirada de se olhar para o caos que
se instalou por todo o lado. Certamente que
estão recordados das medidas que foram
exaradas para contenção de uma suposta
pandemia que teve o condão de alterar a vida
de muitos para pior. Quantos perderam os
seus empregos, o ganha pão, o sustento da
vida, para que a saúde colectiva fosse
preservada? Esses não importam? Os que tudo
continuaram a ter, de forma bem tranquila,
não fazem ideia da luta pela sobrevivência
que se agigantou.
É assim a nossa
sociedade, uns são filhos e outros enteados
e gostam muito de dizer coisas sem saberem.
Certas e determinadas medidas chegaram a
tocar o dantesco mas o povo é sereno e não
se importa de ser enganado. Basta relembrar
que há um ano fazer compras vulgares, uma
simples ida ao supermercado, era quase uma
aventura. Horários reduzidos, gentes bem
acumuladas e exaustão de funcionários,
aqueles que nunca pararam e de quem as
autoridades nem se lembraram. Tudo em nome
da contemção da pandemia.
O ensino
foi uma verdadeira palhaçada com idas e
vindas, com computadores e professores que
se esforçaram para chegar aos alunos e
outros que apenas se remeteram ao conforto
do lar e se esqueceram das suas obrigações.
Não havendo qualquer penalização, o melhor
era mesmo deixar andar que nem se notava.
Alguns alunos agradeceram muito, outros
viram a sua vida parada já que a
aprendizagem ficou para segundo plano. A
função não se cumpriu e o mal continua sem
cura à vista.
Os transportes foram
reduzidos em horários e espaço mas quem
trabalha e deles precisa, não foi visto como
alguém que corria riscos pois a
terciarização da sociedade permite que se
fale sem saber, que se queixe sem motivo e
que se chore sem lágrimas verdadeiras. O
essencial continuou como de costume mas
esses continuam a ser invisíveis pois o pão
chega à mesa de quem o pode comprar, sem
fazer a menor ideia do percurso até ao
repasto.
Os centros de saúde ganharam
estatuto mais elevado, de casas vazias,
votadas os abandono pois o medo, essa coisa
estranha, cheias de pernas, feia e com
dentes de fora, entranhou-se em tantos que
se esqueceram de viver. Foram esses medos,
receios e outras palavras que permitiram que
os seus velhos morressem sem o último
abraço, sem a palavra de conforto e sem
saberem que eram amados. Que curiosa forma
de demonstrar que se gosta de alguém.
Encerraram-se as pessoas numa prisão
dourada, cheia de coisinhas boas e foi ver
os corpos a ganharem formas mais distintas e
roliças, com rabos que se colavam a sofás
fofos e convidativos, para assistirem a
séries onde os heróis são capazes de tudo
mas os que as viam, se ouvirem um tom de voz
mais elevado, soltam as lágrimas, dizem que
têm sentimentos e fecham-se em cascas de noz
para não verem a luz do dia. Enfraquecem-se
as pessoas e não sabem como resolver
situações básicas.
Quem fez aconteceu
não se podia dar ao luxo de confinamento.
Imaginemos que quem varre as ruas ficava em
teletrabalho. Como seria? Quem fazia o pão
pegava no computador, dava as instruções e
voilá! pimbas! estava feito? As prateleiras
dos supermercados não se arrumaram sozinhas
nem os campos fizeram brotar os produtos sem
as mãos sábias das pessoas que os cuidam. É
fácil falar quando não se sabe como é.
Aliás, até é caso para ser aplaudido pois os
que são iguais precisam de dirigentes que
sejam a sua luz.
Podemos falar de
tantas crianças que perdem a noção das
expressões, não sabem o que as mesmas
significam por as caras estarem tapadas com
máscaras que escondem os sentimentos e as
emoções. Que vida é esta? É isto que desejam
para os filhos? Não saber interpretar o que
o outro pretende transmitir? Ficar espoliado
de sentir é hediondo e não há forma de
recuperação.
Como se ensinam os mais
novos, aqueles que entram no primeiro ciclo
se não for em regime presencial? Quem lhes
pega nas mãos e encaminha o lápis para que
as letras fiquem direitas? Como se pode
mostrar o exercício de contar quando há uma
máquina que os afasta? Onde reside a
sensibilidade se não se toca em cada um,
para mostrar que se importa e se gosta?
Que dizer dos que ficaram com a vida
arruinada, os que perderam os seus postos de
trabalho e que dificilmente os irão
recuperar? A cultura ficou em segundo plano
mas essa não se vê a não ser que algumas
vozes liguem os interruptores da revolta.
Fecham-se salas de espectáculos e
prometem-se ajudas que nunca aconteceram.
Quando não se valoriza o que é nosso, a raiz
de sermos como somos, então a identidade
perde-se e não mais encontra o caminho
certo.
Afinal qual é a ideia que está
por trás de tantas restrições e falta de
liberdade? Um enorme dogma, que é aceite de
cabeça baixa e sem contestar. Há quem bata
palmas de tanta verborreia e disparates,
escudando-se da vida como se fosse algo
pernicioso. Viver é um risco assumido e sem
a aventura de acordar todos os dias, o
interesse e o desafio seriam minimizados,
pelo facto de se ser um autómato que apenas
responde aos comandos recebidos.
E a
saga continua com variantes que apenas mudam
de nome. Quem se chega à frente para
trabalhar, esses malandros da sociedade,
ficam com as pernas cortadas e não se fala
mais do assunto. O dinheiro não brota do céu
nem da terra, apesar de muitos terem essa
sensação de facilidade distributiva. Tem o
nome de ignorância mas há quem goste de
assim viver mesmo que lhes seja explicado
como funciona o sistema.
A nova
estrela amarela sofreu um refreshment e
passou a ser electrónica. Há que se provar
que se é dos escolhidos ou dos que seguem a
doutrina sem contestar. Exibe-se a falta de
tanto e ainda mais com orgulho. Limita-se a
vida de quem não se quer ligar a
radicalismos mas vê-se forçado a ter que
seguir os carreiros que empurram para
formigueiros estranhos.
Surge a poção
mágica, aquela que vai dar a força
descomunal e que irá permitir que se
derrotem os inimigos, ou apenas um inimigo,
cantando vitória de cabeça erguida. Há filas
para que a toma seja eficaz e benéfica. Uns
atropelam-se e querem ser os primeiros e
outros nem querem saber do assunto. Há de
tudo neste mundo que é de todos o que o
habitam.
Estragam-se as reuniões
familiares e arruinam-se as festas
particulares em nome de quê? Perde-se o
contacto com a realidade e a loucura toma
conta de quem ainda acredita que o Pai Natal
desce pela chaminé e vai entregar os
presentes a quem se portou bem durante o
ano. Afastam-se gentes de quem se gostava e
os afectos passam a ser perniciosos e
maléficos. Gasta-se a humanidade que ainda
restava em cada um.
A questão que se
coloca agora é bem pertinente: Valeu a pena?
Deixaram os avós morrer sem amor, encafuaram
as pessoas em espaços minúsculos e
apertados, cancelaram situações essenciais,
reduziram-se as mentes que estão a crescer e
insiste-se que é para um bem comum. Que ano
tão estranho.
É este o futuro que se
deseja, um medo abissal que engole todos
como se fosse um vacúolo louco? Onde fica a
vida, a aventura constante, o desafio que
tem que ser superado? E os amores, que lhes
fazer? A linha entre o amor e o ódio é
ténue, mas a que fica entre a sanidade
mental e a loucura é ainda mais fina.
Feliz ano de 2022. Viva a vida!
A fundação de Cluny
- Partilhar 29/11/2021
A fundação da abadia de Cluny vem na
sequência de uma reforma promulgada por
Bento de Aniano, que foi um dos primeiros a
preconizar a aplicação rígida da Regra de S.
Bento nos mosteiros do ocidente. O abade
será o chefe de uma grande família, mesmo
que sejam apenas monges. O seu exemplo foi
seguido e rapidamente centenas de casas
cresceram no resto da Europa, ficando todas
elas na dependência desta. O abade é nomeado
pelo seu homólogo de Cluny e têm que seguir
as mesmas normas e regras, acompanhando os
capítulos que têm lugar na casa mãe.
A igreja é uma instituição que acompanha os
séculos, segue-os a par e passo e, nesse
sentido, tem necessidade de se adaptar de
modo a estar pronta para colmatar as
necessidades do foro espiritual que revelam
a evolução das mesmas sociedades. Neste
contexto, em 909, o Duque da Aquitânia,
Guilherme, o Pio, decide fundar uma abadia,
no fundo de um vale escuro, o vale de Cluny.
Esta nova fundação irá modificar o sistema
que estava imposto.
Em finais do
século X, a igreja atravessa uma crise de
grande profundidade. Tudo começa com a
escolha dos abades e dos bispos dos grandes
mosteiros que são recolhidos entre as
famílias importantes. Assim sendo, a
tentação dos bens e do luxo, bem como de uma
vida desafogada, é seguida por muitos que
anseiam por ser senhores de propriedades,
cobertos de poder e de riqueza , esquecendo
a sua missão de salvação de um povo cristão
que se encontra perdido.
Os cargos
são negociados e vendidos como se fossem
bens materiais com capacidade de produzir
riqueza e domínio económico, Na verdade, as
abadias geram muito dinheiro e prestígio,
levando alguns a entrarem em colapso e
outros a enriquecerem com facilidade. A
missão espiritual ficava para segundo plano,
deixando os crentes desprotegidos e
desamparados. A igreja funcionava como uma
paternidade para um povo que necessitava de
apoios, em todos os aspectos da vida, quer
espiritual ou práctica.
Contudo
continuam a existir lugares onde o saber e a
vida digna ainda têm lugar. A oração e a
caridade eram praticados em lugares que não
se tinham conspurcado nem deixado ofuscar
pelas demoníacas negociatas que eram feitas
em nome de Deus. Aliada a esta postura há
ainda transmissão de saber e a tão apregoada
salvação da alma. Poitiers e Lorena
preservam a sua pureza e serão o palco das
mudanças a ser operadas nesta época. O
curioso é que os poderosos, os que traficam
bens e dignidades eclesiásticas, sentem que
precisam de apoio e ajuda.
Em França,
desde o início do século X que as doações
aumentam, mesmo que as famílias nobres
possam ficar em risco. O importante é ter
quem reze por eles e que a sua alma siga
para o caminho correcto. É neste contexto
que os bens se tornam insuficientes e os
donativos incluem um filho que entre no
mosteiro como oblata ou, posteriormente,
quando sentem o tal chamamento, mesmo que
seja tardio, ingressam nessas casas
religiosas onde terminam os seus dias em
oração, para redenção dos pecados cometidos.
Guilherme de Aquitânia governava um
território que ia da Catalunha ao Loire e do
Atlântico aos montes do Mâconnais. Convicto
de que a forte generosidade o iria levar ao
reino da salvação, apadrinha monges e
oferece benefícios. Com a carta da fundação,
o Duque age de forma a que o mosteiro possa
viver nas condições materiais e morais que
tornem a sua existência agradável a Deus.
Nada foi deixado ao acaso e a escolha do
primeiro chefe recaiu em Bernon, um dos
membros de uma família nobre e rica da
Borgonha. Na verdade, este será um homem de
garra que ficará cerca de três décadas à
frente do mosteiro. A sua formação e o seu
passado em Autun, deram frutos poderosos.
A independência económica é reforçada
pelas sucessivas doações dos que se viam
preocupados com a sua situação após a morte.
Para que a situação fosse ainda mais clara,
seria necessária autonomia e, neste
contexto, a libertação de Mâcon é garantida
em 909, dependendo apenas da Santa Sé. O
abade de Cluny é independente e livre de
estabelecer as suas regras. Os monges desta
casa em vez de dividirem o seu tempo entre o
trabalho e a oração, tal como era mencionado
na regra de S. Bento, rezavam, celebravam
ofícios esplêndidos e intermináveis,
cantavam a grandeza de Deus em edifícios que
se tornariam os mais belos de todos.
Mas Cluny iria sofrer dos mesmos males que
tanto apontava. O tempo teve a tarefa de
adulterar a independência com luxo e as
críticas agigantaram-se. O mais conhecido,
Bernardo de Claraval, apontava o caminho
perdido e as múltiplas formas de esquecer o
propósito inicial. De miseráveis e
andrajosos, passaram a luminosidade de estar
e de se mostrar às claras, em posições que
em nada os dignificavam. A independência que
havia conquistado era mal vista. O papa
Calisto II abandonou-os à sua sorte,
deixando-os à mercê de vis ataques dos seus
pares e dos sarracenos.
A revolução
Francesa foi o golpe final. Tudo foi
destruído, os livros queimados, as
instalações derrubadas e o local ficou
votado ao abandono. O terreno foi vendido e
somente no século XX, se deu uma
reconstrução parcial do edifício. Em 2007, a
abadia foi consagrada como Património
Europeu. O passado ainda continua vivo mesmo
que tenha renascido das cinzas da falta de
conhecimento e da ausência de memória de
muitos.
Hoje a religião ocupa um
lugar mais escondido na sociedade mas ainda
com algum relevo. Certas normas deixaram de
ser conhecidas e outras sofreram
branqueamento de maneira a acompanhar os
tempos. O saber foi-se perdendo e o lado
espiritual caiu em desuso. O materialismo
ganhou terreno e passou a ser a nova forma
de estar. Ter e exibir são mais valias que
substituem os valores e o poder persiste com
a sua tarefa de corromper.
Os livros
continuam a existir mas são olhados com
muito desprezo. Ler é aborrecido, as linhas
fogem e o conteúdo esvaziou-se. Tudo ficou
vazio. Pensar pode ser perigoso e entender a
mensagem escrita exige alguma contenção. A
palavra do pregador deve ser escutada com
cuidado. Fazer o que ele diz não é igual ao
que ele faz. Incongruências que recordam o
passado e que tendem a ser continuadas.
O passar dos séculos não alterou os
motes de cada um. Há necessidade de haver um
chefe, alguém que diga o que deve ser feito.
O povo precisa de ser levado. O ser humano
está oco de humanismo e a sensibilidade está
colocada em risco. Ser pessoa é tarefa longa
e incompleta, onde os altos e os baixos
ganham dimensão maior.
A seita que
agora tudo regula é o dinheiro, esse vil
metal que angaria milhões de seguidores,
cegos de paixão e fé, alienados com as suas
promessas de felicidade. O céu é o carro
topo de gama, a casa tecnológica, o
telemóvel de última geração e as roupas
ditadas pela moda. A alma morreu. O resto é
apenas distração, sons que batem em paredes
e regressam com sons que endoidecem e
retiram a humanidade que residia dentro de
cada um.
A Ciência Reprodutiva
- Partilhar 26/10/2021
A reprodução sexuada caracteriza-se pela
existência de dois fenómenos fundamentais: a
fecundação e a meiose. A fecundação é a
fusão de uma célula masculina com uma célula
feminina, originando um ovo ou zigoto.
Durante a fecundação dá-se a duplicação do
número de cromossomas, o que faz do zigoto
uma célula diplóide. Esta é a primeira
célula do novo indivíduo. Recebeu um lote de
cromossomas de cada um dos gâmetas, um de
origem paterna e outro de origem materna.
Estes formam pares e chamam-se cromossomas
homólogos. Começa agora a vida.
A
meiose é um fenómeno que compensa a
fecundação, reduzindo para metade o número
de cromossomas. É um processo complexo, que
tem duas divisões sucessivas. Cada célula
mãe com 2n cromossomas origina 4
células-filhas, tendo cada uma n
cromossomas. Na profase da primeira divisão
ocorre o crossing-over, em que os
cromatídeos dos cromossomas homólogos trocam
entre si segmentos de material genético.
Inicialmente dá-se uma fraca espiralização
da cromatina e os cromossomas estão finos e
longos, não se avistando os cromatídeos. Os
homólogos emparelham, são as díadas
cromossómicas ou bivalentes. Este processo
ocupa cerca de 90% da meiose. A recombinação
genética é aleatória e contribui para a
variabilidade genética.
A espécie
humana tem uma fórmula cromossómica
complicada, 23 pares de cromossomas, 44A+xx
na mulher e 44A+xy no homem e a maior parte
das características hereditárias resulta de
efeitos multifuncionais. O carótipo humano é
constituído por 46 cromossomas. Estes são
constituídos por ADN, ácido
desoxoribonucleico e são os responsáveis
pela transmissão de informação hereditária.
Este ácido é constituído por 4 substâncias
químicas, a adenina, a timina, a guanina e a
citosina. Os genes são segmentos de ADN e
distinguem-se entre dominantes, que produzem
efeito mesmo quando só existem num par e
recessivos, produzindo somente efeito quando
estão presentes nos dois cromossomas do par.
O genótipo é o conjunto das heranças
genéticas e o fenótipo é o conjunto das
características do indivíduo que resultam do
genótipo e do meio. O ser humano é um ser
inacabado biologicamente; quando nasce ainda
não tem todas as suas competências
desenvolvidas, o que é uma grande vantagem
pois possibilita-lhe melhor aprendizagem e
desenvolvimento.
Na verdade a meiose
é constituída por diversas fases, a profase,
já referida, a metafase, quando os
cromossomas se dispõem aleatoriamente na
placa equatorial e presos ao fuso cromático,
a anafase, onde ocorre a separação dos
cromossomas e afastamento para os pólos
opostos e a telofase, que é a despiralização
cromossomática e a formação de dois núcleos
haplóides. Estas mesmas fases repetem-se na
fase II concluindo, assim, o ciclo e a
contribuição para a grande variabilidade
genética, assegurando a sobrevivência de
evolução das espécies.
Mas nem sempre
ocorre deste modo regular e sequencial.
Podem dar-se falhas, erros. Um gene é uma
sequência específica de pares de nucleótidos
que codifica um determinado polipéptido.
Basta haver uma pequena alteração na
sequência dos pares de bases azotadas para
que se sintetize um polipéptido diferente do
que estava originalmente codificado. É um
gene novo, alelo do primeiro, que ocupa o
mesmo locus no cromossoma. É uma "gralha"
genética que vai alterar todo o código.
Estes fragmentos podem ser colocados em
várias posições.
E o que acontece quando esta "gralha",
esta não comunicação se dá? Um dos
distúrbios mais conhecidos é o síndrome do
"grito do gato", que acontece num braço mais
curto de um dos cromossomas do par nº 5.
Manifesta-se através de diversas
malformações, como a microcefalia, atraso
mental, quociente de inteligência baixo e
modificações da laringe, o que provoca um
som semelhante ao miar do gato em
sofrimento.
A trissomia 21 afecta o
par 21, que inclui outro cromossoma, ficando
assim, na totalidade 47 e não 46. Também
conhecido por mongolismo ou Síndrome de
Down, manifesta-se por alterações de
desenvolvimento físico e intelectual,
anomalias nas mãos e pés e uma expressão
facial caracterizada por maçãs do rosto
salientes e olhos oblíquos, devido a uma
particularidade na pálpebra superior.
Outro caso é o síndrome de Klinefelter
ou trissomia xxy e pode resultar tanto da
não separação dos cromossomas x durante a
ovogénese, como da não separação dos
cromossomas xy durante a espermatogénese. Os
indivíduos afectados são do sexo masculino e
possuem uma série de características
anómalas.
A não
disjunção dos cromossomas sexuais implica a
formação de gâmetas sem nenhum cromossoma
sexual. Dão origem a um zigoto de guarnição
cromossómica xo, o que origina a chamada
monossomia xo ou síndrome de Turner, que se
manifesta pela baixa estatura e ausência de
caracteres sexuais secundários.
De referir ainda um outro síndrome, o da
supermasculinidade, que é o resultado de uma
mutação cromossómica que só afecta os homens
e ocorre durante a segunda divisão da meiose
levando à formação de um outro cromossoma y.
Esta trissomia xyy encontra-se em pessoas
muito agressivas mas sem malformações
fisiológicas e morfológicas.
Apesar da ciência ter
evoluído, de se conhecerem novos caminhos e
novas técnicas, a natureza ainda consegue
tornear todas as descobertas, todas as leis
e todas as teorias cientificamente aceites.
É um desafio constante, um labirinto que
leva a várias encruzilhadas e que continua a
dar muitas dores de cabeça aos
investigadores. Toda a tecnologia disponível
ainda não consegue evitar estes "erros" que
continuam a acontecer e que servem para
provar que continuamos a evoluir, que o ser
humano é um ser inacabado.
Marlene e David
conheceram-se, como tantas pessoas o fazem.
Entre eles estabeleceu-se uma ligação
profunda e, sem qualquer constrangimentos,
deram-se um ao outro. O amor é grátis, não
obedece a regras e as leis não protegem os
jovens que se amam. O código civil é de
sentimentos e de emoções e nada mais pode
ser dito para alterar.
Desta relação
foi gerado um fruto, um bebé que se tornou
amado e desejado como a perpetuação de dois
seres que foram bafejados com o calor do
amor, esse sentimento que escasseia e que
deixa todos desorientados. Tudo parecia
correr bem até ao dia em que o Rodrigo
nasceu. A tormenta abateu-se sobre estes
pais já que o pequenino, aquele que conhecia
a luz do dia, mantinha a sua pura e nobre
inocência.
O menino não tem rosto e
nada lhes foi dito no sentido de estarem
preparados para uma situação limite.
Estiveram sempre tranquilos pois o médico
nunca lhes disse que havia algum problema.
Foi nessa circunstância que o Rodrigo veio
ao mundo e, mesmo antes de se ouvir o seu
primeiro choro, já o amor dos pais
transbordava. Um filho é um milagre e uma
bênção.
Contrariamente às
expectativas, a criança é uma lutadora e já
festejou mais um aniversário. O médico foi
logo ilibado, como é costume neste país, de
qualquer crime que possa ter cometido. Nos
dias de hoje, os exames médicos mostram as
irregularidades e os supostos. Não foi assim
e o Rodrigo, um simples bebé, conheceu os
braços dos progenitores que o aguardavam.
Mãe é sempre mãe e pai sabe ou aprende a o
ser.
Marlene recebe 61,00 euros pela
deficiência do seu filho, aquele que o
médico afiançou ser perfeito. Para cuidar
dele que, como se sabe, tem necessidades
especiais, há um complemento de apoio à 3ª
pessoa de 110,00 euros. O médico não sofreu
qualquer tipo de penalização. A mãe é
cuidadora enquanto ele viver. Faz ginástica
com o que tem e continua a amar o seu filho.
David é o pai e Marlene a mãe. Continuam
a viver a sua vida sem que venham gritar
para as redes sociais, a sua revolta e bem
grande que deve ser. Não foram chorar para
os programas dos vários canais de televisão.
Continuam a cuidar do seu filho, o que foi
feito com amor e compreensão. 171,00 euros é
o valor que o estado português entende que
serve para dar qualidade de vida a esta mãe
e a este filho.
Rodrigo é um mistério
para a ciência. As probabilidades de se
manter vivo após o nascimento eram ínfimas.
Continua nos braços de quem o ama, mesmo com
a imensa dor que possam sentir. A perfeição
não existe mas o amor faz milagres, curas
poderosas e cria valências que se
desconheciam. Os pais, pessoas dignas, estão
a resguardar o seu filho, aquele que criou
ainda um maior laço entre eles.
O
amor não pode ser quantificado. Nem a dor.
Contudo existem mínimos e a vergonha de
entregar este valor humilhante a quem tanto
precisa de ajuda, prova como somos todos
iguais, ou seja, números que são calculados
sem se saber onde estão as pessoas. Outros
recebem valores escandalosamente elevados
sem nunca terem dado o mínimo de contributo
ao país. Just saying...
O amor pode
ser uma dor tão profunda e aguda que, mesmo
que continue a doer, ainda consegue estender
os braços e receber em seu seio, o símbolo
da esperança e da felicidade. Afinal o que é
esta coisa da felicidade? Momentos ou restos
de episódios que tiveram o condão de fazer
sorrir. Assim se eterniza a vida.
Tribunal da Inquisição - século XXI
- Partilhar 25/09/2021
Quando comecei a escrever por aqui, decidi
dar o nome de Novos Medievais à minha
rúbrica. O título prendeu-se com o facto de
as pessoas estarem em tempos de
obscurantismo e de terem esquecido o que
significa lucidez e bom senso. Estamos num
século onde a informação está disponível
para quem a quiser procurar mas, na verdade,
é bem mais fácil "engolir" o que se vai
dizendo e não cansar os neurónios.
Estes precisam de ser ginasticados e sem
essa força de querer, perdem-se por caminhos
estranhos, em boqueirões onde a luz não
penetra e tudo é permitido. Usar a cabeça e
pensar por si é um mote quase revolucionário
pois deixar-se ir é sempre suave e sem
percalços. Só que não. Os loucos, afinal são
os que se deixaram cegar e não os cegos.
Estava longe de pensar que seria
testemunha e atriz num episódio onde a
igreja, aquela instituição tão santa que
forma homens de bens e dá a mão a quem
precisa, ainda tem em seu seio seres de
caráter muito duvidoso e malévolo. Se
representação do marrafico houvesse, este
senhor podia encarná-la com perfeita forma.
Aliás, o papel assenta-lhe que nem uma luva
e o tom em que o fez é a prova da falta de
humildade e nobreza de muitos, em personagem
tipo desenvolvida por ele.
Uma destas
noites, estava reunida com os meus colegas
do grupo de teatro, a ensaiar a peça que
teremos muito gosto de levar a palco ainda
este ano, se nos for permitido pois os
avanços e recuos são enormes, quando, sem
nos darmos conta, fomos surpreendidos por
uma viagem no tempo.
Convém que deixe
bem claro que somos uma Associação cultural,
identificada por quem de direito e que os
ensaios são feitos no salão paroquial de uma
igreja. É um recurso de que dispomos e foi o
acordo feito com a Associação e o padre da
paróquia. O espaço é usado exclusivamente
para esse fim e foi nesse mesmo local que
tivemos ensaios para levar à cena peças que
oferecemos a todos.
Subitamente, sem
que ninguém estivesse à espera, chega o
tribunal da inquisição corporizado na figura
de um padre idoso e acusador. O senhor,
talvez julgando ser deus, ai valha-me deus
que se me quebra o verniz!, nem cumprimentou
os presentes, passando logo a presidir à
acusação, mesmo que não usasse o famoso
chapéu com borlas para ser levado a sério.
Assim, sem anestesia nem nada, um grupo
de seis adultos, passou a ser enxovalhado,
acusado e humilhado, como se fossem uns
meros e perigosos fora da lei. O tom altivo
e cheio de jactância que usou, além de lhe
retirar qualquer razão, provou que deus faz
escolhas muito erradas para os seus
representantes. Ora não é na ideia de deus
que todos são seus filhos? Afinal há os que
são enteados e tratados com desprezo.
Para se proceder a acusações há que
haver provas e como quando não se quer
emprestar, qualquer desculpa serve, toca de
chamar todos os nomes que trazia no bolso:
ladrões, usurpadores e até ficou bem clara a
ideia de uma certa prostituição. É bonito.
Uma pessoa sente-se acolhida na casa do
senhor que devia ser de todos.
Perante os factos e sem argumentos, o tom
eleva-se numa súplica ao pai, talvez pedindo
que lhe fornecesse provas do que não pode
haver. A Idade Média só devia ser mais
escura e mal cheirosa que o caráter era
mesmo este. A tocha para queimar as bruxas,
que até é posterior, estava acesa e bem
forte. A camisa do senhor ganhava vida
própria e a língua enrolava-se com palavras
que lhe ficavam mal.
Desculpou-se por
ser italiano e ter dificuldade na
articulação de certos vocábulos, o que não é
verdade pois expressou-se bem, em tom alto e
bom som. Ocorreram-me algumas palavrinhas em
italiano mas guardei-as para mim pois tenho
mais nível do que alguém que devia ser um
exemplo. Entende-se agora a falta de vocação
e os espaços vazios nas igrejas.
Perante a realidade, as desculpas seriam bem
vindas mas quem nasce torto escusa de se
querer esticar. Ficou bem pior a emenda e é
inadmissível que um padre tenha um
comportamento deste teor. É assim que quer
salvar as almas? Pois se nem a sua, que anda
à deriva num espaço secular atrasado,
retrógrado e bafiento, consegue, como fará
com os que estão perdidos?
Apenas um
homem e fez um estrago que não terá mais
reparo. Uma quebra de honra, falando de quem
não se pode defender, acusando o antecessor
e soltando, pelos olhos e boca, o fel que
nem o peixe de Tobias sarava. Assim deve ter
sido a vida de milhares de pessoas que foram
acusadas injustamente, por terem cometidos
actos que não foram nunca seus. Dizia ele,
que tinha autoridade para falar. Que pena,
era mais para se calar, que direitos todos
temos e os mais poderosos são os argumentos
de defesa, por acusações que só circulam nas
cabeças mal formadas e sem educação.
Mostrou quem era, um homem machista,
injusto, frio e sem um pingo de clemência ou
compaixão. Tivesse sido ao contrário e
certamente que o resultado seria outro.
Estando presente apenas um homem, no grupo,
ainda perguntou quem era fulano de tal. A
cegueira do ódio, a razia das cabeças a
rolar e a pureza que nunca existiu,
toldou-lhe a mente de tal forma que se
queimou sozinho. Fel que não cura a cegueira
pode matar de ódio.
Nunca fui crente
e perante um exemplo tão evidente de
violência e de maldizer, resta-me desejar
aos paroquianos que rezem para que este
pastor de almas arrastadas, seja substituído
em breve. O céu deve estar envergonhado e o
diabo bateu palmas, na certa. Não admito que
falem nesse tom comigo e pouco me importa
que seja um padre. Foi um estúpido e
ordinário. A sorte dele foi ter lidado com
gente bem formada.
No final disse
qualquer coisa caricata, como o seu discurso
todo o tempo e, entredentes, desejei-lhe um
bom regresso à Idade Média e aos concílios
onde se discutia se as mulheres eram seres
dotados de alma, uma vez que os homens não o
são. Que faça boa viagem e não se perca no
século. Sugiro o X, que é mais alegre e
animado.
Ele há coisas que não deviam
acontecer mas ainda bem que são comigo.
Sugo-lhes o sumo e ainda consigo fazer uma
limonada. Aquela casa parece ter algo que
atrai a raiva, a arrogância e o
convencimento. Alguns dos jovens que a
frequentam são tão queridos, fofos e
altruístas que até olham para as outras
pessoas com ar de desdém. Que fixe!
Que se acenda a fogueira!.
O ensino português
- Partilhar 29/08/2021
Estamos chegados a uma época complexa em que milhares de estudantes se interrogam sobre o percurso a seguir. Uns pretendem frequentar a universidade, seguir um curso superior, outros enveredam por anos sabáticos e outros ainda terminam o seu percurso académico. Não defendo a obrigatoriedade do ensino superior, não sou assim tão purista, simplesmente entendo que se deve estudar e aprender. O conhecimento faz falta durante toda a vida e desenganem-se aqueles que pensam que o seu trabalho chegou ao fim. A vida real é uma constante aprendizagem e não dá tréguas àqueles que se vão encostando nas idades tenras. Quanto mais se avança na vida, mais complicado se torna reter novas ideias e conceitos que parecem assustadores.
Hoje em dia existem várias opções para que essa continuidade seja mais fácil, as escolas profissionais, os institutos politécnicos, as universidades e tantas outras situações que permitem uma posição na sociedade, um modo de se ser útil e receber, em troca, os seus dividendos. Os títulos ainda continuam a ser uma mais valia teórica, no entanto sem o tal conhecimento prático de nada servem. São papéis que podem ser colocados nas paredes, sem qualquer tipo de préstimo. Mas já parámos para pensar como tudo começou?
Na Idade Média apenas uma minoria frequentava escolas e a sua maioria destinava-se à vida eclesiástica, logo, foi a igreja a primeira a preocupar-se com a cultura dos seus membros. Assim, nos conventos e junto às sés surgiram as primeiras escolas que asseguravam os rudimentos de leitura e de escrita. Nas escolas claustrais, ensinavam-se as crianças, que eram entregues pela família, aos mosteiros, para serem seguidoras da religião. Aprendiam leitura, caligrafia, canto, música e aritmética. Tudo era ministrado em latim e o ensino funcionava à base da memorização e, posteriormente, discussão. Depois passavam à gramática, através das escrituras e do canto sagrado. Para complementar este estudo, durante as refeições, havia leitura de textos bíblicos, o que justifica o púlpito nos refeitórios. O ensino, curiosamente, era igual para os mosteiros femininos e masculinos.
Após os Concílios de Latrão, nos finais dos século XII e início do século XIII, o clero secular era obrigado a ter escolas junto das catedrais e das colegiadas, onde o clérigo mestre escola, tinha a função de ensinar, examinar, ler, cantar e emendar os livros de estudo, ou seja, compreender. A mais antiga escola episcopal existente no reino pertenceu a Braga que se tornou a mais antiga escola pública. A base do ensino era o latim e os livros estudados eram obras de fundo moralizante e pedagógico, como os Ditos de Catão. A ascensão religiosa efetuava-se através do conhecimento e das letras.
O desenvolvimento das artes liberais permitiu aos melhores alunos frequentarem outros cursos, em universidades estrangeiras e na portuguesa, a partir de finais do século XIII. Estamos aqui perante o embrião do programa Erasmus, ainda numa vertente inicial. Quando se ausentavam para um especialização, num determinado ramo do saber, tinham de se dirigir a Bolonha para o estudo do Direito, Montpellier para a Medicina, Paris para a Teologia e outras cidades idênticas com universidades.
Os portugueses foram de uma importância crucial no ensino universitário. Mestre Vicente foi professor de Direito em Bolonha e um dos braços direitos do rei D. Afonso II, Pedro Hispano, o papa João XXI, foi professor em Montpellier, um dos mais ilustres do seu tempo como médico e filósofo, Álvaro Pais e João das Regras, figuras emblemáticas da II dinastia, a de Aviz e grandes apoiantes de D. João I, foram igualmente mestres em Bolonha.
Os Estudos Gerais foram solicitados ao papa pelo rei e, vários bispos bem como abades portugueses, estavam interessados na sua criação para evitar a saída de dinheiro para o exterior. Em 1290 surgem em Lisboa, os Estudos Gerais, no reinado de D. Dinis, tendo sido posteriormente transferidos para Coimbra. Nessa cidade passam a ter um outro nome, que é Universidade. Ainda hoje o seu nome é prestigiante e encerra em si toda uma longa e vasta tradição estudantil. Claro que os tempos mudam mas Coimbra tem mais encanto, na hora da despedida, conforme tange a canção.
Esta primeira universidade não teve um início muito agradável. Aliado à ausência,muita, de rendimentos, juntava-se um corpo docente pouco credível, sendo que a sua maioria eram estrangeiros, o que levou à saída de alguns alunos para as escolas fora do reino. De início ministravam-se aulas de Cânones, Direito Canónico, Leis, Direito Romano, Medicina, Gramática, Dialéctica e Artes, em geral. Acrescentou-se Música, Filosofia e Teologia. A língua não deixava de ser o latim, escrito e falado, tendo por base os textos de Aristóteles, Galeno e Hipócrates.
A universidade concedia os graus de Bacharel, com três anos de aproveitamento, de Licenciado, de sete a nove anos de estudo, de Mestre e Doutor, que ultrapassavam os já referidos nove anos. O curso mais longo era o de Teologia que exigia oito/nove anos para o Bacharelato e o mais curto era o de Artes, cuja licenciatura exigia somente de cinco a seis anos. Hoje em dia estes graus estão completamente fora do contexto mas o certo é que o ensino era bem diferente.
A questão que se coloca agora é outra. Consideram a vossa vida escolar difícil e extensa? Pois é altura de reconsiderarem tudo aquilo que pensam. Hoje não se aprende em latim, aprende-se na língua materna, o que para muitos ainda é ainda mais complicado e os graus académicos são cada vez mais curtos, em termos de anos de estudo. Conseguem imaginar como seria a vida destes estudantes?
Que oferta temos hoje? Existem dois sistemas de ensino superior em Portugal: universitário e politécnico cujas instituições podem ser públicas ou privadas. O sistema clássico, universitário, fornece a chamada formação académica para o desenvolvimento de atividades profissionais e incentiva a pesquisa e a análise crítica. Já o politécnico tende para a formação técnica que visa desenvolver as capacidades mais práticas e imediatas.
Neste momento a classificação está feita em ciclos, sendo que o primeiro ciclo é o correspondente a uma licenciatura, que pode durar entre três a quatro anos, o segundo ciclo, conhecido como mestrado e ainda o terceiro ciclo que é o chamado doutoramento. Alguns cursos implicam o seu seguimento, ou seja, têm o mestrado como sequência e outros apenas se ficam pela licenciatura. O doutoramento implica outro tipo de estratégia que exige dedicação e muito tempo de pesquisa.
Para se aceder ao ensino superior estatal, há que ter em conta o Numerus Clausus, ou seja, um número específico de vagas por instituição e curso. Nesses critérios estão ainda incluídos a nota mínima de acesso bem como certos requisitos. O mesmo não se aplica no ensino privado apesar de este ter outro tipo de regras. Existem pelo menos duas datas para candidaturas ao ensino superior, a primeira e a segunda fase mas, atendendo aos tempos que se têm vivido ultimamente, nestes dois últimos anos, não existe alteração em qualquer uma delas.
Na verdade, estes dois últimos anos letivos foram bem atípicos e o nível de conhecimento dos alunos pode ter ficado degradado. O que se necessita é de bons profissionais e para isso há que haver vontade de ensinar e de aprender. A sociedade vai precisar de todo o tipo de pessoas para continuar a funcionar e não são só os licenciados que a conseguem governar. Empola-se o ensino superior e esquece-se o ensino técnico e prático. Sem ele nada pode estar oleado e a roda pára sem forma de continuar.
É preciso que se valorizem todas as profissões, nomeadamente as de trabalho braçal, e não apenas aqueles em que o intelecto dê o seu melhor. Qualquer sociedade funciona em cadeia e se um dos elos se quebra a regularidade deixa de ficar assegurada. Os cursos profissionais são da maior importância para que a colaboração de todos seja preciosa. O país precisa de força de trabalho e de vontade de assegurar a sua evolução. O conhecimento não ocupa lugar e a vida ensina que nunca se pára de aprender.
A lepra
- Partilhar 26/07/2021
A lepra é uma doença infecciosa. O
médico Gustav Hansen, em 1873, identificou o
bacilo que a provoca, semelhante ao de Koch,
o responsável pela tuberculose. Esta doença
reveste-se de dois aspetos, sendo que um
deles é a forma tuberculóide, com manchas
que se infiltram nos nervos, de forma lenta
e que lhe provoca uma atrofia das
extremidades que acabam por ser amputadas de
modo espontâneo. Este lento definhar pode
durar até trinta anos. A outra forma é a
lepromatosa, contagiosa, formando nódulos
que se infiltram na pele, provocando o
facies leonino, o osso do orifício nasal
fica erodido e o palato esburacado. Acrescem
ainda as febres, escamas e comichões que
paralisam o corpo. Esta forma é mais rápida
e em cerca de três a cinco anos leva à
morte.
Nos tempos remotos, no auge
das cruzadas, esta doença já era conhecida.
A sua primeira referência é feita em França,
no século II e a mesma remete para um
santuário pagão, em Berry, cuja reputação
milagrosa, curava a doença. A primeira
leprosaria, se assim se pode chamar, tem a
data de 460, construída ao lado da abadia de
Saint-Claude. Os concílios debruçaram-se
sobre o tema e a respetiva assistência,
sendo que, cerca de 580, o bispo de
Chalon-sur-Saône mandou construir um
estabelecimento especializado, junto às
portas da cidade.
Depois desta data
ouve-se falar de novo da doença, no século
VIII, aquando das invasões muçulmanas, que
favoreceram a sua disseminação. Após esta
data, a doença recua até ser falada,
novamente, no século XII. Considerada como
hereditária e incurável, já em pelo século
XX, era tratada com sulfonas, nos Estados
Unidos, em 1943. Mesmo depois da descoberta
do bacilo, não se chegou a uma vacina.
A lepra é um dos flagelos da Idade Média
pois pelo pânico que gera, o horror que
espalha e a condição miserável dos doentes,
leva a uma tomada de medidas preventivas
urgentes de forma a evitar o contágio. No
século XIII, no ocidente, era a doença
dominante. O surto foi resultante das
cruzadas pois foi a época de maior
intercâmbio entre o Ocidente e a zona da
Palestina, onde a lepra é endémica. É
precisamente aí que é fundada, em 1189, a
ordem hospitalária de S. Lázaro, que tem
como mote o cuidado dos leprosos.
Leprosarias, gafarias ou lazaretos são nomes
que identificam os locais onde os doentes
são encerrados para fugir dos olhares
assustados da população e terem um pouco de
paz. Na ausência de conhecimento sobre a
doença, o modo mais eficaz que foi
encontrado, era o afastamento para esses
locais específicos que foram fundados pelos
príncipes. Esta seria a sua participação no
combate à doença e o retomar da
tranquilidade urbana. O leproso era vítima
de denúncia, que podia ser de uma familiar
ou alguém próximo. As autoridades eram
alertadas e o suspeito comparecia perante um
júri.
Inicialmente este era
constituído por leprosos sendo que mais
tarde tinha como membros, um médico, um
preboste e um padre. Se fosse certo que
padecia da doença, seguia-se um ritual que
simbolizava a sua partida: o padre lançava,
sobre a cabeça do leproso, um punhado de
terra do cemitério e isso era como se
tivesse morrido ali. Separado dos demais,
fica sem possibilidade de ter mais vida. Não
podia ter direito a porte de arma, de clamar
justiça ou de casar com uma mulher saudável
e muitos menos batizar os filhos.
Há
toda uma parafrenália de identificação que o
coloca em desvantagem. Tem que usar vestes
especiais, com o aviso do seu estado,
sapatos, luvas e ainda uma espécie de som
especial, umas castanholas que indicavam que
se aproximava. Ao ouvir esse barulho, os
saudáveis afastavam-se e os doentes eram
ainda mais mal tratados, chegando a ouvir
insultos ou ainda estarem sujeitos a
receberem pedras.Nas leprosarias os cuidados
eram mínimos, apenas uns banhos e unguentos
que de nada serviam. Em certos casos ainda
se praticava a castração do homem.
Nestas circunstâncias, os leprosos tornam-se
vagabundos pois ser internado significa que
a vida acaba de vez. Como não podem entrar
nas cidades, são errantes e tentam
sobreviver conforme conseguem. O cenário
pode parecer dantesco, com os doentes a
caminharem em busca de alimento. Alguns
camponeses, poucos, condoíam-se destes
desgraçados e alimentavam estes corpos
miseráveis. O ódio que gera a sua presença
mostra bem como era o espírito da época que,
curiosamente, nada mudou no século XXI.
Os reis dão grandes somas de dinheiro
para as gafarias como forma de seguir as
mais básicas indicações do evangelho que
incita à ajuda ao próximo. Contudo a
associação que é feita entre esta doença e o
pecado torna tudo mais complexo. Em França,
em 1320/1321, corria o boato de que os
leprosos, enjaulados por judeus e muçulanos,
envenenavam as fontes para matar os cristãos
saudáveis. É assim que muitos leprosos
morrem queimados nas fogueiras e não da
doença.Tudo isto se perpetuou até aos finais
do século XIV mas outros desafios apareceram
para continuar o medo.
Hoje em dia a
doença ainda existe e persiste. Cerca de 10
milhões de pessoas ainda são afetadas pela
mesma, mudando apenas a situação geográfica.
Na Europa são poucos os casos, pois a mesma
chega através de um sistema de importação.
Em África, sobretudo na dita África Negra, a
contaminação é muito elevada e a sua
contagem torna-se impossível. Na Ásia, a
maior incidência é na Índia, com cerca de
dois milhões de doentes, tendo-se, então,
propagado à Oceânia através da imigração
chinesa e japonesa. No que concerne a
América, a América Latina, palco de grandes
grupos de escravos, ainda é uma zona com
grande incidência. O Brasil terá cerca de
160000 leprosos.
Apesar de se saber
que é um bacilo o responsável pela doença, o
mito da praga ainda se propaga. Como
tratamento para a mesma, o primeiro passo
continua a ser o isolamento, a profilaxia
que evita o terror geral. Sabe-se que o
microorganismo responsável é o mycobacterium
leprae, que se vulgarizou pelo nome de
bacilo de Hansen. O germe da lepra penetra
no organismo através das mucosas, da pele e
ainda das vias respiratórias,
disseminando-se por todo o corpo. O
diagnóstico é clínico e deve ser confirmado
através de uma biópsia cutânea. O tratamento
de eleição é a DDS, diaminodifenilsulfona,
isolada e em associação com a rifampicina.
Este tratamento pode durar até dez anos.
Em Portugal só se conheceu a primeira
evidência paleopatológica em 2003,
resultante de uma escavação próxima da
Ermida de Santo André, em Beja. Foram
encontrados corpos de indivíduos que teriam
sofrido da doença, o que se verificou
através das lesões. Outra descoberta foi
feita em Lagos, com o mesmo tipo de lesão.
Sabe-se que existiram cerca de 70
leprosarias, ou gafarias, conforme a
nomenclatura, desde o século XI, que tinham
como mote o internamento destes doentes,
sendo que não se conhecia mais nenhuma forma
de tratar a doença.
A gafaria mais
conhecida foi o Hospital Rovisco Pais, no
século XX. O professor Bissaya Barreto criou
a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, uma
propriedade enorme, de teor agrícola, a
Quinta da Fonte Quente, na Tocha. Aí os
doentes, com uma lotação para mil, ficavam
isolados das cidades e assim sendo evitavam
os surtos de afastamento e de rejeição. O
internamento era compulsivo e os seus
direitos deixavam de existir. Qualquer
tentativa de fuga era punível e o trabalho
funcionava como processo terapêutico e de
formação profissional. Esta era uma medida
já a pensar na reinserção social. O ponto
fundamental era a alfabetização dos que
podiam sobreviver.
Independentemente
da doença ter ou não cura, o cinema
eternizou-a como algo de muito negativo e
até mesmo assustador. Os leprosos eram os
proscritos, os bandidos e por isso o castigo
era aquela doença que o fazia morrer aos
poucos, por não terem cumprido certas regras
impostas pela sociedade. O imaginário
popular tende a eternizar este mito. A
palavra leproso era dita em tom receoso,
como se fosse uma forma de nunca chegar
perto do que se desconhecia, mas que
aterrorizava todos.
O curioso é que
em pleno século XXI os medos ancestrais
regressaram todos levando a que as pessoas
se afastem umas das outras e que se esqueçam
do poder do toque e da sensibilidade de cada
um. Há um saltar constante de egoísmos
diários, de não querer saber e de denúncias
como se nada se soubesse sobre medicina.
Esta ciência continua em evolução, como é
natural, mas a humanidade, aquilo que dá
destaque às pessoas, parece estar em modo de
esgotado ou até mesmo de desconhecido.
Agora não existem os sons matraqueantes
das castanholas de aviso, mas sim os designs
digitais que continuam a fazer a
diferenciação entre as pessoas. Novos tempos
e novos métodos de separar, de criar
divisões, de afastar e manter os que não se
deixam moldar, longe dos que tudo permitem.
Em nome da saúde de todos, matam-se os sãos
e os fracos e incapazes, ganham primazia e
são o novo exército que se chega à frente e
faz ouvir a sua voz. Mesmo que nem todos
concordem, permitem que lhes seja roubada a
liberdade de decidir.
Inês de Castro, o amor eterno
- Partilhar 28/06/2021
O amor é um
sentimento grande e profundo que desnorteia
quem o sente e torna refém quem o entoa.
Falta de controle, ânsia, comunhão, beijos,
abraços, corpos que se dão, borboletas que
povoam a imaginação e linhas que se cruzam e
entendem. O amor tem tanto de belo como de
tirano.
A antiga província da
Lusitânia, ocupada pelos Suevos e pelos
Alanos e posteriormente pelos Visigodos, que
foram banidos pela ocupação muçulmana, em
711, é reconquistada pelos reis cristãos em
duas fases distintas. Cerca de 900, Afonso
III das Astúrias toma-lhes dianteira e, em
1064, Fernando I de Castela, segue-lhe a
tarefa.
No século XII,
com Afonso Henriques, em 1143, o Condado de
Portugal, o espaço da região do Porto,
torna- se independente, com a subida deste
rei ao trono, uma luta que só ficará
esclarecida em 1179. O sul necessita de ser
reconquistado e a capital situa-se em
Coimbra. Os descendentes terminam a tarefa e
Afonso III, será o rei de Portugal e dos
Algarves.
Corria o ano de 1340 e Inês
é escolhida como dama de honor de Constança,
herdeira de uma importante família
espanhola. Deixa a família e segue com a sua
senhora para Portugal. Esta desposará Pedro,
herdeiro do trono. Inês possui pergaminhos
apesar de ser uma bastarda. A sua beleza
estonteante faz perder a cabeça ao príncipe
e tornam-se amantes, apesar das tentativas
de Constança para o evitar. O rei, sabedor
da situação, expulsa-a da corte.
A
vida prega partidas cruéis. Em 1345, com a
morte de Constança, Pedro fica livre para
fazer regressar a sua amante à corte. A
oposição é grande mas o amor é maior e muito
poderoso. Da união nascem três filhos que
fazem as delícias do avô Afonso IV. O tempo
de calma é interrompido pela voz estrondosa
dos obstáculos políticos. Os irmãos de Inês
tentam incitar a divisões políticas. Pedro
seria pretendente aos tronos de Aragão e de
Castela, como testa de ferro dos cunhados.
Afonso, que tentava evitar conflitos a todo
o custo, é forçado a intervir.
Os
conselheiros entendem que Inês é a génese da
contenda, mesmo que nada tenha a ver com o
assunto. Outro receio assola o rei, o medo
de que o filho de Pedro, Fernando, seja
morto e que um dos filhos do novo casal tome
lugar no acesso ao trono. Só há uma forma de
resolver tudo e será com a morte de Inês.
Aproveitando a ausência do filho, em combate
como se esperava de um jovem príncipe, dá
ordem para que seja cumprida a sua sentença.
A 7 de Janeiro de 1355, Inês é entregue
ao algoz que cumpre a ordem recebida. O seu
corpo é enterrado no Convento de Santa
Clara, onde estava instalada com os filhos.
É assim, sem qualquer tipo de romantismo,
sem dó nem piedade, que se acabava com os
que pudessem fazer frente ao reino, mesmo
que houvesse laços de sangue a ligar.
Pedro assim que toma conhecimento do
desaparecimento de sua amada, cego de dor
lança armas contra o seu pai. Felizmente que
termina muito rápido e por acordo. Contudo a
ira fica acumulada e os conselheiros
responsáveis pelo trágico destino
refugiam-se em Castela com receio de uma
vingança sangrenta. Aos 37 anos e com a sua
subida ao trono, a justiça começa a ser
aplicada.
Dois deles são entregues
pelo rei de Castela, perante grande pressão
de Pedro, que são torturados e queimados. O
terceiro conseguiu fugir. A cabeça quente e
o ódio são maus conselheiros mas a paz é
sempre serena. Mais tarde os descendentes
dos carrascos serão agraciados com bens
legados pelo próprio rei. Uma forma de
equilibrar a justiça.
De seguida
cuida da imagem da sua amada, fazendo com
que o povo saiba qual era a sua força e
intensidade de sentir. Reabilita-a fazendo
com que os seus restos mortais sejam
colocados na abadia de Alcobaça. Com pompa e
circunstância, à luz de archotes e tochas,
nobres, religiosos e o muito povo, assistem
à cerimónia que termina com a inumação de
Inês, no esplêndido túmulo que Pedro mandara
construir para o propósito.
O dia 7
de Janeiro fica marcado como o que, com um
machado, cortou o pescoço a Inês de Castro,
a bela mulher por quem D. Pedro se tinha
apaixonado. O seu crime foi ter amado alguém
que a amou com a mesma pureza e intensidade
e esse amor, que gerou filhos que tiveram
papéis importantes, posteriormente, criou
uma lenda que se perpetuou. Inês é a heroína
que a todos toca.
Luís de Camões
conta o seu fado com um episódio
dramaticamente intenso e belo na epopeia Os
Lusíadas. Este amor, grávido de sentimentos
e de emoções, gerou uma onda literária que
entusiasmou muitos. A sua fama corre
fronteiras e é imortalizada em pinturas,
música, literatura, em tudo o que for
necessário. Algo de tão enternecedor, apesar
de ter sido trágico, comoveu a Europa.
Inventam-se novas vidas, situações
impossíveis mas Inês não pode ser uma mulher
vulgar. A sua súplica, ao rei, enternece-o e
arrepende-se da ordem dada mas o certo é que
a heroína se transforma em mártir. A sua
morte foi o palco para a imaginação, para o
que se desejava, para o impossível de
acontecer. Um romance que não calou um rei
que a quis sempre rainha.
As lendas
são formas de passar as ideias e de as
tornar mais suaves e vistosas. Inês foi
coroada rainha já cadáver, uma noiva que
exalava o horror e a morte mas que, por um
hábil golpe do destino, a deixou sempre
jovem e perfeitamente bela. Filha do mordomo
mor do rei D. Afonso XI de Castela, havia
esperança para o seu futuro, tendo sido aia
de uma rainha.
A realidade conta-nos
algo de diferente, que D. Afonso IV mandou
exilar Inês de Castro no castelo de
Albuquerque de modo a afastá-la de Pedro, o
que não surtiu qualquer tipo de efeito,
mesmo que esse amor fosse epistolar. Depois
da morte de D. Constança, o viúvo, manda
regressar a sua amada.
Perante as
aparências, D. Afonso tenta casar D. Pedro
com uma conhecida e renomada nobre, mas tal
sugestão foi logo rejeitada. O amor que os
unia continuou e deu frutos, Afonso, que
morreu pouco depois de nascer, João, Dinis e
Beatriz, que foram o pomo da discórdia entre
pai, filho e o reino.
Instalados no
Paço de Santa Clara, casa mandada construir
pela sua avó, a Rainha Santa Isabel, a vida
continuava em plena felicidade. O casamento
que os uniu, secreto, foi por D. Pedro
confirmado, através da Declaração de
Cantanhede, o que provocou, de imediato, um
incidente político. Os filhos eram legítimos
e teriam tanto direito ao trono como o seu
irmão, D. Fernando.
A vida é madrasta
e cruel mas oferece lições de sabedoria. Os
filhos de Inês e Pedro, aqueles que pareciam
o perigo para o reino, foram pessoas de
grande relevo. D. Beatriz foi condessa de
Albuquerque, D. João, duque de Valência de
Campos e D. Dinis, senhor de Cifuentes. E se
tal não bastasse, D. João I era filho de D.
Pedo, um bastardo que vai dar origem a uma
nova dinastia.
Mas há sempre uma
justificação para certas atitudes. D. Afonso
IV tinha raiva a Inês não por ser quem era,
que a considerava uma excelente mãe, mas por
ter sido criada por Afonso Sanches, filho
bastardo de seu pai, D. Dinis, ou seja, seu
irmão e defendido por sua mãe. O sangue real
corria em ambos os corpos mas o receio de
ser ultrapassado era maior.
Os nomes
de Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves podem ser
desconhecidos para muitos, mas o sangue de
Inês está nas suas mãos e D. Pedro, não se
coibiu de se vingar. Já Diogo Lopes Pacheco
conseguiu fugir para França, o que lhe
permitiu continuar vivo e fugir da cega
vingança do rei, mesmo que tenha sido
perdoado na literatura posterior.
A
arca tumular de Inês de Castro,
estrategicamente colocada no Mosteiro de
Alcobaça, de frente para a de Pedro, é uma
peça exemplar pela rara beleza que mostra.
Lamentavelmente desconhecem-se os nomes dos
mestres que deram o seu melhor nesta obra
mas o certo é que encanta quem a vislumbra.
Durante as invasões francesas, Massena,
um dos generais de Napoleão, deu ordens para
retirar tudo o que fosse possível e levar
para França. O túmulo de Inês permanece
adormecido mas danificado. O nariz, que está
partido, não sofreu qualquer tipo de
acidente mas foi danificado
propositadamente. Apesar de tudo não lhe
retira a beleza e aumenta a lenda.
Inês, mulher bela e apaixonada, morta jovem,
mártir do amor é lenda que se vai fecundando
na literatura e no imaginário popular.
Coroada rainha depois de morta, continua a
ser amada por gerações que sentem o sangue
quente e leve que o amor pode proporcionar.
Não foram as borboletas que a mataram mas
sim as mãos humanas cheias de ódio, de raiva
e de ciúme que jamais poderão ser
esquecidas.
Santiago de Compostela
- Partilhar 26/05/2021
Em 1078, Afonso VI, rei de Leão e Castela,
decidiu reconstruir a basílica consagrada ao
apóstolo Tiago Maior, tendo recebido todo o
apoio do bispo de Compostela. Tudo se prende
a uma tradição remota, de 951, quando
Gotescalc, bispo de Puy, efetua a primeira
peregrinação a Santiago de Compostela, um
hábito que não existia e que se tornou
vulgar. Somente no final do século XI,
quando a insegurança abandona o norte da
Europa, com a acalmia das várias investidas
mouras, este caminho religioso conhece o seu
apogeu.
Segundo uma tradição, do
século VIII, depois da morte de Tiago,
decapitado em Jerusalém, os discípulos
teriam depositado o seu corpo numa barca, de
forma a manter o resto da sua integridade.
Os anjos encaminharam a mesma até Espanha,
reino já evangelizado por ele e que o
estimava. Outra lenda fala de um eremita, no
século IX que, surpreendido pela luz de uma
estrela, seguia-a até chegar ao local exato
da sua sepultura, que estava enterrado na
Galiza, em Padron.
O bispo autenticou
os despojos e mandou construir uma igreja
nesse local. Rapidamente se tornou o patrono
da luta contra os infiéis, os mouros, que
dominavam uma grande parte do território.
Num ápice foi-lhe atribuído o epíteto de
Matamore, matador de mouros, É curioso
verificar que um homem pacífico e de cariz
peregrino, se transforme em guerreiro. Uma
coabitação precisa e necessária. A fé tem
contornos que o comum dos mortais nem sempre
consegue alcançar.
Os trabalhos são
entregues a dois mestres de obra que se
supõe serem de origem francesa e com
experiência neste tipo de edifícios. Tem 90
metros de comprimento e é adotada a cruz
latina como planta, o que inclui três naves
e um vasto transepto com 67 metros de
comprimento. Na parte traseira situa-se o
altar mor e abriga o túmulo do santo que
pode e deve ser visitado. Em redor, várias
capelas convidam à oração e o silêncio que
se sente é de emoção. Com o passar do tempo,
a decoração original foi sendo alterada.
Em meados do século XIII, Mestre Mateo,
procede uma remodelação no portal principal
e esculpe representações com grande
significado teológico. Aí se encontra
representado o santo, Tiago com vestes de
peregrino, sentado e acolhendo os que o
pretendem visitar. Todos este belo trabalho
acabou por ser em vão pois no século XVIII o
estilo barroco deu entrada nesta igreja e
nasce assim o Pórtico da Glória, uma obra
emblemática e que atrai ainda mais
peregrinos, sejam eles religiosos ou não.
Este Pórtico, inicialmente pensado pelo
Mestre Mateo, tinha como missão nivelar as
naves do templo com o terreno circundante e
por isso foi construída uma nova cripta. As
figuras esculpidas tinham uma missão
pedagógica e calmante pois a forma como eram
detalhadas, levava os crentes a evitar o
contacto direto. Foram, posteriormente
retiradas e podem ser vistas no museu da
catedral. O policromado esbateu-se e restam
poucos vestígios das suas cores.
Os
peregrinos que pretendem entrar em Santiago
têm um longo caminho a percorrer. Trajados
com uma túnica curta, com uma romeira e um
chapéu de abas largas enfeitado com uma
cocha de vieira, o símbolo de Tiago, tinham
ainda uma saca de mendigo e um bordão. Era
os auxiliar para a caminhada e a saca seria
para recolha dos alimentos que conseguissem.
Antes da partida eram abençoados pelo bispo
e seguiam em grupo. Nos tempos idos as
estradas, poeirentas e estreitas, pouco
tinham de segurança e por isso os grupos
ofereciam uma forma de apoio e de
sobrevivência.
As pernoitas eram
feitas nos mosteiros ou nos hospícios, os
que incluíam esse serviço pois os albergues
eram zonas onde a marginalidade acontecia
com facilidade e assim sendo os roubos eram
frequentes. A comida era mendigada mas como
os cristãos sabiam que deviam ajudar os
seus, por pouco que tivessem, não faltava
para acalmar o estômago que pedia atenção. O
caminho era longo mas o mote era ainda
maior. Quando chegavam ao Monte da Alegria,
sobranceiro a Compostela, as dúvidas que
podiam existir, dissipavam-se e sentiam que
a recompensa pelo esforço era grande.
Antes de entrar na Catedral o peregrino
tinha um ritual a cumprir. Era a purificação
através da lavagem e onde as dores que
pudessem sentir ficavam esquecidas. Passavam
a noite na catedral e entoavam cânticos como
forma de agradecimento. No dia seguinte era
o tempo das oferendas e da missa. Só depois
é que se dirigiam ao altar mor e rezavam
junto do túmulo do santo. Havia lugar ao
beijo e às procissões, ao confessar e à
comunhão. O ponto alto estava atingido. A
partir do século XIV surge a compostela, um
certificado que comprova a peregrinação e
que deve ser marcado em todos os pontos.
As motivações de cada um eram diferentes
e criavam expetativas fortes e singulares. A
viagem é feita de livre vontade para pagar
uma promessa, para procurar a cura ou apenas
por agradecimento. No caso oposto, onde a
dita era uma obrigação, seria uma penitência
para a remissão dos pecados. Também havia
quem fizesse a peregrinação em nome de
outros para que Tiago tivesse a graça de
auxiliar os que não a podiam fazer. A
finalidade era sempre a mesma, o que variava
era a forma de a obter.
Para um
cristão estar junto da tumba de um santo era
a porta aberta para a solução da questão que
lhe colocava. Era a cura da doença, o
desenlace do problema ou ainda os mais
variados milagres que o patrono conseguia
fazer. Aos doentes era dada a saúde, aos
cegos a vista, aos mudos desata-se a língua,
os surdos passam a ouvir, os coxos andam
naturalmente, os possessos são libertados do
mal, o pecado é perdoado e ao céu abre as
suas portas para receber os crentes.
O Caminho de Santiago tem sete rotas
históricas: o francês, o do Norte, a Via de
la Plata, a Rota Marítima, o inglês, o
Primitivo e o Português. Qualquer um deles
tem como missão chegar a Santiago de
Compostela e orar ao santo. Ou apenas
conversar com ele e admirar as maravilhas da
catedral. Dos tempos antigos até à
modernidade tanto aconteceu e por isso os
motes sofreram alterações. A época medieval
deixou marcas profundas mas os que chegam
agora sabem como se adaptar.
Percorrer os caminhos que os antepassados
calcorrearam, com dor e lamento é um valor
acrescido e poderoso. As estradas são as
mesmas, mas os tempos são outros. Agora é
tudo mais fácil mas o mote pode ser igual. O
peregrino quer sempre algo de volta, o seu
eu que foi sendo moldado ao longo da viagem.
Hoje pode ser feito através de outros meios
e até o carro, a bicicleta ou mesmo o
cavalo, são auxiliares para o mesmo fim. Se
antes o peregrino ia só, encontrando outros
que palmilhavam as mesmas rotas, agora é
muito possível cruzar-se com famílias que
iniciam os seus elementos mais novos nesta
tão salutar prática. Há a cultura e há a
religião.
Quando o peregrino chega à
Cruz de Ferro, sente que os outros todos, os
milhares que lá estiveram, o abraça pois é
um local emblemático. A partir de agora o
caminho é sempre a descer e o destino está
mais próximo. É neste local muito aprazível
que se deposita o que se leva de propósito:
um santo, um lenço, um pedaço de cabelo, um
escrito, uma pedra, o que se quiser. Eu
deixei a pedra que foi escolhida, de
propósito, para esse fim. Estará em
confraternização com todos os votos de cada
um.
Não perca uma visita por Santiago
de Compostela com detalhes acrescidos. Agora
é zona de gentes bem jovens, que estudam na
Universidade e, por isso, os bares estão
sempre cheios de alegria e boa disposição. A
noite também faz parte do final da
peregrinação e pode ser celebrada em grande.
Visite o Casco Histórico e oiça as vozes dos
que por ali andaram e deixaram os seus
lamentos e desejos. Passeie nos vários
parques que estão equipados para receber os
visitantes. Oiça os pássaros e sente-se no
chão. Sinta tudo. Viva o momento.
Assista à Missa do Peregrino e delicie-se
com o Botafumeiro, o incensário que seis
homens empurram, de um lado para o outro da
nave, perfumando o ambiente e soltando as
mil e umas bênçãos que todos desejam. O som
que se ouve é inesquecível e dá vontade de
voltar, de sentir, com outros a mesma
sensação de pertença e de união. Qualquer
lugar é perfeito para se sentar e ficar.
Fique. Ajoelhe-se perante o santo e coloque
os dedos nos locais certos. Dizem que ajuda
os estudantes e os necessitados mas a
verdade é que tudo justifica o seu caminho.
Visite o Museo do Pobo Galego. Instalado
num edifício emblemático, o antigo convento
de San Domingos de Bonaval, reconhecido como
"centro sintetizador dos museus e coleções
antropológicas da Galiza". É um concentrado
das tradições e da memória coletiva dos
galegos, ao longo dos anos. Uma viagem comum
a muitos povos e uma forma de se sentir
ainda mais integrado na cultura popular.
Além da coleção permanente ainda pode
usufruir das exposições temporárias.
Este ano é o Xacobeo, ou Jacobeo. É o nome
que se dá ao ano santo, quando o dia 25 de
Julho, data de nascimento do santo, S Tiago,
calha a um domingo. Isto significa que
existem mais festas e mais comemorações
especiais numa terra já de si sempre em
festa. Como no ano passado, a pandemia não
permitiu celebrações assim sendo, o ano
santo prolonga-se até 2022 e terá muito para
oferecer. Aproveite para conhecer os
recantos desta cidade e entre em tudo o que
seja possível. Há cafés com decorações
únicas e ruas que sabem abraçar.
O
peregrino tem os seus símbolos, que o
identificam em cada sítio por onde passa. Um
deles é a vieira, uma concha que tem o
tamanho certo para recolher a água e servir
de bitola para os alimentos. Um pouco de
arroz ou qualquer outro abafo do corpo, se
couber naquele espaço, é suficiente para o
corpo. Os sulcos são uma metáfora pois
convergem para o mesmo ponto, que é a
catedral com o santo, a rota que todos une.
O bordão ajuda na caminhada e se tiver um
gancho serve de auxiliar de transporte, um
outro braço que ajuda a carregar. A
compostela é o passaporte, ou seja, onde é
registado o percurso que cada um fez pois
recebe um carimbo por cada local percorrido.
O mais importante de todos é o que é
colocado em Santiago de Compostela.
É
natural que em cada recanto seja presenteado
com grupos de músicos ou de novos
saltimbancos que alegram todos com a sua
arte. A cidade fervilha e não dorme. Há vida
em todos os locais e as comidas são outro
atrativo. Fique ciente que está na Galiza e
come-se bem em todos os cafés, bares,
restaurantes e similares. Aventure-se e
deixe-se levar por tantos anos de história e
de lendas. Compre recuerdos, vagueie pelas
ruelas e sente-se nos degraus que, outrora,
foram companheiros de quem sabia que a
chegada a Santiago iria mudar a sua vida
para sempre. Esses, mesmo não sendo vistos,
continuam vivos.
A Peste Negra
- Partilhar 27/04/2021
A peste é propagada por um bacilo transmitido pela pulga quando passa do rato para o homem. Foi a maior catástrofe demográfica da Idade Média, que se abateu sobre a Europa em meados do século XIV, tendo levado ao pânico e a massacres, bem como à mortalidade tão elevada que ceifou um terço da população. Este século foi apelidado de nefro pelas mazelas que deixou.
O clima estava mais frio, as epidemias eram mais numerosas e a fome andou sempre de mãos dadas com as gentes. Além disso as guerras não tiveram tréguas sendo que a Guerra dos Cem anos tem o seu início nesta época, Bizâncio tem que lutar contra a pressão turca e os cavaleiros teutónicos invadem, por sucessivas vezes, a Prússia. Uma paleta de situações que em nada favorece os habitantes dos vários reinos europeus.
A ideia que se tem é que a peste terá tido a sua origem na Ásia, através dos navios que vinham da Crimeia e que aportaram em todos os portos europeus. Difunde-se com os viajantes, a partir das costas italianas e espanholas. Atravessa os Pirinéus e entra no sul da França, em Avinhão e Toulouse, em 1348. Atravessa a Mancha, com as mercadorias dos navios e Inglaterra e a Irlanda são infestadas. A Escandinávia não foi poupada e daí vai até à Rússia e à Hungria.
O que se notava, nos contaminados, eram gânglios nas virilhas, no pescoço e nas axilas que iam mudando. Primeiro ficavam duros e depois mudavam de cor, ficando pretos o que deu o nome à doença. Seguia-se a febre e vinham as hemorragias, levando à fraqueza. A parte final seria o delírio e a morte era certa. Em dois ou três dias, a ceifeira era eficaz. Este foi um fenómeno essencialmente urbano devido à proximidade das gentes. O campo, com o seu isolamento, funcionou como uma espécie de proteção, fazendo com que os que viviam nesses locais ficassem afastados da doença.
Claro que as classes sociais sentiam a doença de forma diferente. Os pobres eram os mais afetados devido à sua exposição. Sem comida nem poiso certo e muito menor roupa a proteger o corpo, era a porta de entrada para o mal. Há que referir que a higiene era muito duvidosa e deficiente. Sem posses de fugir do antro de propagação, a morte era certa. É assim que se sabe como foi escrito o Decameron. Boccaccio refugia-se nas suas villas, nas colinas de Florença e a inspiração surge com o auxílio de um grupo de jovens.
Sem saber a causa da doença, atribui-se ao ar e aos alimentos a sua origem. Ou até mesmo à água. As suspeitas ganham dianteira e o medo instala-se- Suspeita-se de todos, até mesmo dos mais próximos. A morte ganha contornos estranhos e irregulares. O pouco conhecimento que havia sobre a medicina leva a conjeturas estranhas e incongruentes: os quartos devem ser quentes e secos, deve comer-se apenas carnes brancas e evitar as bebidas.
Igualmente se aconselhava a evitar os amores, as carícias, qualquer tipo de toque e até mesmo as conversas que podem propagar a doença. Nenhuma destas medidas tiveram alguma eficácia, revelando-se todas impotentes. É compreensível que se buscassem ajudas externas, tais como a magia ou a astronomia. O mais comum era entregarem a sua vida nas mãos de santos protetores. É neste contexto que Sebastião, cujo corpo estava trespassado por flechas e cujo sangue jorra, se torna o patrono da esperança.
Os médicos usavam uma máscara com um bico e na ponte do mesmo colocavam ervas aromáticas para evitar o cheiro pestilento dos mortos e dos doentes. Assim ainda se mantinha o afastamento e o toque era quase impossível. Contudo nada resultava e a doença continuava a matar.
Procuram-se bodes expiatórios e os pavor dos pecados e castigos assolam a mente de muitos. Alguns açoitam-se e outros cometem outras atrocidades contra a sua pessoa na ânsia de encontrar uma cura. Tudo está envenenado, segundo eles e a culpa é dos judeus, os que mataram Jesus Cristo e querem, agora, a morte de todos os cristãos. Fazem-se execuções e queimam-se pessoas. Algumas cidades impõem prazos para a saída dessas indesejadas pessoas.
Com eles vão também os prestamistas, os usurários, os ricos e todos aqueles que os pobres, na cegueira do medo e do pânico instalado, acusam de serem os responsáveis pela peste. Com estes atos, as aversões sociais e os ódios raciais ficam ao rubro.
Tudo o que se refere aconteceu no século XIV, um tempo em que as trevas cobriam o mundo e toldavam as mentes. As pessoas viviam em profunda miséria e ignorância e os avanços científicos eram rudimentares ou nulos. O medo ganhava terreno fértil devido à inexistência de conhecimento e os comportamentos sociais eram a prova de que a ideia de o castigo existia.
A vida, mesmo que fosse assustadora e repleta de imagens de sofrimento real, continuou como se a tal doença, o castigo que entendiam ser maior, não desse quebra. Nada parou e a vida, dura e incerta, seguiu o seu rumo natural. A morte rondava os dias que se cobriam de tonalidade escura e pestilenta. A cidade e o campo pulsavam com os que sobreviviam à tormenta.
Hoje estamos no século XXI. Um tempo que cresceu com sinal contrário e onde as trevas encontram pouso seguro. Os avanços tecnológicos permitiram uma maior qualidade de vida da população mas, por oposição, retiraram o instinto natural de sobrevivência.Não sabem como se defender quando são alvo de ameaças e, sem se darem conta, regressam a um passado que deveria estar muito bem encerrado.
Em tempo de conhecimento o mundo decide parar, refugiar-se debaixo das camas como se houvesse um botão imaginário para retroceder no tempo, nas mentalidades funcionou em pleno, evitando encarar o que estava a acontecer. A vida continua mas as pessoas agora são mais fracas e desconfiadas. Vão perdendo a sua humanidade e tudo é motivo para atiçar os ódios que estavam recalcados.
Vivemos no século da ciência, das alterações da sociedade, da mudança de sexo e afinal nada sabemos. O medo, que aumentado exponencialmente resulta em pânico, continua a ser rei e senhor. Os maus hábitos não se perdem só que o horror à morte ganha dianteira, alguns sentem-se perdidos e outros seguem para uma nova guerra onde se cria um exército de soldados coxos que se limitam a reproduzir o que ouvem. Seja ou não verdade.
Tristes os que nunca perceberam que a morte é natural. Sempre se morreu e esse é o fim da linha da vida. Essa não termina nunca pois o seu ciclo é contínuo e perpétuo. Não há lugar para todos e a velhice é a recompensa para quem consegue viver muitos anos. Morrer é fechar os olhos de vez e seguir para uma paz ansiada. Felizes os que o conseguem.
Viver continua a ser uma aventura constante que apresenta inúmeros riscos. O simples facto de respirar é um perigo pois o planeta está a ser envenenado por todos, pela poluição que o Homem provoca e pela falta de cuidado que é da responsabilidade de todos. As doenças são barreiras naturais e algumas são fruto da civilização.
Os amuletos que se usavam na Idade Média, aqueles que davam alguma esperança para que a vida fosse maior e a morte se afastasse, estão agora de volta com novas formas. Volta-se a acreditar em fetiches, em bugigangas e outros que tais para que tudo se apague e seja perfeito. A realidade é outra mas a mentalidade é a mesma, pequenina e curta como se a ciência fosse uma vaca sagrada e não tivesse avanços e recuos.
O mundo que se conhecia está tapado com outras trevas que são difíceis de levantar. Os pobres, em frente unida, sentem-se escorraçados e humilhados e os ricos continuam a ser o mesmo, ricos e a olhar com desdém para os que não são da mesma laia. A divisão está maior e tende a continuar. Já há quem medigue a saúde e o comer, os restos, os despojos que os outros, os que têm a tal ciência do seu lado, ainda podem ou querem dispensar.
Feliz Aniversário
- Partilhar 24/03/2021
Passa um ano sobre a data em que o nosso
país parou. As escolas encerraram, as
pessoas foram enviadas para casa, o trabalho
passou a ser feito de forma diferente e
aquilo que se pensava, na santa ingenuidade
de alguns, ser uns dias, passou a 365 deles,
um ano redondo que veio alterar tudo. E
continua.
Os alunos, como se
esperava, passaram todos de ano e alguns com
notas maravilhosas e milagrosas, os exames
nacionais, esse tão extraordinário êxito,
vai ser repetido este ano letivo, o saber
deixou de fazer sentido e dá-se a primazia
ao que não importa. Os alunos que estudam
ficam equiparados aos preguiçosos, uma
maravilha como se entende. O mesmo se aplica
do outro lado, com o outro grupo, o dos
professores: uns esforçam-se e outros nem
por isso.
Muitas pessoas
perderam os seus postos de trabalho e a
miséria bate à porta de muitos, só que ainda
é envergonhada. Proíbem-se as pessoas de
trabalhar, as que ainda podem, esquecem-se
os mais novos que precisam de crescer e
brincar, os adolescentes passam a ser
bonecos neste xadrez e as consultas nos
hospitais deram uma volta tão grande que
desapareceram ou então são feitas através de
um aparelho, o telefone.
Nunca mais se morreu
de velhice, de gripes, de pneumonias nem de
outras doenças fatais, pois uma nova doença
tomou a dianteira e usurpou os lugares
cimeiros. Espalhou-se o medo e o pânico e as
trevas desceram sobre a terra fazendo
acordar os fantasmas tão adormecidos da
denúncia e da delação. A nova Idade Média,
com os seus novos medievais, chegou para
ficar.
Colocam-se máscaras
nas pessoas para não se lerem as expressões,
encerram-se as pessoas em casa, tratam-nas
como se fossem uns atrasados que precisam da
mão para atravessar a rua e começam a
fazer-se as divisões: uns de cara tapada e
os outros com ela à vista para que provem
que nada têm a esconder.
Acenam-se com as
cenouras de apoios sociais que não existem
ou que tardam em chegar ou são ridiculamente
humilhantes mas, quando não há pão, todos
ralham e ninguém tem razão. A melhor arma é
a ignorância e quando menos o povo souber
mais fácil é de ser manobrado. Mesmo que se
tente explicar, a falta de bom senso fala
com voz grossa e convence quem não sabe.
Criou-se o mito de
“Vamos ficar todos bem” mas a verdade é que
estamos bem mal, com gentes que mostram o
seu pior, que afinal não sabem amar mas sim
odiar e o egoísmo e a raiva, são os motes
que arrastam milhares mas sua onda.
Cortam-se os laços sociais e soltam-se as
incertezas e desconfianças, matéria prima
para as tormentas que se enfrentam em grande
escala.
Sobreviver passa a
ser a palavra de ordem e não importa o
custo. Por mais elevado que seja o preço,
não se olham a meios para atingir os fins.
Engana-se, empurra-se, rouba-se e afinal
está tudo bem, que o povo é sereno e afinal
é tudo fumaça. Enquanto houver dinheiro para
pagar a quem não tem preocupações, a vida
irá fluir. Os outros, enfim... os outros que
façam pela vida que os bem instalados não
querem saber.
Chega a guerra das
vacinas, dos laboratórios a faturarem que
nem uns doidos, com preços que ninguém sabe
e com informações que não batem certo. As
vacinas precisam de tempo para serem
testadas, para obter os resultados certos
sem margem de erro e onde a eficácia seja a
palavra que reine. A luta entre os ditos é
aguerrida e o que se sabe não é do agrado
geral. As notícias não batem certo e
suspendem-se as tais vacinas, mas afinal não
era nada e continua tudo na mesma.
Criam-se grupos para
receber as tão desejadas vacinas, as poções
milagrosas que vão ser o talismã que irá
acompanhar quem as quiser ou puder receber.
Criam-nos novas e inúteis divisões. Uns são
mais importantes do que os outros e ainda
existe um outro grupo, o dos que estão
sempre primeiro do que os primeiros, assim
uma espécie de escolhidos que terá a bênção
perfeita. Esses têm o futuro assegurado. É a
glória que é atingida.
Os mais velhos
continuam assustados, com medo até de
respirar e a palavra morte, aquela que
esconderam de tantos durante anos, passa a
ser a mais dita e divulgada, tal como a
doença que quer ser mediática e trazer à
ribalta os que são infetados com o tal
vírus. Os testes são feitos às três pancadas
e nada está dentro dos parâmetros a não ser
a má vontade e a falta de educação. Essa
conjugação está perfeita e funciona
autonomamente.
Outros estão tão
encolhidos que não sabem como será o dia de
hoje e muito menos o de amanhã. A luta é
diária. Perderam o que tinham e ainda podem
ter a esperança de que um dia recuperem o
que foi seu. Contudo há os que sabem que
nada voltará a ser como era e que a
escuridão ainda vai persistir durante muito
tempo. Esses estão bem conscientes da
realidade mas outros há que continuam a
tapar o sol com a peneira.
Esquecem-se de que
tudo pode mudar e quando houver lutas por
batatas e pão, o povo sabe mostrar que não
tem qualquer tipo de educação educação, que
não quer saber, que é capaz de qualquer
coisa para se manter. Ficar à tona com
elegância deixa de ser possível e a guerra,
que já começou, há muito, em modo de
suavidade, passa a violência da grossa e com
consequências bem graves.
Os constantes Estados
de Emergência são assassinatos de muitos. Os
pequenos negócios não têm capacidade para
sobreviver a este abre e fecha e a tantas e
tão díspares restrições. As pessoas querem
trabalhar, serem cidadãos úteis à sociedade
e não querem ser tratados como se fossem
pedintes ou crianças que precisam de quem
lhes dê a mão. A economia tem que funcionar
e não se pode matar um país em nome de
sabe-se lá o quê. Há que saber enfrentar as
dificuldades.
O futuro é hoje e
agora. Quem é que ainda não percebeu? Se não
se tomarem as devidas medidas e
providências, a escuridão irá manter-se e
tudo o que se conhecia antes, passará a
histórico e entra no mundo estranho das
quimeras e das utopias. Uns percebem e
outros insistem, uns querem e outros não e a
vida escoa-se como se fosse água que não
mata a sede mas sim a humanidade.
Felizmente que a
Primavera chega com os seus sons e tons, com
as tonalidades de pastel que a todos
encanta. Ver é delicioso, sentir é
maravilhoso e viver é único!
Os Reinos Merovíngios
- Partilhar 27/02/2021
Nos finais do século V, o rei Clóvis
conquista a Gália através das armas. Os
romanos não aceitam esta derrota com
facilidade por isso o período que se segue
será de lutas pelo poder supremo. A boa e a
má vontade dos nobres será testada até ao
extremo através da violência e da desordem.
Esta é a imagem que vai sendo passada na
memória coletiva desta época, um período
muito obscuro e sanguinário.
No
decurso dos séculos V e VI, os Bárbaros
fixaram-se nas regiões da Europa e aí
criaram estados. Dir-se-ia que continuariam
a chacina a eito mas algo se modificou
nestas gentes que acabaram por dar origem a
reinos que deixaram marcas poderosas mas com
sinal oposto ao do seu início. Se antes a
ideia era devastar, agora era conquistar e
assim amealhar.
Oriundos da região do Elba, ao Anglos e os
Saxões, tomaram posse do território que,
mais tarde, ganhará o nome de Inglaterra.
Fundaram sete pequenos estados que ficaram
conhecidos com o nome de Heptarquia.
Nortúmbria, Mércia, Ânglia Oriental, Essex,
Sussex e Wessex. Reinos pagãos que depois se
cristianizaram.
Os Ostrogodos tomaram
Itália em 489-93 fundando um reino que vai
passando de mãos. Meio século depois o
imperador bizantino reconquista-o e, na sua
última vaga de trocas, é substituído pelos
últimos invasores germanos, os Lombardos já
em 568. Um território que andou em bolandas
e que se reinventou.
Os Visigodos, os
mais temíveis e terríveis destruidores de
Roma em 410, arrebanham caminho e seguem até
à Gália, ficando instalados dos dois lados
dos Pirinéus, quer na Aquitânia, quer em
Espanha. Toulose vem a ser a capital do
reino que estende os seus domínios até ao
Loire.
Os Burgúndios instalam-se no
sudoeste da Gália e no final do século V
dominavam toda a zona da bacia do Ródano,
marcando a sua forma de estar e de manter
alianças com quem lhes poderiam trazer os
maiores benefícios políticos, incluindo os
casamentos.
Os Francos ficam no
norte da Gália, dividindo-se em tribos com
reis individuais. É uma destas tribos que
tem como soberano Childerico, pai de Clóvis,
sendo que consegue a unidade destes povos
deixando aos seus sucessores um trabalho
menos penoso.
Clóvis assistirá a
inúmeros confrontos contra todos os
mencionados povos. A guerrilha alastra até
Espanha, contra a resistência basca,
provando que estava apto a qualquer
confronto. As guerrilhas dinásticas são um
palco interessante para a conquista do
poder, mostrando o alastrar da violência
como se fosse um fósforo lançado em palha
seca.
O assassinato político, o que
leva à eliminação do inimigo, é uma técnica
bem explorada nestes tempos apesar de não
ser seu apanágio. A pesada herança romana
assim o obriga. Sem corpo não existem provas
e o dito fica por não dito. Ideia que terá
seguimento ao longo dos tempos.
Clóvis será o primeiro a conduzir a
unificação do seu povo e, como se pode
calcular, passa ordens para que Sigesberto,
o Coxo, rei de Colónia, deixe de existir.
Fica o caminho liberto para que Ragnacário,
rei de Cambrai e Riquier, o seu irmão, sejam
também eliminados. Desta vez foi Clóvis que
tratou do assunto com um machado.
O
sangue não se perdeu e durante anos a
chacina foi contínua chegando a ter
requintes de malvadez de que se destaca o
episódio da morte de Brunilde, uma mulher de
80 anos. Foi presa pelos cabelos à cauda de
um cavalo selvagem. Um espetáculo de teor
pedagógico com os resultados desejados.
Claro que estamos a falar de contendas
dentro da mesma família.
A escalada
de terror e horror inclui ainda os grandes
nobres e os prelados de que se destaca o
martírio do bispo de Autun, Léger. Este, por
se opor a uma certa nomeação, foram-lhe
cortados os lábios e a língua, os olhos
vazados e de seguida, como toque final, é
degolado. Como se tudo não fosse suficiente,
ainda foi ainda lançado a um poço.
É
neste contexto que surge a lei sálica, uma
forma de travar esta onda desenfreada que
invadia povos e se propagava a olhos vistos.
As penas criminais tentam tornar a pena de
talião " olho por olho, dente por dente ",
de forma a quebrar o ritmo das vinganças.
Assim sendo, a forma de reparação dos males
feitos pode ser amenizada com pagamento de
coimas. Criam-se, assim, listas
compensatórias para fechar o ciclo. Caso não
haja possibilidade de pagar, o direito de
represália assiste-lhes.
Tempos
medievais que soam a muito familiares. Hoje
a violência é exercida de modo mais suave,
com nomes elegantes mas que continua a
castrar de forma dolorosa. São as multas, os
castigos, as detenções, o enxovalho público,
o ansiado gozo popular. E o povo é sempre
aquele que mais sabe apontar o dedo e virar
o prego quando é preciso.
As trevas
tendem a descer e a cobrir os céus de hoje.
Se não é pelo lugar de chefia é pelo
mediatismo e, estes novos dirigentes,
precisam de ter um exército grande e bem
domesticado. O pão que lhes lançam, cheio de
ranço, é tido como especial. Os escolhidos,
os que o pensam ser, estão atentos a todos
os movimentos para ver se alguém levantou a
cabeça e se as normas, aquelas que mudam a
toda a hora, estão a ser cumpridas.
Hoje não são os reinos que se degladiam mas
existem somente uma espécie de guerra civil.
De um lado temos os mascarados e do outros
os de cara lavada. Uns aparentam ser as
formigas que se encaminham para o carreiro e
os outros desviam-se para encontrar novas
rotas. Ainda não são muitos, o que provoca o
efeito necessário, o de revolução.
Se
Jesus Cristo não tivesse dito que vinha
salvar os pecadores, todos os que viviam
naquela época continuavam a ser politeístas.
Ele, um, o homem, apenas uma pessoa,
conseguiu virar o mundo e transformá-lo de
tal ordem que se tornou persona non grata.
Se houve muitos que o seguiram, aquando da
sua detenção, esses mesmos, viraram-lhe as
costas e até o insultaram.
Galileu,
aos olhos de agora, seria considerado um
negacionista. Foi forçado a retirar o que
tinha afirmado mas a ciência e o tempo
vieram a dar-lhe toda a razão. Ele sabia mas
o mundo da ignorância onde a população
vivia, era bem mais confortável e seguro do
que aquele que ele apresentava. Era um risco
grande pensar.
A Resistência teve um
papel preponderante. Sem a ajuda preciosa
dos que se chegaram à frente, arriscando a
sua vida para que se soubesse, por artes e
manhas nem sempre fáceis, o que estava
previsto acontecer do lado do inimigo, a
guerra talvez tivesse um outro desfecho. A
coragem e a audácia permitiu que o rumo
desejado fosse atingido.
Salgueiro
Maia não vacilou nem um momento. O que
estava combinado, mesmo com desvios e
percalços, foi levado até ao fim. Era uma
ilegalidade, uma violência maior para um
militar, um capitão que se revoltava. A
ideia inicial podia não ser aquela em que se
transformou mas a sua coragem e a garra,
permitiram-lhe o avanço.
Que se
passa, então? Onde está a fibra dos
destemidos e ousados que deram novas terras
ao mundo e que não se incomodaram de
enfrentar as vagas em barcos que mais
pareciam casca de noz? Os deuses estiveram
do seu lado e encaminharam-nos até à vitória
final, a chegarem a bom porto. Heróis que se
glorificam e que se eternizam.
Onde
reside a herança que nos foi legada? Que é
feito daquela ancestral e poderosa audácia
que favoreceu os bravos e os valentes?
Estaremos destinados a entrar em declínio ou
há esperança de que o Quinto Império ainda
possa ser uma realidade? A liberdade sempre
gostou de passar por aqui e há que a
continuar a acolher e cuidar, como se fosse
sempre jovem e atraente.
Os primeiros monges do Ocidente
- Partilhar 26/01/2021
Bento, um nobre italiano que vivia como
se fosse um eremita na zona de Roma,
funda a Abadia de Monte Cassino, no ano
de 529. Como tal necessitava de normas
que fossem aplicadas aos seus seguidores
e, em 530, redige a regra fundamental da
ordem beneditina: a Regra de S. Bento.
Na verdade Bento já tinha uma vida
de solidão e meditação que o levara a
olhar para os céus de modo especial.
Apesar da inexistência de qualquer vida
monástica, ele vivia em recolhimento e
foi assim que a sua mente se moldou para
um coletivo que iria mudar a vida de
muitos e mudar a forma de estar
religiosa.
Assim, nasce um
estaleiro, o mais antigo de todos os
mosteiros da Europa. Enquanto as obras
decorriam a sua mente acelerava e queria
chegar a um documento que pudesse ser a
norma de todos os que seguissem a mesma
ordem. Foi assim que nasceu um extenso e
bem elaborado regulamento que estipulava
as normas de convívio e de trabalho para
todos os monges.
Um monge não se
dedica apenas à oração e ao trabalho,
precisa de estar sempre bem ocupado e
com a certeza de que o que está a fazer
é correto. A ociosidade é inimiga da
alma e assim os ditos monges devem
dedicar-se aos trabalhos manuais e à
leitura das escrituras divinas. Só assim
será a sua função certa.
O
mosteiro estava dividido em várias
partes e a vida acontecia nesse mesmo
local sem necessidade de ajudas
externas. Seriam auto suficientes e
produtores. Além das celas onde
pernoitavam, a biblioteca seria um lugar
de primordial importância. Apesar de nem
todos os monges saberem ler e escrever,
os livros foram um tesouro que nos
chegou até hoje.
Os monges
copistas, escolhidos de forma especial,
tinham a tarefa de copiar os livros que
já existiam e outros completavam a obra
com os desenhos e as iluminuras.
Verdadeiras obras de arte que eram
repartidas entre muitos trabalhadores
aplicados. Um livro era um verdadeiro
tesouro que demorava muito tempo a ser
elaborado.
Outros dedicavam-se
às oficinas, construindo o que fosse
preciso, criando ferramentas que seriam
usadas igualmente na agricultura pois o
mosteiro possuía uma farta horta que
alimentava toda a congregação e ainda
permitia excedentes.
O moinho
era essencial para que os grãos ficassem
reduzidos a farinha e das mãos dos
irmãos, palavra encontrada para se
identificarem os que acreditavam no
mesmo, saíam os alimentos que mantinham
o corpo são e a mente desperta para a
realidade.
O jardim permitia
passeios que levavam à meditação e à
prática do exercício físico. Eram monges
mas, ao mesmo tempo, homens que sentiam
no corpo os abusos alimentares e o
pecado da gula. O lazer também era
aproveitado para benefício da
coletividade.
"Da quarta até à
sexta hora devem ocupar-se da leitura. A
partir da sexta hora depois de se
levantarem da mesa, devem repousar no
leito em perfeito silêncio, ou se
quiserem ler não devem incomodar nenhum
dos outros... Se a necessidade ou a
pobreza assim o exigirem, devem
ocupar-se das colheitas..."
Os
monges beneditinos desempenharam um
papel decisivo na história da
civilização ocidental. Encerrados no
scriptorium, conseguiram a proeza de
salvar do desaparecimento muitas obras
de literatura da antiguidade. Só assim
foi possível chegar até hoje esses
pensamentos e ensinamentos antigos.
Situadas fora das cidades, as casas
beneditinas tiveram uma função
primordial na difusão da organização e
da cultura bem como terem prestado os
ensinamentos básicos para que a ordem
social viesse, mais tarde, a ser o motor
da revolução. Para estes homens, todos
os outros eram merecedores do perdão e
da salvação.
A regra coloca um
abade à cabeça de cada mosteiro, que é
eleito pela comunidade. Este deve amar
os seus monges como se fossem seus
filhos e tudo fazer para ser amado pelos
mesmos. Contudo o caráter humano que
este homem dá à dita regra, fará dele
uma fonte de piedade e de misericórdia.
Bento pode ser considerado o pai da
Europa, o fundador do ideal europeu, o
que unifica e revitaliza os tempos e os
homens. A sua inovação é o sustentáculo
da igreja medieval primitiva e rompe com
a forma intransigente que existia
buscando o equilíbrio há muito buscado.
O ensino nas abadias beneditinas,
nos períodos mais complexos e agitados
onde a guerra ganhava terreno, era o
único sistema de formação de homens
cultos que se preparavam para as novas
formas de governo e para os tempos de
grandes mudanças. O certo é que em pleno
século XXI, ainda está viva em muitos
mosteiros espalhados pelo mundo.
Foi o inovador, o homem que sentiu o
apelo e a necessidade de mudar o rumo
das vidas que andam perdidas, alinhar as
almas que esvoaçavam desorientadas e
lhes encontrar um propósito. As vidas
tinham um valor alto e deviam ter uma
missão específica. Bento abriu portas e
caminhos que ainda hoje são percorridos.
Nos nossos tempos a vida é bem
diferente. Apesar de existirem regras,
que não a deste visionário, os seres que
habitam por estas localidades são todos
diferentes e com ideias próprias onde as
interpretações são múltiplas. Contudo há
sempre quem as quebre ou seja contra as
mesmas. Faz parte duma sociedade que
evolui.
Os tempos em que vivemos
são estranhos e confusos. As novas
trevas tomaram conta da vida quotidiana
e os cegos que conseguem ver, deixam-se
levar como se estivessem acorrentados a
uma grade invisível onde os pregos
servem de suporte. Picam-se como se
fosse coisa boa, sangram sem que a cor
se veja e aceitam tudo o que lhes dizem.
Servidão humana. Aceita-se que se
quebrem todas as lutas, que se rasguem
as conquistas de anos e anos de
progresso que afinal não surtiram o
efeito que os nossos tão honrados
antepassados, aqueles que deram o corpo
às balas, pretendiam. Para onde foi a
liberdade que tanto custou a conquistar?
Agora a religião é outra, passa a
ser a sobrevivência, a do salve-se quem
puder e nada mais interessa. Os valores
esgotaram-se, escorregaram por entre os
dedos e tornaram-se apenas ideias dum
passado que não interessa recordar. O
ser humano, aos poucos, vai-se
desumanizando e perdendo o saber ser
pessoa. Vai ficando uma réstia de algo
que foi grandioso.
Não aceitar
opiniões diferentes, atacar que nem um
leão quem o contestar e a educação, a
das regras sociais e de etiqueta, caiu
por terra e foi espezinhada por todos.
Saltam as ameaças, o palavrão, a
ausência de carácter e a baixeza que
enfeita os convencidos. Ai de quem tente
provar o seu ponto de vista que a falta
de tolerância, a cegueira mental é tão
forte que tolda as mentes fracas que se
deixam levar em rebanhos de tudo e de
coisa nenhuma.
A liberdade de
viver está condicionada e os que mais
dedos apontam são aqueles que, em tempos
que já não se recordam, queriam que as
amarras fossem quebradas, que o proibir
fosse proibido e que a vida era um bem
maior. Os tempos são de mudanças mas
querer ficar amarrado por querer apenas
deve ser se for por amor.
A regra
que nos regula hoje está bem distinta da
de S. Bento. A auto suficiência
perdeu-se, a meditação é de outro teor,
a leitura passou a ter conotação
negativa, as hortas são dos rurais e o
ensinar, passar a mensagem para as
gerações vindouras, é um cabo dos
trabalhos, ou das tormentas, que as
tempestades continuam a assolar.
Os invisíveis
- Partilhar 21.12.2020
Cristo
disse que haveria sempre pobres.
O apóstolo Paulo explicou o que
era a caridade e o auxílio ao
próximo. Nos dias de hoje
fala-se de solidariedade, de
consciência cívica, de
voluntariado. Uma dupla corrente
atravessa a Idade Média, uns
continuaram a sê-lo, na sua
expressão mais viva e outros,
animados pelo fermento
evangélico e estimulados pelo
movimento franciscano, tentaram
conciliar a abjeção da miséria
vivida com a virtude da pobreza
e aliaram-se nas obras de
misericórdia.
Perceber a
diferença entre pobres e
marginais, uma vez que poderiam
ter proveniências diferentes e
as suas conotações, será muito
difícil de definir e de limitar,
encontrando-se claros
cruzamentos ao longo do seu
percurso de vida. O espaço
ocupado poderia variar, pois as
flutuações eram endémicas e sem
qualquer tipo de controle. Em
tempos de tanto desconhecimento
a luta pela sobrevivência era o
mote principal.
Os pobres
São aqueles que, de uma
maneira permanente ou
temporária, se encontram numa
situação de fraqueza, de
dependência, de humilhação,
caracterizada pela privação dos
meios variáveis, segundo as
épocas e as sociedades:
dinheiro, relações, influências,
poder, ciência, qualificação
técnica, honra, capacidade
intelectual, liberdade e
dignidade.
Encontramo-los
nos campos e nas cidades, onde o
crescimento urbano e a riqueza
material tornaram a pobreza um
problema estrutural. Eram os
camponeses, assalariados rurais
e urbanos, os sem emprego, os
incapacitados, os órfãos, as
viúvas, os velhos e os pedintes.
Existiam vários graus de pobreza
involuntária: limiar fiscal, que
isentava o pagamento de impostos
ao rei; limiar económico,
condição do indivíduo que caiu
em desgraça; limiar biológico,
idade e saúde física e mental
para servir a comunidade; limiar
social, o fraco e o desprotegido
e limiar de sociabilidade, os
marginais fora da ordem social.
A pobreza caracterizava-se
pela ausência de uma ou mais
qualidades essenciais para que o
indivíduo conseguisse vingar na
sociedade e se pudesse
auto-afirmar. Eram identificados
como os velhos e mancos e cegos
e doentes bem como os
mesquinhos, minguados,
esbulhados, forçados e vilões.
No entanto as comunidades também
caíam em pobreza e arrastavam
consigo as gentes honradas. Era
uma situação diferente dos
pobres de nascimento e podia ser
temporária. Era a pobreza
envergonhada pois eram gentes
que não podiam esmolar. Para
estes foram criadas as casas de
mercê, onde eram acolhidos e
resguardados dos olhares
indiscretos. Eram-lhes
fornecidos alimentos e conforto.
Chamavam-se mercearias.
À
ausência do ter juntava-se a
consciência do não ser. O pobre
começa a exigir uma maior
justiça social e o
reconhecimento da dignidade
humana. Tal ficou a dever-se à
sua mobilidade, ao ideário da
pobreza evangélica e às Ordens
menores de Francisco de Assis e
Domingos de Gusmão. A mobilidade
era um grito de revolta
individual dos mais fracos
contra os poderosos. Os eremitas
e os emparedados eram chamados
os pobres de vida era uma
pobreza assumida e integradas
nas ordens religiosas. Outros,
os irmãos conversos, viviam no
exterior dos mosteiros,
despojando-se do mundo.
O pobre passa a ser conhecido
por Pobre de Cristo. Uma das
funções da igreja era dar
conforto aos miseráveis da
sociedade. A prática da caritas
era uma manifestação de amor ao
próximo para todo o cristão e
era apregoada nos sermões, como
medida pedagógica de salvação da
alma. O pobre era o
intermediário para as portas do
céu e a eles estava destinado o
fim melhor, a recompensa. As
carências económicas eram muitas
das vezes, com a debilidade
física, a idade, a viuvez ou a
orfandade, a razão da queda em
pobreza de homens, mulheres e
crianças.
Esta situação
preocupou os soberanos que
tomaram medidas para colmatar e
evitar que se repetissem. Além
das mercearias já citadas, foi
fundado um hospital para homens
e mulheres honrados que caíam em
pobreza, os pobres
envergonhados, impedidos de ter
a sua vida anterior, contemplado
na 1ª Lei da Sesmarias.
Os marginais
Era um
grupo que não possuía nem
independência económica nem
direito de cidadania. Podiam ser
assalariados de diversos tipos
mas um grupo maior é de
elementos pouco estabilizados,
inclinados para as migrações,
sem relação profissional ou
produtiva durável. Tem uma
fronteira flutuante onde a
rejeição e a aceitação andam de
um lado para o outro. Não têm
função permanente, nem vida
social estável. Temos que cortar
deste grupo os criminosos
vulgares, os ladrões, os
homicidas e os traidores e
incluir a falsa mendicidade, a
prostituição, os saltimbancos,
os jograis e outros grupos do
mesmo teor, que são muitos.
Os falsos mendigos eram
aqueles que não tinham ofício,
bens ou senhor, sendo apelidados
de maus homens e sujeitos à
expulsão. A errância provocada
pela oferta e pela procura
acompanhava a mendicidade
temporária bem como a
mendicidade crónica dos falsos
pedintes. Estes eram um perigo
para a sociedade trabalhadora
que não os via com bons olhos,
formando grupos de vagabundagem.
São criadas leis que proíbem a
mendicidade quando existe
capacidade de trabalho.
A única indigência oficial era a
invalidez do indivíduo atestada
pelas autoridades municipais. Os
falsos mendigos eram inúteis à
sociedade e não estavam
contemplados na assistência
caritativa tendo- se tornado num
flagelo.
A prostituição
O mundo da
prostituição era quase
exclusivamente feminino. A
mulher surge associada a uma
família, do pai ou do senhor, em
solteira e do marido, se casada
ou viúva. A mulher estava muito
condicionada e as opções que
tinha para fugir a este jogo
eram sempre mal vistas na
sociedade. A violação devia ser
vulgar, por parte do senhor da
terra, do clérigo, das
autoridades, de todo o tipo de
homens. E era praticada com todo
o tipo de mulheres.
Os
reis publicaram leis que
castigavam o violador mas a sua
execução tornava-se difícil.
Caía a infâmia sobre a família
ou sobre a mulher , tornando-se
uma presa fácil da
marginalidade, o que fazia com
que não houvesse denúncias. As
jovens que rompiam com as
estruturas familiares
frequentemente caíam na
prostituição.
Os nomes
porque eram conhecidas eram
vários: mancebas, soldadeiras,
mulheres da segre, barregãs e
putas. Habitavam na rua, na rua
da putaria, ou mancebia e usavam
um vestuário que as distinguia
das mulheres honestas. Era-lhes
proibido o uso do ouro, prata e
adornos no vestuário, nos véus e
nas camisas. Trabalhavam também
nas estalagens, nas tabernas e
nos caminhos ou arraiais
militares. Por vezes
acompanhavam grupos de jograis e
saltimbancos. Podiam ser
açoitadas publicamente, nos
pelourinhos, juntamente com o
cliente, desde que não fosse
nobre.
A boémia
O mundo da boémia era
pertença de todos. O jogo era a
causa do empobrecimento
individual e das perturbações de
ordem pública. O vício era tão
forte e estava tão enraizado que
vários monarcas se pronunciaram
sobre esta calamidade, soltando
leis e medidas que podiam ir até
à hipoteca de bens e animais. Os
taberneiros, os rufiões e os
jograis eram vistos com maus
olhos porque incitavam a hábitos
pouco saudáveis.
Os
escravos
Tinham
proveniência islâmica devido ao
resultado das guerras entre
cristãos e muçulmanos. O
prisioneiro nobre e culto era
tratado com alguma consideração
pelo novo senhor, vivendo com
ele no paço. Os mais humildes
desempenhavam tarefas domésticas
ou ligadas à agricultura e ao
artesanato. O estatuto jurídico
era de um objecto que o senhor
podia vender, trocar, castigar
ou até matar.
A alforria
era o desejo destes homens que
pretendiam voltar às suas
origens e famílias. Podia ser
comprada ou concedida pelo dono.
Outras vezes bastava abjurar a
sua religião e o caminho para a
liberdade estava aberto. Os
escravos oriundos da África
Negra remontam à época do
Infante D. Henrique, no Rio de
Ouro. O papa deu o seu aval para
a captura e escravidão, tendo
como objectivo o lucro imediato,
pois trabalhavam em tudo o que
fosse necessário. D Afonso V
sugeriu que fossem utilizados no
povoamento das regiões
desertificadas do reino.
Apesar de terem passado séculos,
o mundo se ter alterado, as
descobertas terem sido muitas, a
ciência ter vencido e as pessoas
serem educadas, a mentalidade
pouco ou nada mudou. Continuamos
a colocar barreiras entre as
pessoas, catalogamos tudo e
todos, as mulheres ainda não têm
o papel de igualdade que merecem
e a cor da pele ainda é um
estigma. O mundo do jogo não se
alterou, os vícios são mais
modernos mas continuam e a
prostituição adquiriu outras
formas mas visa sempre a
satisfação do cliente.
A
ciência passou a ser uma espécie
de magia que ainda assusta mas
que, ao mesmo tempo, acalma. Os
espíritos voltaram a estar à
solta e os amuletos são as novas
formas de prevenção. Máscaras ou
líquidos com cheiros fortes são
agora as águas bentas e as
réstias de alhos que afastam os
novos vampiros. Escolhidos e
miseráveis persistem e
pratica-se uma nova modalidade
que tem a chancela do século
XXI: a coitadice. Os mais fracos
e menos dotados são enaltecidos
e promovidos. Exibem-se as
chagas, toca-se ao coração dos
que, por penitência e salvação
dos seus pecados, dão a esmola,
com um certo nojo mas depois vão
exibi-la, com uma modéstia reles
e cínica, nas redes sociais.
Os filhos e os enteados
A sociedade
medieval estava bem fragmentada. O
senhorios eram governados por cada
senhor e as leis e as regras, se assim
se podem chamar, eram da
responsabilidade de cada um. O tecido
social era pouco uniforme sendo que os
servos da gleba seriam os mais fáceis de
moldar. Sem qualquer perspetiva de
futuro, a terra dava-lhes o sustento e
criava-lhes os laços que jamais
conseguiriam cortar. A escravidão tinha
outro nome mas estava em pleno. Uns
pedaços de alguns restos e estava a
família alimentada.
Contudo novos
ventos e novas marés chegaram a uma
Europa que cheirava a mofo. O
Renascimento veio oferecer uma visão
mais alargada da vida e o teocentrismo,
a ideia de que Deus era o centro de
mundo, altera-se para dar lugar à luz
que ensina o novo caminho, o
antropocentrismo, o homem passa a ser a
medida de todas as coisas. Não quer isto
queira dizer que a noção de Deus e da
religião tivesse sido abandonada mas a
frescura das novas ideias aliciavam os
mais afoitos.
Assim, uma nova
sociedade apresenta um caminho mais
aprazível onde a luminosidade e a
abertura da mente terão a primazia.
Itália, não como a conhecemos agora,
será a pioneira do movimento que mudará
as formas de se posicionar. Os povos
desta zona, vivendo com uma confortável
e basta largueza de bens materiais,
serão os arrojados da beleza e cultura
que ainda hoje pode ser apreciada.
Pegando nos clássicos, os Gregos e
os Latinos, dão-lhes uma nova roupagem
usando os novos instrumentos de que
dispõem. As ciências são agora de
interesse coletivo, sobretudo a
matemática e a geometria. Assim sendo o
chamado número de ouro entra em
funcionamento e as proporções, aquilo
que havia sido esquecido, passam a ser
naturais, leves e realistas. O Homem,
ainda adolescente, tarda a dar os
primeiros passos para um jovem adulto.
A máquina do estado inicia-se agora,
criando um monstro que conhecemos muito
bem. Aos poucos os cargos foram sendo
criados de forma a servir um grupo de
gentes que se individualiza e ganha
caráter próprio. É o nascimento da
burocracia, não como a sabemos hoje mas
ainda pequena, envergonhada e cheia de
boa vontade. Uma criança que vai crescer
cheia de manias e de birras, até aos
dias de hoje e que não se cala.
Na Administração Municipal, a Câmara,
detinha o governo através da vereação.
Para isso necessitava de oficiais
subalternos como o escrivão da câmara, o
da almotaçaria, o meirinho, alcaides
pequenos, quadrilheiros, porteiro e
caminheiro. Aqui está um esboço das
necessidades. Na Fazenda estavam os
juízes das sisas, coadjuvados pelos
escrivães, varejadores, alcaides,
meirinhos porteiros e seladores. Outros
cargos importantes eram o tesoureiro e
os recebedores e contadores. Umas
finanças em embrião que se enrolavam de
tal forma que conseguiam cobrir todo o
território.
Mas ainda restava a
parte da Politia, onde os almotacés
tinham uma palavra a dizer, bem como os
juízes dos órfãos que se faziam
acompanhar dos seus respetivos
escrivães, avaliadores e partidores.
Havia ainda o procurador do concelhos
que representava e zelava por um
determinado concelho. Como se compreende
a máquina crescia a olhos vistos e
apenas se fala duma parte da
administração.
Na parte da
Justiça tinham lugar os juízes
ordinários e os juízes de fora que
tinham a função de desempate em
contendas que se arrastavam. Sendo
externos ao concelho seria mais fácil a
tomada de decisão. Neste caso há a
acrescer os oficiais de justiça mais os
escrivães das notas e tabeliães,
escrivães do judicial, inquiridores e
contadores. Uma perfeita especialização,
como se depreende. Resta a Milícia com o
seus oficiais militares e ordenanças que
ainda incluia os alcaides mores dos
castelos, capitães das ordenanças,
alferes das ordenanças e sargentos
mores.
Os tempos agora são
outros. O rei é apenas uma ideia que foi
ficando e a república tomou-lhe o lugar.
O aparelho ficou pesado e forte e
dividiu-se em duas posições bem
desiguais: o setor público e o setor
privado. Ainda são muitos os que
alimentam o sistema e com tendência a
aumentar. A terciarização da sociedade
permite que assim o seja e apresenta
inúmeras vantagens que podem tornar-se o
seu oposto.
Os que estão no
Estado acabam por ter a protecção de um
pai quase invisível mas que os acolhe.
Cuida-os, acarinha-os ainda lhes oferece
doces de tempos em tempos. Mas não
chega, que os meninos choram, barafustam
e fazem birras, clamando que ficaram
esquecidos. E o pai, conscencioso e
atento, continua a ter alguns rebuçados
na manga para os calar.
Os
outros, os que são de outra mãe,
calam-se e não comem. Continuam a olhar
para ver se lhes sobra alguma pequena
migalha mas raramente a conseguem. São
como as meninas feias de família
vulgares que não conseguem casamento nem
dote decente. As gatas borralheiras a
quem não é permitido ter um dia de
descanso e que todos os dias se deparam
com pilhas de loiça para lavar.
Ora, se todos fazem parte do mesmo não
se entendem estas diferenças. Qual o
motivo de tanta discriminação? Não vai
tudo para o mesmo saco? Claro que vai
mas separa-se de modo bem diferente. São
estas, as últimas que servem de carne
para canhão, que alimentam o batalhão
dos que veneram o rei que um dia foi
deposto. Mas não. Eles são os escolhidos
e os outros, os que se vergam.
Façamos um pequeno exercício para melhor
entender. Imaginemos que os enteados, os
que lavam as escadas e as ditas tarefas
menores, deixavam de o fazer. Um dia
acordavam todos mal dispostos e zangados
e recusavam-se a trabalhar. Não serviam
os senhores, não ouviam as suas
solicitações, não produziam nada. Do
outro lado, os patrões, aguardavam
ansiosos pela refeição inicial e pelas
seguintes. Tardava a chegar. Não vinha.
Desapareceu. E agora?
Podem, os
outros, os eleitos, argumentar que eles
também são peças da máquina e que a
sabem olear. E depois? São mais as vezes
que não estão do que as que estão. São
tantas as más vontades que demonstram e
os impedimentos encontrados que só
demonstram uma enorme falta de empatia.
São tantos os que olham para as horas
para se irem embora em vez de as dividir
para as rentabilizar e trabalhar.
Por mais que se avance, que se saiba
evoluir num caminho plano, há quem crie
sempre os obstáculos e as barreiras para
justificar a sua presença e lugar.
Contudo estão bem firmes, de costas
quentes e seguros, apoiados num pai que
os beija e acolhe como se ainda fossem
meninos. Um pai que cegou e não sabe
atribuir as tarefas aos que as sabem
desempenhar mas oferece-as para os
calar.
Os enteados existem em
números grandes, em batalhões de força,
em grupos que sabem como é importante
fazer. Sem estes nada acontecia, tudo
mirrava e desaparecia. O que deixam para
todos, os impostos, são bem mais
elevados do que se pensa, mas no dia em
que não puderem continuar a contribuir,
são os mais lesados, os que menos levam
para o conforto do lar, se ainda
continuarem a ter um lugar que chamem de
seu.
Filhos e enteados, duas
formas bem distintas de tratar os que
são da mesma casa, do mesmo país e que
deveriam ser abraçados do mesmo modo. Os
que continuam do lado do rei estão
sempre com a graça do seu senhor mas os
outros, os que se afoitam e querem que
se faça mais e ainda mais, são olhados
como desertores e serão penalizados.
Caminhamos para os jardins do mal
onde os que ainda sabem ver, avistam uma
luz estranha que os conduz até ao
caminho real.
01-12-2020
A Ciência e a Magia
A Idade Média, tempo compreendido entre o século V e o século XV, ficou conhecida pela Idade das Trevas. Nada mais errado. Durante tantos anos as transformações sofridas pela sociedade foram inúmeras e de tal forma importantes que moldaram a sociedade que hoje conhecemos. Contudo a falta de conhecimento e o ódio irracional pela História, faz com que as pessoas se convertam em profetas da ignorância.
O século XIV foi fustigado pela desgraça e ainda hoje é um marco impossível de esquecer. A fome, as guerras e a doença tornaram-se uma constante nos povos que tiveram que enfrentar estes tão negativos acontecimentos. Guerra é palavra que soa a constante e fome tornou-se atual. Da qualidade adquirida, passa-se ao seu oposto e num dia tudo desaparece. Quanto à doença, o caso torna-se bem mais interessante.
A chamada Peste Negra, o horror que levava todos pela frente e que, passados três dias do contágio, levava à morte, assolou a Europa levando a uma drástica redução da sua população. Acarretando custos elevados, o homem medieval soube contornar as misérias e recomeçar de cabeça erguida. Sem grandes ou nenhuns conhecimentos de ciência e medicina, tinha como aliado o improviso e com ele fazia o que entendia ser mais certo para o combate ao flagelo.
As máscaras, em feitio de bico de pato, bem conhecidas nos manuais e no imaginário popular, eram uma forma de defesa contra os males que não tinham ainda nome e que eram totalmente desconhecidos. Com ervas aromáticas, para conseguirem aguentar o cheiro pestilento que o ambiente libertava, ainda tinham uma outra função, que era purificar e defender o organismo. Hoje olha-se para esse tempo e é inevitável sorrir da ingenuidade de pensamento.
Mais tarde, na época dos descobrimentos, o medo voltou com formas distintas. Não que as doenças tenham desaparecido mas outros receios se ofereceram para que a humanidade voltasse a ser testada. Agora foi a vez dos monstros, dos seres de várias cabeças e disformes, os que comiam os seres humanos ou os colocam em torturas inimagináveis e horripilantes. O medo ganhou o nome de monstro mas o sentimento era o mesmo.
Isso não impediu que os fiéis descendentes dos clássicos, esses bravos homens que tanto fizeram pela humanidade mas que caíram em completo e total esquecimento, continuassem com os seus intentos e chegassem onde pretendiam. A conquista do caminho marítimo para a Índia foi um marco que a todos beneficiou e serviu como prova para testar as capacidades escondidas dos destemidos.
Chegados ao século XXI, com anos e mais anos de qualidade, de evolução da medicina, de conhecimento vários e de vidas tão díspares como interessantes, voltamos a bater num muro de ignorância e de medos. Os vírus são estruturas simples e não são organismos pois não possuem organelos nem ribossomas, ou seja, não possuem potencial bioquímico para sobreviver. Como é que algo minúsculo pode assustar tanto?
A ignorância, e não o véu de ignorância como um certo filósofo defendia, ainda cobre grande parte da população. As pessoas, simplesmente, não querem aprender. Recusam-se a abrir os olhos e a mente e viver em mundos paralelos onde as fantasias persistem torna-se mais simples. Afinal que temem? O acordar para a realidade? A verdade? O saberem que estão cada vez mais fracos e não conseguem superar uma dificuldade?
Que tipo de geração estamos a criar? A dos coitadinhos que se assustam logo com palavras e que nem sabem o que é sentir? Sentimentos? Emoções? Dói e a dor evita-se, o importante é o prazer e a felicidade mesmo que não saibam o que verdadeiramente significa. Vivem em completo pânico e criaram uma ansiedade que tende a permanecer e se espalhar. Por mais que se faça para desmistificar a situação, os receios iniciais ficam ativos.
Levam todos pela mão como se fossem crianças inaptas ou com problemas cognitivos graves. Proíbe-se tudo e acaba-se com os direitos fundamentais sem que exista revolta nem sentimento de indignação. Aceita-se como se fosse normal espoliar o que tanto custou a conquistar. O rebanho está domado e o cão pode dormir tranquilo. Só falta o bibe que a chucha, a que é colocado na boca para não falar, está perfeita e pode ter variados nomes.
Que é feito dos destemidos guerreiros que nos legaram a herança? Onde é que ainda habitam os que sabiam dar o corpo e a alma ao desconhecido? O mundo nunca foi seguro nem nunca o será. O mundo é dos audazes, dos que se aventuram e que vão à conquista do desconhecido. Que se passa com as pessoas de agora que vivem em redomas? Não se podem colocar barreiras nem almofadas para se caminhar com segurança e de cabeça erguida. É preciso que haja coragem e esse é inerente a cada um.
Se os novos aventureiros não derem a cara e colocarem mãos à obra para o que se possa avizinhar, estaremos muito mal e no fim da civilização. É preciso ter garra e firmeza para se ultrapassar os portais e entrar nas dimensões certas e corretas. Vamos todos enrolar o corpo e regressar à posição fetal? Para quando o crescer e ser adulto? Que exemplo se passa aos mais novos?
As máscaras sempre foram simbólicas. Umas por conterem a génese da cura e da saúde, outras por taparem o rosto de uns quantos e lhes permitirem certas liberdades que não ousariam de cara destapada e estas, as modernas, onde os estampados, os bonecos e tanto mais marcam presença, servem para retirar a humanidade que ainda restava em cada um. Roubam as emoções, as marcas de personalidade e a individualidade que é a marca pessoal.
Descaraterizando as pessoas, não lhe vendo as expressões e muito menos os sentimentos aliados a elas, há apenas a desconfiança e o medo e esse, como tão bem se sabe, faz maravilhas sem trabalho algum. Semeia a discórdia entre todos, espalha o pânico e gere conflitos que tendem a nunca terminar. Logo a seguir ao medo surge a ignorância e séculos de avanços redundam logo em trevas que se instalam e que permitem, sem qualquer tipo de entrave, que a vontade e os direitos fundamentais desapareçam.
07-11-2020