Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale


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Joana, a Louca

Fernando de Aragão e Isabel de Castela fizeram de Espanha uma potência destinada a desempenhar um papel fundamental nos anos vindouros. Pelo casamento, conforme costume da época, realizaram a união de duas grandes coroas ibéricas. Completaram a Reconquista contra os muçulmanos, impuseram ao país um catolicismo austero com uma feroz perseguição aos judeus.

É nesta época que a viagem de Cristovão Colombo se realiza, já que Isabel o soube ouvir e acreditar. Esta descoberta, de uma América que se ansiava, será o prelúdio da constituição de um novo Império, o hispânico no Novo Mundo.

No reinado de Joana e no de seu filho, Carlos V, durante três décadas, os conquistadores espanhóis criaram uma nova forma de viver. Providos de cavalos e de armas de fogo, as tropas de Cortés e de Pizarro vencem, sem qualquer dificuldade, a resistência dos Incas, e dos Aztecas. São desfeitos estes impérios, incluindo o Maia, para dar lugar a uma sociedade colonial.

O ouro era o mote principal, extraído das minas de Potosi e de Zacatecas, vem trazer riqueza à metrópole, permitindo à monarquia espanhola um poder nunca visto.

No Outono de 1509, Fernando, o Católico, manda encerrar a sua filha Joana, herdeira do trono do Castela, no castelo de Tordesilhas. A pobre e infeliz rainha tem 30 anos e é cognominada la loca. Até à sua morte, em 1555, todos os actos oficiais levam o seu nome mas ele nunca sai da sua prisão.

Segundo consta, pelos documentos, foram razões de estado que favoreceram este estatuto. Fernando e depois Carlos V, filho de Joana, acomodam-se com a sombra da rainha enclausurada cuja perda da coroa protelam em declarar. A sua "melancolia", termo usado para justificar o terrível acto de encerramento, favorece as intenções, bem pouco se lhe deseja a cura.

O isolamento agrava a loucura de Joana que se recusa a lavar e até mesmo a se lavar. Todavia a rainha conserva-se, aos olhos do povo, como uma figura tutelar e, perante os mais fantasistas, um recurso possível contra o rude poder de Carlos V.

Na verdade nada predestinaria Joana a um tão sombrio destino. Segunda filha dos reis católicos, Fernando II de Aragão e Isabel de Castela, nasce em 1479. A sua beleza tocante, segundo algumas fontes, recorda a sua avó, Joana de Portugal, uma vítima de perturbações mentais. Contudo a infante revela-se inteligente. Dedica-se à música e aprende línguas facilmente. Contudo é um pouco estranha e introvertida, pois é a única, de entre os irmãos, que não deixa qualquer tipo de correspondência.

Como qualquer infanta, o seu destino estava traçado e seria um peão de cariz diplomático de grande valor. O arquiduque Maximiliano da Áustria pede-a em casamento para o seu filho, Filipe, o Belo. Esta união, de enorme importância na história moderna, prepara o domínio dos Habsburgos em Espanha e que perdura até 1715.

Casada por procuração, em Valladolid, no Verão de 1496, com dezassete anos vai ter que deixar a sua família e embarcar para os Países Baixos, ao encontro do seu esposo, que ainda não conhece. Ao fim de uma tremenda viagem de dois meses, Joana desembarca na Zelândia onde causa grande impacto nos flamengos. A sua entrada é um momento de glória. Bem recebida, é aplaudida com entusiasmo.

A lenda conta que os dois esposos se apaixonaram tão profundamente, um pelo outro, que não largaram as mãos, contrariando o protocolo da época. Ele. Filipe, é um jovem amável, espiritual mas também um obstinado político. Ela faz valer os seus direitos de esposa à sucessão de Espanha. Ora, a herdeira titular é a filha mais velha, a rainha da Portugal. Fernando e Isabel inquietam-se com tal atitude tanto mais que Joana os ignora por completo. Tendo sido uma solitária, nutre pelo marido uma enorme paixão enciumada que vive de forma extrema e dolorosa.

Os dois terão seis filhos, entre os quais o Imperador Carlos V e Fernando I. com o passar do tempo, o comportamento de Joana apresenta alguns sinais de debilidade mental, o que inquieta todos os que a rodeiam. Um emissário vindo de Sevilha observa-lhe uma perturbação. O que se passa é que Joana se sente humilhada pela desconfiança dos pais, pelo comportamento do marido que a trai desde o início do casamento e que delapida o seu apanágio.

Desaprova as escolhas políticas do marido, não vê com bons olhos que ele, manobrado pelo ouro francês, aceite em 1499 render homenagem ao novo rei de França, Luís XII, pela Flandres e o Artois, províncias que ela considera suas e se sente lesada. Afinal a sua inteligência e a capacidade de decisão está a ser colocada em causa e ridicularizada. Joana sente-se impotente.

Nesse mesmo ano desaparece, com D. Manuel, o último herdeiro em linha directa de Isabel e Fernando. Joana é chamada a reinar em Castela, Aragão e nas Índias recentemente descobertas. Os reis católicos alarmam-se por ver comprometida a sua obra nas mãos de Filipe, o Belo, a sua obra de unificação. Este mostra-se indiferente perante as propostas de França e de Inglaterra, as vizinhas dos territórios. O bispo de Toledo sugere que Joana é um mero e reles instrumento nas mãos de Filipe, o seu marido.

Joana tenta em vão reter Filipe em Espanha, cuja austeridade abomina pois a sua conduta era outra. Desconfiada das infidelidades de seu marido, Joana vai ao seu encontro. Outros diriam que não se queria confinar em Sevilha. Quando se junta ao marido é uma mulher possessiva, uns ciúmes doentios e exige ser servida apenas por criadas mouras.

A morte de Isabel, a Católica, provoca uma reconciliação provisória. No seu testamento a rainha pede aos súbditos para considerarem Joana como a sua rainha e proprietária dos domínios. Apesar das reticências de Fernando, o casal chega a Espanha para tomar posse da herança. Pelas cortes de 1506, é proclamada rainha.

Uns meses mais tarde Filipe desaparece, vítima de um resfriado. Joana afunda-se numa escuridão estranha e muito profunda. Não aceita a morte do marido e recusa-se a abandonar o caixão tanto que manda embalsamar o corpo. Deixa de tomar decisões políticas, o que fica nas mãos do seu pai, Fernando, que estava em Nápoles, regressa para assegurar a regência, de modo triunfal.

É então que manda enclausurar Joana no castelo de Tordesilhas, onde se instalara perto da capela funerária do seu marido. Contudo Joana é uma mulher apetecível pelo seu património. Henrique VII de Inglaterra pede-a em casamento e trocam-se embaixadores. Os espanhóis assustam-se pois entendem que a rainha está a ser alvo de manipulação. Os opositores fazem recair nela todas as esperanças e assim, dão corpo ao mito que se cria.

Durante as perturbações que se seguem à morte de Fernando, os comuneros, que recusam o poder de Carlos V, conseguem uma entrevista com Joana, em 1520. Pedem-lhe para exercer as prerrogativas reais. Contudo em 1521, os rebeldes são destroçados e Joana não voltará a sair da sua solidão. Com o passar dos tempos acaba por perder a razão e fica completamente perdida. O mito ficou e ela morreu em 1555, esquecida por todos.

Certos amores são tão destruidores que transformam quem os sente. Joana, a mulher cheia de capacidades, ficará para a História do mundo como alguém incapaz e que termina os seus dias sem noção da realidade e convencida de que estava num tempo que já não existia.


Lucrécia Bórgia

O nome Bórgia está ligado a Roma, de onde a família é originária e à história da igreja, à qual forneceu dois papas: Alonso Bórgia, eleito sob o nome de Calisto III e Rodrigo Lançol e Bórgia, ou seja, Alexandre VI e ainda um santo, Francisco de Bórgia.

Com dois filhos bastardos de Alexandre, César e Lucrécia, os Bórgias, um nome inconfundível, participaram activamente na vida política e religiosa da península, envolvida nos tormento das guerras da Itália e da Reforma Luterana. Francisco, foi vice-rei da Catalunha antes de ingressar na ordem jesuíta e se tornar o seu geral, serviu Carlos V e militou na Contra-Reforma católica.

Alexandre VI, Bórgia de nascimento, é o exemplo de uma grande senhor libertino tornado papa por mera promoção familiar. Sobrinho de Calisto III, é eleito para o mais alto cargo da igreja sem nada mudar mo seu modo de vida e, mais em particular, sem romper a ligação profunda que tinha com a sua amante Vanozza Catanei. Enquanto pontífice, mostra-se um hábil homem de estado, mas nunca um pastor.

Depois dele, Júlio II e Leão X, levam vidas menos dissolutas. Contudo a sua acção mais política e o seu papel de mecenas faustosos, como a construção de S. Pedro, o embelezamento do Vaticano e as muitas colecções, fazem-nos parecer, de novo, mais como soberanos temporais do que modelos de fé.

Durante todo o dia 4 de Fevereiro de 1501, os canhões do Castelo de Sant' Ângelo, em Roma, não pararam de troar. A filha natural do papa Alexandre VI, um Bórgia, acabara de desposar o herdeiro do ducado de Ferrara, tendo, assim, ingressado, por meio de um dote muito generoso, numa das mais importantes famílias de Itália. Tem 21 anos e Afonso é o seu terceiro marido.

O primeiro foi afastado por seu pai, o segundo assassinado pelo seu irmão. Se ela teve algum papel nestes desfechos, a verdade é que nunca se saberá mas a fama , a reputação explosiva, será uma autêntica perseguição.

Alexandre VI é ainda o cardeal Rodrigo Bórgia quando, em 1480, a sua favorita, Vanozza Catanei traz Lucrécia ao mundo. Eclesiástico muito sensual, já tem filhos de outras ligações e Vanozza ainda lhe dará três rapazes, César, João e Jofre. Antes da Contra-Reforma, e este terá sido um dos motivos para o clamor dos descontentes, os prelados levavam uma vida de grandes senhores, sem nada de humildade, sendo que a situação de Rodrigo muito comum. Raro é o facto de continuar a procriar e ter uma verdadeira paixão pela sua progenitura.

Doze anos após o nascimento de Lucrécia, em 1492, Rodrigo torna-se Papa sob o nome de Alexandre VI. Instala a família num palácio contíguo ao do Vaticano, Santa Maria in Portico. Além de Lucrécia e de Vanozza, vivem ainda no aplácio a sumptuosa Júlia Farnésio, a sua nova comcubina e a mãe desta, Adriana de Milão. Lucrécia vive feliz com estes três mulheres que a cuidam com amor e carinho,

Os mais altos dignatários, cardeais ou embaixadores, vêm submeter as suas petições às mulheres do Papa, mesmo que todos façam olhos de não querer saber ou ver. A expressão foi citada por Savanarola, o que clama, de forma violenta, em Florença, contra os muitos pecados do chefe da igreja.

Alexandre ama a filha e preocupa-se em lhe arranjar um bom casamento. Tem apenas treze anos mas é um bom partido, sobretudo por ser uma rapariga bem atraente. A sua beleza tornar-se-á célebre pois as pinturas retratam-na com um corpo esguio, longos cabelos que tem a ousadia de soltar ao vento, o que vai contra todas as convenções e olhos de um azul sombrio.

Como se tal não bastasse, o seu dote, muito generoso, ainda inclui dinheiro e benefícios eclesiásticos, o que parece ter sido o maior chamariz de todos. Ser da família do Papa é um privilégio que poucos podem conseguir,

O marido escolhido é João, conde de Pesaro, um membro de uma poderosa casa dos Sforza, senhora do Ducado de Milão. O papa, em breve, entende ter sido uma má escolha, já que o conde não tem qualquer hipótese de vir, algum dia, a herdar o Ducado. Além disso novas circunstâncias políticas tornam esta união complicada.

As guerras de Itália começaram, o rei de França, aliado dos Sforza, parte em conquista do reino de Nápoles, dependência de Aragão. O Papa não pode, de forma alguma, aceitar que os territórios que controla, no centro de Itália, fiquem entalados entre potências aliadas entre si, defende os Aragoneses. Os Sforza, conscientes da situação, fazem correr o boato de que o Papa está disposto a assassinar Pesaro, com a conivência de Lucrécia.

É assim, com este episódio que Lucrécia vai ganhando fama de envenenadora, de mulher de mau carácter, de assassina sem pinga de emoção. Alexandre, para libertar a filha, tem um meio mais simples do que o veneno, a dissolução do casamento.

Intimado a reconhecer que não consumou a união, João Sforza deixa entender que o Papa quer a filha de volta para ser bel prazer, um incesto depravado. É a ternura do pai pela filha que está em causa e corre toda a Itália. Um boato que cresceu de forma descontrolada e carregado de ódio de repúdio.

Estas horríveis calúnias, que teriam como missão denegrir e rebaixar a imagem de Lucrécia, não impedem o aparecimento de inúmeros pretendentes que aspiram à mão da jovem, para assim obterem favores do Papa. César Bórgia, irmão de Lucrécia e o braço temporal do pai, comanda os seus exércitos e aspira a uma união com o reino de Nápoles.

A ideia será uma união com Afonso de Biscèglie, filho bastardo do soberano. As bodas são celebradas em 1497. Contudo é o próprio César que, em 1500, após outras tomadas de decisão, assassina friamente o jovem marido. Lucrécia nada tem a ver com assunto mas toda a Itália a aponta como culpada. A jovem, a quem ninguém pede opinião, volta a casar um ano depois.

O novo eleito é o Duque de Ferrara. Como Lucrécia já não é uma menina, o pai decide confiar-lhe responsabilidades. Aos 19 anos nomeia-a governadora de Spoleto, alto cargo até essa altura, reservado aos prelados. Lucrécia sabe como governar e organiza um corpo de polícia ou ainda tem a capacidade de impor tréguas à cidade vizinha.

Em 1501, durante algumas semanas, é encarregada de dirigir a igreja enquanto o Papa visita os seus territórios. Instaladas nos aposentos pontifícios, trata de assuntos correntes e abre o correio oficial. Contudo é no papel de Duquesa de Ferrara, um principado muito próspero às portas e Veneza, que Lucrécia atinge a sua verdadeira dimensão.

Acolhida inicialmente com alguma suspeição, em breve irá conquistar todos os seus súbditos pela constância que coloca na governação. Leva para o ducado poetas, como Pietro Aretino e outros que possam divulgar a sua poesia e assim enaltecer a cultura da época. Faz do ducado um local de conhecimento,

À morte do Papa, em 1503, retoma o grande sonho dos Bórgias de constituir um Estado territorial na Itália central e converter-se em auxiliar do seu irmão César, recrutando tropas para ele. O novo Papa, Júlio II, odiando os Bórgias, desencadeia inúmeras hostilidades contra o Duque de Ferrara, em 1509, que, contra ela, permanece fiel ao rei de França.

Como outrora, Lucrécia, na ausência do marido retido pela guerra, toma em mãos os assuntos de Estado e prossegue a resistência até à morte de Júlio II, em 1513. É provável que houvesse aqui uma conotação religiosa pois em 1519, no ano da sua morte, a Duquesa, a filha do chefe da igreja católica, converte-se à Reforma, proclamada apenas dois anos antes pelo ex-monge Lutero.

Esta mulher, que conhece como ninguém os costumes da Igreja romana, vai pelo campo dos que a querem transformar. Na verdade é uma atitude lógica e consistente pois estava ciente de que os princípios não eram cumpridos. No entanto a historiografia católica não lho perdoará: os horrores que lhe são atribuídos pelos contemporâneos, serão repetidos ao longo dos tempos por gerações de autores.

Uma mulher não tinha o direito de ser inteligente nem independente. Caso o fosse e demonstrasse, como foi o caso de Lucrécia, caíam sobre elas, os maiores insultos e calúnias. Todas as humilhações que sofreu, não tendo sido poucas, não a demoveram dos seus intentos nem de provar a sua garra única.

 


Epifania - Dia de Reis

Integrado na quadra natalícia, pois até aos Reis é Natal, o dia de Reis traduz um dos mais relevantes episódios tradicionais que estão associados ao nascimento de Jesus Cristo. Comemorado no dia 6 de Janeiro, excepto nos lugares de santo de guarda, que se pode festejar no domingo entre os dias 2 e 8 de Janeiro.

A Epifania, cujo nome ancestral entre os cristãos era Teofonia, englobava na sua origem a maior parte das celebrações a Cristo, o seu baptismo, a sua vida e o seu sofrimento na Terra bem como os seus milagres. A partir do ano 54 separou-se da Natividade, o nascimento, da Epifania, que passou a ser uma festa exclusivamente dedicada aos Reis Magos.

A data fixada no ano de 1164, 6 de Janeiro, pretendia assinalar a viagem dos três Reis Magos vindos, segundo o evangelho, dos seus longínquos países do Oriente até Belém, guiados por uma estrela, para render homenagem e oferecer os seus presentes a Cristo recém nascido.

De seus nomes Gaspar, com olhos amendoados e barba fina ,Baltazar, negro e imponente e Melchior ou Belchior, o mais velho e de longa braba branca, os Reis Magos pagãos simbolizam a riqueza, o pder, a ciência e a homenagem de todod os povos da Terra a Cristo Redentor.

Paramentados com as suas vestes preciosas, tiaras sobre a cabeça e os tesouros nas mãos, assim se apresentam perante o menino, que apenas tinha pastores à sua beira, a quem oferecem os seus presentes. um deles três libras de ouro, para o Rei, o outro três libras de incenso, para o Deus e o outro, três libras de mirra, para os restos mortais do homem.

Apenas S. Mateus narra o episódio dos reis Magos no Evangelho e ainda afirma que estes tiveram uma conversa com Herodes, que não se repetiu, pois em sonhos foram aviados para o não voltar a fazer.

São estes reis que baptizam o manjar doceiro desta época, o bolo-rei, uma espécie de pão doce recheado e enfeitado com frutos secos e cristalizados, com pinhões, amêndoas, nozes, figos, passas, cerejas e abóbora, cuja tradição se espalhou por toda a Europa e alguns países da América Latina, mais concretamente o Brasil.

Esta era uma ideia retirada do bolo januar, dos romanos, ou Saturnália, que trocavam entre si no primeiro dia do ano. Era acompanhado de um ramo de verdura, colhido no bosque, dedicado à deusa Strena. Deste nome deriva " as estreias ", expressão que, em certas localidades do nosso país, serve para definir o acto de oferecer presentes de boas festas.

Recuando bastante no tempo, "as estreias" relacionavam-se com mascaradas, banquetes, jogos e outras celebrações realizadas pelos povos pagãos, de tal forma que no Concílio de Tours, em 567, foi sugerido que estas festas pagãs dessem lugar às esmolas de carácter cristão e litúrgico, de maneira a atenuar os traços de politeísmo.

Ao bolo janual e ao ramo de verdura, o hábito que os Romanos perpetuaram, eram acrescidas pequenas lembranças, como tâmaras, figos ou mel, com os votos de bom ano, paz e felicidade. Mais tarde esta singeleza não satisfazia e a sua modernidade levou a algo mais valioso, o ouro e a prata. Em diversos países tornou-se costume introduzir no bolo uma pequena cruz de porcelana, que se juntava à fava e depois foi substituída por minúsculas figuras humanas.

Ainda hoje esse hábito, do brinde, se mantém e tornou-se uma tradição bem curiosa, pois a expectativa é de ver quem será o achador da fava, pois terá a tarefa de oferecer o bolo seguinte. Alguns disfarçam a sorte que lhes saiu mas, o grosso, continua a tradição de o ofertar.

Associado à quadra natalícia encontram-se as janeiras e os Reis, ou seja, são peditórios cantados na noite de Natal, de Ano Novo e de Reis. Talvez sejam uma herança das próprias strenas romanas, uma vez que tinham como missão o receber dádivas.

Toda esta forma de se iniciar o ano, remete para outras celebrações, e tempos bem remotos, quando se celebravam deuses e várias divindades pagãs ou eram pedidas ou oferecidas dádivas do ano comum, símbolo de bom augúrio, quer para quem as pedia, quer para quem as doava.

O costume não se perdeu e grupos de homens e mulheres, os janeireiros ou reiseiros, acompanhados ou não por músicos, percorrem os lugares, de porta a porta, a pedir oferendas em troca da entoação das "loas" ao Menino e das "janeiras" ao Reis.

Na região de Trás-os-Montes era costume, nos quatro dias que antecediam os Reis, juntarem-se rapazes e raparigas que percorriam os lugares a pedir, de casa em casa, as "janeirinhas". À frente do grupo seguia um rapaz com uma candeia de azeite, que voltava a ser cheia quando acabava, pelos donos da casa seguinte. Em troca recebiam chouriços, maçãs, passas, castanhas, vinho e outros géneros, com os quais organizavam uma festa, à volta da fogueira, onde assavam e comiam os chouriços e a restante comida.

Em Felgar, realizava-se no dia 1 de Janeiro, a Festa dos Rapazes, conhecida também pela Festa da Senhora dos Moços, em que os rapazes, em grupo, palmilhavam a freguesia fazendo um peditório. As ofertas, chouriços, orelheira, bolos, frutos secos, vinho e outros bens, eram presos nos galhos de um ramo, o "galheteiro", que cada um segurava na mão, sendo as ofertas leiloadas no final da ronda.

No Algarve perguntava-se primeiro: reza ou cantiga? e, conforme a resposta, assim os janeireiros rezavam ou cantavam em troca das oferendas. Esta tradição pode apresentar algumas variantes mas a finalidades é sempre a mesma, uma troca justa por algo que é feito, o recuar aos tempos ancestrais da trocas por troca.

Em Niza, rapazes e raparigas organizavam-se em grupos de quatro elementos para cantar o "Menino Jesus", as "loas" de Natal e os Reis, as "loas", antes e depois do Natal. Escolhiam as casas que pudessem ser mais rentáveis e, quando lhes abriam a porta diziam: " Menino Jesus da Nazaré, quer que cá cante?". Perante a resposta afirmativa, entravam na casa, onde estava reunida a família, quase sempre na cozinha e começava a "loa".

Na zona de Beja, a tradição constituía oferecer aos grupos que cantavam as "loas" nas vésperas de Ano Bom ou dos Reis, as populares "costas", uns bolos feitos de massa semelhante à do pão, a que se junta açúcar ou mel, sumo de laranja, ovos leite e canela, moldados à mão e com formas diferentes.

Durante anos, este dia era especial, uma simbologia de grande valor uma vez que a religiosidade lembrava a pureza inicial de se cuidar de um ser pequeno que, mais tarde, seria de grande importância para uma comunidade. Com o passar dos tempos, o dia perdeu-se em Portugal mas em Espanha ainda é o de maior entusiasmo, o dia da troca de prendas.


Vikings

Vikings. Este é o nome dado aos navegadores escandinavos que entre os séculos IX e XI realizaram incursões nas ilhas do Atlântico e em quase toda a Europa Ocidental. São uma antiga civilização que hoje compreende o território que agora é ocupado por três países europeus: a Suécia, a Dinamarca e a Noruega. A sua cultura era baseada na actividade agrícola, no artesanato e no notável comércio marítimo.

Suscitando alguma admiração nos outros povos e ainda receio, os ingleses apelidaram-nos de pagãos ou dinamarqueses, os francos de nómadas, os irlandeses de estrangeiros e na Europa central eram conhecidos por rua ou varegues. Não se sabe ao certo a origem da palavra que pode ter sofrido uma deturpação no seu uso. Viken relaciona-se com fiorde ou ainda baía. Por outro lado existe ainda a hipótese de estar ligada a um verbo que significa evitar ou esconder. O certo é que evitavam confrontos, sempre que possível.

Cronologicamente esta civilização alcançou o seu auge entre os séculos VIII e XI. A maré das primeiras invasões começou em 856. Conquistaram grande parte das terras britânicas, estendendo-se até à Escócia. Mais tarde, no século X, Eurico, o Vermelho, explorou a Gronelândia onde estabeleceu uma colónia e o seu filho, Leif Ericson explorou o litoral norte americano, procurando colonizá-lo, sem sucesso.

Eram os melhores navegadores do mundo e sabiam orientar-se pelo sol e pelas estrelas. Foi assim que chegaram a França e aos Países Baixos. Devido às baixas temperaturas, os vikings tinham expressa necessidade de uma vestimenta que lhes permitisse suportar o frio. Assim, combinavam peças de tecido com couro e peles grossas para manter o corpo aquecido. Curiosamente apreciavam adornos de metal e pedra que usavam com mestria.

Os seus barcos, os drakares ( dragões ) eram elaborados de forma bastante inteligente pois podiam ter entre 20 e 40 pés de comprimento e 3 metros de largura. Uma das vantagens é que eram mais fáceis de manobrar facilitando as táticas de ataque e de fuga. Igualmente navegavam nos mares e nos rios porque o casco aberto era trincado. De vela quadrada e remo-leme lateral na popa, tinham 2 filas laterais de remos e uma cabeça de serpente que servia para os identificar.

As habitações eram bastante simples. Madeira, pedra e relva seca eram os elementos principais usados na sua construção. Práticos e desembaraçados por natureza, as casas tinham, por norma, uma só divisão sendo que nas famílias mais abastadas havia lugar a cozinha e quartos. Inicialmente a organização era democrática mas com o tempo os chefes passaram a assumir uma maior importância.

A organização familiar tinha traços patriarcais sendo que o homem era o principal responsável pela defesa da família e das várias actividades que providenciassem o sustento. A mulher era a responsável pelos alimentos e algumas também se tornaram guerreiras sendo tão ou mais destemidas que os homens. A educação era exclusiva dos pais que passavam aos filhos os ofícios e as tradições. Eram um povo de cultura oral e não escrita.

O rei estava no topo da autoridade, seguido dos condes e chefes tribais que eram respeitados por todos. As reuniões eram ao ar livre onde se discutiam todos os assuntos comuns, faziam as leis e definiam os castigos a aplicar aos infractores. Existia uma certa democracia nestas decisões pois todos eram ouvidos com bastante atenção.

A sua mitologia é vasta e muito rica. Politeístas convictos, os seus inúmeros deuses funcionavam como consciência colectiva e orientadora. Odin era o deus dos deuses, Thor a divindade de maior popularidade e tinha como missão proteger o povo viking e o controlo do céu. Mas tinham outros deuses que eram venerados de modo particular.

Com a cristianização da Europa durante a Idade Média, estes guerreiros acabaram por se converter à nova religião levando ao fim da sua cultura, o que acontece entre os séculos XI e XII. Tal ficou a dever-se aos conflitos, infindáveis, entre os nobres ingleses e os da Normandia, que tinham em mente os seus próprios interesses e não os da comunidade.

Contudo as lendas e as superstições sobreviveram ao tempo e tornaram-se uma fonte de estudo para todos aqueles que se interessam pelas civilizações que se extinguiram. Hoje em dia estes países preservam as suas tradições e fazem questão de manter estas memórias tão vivas quanto possível, quer através de museus ou de inúmeras recriações históricas.

Por serem tão interessantes e ainda mais apaixonantes, um assunto que não se esgota, foram tema de vários filmes e de séries que, com detalhes e rigor, tentam recriar os tempos da sua grande civilização e não os deixar morrer na memória colectiva. É preciso saber destrinçar entre a realidade, a verdade e a ficção que serve para animar dias que já se foram há muito.


A viagem de Marco Polo

Em 1298, na batalha de Curzola, as galeras venezianas são desbaratadas pelas frota genovesa. Este poderia ser um episódio, mais um, da guerra que opunha as duas cidades italianas mas a verdade é que o rumo a seguir se alterou. Entre os vários prisioneiros estava um Marco Polo que tinha regressado da Ásia e tinha muito que contar. tendo ficado encerrado durante um ano, vai ditando as suas memórias a uma companheiro de cativeiro. Os trabalhos forçados eram tão penosos que Rusticiano de Pisa, escreve tudo o que ouve. Nasce, então, O Livro das Maravilhas do Mundo.

Marco Polo, filho de mercadores, deixa Veneza e parte para o Oriente da demanda de negócios que possam enriquecer a família, Aventureiro, sangue que lhe ficou de família, aventurou-se no desconhecido com destino à glória. O seu pai Nicolo e o seu tio Matteo,tinham viajado pelo oriente, tendo chegado à Crimeia, Ásia Central, Bucara e depois atingiram a China. Em Pequim foram recebidos pelo grão-cão Cublai, onde ficaram hospedados para repousar.

Tinham partido no ano de 1255 mas o regresso só aconteceu em 1269, uns quinze anos de excelentes aventuras culturais de que resultaram um carta para o Papa, de Cublai, pedindo-lhe que enviasse à sua corte cem possuidores de conhecimentos, um pedido que não podia ser satisfeito pela cristandade. De qualquer das formas, os venezianos organizaram uma nova viagem, levando alguns presentes e uma mensagem do Papa. Marco Polo tinha 16 anos.

A viagem dura quatro anos, integralmente por via terrestre, tendo-se dirigido para a Arménia, atravessando a actual Geórgia, seguindo depois para sul, até ao golfo Pérsico, para retomarem o percurso tradicional das caravanas. Esta é a rota da seda, no interior das montanhas da Ásia Central, atravessa o Pamir até Kachgar, Yarkand e Khotan, passando pelos desertos que rodeiam o Lob Nor, até à cidade de Ganzou.

Durante um ano realizam trocas comerciais, muito benéficas, só retomando a viagem, no ano seguinte, quando Cublai Cão envia uma escolta para guiar os viajantes até à sua residência de Verão em Shangdu, a nordeste de Pequim, chegando em 1275. Cublai quer saber tudo sobre os costumes dos ocidentais e a ciência, ouvindo atentamente tudo o que lhe é relatado. Enquanto o pai e o tio de Marco Polo fazem negócios, o jovem torna-se o chefe de missões que o levam ao Tibete, China do Sul e à Birmânia. Durante três ano é adjunto de um governador de uma província e torna-se uma peça fundamental para a vida de Cublai.

O seu regresso está associado a algumas hipóteses. Uma delas será o natural envelhecimento de Cublai e a sua próxima morte, o que seria penoso. Outra terá ligação com as saudades que sentia da sua terra natal. Em 1291 os três, Marco Polo, o pai e o seu tio, acompanham uma jovem princesa que se vai casar na Pérsia. Parte, depois, até ao estreito de Malaca e seguem as costas da Índia, desembarcando em Ormuz. Disfarçados de mendigos, transportam pedras preciosas, escondidas na cintura. retomam o percurso por terra até à Arménia e o resto do percurso é feito de barco, chegando a Veneza em 1295.

Os relatos feitos pela família foram encarados como uma fantasia, O pouco conhecimento que se tinha do oriente, fazia soltar risinhos e gargalhadas como se fossem meras invenções. Só quando exibiram as riquezas mencionadas, as pessoas acreditaram no que era relatado.A descrição feita é a de um estado que apenas se desconfiava, o Estado dos Cãos, ou seja, a China momgol no seu apogeu.

O Livro das Maravilhas do Mundo é rico em lendas e Marco Polo conta tudo se qualquer juízo crítico, regiões onde as pedras preciosas se colhem como frutos, mares onde mágicos encantam os tubarões enquanto os pescadores apanham pérolas de grossura inimaginável e tantas outras riquezas que o lado ocidental do mundo não conseguia supor sequer. Poder-se-ia dizer que havia exagero nos relatos. Contudo era verdade.

Os domínios por onde estiveram eram reais. As narrações permitiram desenhar as primeiras cartas destas regiões mal conhecidas. Marco Polo era um jovem muito cuidadoso e foi tão detalhado nas suas descrições que serviram de muita inspiração para outros aventureiros. Um deles,ganhou grande relevo, Cristovão Colombo, anos mais tarde, parte por via marítima em busca destas terras tão fabulosas e cheias de riquezas.

O ocidente sempre teve necessidade do oriente, das suas múltiplas riquezas. Terá sido este o mote das viagens, para encetar contactos comerciais entre as duas regiões: italianos, em particular venezianos, vão buscar ao Leste sedas, pedras preciosas e especiarias, indispensáveis para a alimentação. Muitas das vezes serviam para disfarçar o gosto das carnes que se comiam já estragadas.

A Rota da Seda, utilizada na Antiguidade, torna-se mais segura, após uma interrupção a partir do século VII, com o estabelecimento de uma potência que domina a Ásia Central e a China no século XIII, o Império Mongol. Este tem o seu apogeu no reinado de Cublai Cão, de 1260 a 1294, estabelecendo a sua capital em Pequim.

O interesse pelo desconhecido bem como o gosto pelas viagens vem de longa data. Durante anos o motor seria o comércio e a necessidade de satisfazer o interesse económico de alguns. Contudo as descobertas e o fascínio que as mesmas despertavam em quem as fazia, impeliam à sua continuidade. O facto de serem bem recebidos e ouvidos, mostrava o grau de desenvolvimento de povos de quem se ouvia falar mas pouco se conhecia.

No século XVII, o jesuíta António de Andrade percorre a Ásia e penetra, duas vezes, em Caxemira e no Tibete tentando a sua evangelização. O seu livro, Novo Descobrimento no Gram Cathayo ou Reino do Tibete, surge em Lisboa em 1626, oito anos antes da sua morte, em Goa.

No século XIX, o padre Huc partiu como missionário para a China, em 1839, tendo ficado cinco anos na Mongólia e entra em Lhassa no ano de 1844, onde permanece durante dois anos. De regresso a Paris, em 1850, publica Souvenirs d´um voyage dan la tartarie, le Tibet et la Chine.

No século XX, Alexandra David-Neel, com vinte e cinco anos, viaja através da Ásia Central e, disfarçada de mendiga, um hábito muito útil, percorre o Tibete que se encontrava fechado ao ocidente. Morre em 1969 deixando muitas obras consagradas às suas viagens e ao budismo.

Apesar de estar tudo devidamente relatado, a falta de vontade em conhecer a verdade, o que realmente aconteceu, continua a ser a matriz directora de muitos. Marco Polo foi um visionário, um homem que viveu antes do seu tempo, ou seja, foi um incompreendido e pouco valorizado. Felizmente que, séculos mais tarde, os seus estudos tiveram proveito.

 


A ponte de Londres caiu

O dia 8 de Setembro de 2022 abana o mundo. Isabel, Lilibet, a rainha com o mais longo reinado de Inglaterra, largou o mundo dos vivos para se posicionar num outro patamar, bem mais confortável onde as perturbações são nulas, chegou à eternidade.

Elisabeth Alexandra Mary, abriu os olhos no dia 21 de Abril de 1926, uma bebé que assegurava a descendência dos Duques de Iorque. Uma vida simples que nada teria de vulgar mas que acabou por ser abalroada pelos acontecimentos mundiais. Tornou-se a mulher mais mediática do século XX e XXI. Uma aura que não se evapora.

Não estando na linha de sucessão ao trono nos lugares cimeiros, o seu futuro seria afastado das luzes da ribalta. Contudo a sua educação foi especial, em casa, com uma selecção rigorosa de docentes. Causas exógenas levam o seu pai ao trono e a sua precoce morte, coloca-a nos domínios reais, com apenas vinte e cinco anos.

Cerca de vinte milhões de pessoas assistiram à sua coroação, uma cerimónia comentada anos e anos, por quem assistiu. O seu vestido tinha bordado todos os símbolos que ela representava e estimava. Philip, o seu marido perde todo o protagonismo provando que o amor que os unia era sincero e muito sólido. Uma postura que chocou o protocolo, casar por amor.

Quinze primeiros ministros serviram durante os seus setenta anos de reinado, sendo que uns foram mais mediáticos que outros. Winston Churchill e Margaret Thatcher terão sido os que maior rasto deixaram por razões bem diferentes. A todos recebeu com a mesma classe e educação.

Privou com sete papas, em épocas diferentes e nunca perdeu o sentido de estado, em que foi exímia e exemplar. Ela era a que tinha nas mãos um rol de países e nunca vergou. O mundo girava e Isabel avançava segura na marcha. Enviou o seu primeiro e-mail em 1976, provando que estava com atenção para as novidades, as tecnologias.

Era a única pessoa que estava autorizada a conduzir sem a respectiva carta de condução, o que fazia quando conseguia escapar à fria rigidez do protocolo do palácio.Talvez sentisse alguma tristeza por ver a casa onde tinha nascido, em Mayfair, transformada num restaurante. As raízes nunca se esquecem.

Aos seis anos já tinha casa própria, a Little Cottage, um privilégio único. Nunca deixou de ser adepta do Arsenal e, contrariamente ao que se ventilava, Isabel admirava Diana, por quem tinha um enorme respeito. O seu estatuto não lhe permitia emoções vulgares. Talvez os ingleses não a tivessem perdoado por ser rainha e não mulher.

A coroa real pesa cinco quilos, um peso nada fácil de suportar, tal como o ano de 1992, o que apelidou de Annus Horribilis. Além do divórcio de três dos seus filhos, Ana, André e Carlos, um incêndio devasta o palácio de Windsor e, como se não bastasse todas estas terríveis ocorrências, uma grave crise económica assola o seu reino tomando a corajosa decisão de pagar impostos, de que toda a família estava isenta.

Por ser monarca foi presenteada com animais exóticos, um elefante, uma onça, tartarugas gigantes e ainda preguiças, que se encontram no jardim zoológico de Londres para que possam ser apreciados por todos. Os cavalos eram um dos seus escapes e montava com desenvoltura e elegância, gosto passado aos seus descendentes.

Durante a guerra, serviu como motorista e mecânica, o que levou ao título carinhoso de Princesa Mecânica de Automóveis. Sem medo, conduzia o que fosse preciso para levar a sua missão até ao final. Bombas podiam cair mas a determinação de uma mulher não vacila perante a necessidade de salvar vidas e de servir o seu país.

Confessou que se apaixonou por Philip com uns tenros treze anos, amor que levou até à sua partida física, com mais de oitenta anos e setenta e três de casamento. Um homem que não pôde dar o seu nome aos filhos e que ficou sempre na sombra. Isabel honrou-o com uma enorme dignidade na sua partida. A imagem que nos chegou foi de uma viúva desolada com a solidão.

Foi mãe de quatro filhos, avó de oito netos e bisavó de doze crianças. Números interessantes. Uma descendência mais do que assegurada e abençoada com os genes de uma mulher de grande garra e fibra, um ser de cariz único. Alguém que não nasceu para ser rainha mas que o foi de forma exemplar. Soube ter a lucidez para distinguir todas situações mas era afeiçoada a um certo tipo de sapatos que usou durante cinquenta anos.

A sua grande paixão eram os cães, sobretudo os corgi, uma raça curiosa. Tudo começou com Susan, a sua adorada cadela, oferecida aos dezoito anos e que a acompanhou na lua de mel. Todos os seus cães, que gozam de mordomias, são descendentes de Susan mas a linha terminou agora pois os últimos cães, por padecerem de tumores, foram esterilizados impossibilitando a reprodução. Os mais recentes patudos foram uma oferta do seu filho Andrew.

Senhora de uma postura irrepreensível, sabia estar em todas as situações. A mala, imagem de marca, nunca a abandonava assim como a cor, que tanto gostava. A sua última fotografia mostra a fragilidade de uma idosa mas com um extremo sentido do dever. Com um kilt, por estar na Escócia, acompanhado de um sorriso, de bâton, um bom parceiro, era a imagem perfeita da execução da sua função. Trabalhou até ao fim. Começa agora a Missão Unicórnio, por ter falecido na Escócia.

Portugal e Inglaterra têm laços muito fortes. O Tratado de Windsor, assinado a 9 de Maio de 1386, estabelece uma ligação política, comercial e pessoal, que perdura até aos nossos dias. É a aliança mais antiga do mundo. Uma das cláusulas menciona bacalhau e tecidos para serem trocados por vinho, cortiça, sal e azeite. O casamento de D. João I com Filipa de Lencastre, em 1387, no Porto, selou esse acordo.

Isabel foi uma verdadeira estadista. O dever estava em primeiro lugar e reinou, com pulso firme e cabeça erguida, cinquenta e três países que sempre lhe mostraram respeito e enorme sentido de honra. Os ingleses estão órfãos. E agora? Quem vai calçar os sapatos da rainha? O mundo nunca mais será o mesmo. Isabel foi A Rainha.

O mito nasce agora. Isabel, Elizabeth, Lilibet, seja qual for o nome atribuído, reinou durante setenta anos. Governar tem outro teor e ainda há quem se confunda com os termos e posições. Foi uma mulher de garra forte. Quebrou muitas convenções e alguns protocolos. Nunca deixou de ser mulher e por o ser, valorizou-as a todas, estando ciente de que existiam barreiras e limitações absurdas. As que a serviam eram remuneradas de forma generosa sendo que algumas se tornaram mais parceiras de negócios do que meras funcionárias.

O seu chá era especial, Earl Grey, começando assim o dia. Por ser rainha não tinha gostos extravagantes nem caprichosos. O bolo de bolacha,com cobertura de chocolate era o seu preferido, uma maneira de saborear o que a vida tem de simples. Gostava de torradas com "marmelade" e ovos mexidos mas estes teriam de ser de casca castanha por serem mais saborosos. Os seus gostos eram frugais, pois cresceu durante os austeros dias da II Guerra Mundial. Não dispensava os morangos de Balmoral nem os pêssegos de Windsor. Para finalizar o dia havia a sua taça de champanhe.

Gostava de conduzir, o que fazia amiúde para aflição dos guardas e afins e era senhora de um refinado sentido de humor. Multiplicam-se os ditos sobre a sua postura irrepreensível perante ignorantes e incultos. Sempre cheia de classe, nunca perdia a compostura nem a educação. Só mesmo americanos para não reconhecerem a Rainha de Inglaterra quando estão na sua presença e pedem para que a monarca faça uma fotografia a outros.

Oh dear, dito pela voz de sua majestade, com doçura e ironia, nunca deixará de ser um som inolvidável e perfeito. Como será a Inglaterra sem Isabel, a mulher que esteve no comando durante os últimos setenta anos? A rainha morreu. Viva a rainha!

O correcto seria afirmar: Viva o rei, mas Charles, o herdeiro do trono, terá uma árdua tarefa pela frente. Pouco amado e cheio de desaires na sua vida pessoal, apesar de tantos anos de preparação, pode parecer, aos olhos dos seus muitos súbditos, não estar à altura de tão digno cargo. Que o tempo mostre de que fibra é feito.


Guilherme, o conquistador

Em 1066, o exército de Guilherme, duque da Normandia, um bastardo cheio de raiva, lança-se na sua última invasão em Inglaterra. A guerra não é entre os dois povos, os Normandos contra os Anglo Saxões, já que a situação é mais poderosa pois o que está em causa é o trono. O dito da altura refere que opõe três vikings, mais concretamente o partido normando de Guilherme, o partido anglo-dinamarquês de Haroldo e ainda os noruegueses que foram atraídos pelo irmão de Haroldo, Tostig, aliado de Guilherme umas vezes e agindo por conta própria nas outras.

A região designada por Normandia, terra dos homens do norte, surgiu em 911, através do tratado entre o rei da Frância Ocidental, Carlos III, o Simples e Rollon, o chefe viking. Os termos acordados explicam que é atribuído domínio aos vikings mediante o compromisso de não voltarem a fazer raides contra o território de Carlos. Para selar o acordo, a filha de Carlos é dada em casamento a Rollon que acaba por se converter ao cristianismo, O principado, que passa a ducado, vai sendo acrescentado com os seus legatários, duques Guilherme Espada Longa e Ricardo que afirmam o seu poder sem dar qualquer satisfação ao soberano. O herdeiro, Guilherme, o Bastardo, ultrapassa esses limites e entra num outro patamar de ascensão da linhagem, tornando-se, mais tarde, senhor da Inglaterra.

Nascido por volta de 1027, Guilherme é filho natural do duque Roberto, o Diabo. De figura um pouco caricata, gordo, calvo e dotado de uma força extraordinária, dominava com alguma clareza, há 31 anos, a Normandia mesmo que usasse o braço de ferro quando necessário. É neste contexto que parte para a conquista de Inglaterra. Dotado de uma limpa diplomacia, mantém boas relações com o rei de Frância e com o Papa, vendo nele um excelente aliado. É um estandarte enviado pelo papa que Guilherme fará flutuar em Hastings.

A decisão de intervir é tomada em virtude da crise da sucessão em Inglaterra. Conquistada no século V por germânicos, anglos e saxões e, mais tarde, cristianizada, entre os séculos VI e VIII, a ilha permanece, no século IX, um território retalhado e muito cobiçado. O rei da Dinamarca, Canuto,o Grande, dominou-o entre 1017 e 1035 mas a independência é retomada em 1045 para Eduardo, o Confessor, um anglo-saxão. A sua morte, sem filho varão, dá início à guerra com dois candidatos, Haroldo, o seu cunhado, do partido saxão e Guilherme, duque da Normandia e primo do falecido.

O duque afirma os seus pergaminhos hereditários, sendo ele descendente de Ricardo e que o soberano o terá designado como sucessor, em 1051, tendo, em 1064, Haroldo reconhecido esta decisão. É este dito, ou tese, que servirá de mote para apresentar a invasão como um acto de defesa dos seus direitos legítimos. Certamente que os nobres se encontravam em desacordo mas a luta era promissória e as armas estavam em riste para o que pudesse vir a favor dos que se consideravam em direito pleno.

A operação é uma das grandes empresas de pirataria normanda. A amplitude e a logística foram excepcionais para a época. Guerreiros bretões, franceses, do Mans, do sul da Itália, envolvem-se na luta reforçando o grupo. Esta parceria não era desinteressada pois visava algum lucro e o estabelecimento nesse tão desejado território. Assim, reúnem-se cerca de 7000 homens, sendo uns 2000 cavaleiros, mas ainda faltam os barcos para os transportar, o que não foi complicado ao ducado pois fortuna não lhe faltava.

A frota é reunida no estuário do Drives mas a falta de vento não os impele até à ilha de Wight onde estava previsto o desembarque. Dirigem-se para o estuário do Soma. Na noite de 28 de Setembro de 1066, pôde ser aparelhada e, no dia seguinte, o desembarque é feito em Pevensey, ficando nas proximidades de Hastings. A floresta serve de camuflagem e dá segurança. Entre ditos e outras desavenças, a 25, após uma marcha forçada, esmaga os invasores, perto de York.

A 14 de Outubro, Haroldo escolhe o terreno e coloca a sua infantaria, armada com machados, na colina.Os archeiros têm dificuldade em atravessar esta dura muralha humana mas, depois de simularem uma fuga, que acaba por gerar o pânico, a contenda acende-se. No meio da refrega e da confusão, a flecha de um archeiro de Guilherme atinge o olho de Haroldo que sucumbe, ferido de morte. Sem o chefe e qualquer orientação, os saxões abandonam o campo de batalha sem conseguirem evitar um banho de sangue.

Guilherme perdeu o seu rival e submete Dover e Cantuária, ladeando Londres. No dia 25 de Dezembro de 1066, em Westminster, faz-se sagrar rei. O que se seguiu não foi fácil e controlar dois estados, à falta de um vice-rei, será um enorme desafio que leva a revoltas e reviravoltas para conquistar o norte, até à Escócia, em 1074. Os normandos ocupam todos os cargos relegando os saxões para planos inferiores. Passa a usar-se o latim na administração e o francês na corte. O regime senhorial foi poderoso e opressivo, um feudalismo que deixou marcas profundas e pouco simpáticas.

A história inglesa começa no século V com a instalação, na Bretanha insular, de um povo germânico, os Anglo-Saxões. Assimilam os antigos ocupantes, colonizam o país e mudam-lhe o nome, England, terra dos Anglos. Organizam-se em sete reinos rivais que se foram cristianizando. Cerca de 795 começam as primeiras intrusões escandinavas, que se transformam, nos séculos IX e XI, em vagas de conquista, que alteram todo o conteúdo e equilíbrio demográfico, cultural e político. Canuto, o Grande, consegue a unificação que se vai fundir numa única dinastia dinamarquesa. Esta terá um fim caótico, o que permitiu a Guilherme tomar as rédeas da luta.

Com um passado tão turbulento e cheio de imprevistos e contendas entre as famílias, não é de admirar que a questão mais recente, o Brexit, tenha sido um arremeçar de pedras para atingir alvos que nem se sabe quais são. Gente que mostrou dureza e luta mas, em simultâneo, muita indecisão. O falado espírito britânico mais moderno, fleumático, pode ser o resultado de tantas bulhas e contendas e que, no final, ficou tudo na mesma.


A preto e branco

Houve um tempo em que ainda se atiravam ameixas e que podiam deixar nódoas sem que as vozes dos que nada têm a dizer se alterassem. Vamos envelhecendo e pouco amadurecendo, ficamos mais desatentos e cometemos mais erros. Pensar continua a ser uma actividade subversiva e reservada apenas a alguns. Os que muito apregoam, com tons elevados e revoltados, são os primeiros que apontam o dedo sem apresentar qualquer tipo de solução.

Todos são amigos dos desfavorecidos desde que eles não fiquem à sua porta nem lhes tapem as vistas. Tudo bem longe que, quem está em frente a um computador, é um grande herói. Misturas só para os gelados ou para o gin, que é coisa de gente refinada e com educação e estatuto social.

Portugal é um país racista ou os portugueses são racistas?

Existe uma cultura de base dum país e, quer queiramos ou não, somos influenciados por ela. É como a nossa família. Os hábitos adquirem-se e são difíceis de perder. Entendo que não se queira ser parecido com o tio Manuel porque é gago e bisbilhoteiro mas isso corrige-se. Agora ter herdado a genética e os péssimos genes que nos fazem parecer a tia Leonilde, com um bigode ainda mais farto do que o do avô, é péssimo.

Assim funciona um país. Somos católicos. Dizem. Quem vai à igreja? Quem conhece a doutrina? Há uma enorme diferença. Amar o próximo pode ser encarado de dois modos diferentes: só se deve amar a quem partilha a mesma ideologia ou a qualquer um? Começa logo aqui a discriminação. Parece que se trata de clubes onde a regra "menina não entra" continua a vigorar.

Uma mulher se tiver um determinado comportamento, que não seja recatada, é vista como uma perversa, uma doida e uma oferecida. Não pode ser dona do seu destino nem do seu corpo sem que venham as vozes danadas dar opinião. Um homem é muito macho se tiver muitas mulheres, muitos casos e enganar a legítima com regularidade. Ainda há quem pense assim.

Em tempos idos, as mulheres podiam ser julgadas por ter praticado um aborto. Um homem nunca. Dava ideia que, em Portugal, as mulheres engravidavam sozinhas. Mas quem é o Estado para dar ordens sobre o corpo de uma pessoa? Levantavam-se os velhos do Restelo e batiam nelas. Mas as suas mulheres, as de lei, praticavam abortos em clínicas e ninguém sabia. As mulheres pobres ainda são mais discriminadas do que as ricas.

A eterna dicotomia branco-preto nunca se vai esbater. Por muitos avanços que existam, por muitas conquistas que se façam, a palavra preto continuará a servir para insultar as pessoas e a palavra branco torna-se neutra. Criou-se o mito de que os homens pretos eram máquinas sexuais e que as mulheres pretas eram muito atraentes. Não se conseguem entender os critérios de avaliação.

Os ciganos serão sempre olhados de lado. Mas os ciganos são uma imensidão de pessoas diferentes, de origens díspares e de raízes culturais diversas. Emir Kusturica mostra-nos vários modos de olhar para eles, sobretudo na sua miséria física e na psicológica. Na verdade ninguém gosta de ciganos. Criaram-se ditados que deixam marcas indeléveis sobre eles.

Ir às compras onde os ciganos vendem tem o seu charme. A feira de Carcavelos tornou-se um must, um certo luxo que servia para mostrar que quem lhes comprava as pechinchas, era muito democrático e estava a prestar-lhes uma grande ajuda. Mais falsidade. No fundo estavam todos a enganar-se.

Podem-se escrever tantas e tantas coisas sobre os ciganos como se podem escrever sobre os que não o são. Os ciganos são os malandros, que só querem receber e não pagam. Quem são os que devem à segurança social e ao estado? Quem são os que não pagam os condomínios e os colégios dos filhos? Quem são os que são capazes de qualquer coisa para chegar ao topo da empresa, mesmo atropelando todos os outros? Estou a dar um pequeno exemplo. Afinal quem é o cigano?

A verdade é que não há quem queira ter ciganos e pretos como vizinhos. Defendem-se dizendo que não têm nada contra eles mas a sua presença, em bairros sociais ou não, acaba por desvalorizar as suas propriedades que foram compradas e não emprestadas pelo Estado. Do outro lado estão os outros, aqueles que defendem que todos devem ser integrados e não podem ser discriminados.

Mas algum destes senhores ou senhoras já desceu à Terra? Sabem do que estão a falar? Como vivem nas suas torres de marfim, protegidos e bem tratados, não sabem o que é a realidade social a não ser num qualquer manual ou num estudo. E se nos seus condomínios vivem pretos serão todos com estudos superiores e a ocupar cargos de topo. Mas a sociedade não sobrevive com esses, mas sim com todos, sobretudo os que estão na sua base.

Portugal é um país racista?
Pretos e brancos - check.
Mulheres e homens - check.
Ciganos - check.


Conhecer a Arte

O tema da Arte ainda suscita muitas reacções diferentes. É bom. É isso que se pretende. É salutar. Uns gostam e outros não. É inevitável. Agradar a Gregos e a Troianos é, de todo, impossível. Mas o que podemos considerar como arte? O belo, o agradável, o atractivo, o que apela à emoção, ao sentimento, o que nos consegue tocar e despertar algo interior, será isto? É a transmutação da realidade, o modo como o artista sente, como pretende imortalizar um momento ou um acontecimento, a forma pessoal de sentir. É inato ao homem. Na sua longa caminhada, desde o aparecimento neste planeta, o terceiro a contar do Sol, aqui mesmo, onde estamos, o ser que habita este local, desde o fim da última glaciação, a de Wurm, tem mostrado os seus dotes, evoluído e entrado em mundos paralelos que deliciam milhões e suscitam pólos opostos de opiniões.

A descoberta de um osso gravado, em 1834, na gruta de Chaffaud, vai dar início a uma nova forma de analisar, não só a História, como também a arte. O homem pré-histórico tinha gosto pela arte, nutria já um conceito de beleza ou simplesmente obedecia a rituais religiosos e assistia a cerimónias mágicas? Começam as teorias. Em Lascaux, o "Caçador Ferido" dá o mote para um debate que se mantém até aos dias de hoje. O Paleolítico Superior é o maior período da história da humanidade que durou entre 8000 a 400000 anos. É de pensar que se deram muitas ocorrências. Os registos estão nas rochas, nas grutas, em locais escondidos. Eram diários de luta, de fé, de necessidades. É curioso que o apuro permite verificar várias raças diferentes de cavalos, tal é a perfeição. As cores são fornecidas pela natureza, os ocres roxos e amarelos, que são pintados com os dedos ou com pincéis rudimentares, de pêlos de animais e misturados com sangue e água.

A religião sempre ocupou um lugar de destaque na vida do Homem. Na época cristã, no início deste nova e revolucionária religião, as catacumbas eram locais de culto, de refúgio e, também, de manifestação da arte. As paredes são cobertas de frescos recriando as mensagens bíblicas de Noé, a arca, Daniel e os leões, bem como Lázaro saindo vivo do seu sepulcro. As referências à cruz, símbolo novo, são dissimuladas e subtis. O ícone maior será a Virgem, mãe de Jesus Cristo, que representa a pureza, a perfeição, a ausência de mácula e de pecado. A alma é feminina sendo uma mulher de braços entendidos, quando terrena e uma ave, quando se trata do céu, local de recompensa para quem pratica boas acções e cumpre os preceitos estabelecidos.

A Arte Gótica, que eclode na Idade Média, vai renovar a visão recolhida e clandestina da fé. As igrejas Românicas eram pequenas, grossas, pouco elegantes, escuras e frias. As góticas enaltecem o amor ao Criador, tentam tocar o céu, chamar-lhe a atenção. São dotadas de verticalidade, plenas de luz, usando novas técnicas, como o arco quebrado, a abóbada de cruzamento de ogivas, que suporta um peso muito maior mas mantendo a leveza da linhas, os arcobotantes, auxiliares preciosos e as gárgulas, o aspecto caricato e brincalhão. São pequenos diabinhos provocadores, que olham os crentes e os alertam para os perigos. Na verdade incitam mais do que penalizam, mas este não era o modo como se pensava na altura. Tinham um enorme valor documental e pedagógico, pois era a leitura dos analfabetos, que se encolhiam com receio dos castigos futuros, como o inferno.

O Barroco é uma arte plenamente teatral, que busca o infinito e o fantástico, cheio de pompa e esplendor. É de uma ostentação tal que aquilo que não aparece coberto, o despojado, pode parecer pecado. O contraste de luz e sombra é desenvolvido através da emoção, da afectividade e do misticismo. É a arte dos sentidos, visual, auditivo e olfactivo. O efeito da talha dourada, a exuberância, é de tal forma faustoso, que leva a crer que a religiosidade e a vida mundana estão no mesmo patamar, próximas uma da outra e não num cenário fictício da realidade, completamente teatral.

O Romantismo vai mudar tudo. Cria uma ligação entre a arte, a história e a literatura. Tem o condão de ser uma corrente muito culta, bem elaborada, que desenvolve temas como as questões históricas e literárias, a mitologia, o retrato, o sonho, as tradições populares, a vida rural e a paisagem. Dá-se a exaltação do rural, onde são encontradas as raízes de um povo, na Idade Média, na valorização do passado. A arte é inspiração e criação, interioridade, isolamento da alma. A luz produz efeitos que permitem a sugestão, o deambular por aquilo que não é mostrado mas que, quem vê, percepciona no seu íntimo.

No início do século XX surgem as vanguardas. Todas inovadoras, cheias de energia, revolucionárias, com o intuito de agitar mentes e uma sociedade que dormia tranquila e sossegadamente. O Fauvismo, agressividade e exaltação de cor, o cubismo, escandalizando tudo e todos, desmaterializando o clássico e dando uma visão geometrizante, o abstraccionismo, que rejeita a realidade concreta, o expressionismo, pura emoção e subjectivismo, o futurismo, combatendo a estética do passado e dando primazia às tecnologias, à máquina e o surrealismo, a projecção do inconsciente que se liberta, após a descoberta da psicanálise, por Freud.

Mas afinal o que é a Arte? A imitação do real? A expressão do sentimento e de emoções? A transfiguração da realidade? O símbolo de algo ou a Arte é uma forma pura? Durante muito tempo considerou-se que a Arte consistia na habilidade e perícia na produção de um determinado objecto. Mais tarde, distingue-se entre artes liberais e artes mecânicas. O Renascimento altera mentalidades e enaltece o papel puro do artista enquanto produtor de beleza e de bem estar.

O artista é o génio, o que está acima de todos. Para Kant existe uma distinção entre "artes agradáveis" e "belas-artes". As primeiras têm como finalidade o gozo e as segundas são mais que um prazer sensorial porque são um modo de conhecimento. Posteriormente, as belas-artes foram catalogadas em pintura, escultura, música, literatura, dança, arquitectura e eloquência que acabou por ser destituída pela arte cinematográfica, a chamada sétima arte.

A experiência estética só é possível se houver uma relação desinteressada pois não é uma atitude nem prática e muito menos utilitária. O que se retira do que se vê, é pessoal e não pode implicar princípios morais nem políticos. Há que haver um distanciamento psíquico pois o sentir prazer, ou a sua ausência, pertence a um outro campo. A arte como imitação do real é limitante e cinge-se a uma mera cópia. O artista não representa as coisas que vê, mas o modo como as vê e imagina.

Cada obra de arte leva a mundos imaginários ou fictícios. Esta será uma modalidade específica de vivência do mundo e da organização humana. O que o artista cria é uma transfiguração do real, uma recriação podendo até parecer que seja impossível. As portas da imaginação são vastas e largas, podendo reflectir experiência pessoais, com interpretações sensíveis e peculiares. Há todo um enriquecimento que valoriza o que quer libertar e partilhar. Na verdade é um símbolo de sentimentos que tendem a elevar o espírito humano.

Será que todos entendemos a arte com a mesma sensibilidade e o mesmo toque? Para uns será suave e doce mas para outros ainda será rude e dolorosa. Algumas obras são marcas de tempo, de acontecimentos que não podem ser apagados e registam comportamentos e modos de ser que são antecessores dos actuais. É uma existência humana crítica que dá a mão a quem a segue. O escape à rotina pode ser pacificador.

A experiência estética exige uma atitude de distanciamento psíquico. É um exercício bem simples: o sujeito coloca-se perante o objecto que o fascina, a sua contemplação como se a sua personalidade tivesse sido filtrada e ficado isenta de qualquer preocupação prática. Ser belo ou feio prende-se com o prazer que se sente na observação e sentir é o mais subjetivo que pode existir.

Esfregar manteiga numa lixa poderá ser uma tarefa árdua mas escorregar numa casca de banana continua a ser usual. A forma como cada um percepciona o que ouve ou vê, é pessoal e intransmissível, tal com a interpretação do que lhe é dado ler. Sentir? Sinta quem quiser.


Santos Populares

Junho tem um sabor especial pois é o mês dos Santos Populares com festas e arraiais por todo o país nas noites de Santo António, de São João e de São Pedro, o que significa libertação de rotinas e vida ao ar livre com convívio até às tantas. Não que os santos façam parte dos comes e bebes, mas por serem o mote de tempo mais quente e alegria.

Em Lisboa, de 12 para 13 de Junho, dia de Santo António é a noite mais forte, onde tudo pode acontecer e as disputas entre os bairros, os ditos populares, são feitas através de um desfile na Avenida da Liberdade que toma o nome de Marchas Populares. Cada bairro faz o seu trabalho e os preparativos são levados ao pormenor. Não é à toa que se caçam padrinhos e madrinhas, as ditas figuras públicas, para os representar.

Esta artéria fica cheia de gentes que querem apoiar os seus amigos e vizinhos e, como tal, defendem as suas cores e bairros. A cor é dominante e a música faz parte do espectáculo que se quer inesquecível. No final há a marcha que é escolhida como a mais representativa e vai dar glória ao bairro que a ganhou. Alfama, Graça, Bica, Mouraria, Madragoa e tantos outros, são nomes que vão ficando escritos com o suor dos seus moradores.

A vida mora nos bairros, com as conversas de janela e de portas. Nos largos e vielas medievais, come-se caldo verde e sardinha assada, canta-se e dança-se pela noite dentro. Qualquer tema serve para repartir e festejar. A genética está impressa nestes locais. A fé chega com a procissão de Santo António que sai da sua igreja, no local onde o santo nasceu, em 1193.

Santo António tinha fama de casamenteiro e, neste contexto, os Casamentos de Santo António, uma forma simpática de haver uma festa para os casais menos bafejados pelo dinheiro e patrocinados pela Câmara Municipal, são outro acontecimento alto desta data. O desfile dos carros e o copo de água tem transmissão pela televisão e a festa é para ser levada muito a sério.

O Porto não lhe fica atrás e, na noite de 23 para 24 de Junho, quando se celebra o S. João, a festa é inesquecível. São festas muito animadas, em que a população vem para a rua comer, beber e divertir-se pelas ruas dos bairros populares, decoradas com arcos, balões coloridos e manjericos. Como só acontece uma vez por ano, anseia-se com ardor e paixão sendo que a energia libertada é potente. É a noite maior do Porto.

Não lhe falta cor nem alegria nos bairros mais tradicionais, como Miragaia, Fontainhas, Ribeira, Massarelos e outros. Aqui, zona mais a norte do país, os festejos assumem outra dimensão e as tradições são outras. Certos usos e costumes sofrem modernizações e se, antigamente os foliões batiam com o alho-porro na cabeça dos companheiros, hoje usam martelinhos de plástico que, depois de batidos nas cabeças, ninguém se zanga nem leva a mal.

Alho porro que simbolizava o membro masculino, o fálico, exibido sem qualquer tipo de pudor. Também havia os ramos de cidreira que as raparigas passavam na cara dos moços casadoiros ou nem por isso. Estes seriam símbolos dos pêlos púbicos femininos e era uma oferta irrecusável. Fernão Lopes refere-se a esta festa com alegria. Uma colheita das boas.

Para culminar a festa há um exuberante fogo-de-artifício, que é lançado à meia-noite em pleno rio Douro. Os tempos trazem novidades e também se lançam balões de ar quente multicores, numa das mais bonitas celebrações destes festejos populares. A noite acaba para muitos junto à praia, para ver nascer o sol ou para um banho matinal, como manda a tradição.

Esta data é esperada com grande expectativa não só pelos comerciantes como também pelos muitos populares que se orgulham dos seus bairros e fazem questão de mostrar como cuidam deles com zelo e carinho. É uma grande noite, de libertação e o S. João, que é do povo que tanto o apaparica e cuida, dá sempre o ar da sua graça. Tristezas não pagam dívidas.

A 29 de Junho é a vez do São Pedro, outro santo popular que é celebrado em várias localidades do país, como Sintra ou Évora, cidades Património Mundial. Évora, aliás, tem a particularidade de celebrar dois santos populares, pois realiza desde o séc. XVI a feira de S. João, uma das maiores da região sul de Portugal, comemorando também o dia de S. Pedro como feriado municipal.

As zonas ribeirinhas nutrem pelo S. Pedro um amor tão forte que se perde na imensidão dos tempos. Os barcos seguem em procissão e pede-se ao santo que a vida lhes seja facilitada ou agradece-se todas as benesses recebidas.O interessante é que a procissão, no rio, é nocturna e não faltam fiéis para nela participarem. O religioso e o profano sempre de mãos dadas e em perfeito entendimento.

S. Pedro era pescador e foi o primeiro papa. Foi crucificado em Roma, de cabeça para baixo, em 64. Negou conhecer Jesus Cristo, três vezes, como ele havia afirmado, mas deixou um legado que ainda hoje é venerado. Não que seja importante o papado mas por ter sido um homem do povo, de trabalho e labuta.

Nestas festas resistem, com garra, algumas práticas ancestrais como saltar a fogueira, prova dos destemidos e oferecer à namorada ou namorado, pequenos vasos com manjericos, acompanhados de quadras escritas, que muitas vezes falam de amor. Todas estas festividades têm a sua origem no solstício de Verão e ainda em antigos rituais de fertilidade.

Depois de dois anos de restrições, onde as ditas foram suspensas, este ano será rijo em todos os sentidos. O povo precisa de escape para o dia a dia, de libertar as energias que foram sendo recalcadas e enxovalhadas, Beber uns copos de vinho ou de cerveja, com os amigos, é sinal de alegria e comer umas sandes de couratos e torresmos ainda dá mais pica para continuar.

Quanto à sardinha, o peixe que era rejeitado e apenas comido pelos pobres, aburguesou-se e ficou tão fino que nem todos lhe podem chegar. A sardinha passou a senhora dona e o pilim para a pagar ficou tão elevado que parece que se trata de gente fina que gosta de ir ver os pobrezinhos a brincar.


Maio

As festividades de Maio ainda não se perderam no mundo rural. São elas que continuam a regular os ciclos de vida e que mostram o retorno à luz, ao ciclo das chuvas e do vento que espalha as sementes pela terra e que ensina aos homens o que são as boas colheitas. Tudo voltará a germinar e brotar em flor. A espera permite as festas e a antecipação do futuro, a esperança que teima em não esmorecer. Os dias quentes são agora chegados e o cheiro doce que paira no ar, empresta alegria para todos os que se vestem de vida.

O pólen vaga pelas ruas, em procissão solitária e beija os receptáculos que se oferecem por prazer. A vida continua o seu ritmo natural, como se nada mais tivesse valor. É a dança da juventude que se repete e entoa.Os arranjos de flores são a mostra das artes populares e as giestas são símbolos do que se deseja. Tudo renasce como se fosse a primeira vez. A natureza transforma-se e a religião acompanha-a com modos peculiares e seculares de devoção.

Os rituais e cultos agrários, celebrados pelos antepassados para festejar o fim do Inverno, são o despertar vegetal que há muito se pretende. A volta que tudo leva, ensina que nada se perde e que tudo se muda, tal como o poeta escrevia com sabedoria. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades mas o que importa, as qualidades são o motor de continuidade. As Maias, nome atribuído às giestas, colocam-se nas janelas, portas, postigos, fechaduras e ainda nos outros locais bem visíveis da casa, de modo a perpetuar a fertilidade.

Também podem ser vistas nos estábulos, cancelas, carros da lavoura e até mesmo nos animais. Uma superstição que não se perde e que justifica o dito: se não fossem postos ramos de giestas juntos dos pintos, anhos e bacorinhos, o Maio prejudicá-los-ia. Uma luta pela sobrevivência, um trabalho que nunca pára e vidas que ainda seguem calendários que nunca mudam.

Com o passar do tempo, as tradições tendem a modernizar-se e são agora os automóveis que levam a decoração. Outros locais acrescentam algumas flores, como jarros e malmequeres ou ainda rosas silvestres, ao ramalhete. Estas coroas enfeitam portais e janelas e a ideia é não deixar entrar o diabo em casa. Ainda se acrescenta o afastar o mau olhado e a fome. Há de tudo, que as gentes do campo são da luta e sabem como dar valor às necessidades.

A origem deste culto perde-se no tempo mas pensa-se que terá tido origem numa lenda. O nosso país, tão fértil nestas histórias contadas de geração em geração, busca sempre sentido para tudo. Dizia a mesma que os judeus assinalaram a casa onde Jesus pernoitava, servindo-se de um ramo de giestas. Quando voltaram no dia seguinte, para o prender, todas as portas estavam iguais, com ramos de giestas, o que não permitiu que fosse identificada aquela onde Cristo se escondera. Na verdade tornou-se tão bucólico que as pessoas repetem o gesto mesmo que desconheçam a sua origem.

Quanto colocadas, em raminhos, nas pessoas, as giestas tinham uma função muito específica, que era irradicar o carrapato, ou seja, a doença. O diabo teria dificuldade de penetrar na alma de cada um e assim estava a salvo. Há locais onde se usa o termo burro, que está ligado ao tempo da guerra pois nem todos tinham a possibilidade de ter um cavalo. Em Trás-os Montes, burro é o nome por que é conhecida uma aranha, um bicho que ataca os palheiros e os dizima.

Outras localidades chegam a fazer encenações tão rigorosas que colocam, nas entradas das casas ou em locais públicos, os maios, os bonecos vestidos com cores garridas, segurando numa das mãos um pau e na outra uma garrafa e um copo com vinho. Podem existir algumas variantes mas a ideia mantém-se, o afastar dos maus espíritos que podem resultar em tragédias para muitos se as colheitas não forem boas.

Maio continua a ser a esperança de bem viver, o querer continuar a jornada e a esperar que o sol doure todas as searas. As colheitas são o futuro mas esse constrói-se todos os dias. As sementes são lançadas à terra com ardor para que o seu crescimento se faça com valor. Cada terra pode ter o seu uso mas todas entendem que devem germinar.

Maio está mesmo a bater à porta e é para ser vivido em pleno, sem máscaras que tapam os sorrisos e as feições, sem restrições de abraços nem quaisquer demonstrações de afectos. Ser genuíno ainda é complexo e duro. Tanta é a hipocrisia que circula que, quem se mostra como é, facilmente será alvo de quezílias e de apedrejamento.

As tradições são gestos de cultura popular que se eterniza. Os mais velhos são os guardiões dos templos e cabe a eles serem os divulgadores de tantos e tão proveitosos saberes. Claro que os mais novos têm uma palavra a dizer e esses, o sangue que vai pulsar com mais intensidade, são a chama que vai mais alto brilhar.

Maio também nos remete para os casamentos e as noivas, para o iniciar de uma nova caminhada, uma casa que se vai fazendo, com dores e carinhos, um ninho que tem sempre frutos saborosos e apetecíveis. Para se dançar é preciso um par e os noivos, são parte integrante do baile que está prestes a começar. Tudo leva o seu tempo e aqui também há sementes que se vão abençoar.

Maio, maduro Maio, Maio que dá tanta vontade de o abraçar. Um simples mês onde são depositadas as cartas de futuro, escritas com sangue de querer, os desejos mais profundos, os sonhos que se eternizam e ainda os segredos que, mesmo que não sejam para se revelar, são todos para se contar.


Quaresmas

Tempo de reflexão e de abstinência para os católicos, a Quaresma, que deriva do termo latino quadragesima, representa os quarenta dias de jejum de Jesus Cristo no deserto. Tal atitude ficou a dever-se ao cansaço que sentia e à necessita de repouso físico e espiritual, antes de partir para a sua luta apostólica.

Com início na quarta feira de Cinzas, o encerramento dos festejos do Carnaval, termina no Sábado Santo, que antecede o dia da Ressurreição de Cristo, o chamado domingo de Páscoa, festa da igreja cristã, solenizada desde os primórdios do cristianismo.

Este é o dia de triunfo e da vitória de Cristo sobre a morte, a recompensa dos esforços e dos sacrifícios em prol da eternidade. Cristo deixa de morrer e celebra-se, com alegria redobrada, a sua volta. Aleluia! Palavra repetida por quem sente Cristo como seu.

O que muitos não sabem é que afinal não são quarenta dias pois os domingos não contam uma vez que estão excluídos da penitência. O dogma perpetuado leva a que milhões de seguidores aceitem as regras sem as contestar. O caminho é de luz e deve ser seguido com fé e disciplina.

A última semana de evento, a Semana Santa ou da Paixão, vai do domingo de Ramos, que simboliza a entrada de Cristo em Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica, até ao Sábado Santo, que antecede o dia em que a verdade é revelada. Cristo afinal está vivo.

No que diz respeito à calendarização, que como se sabe é móvel, a Páscoa, a partir do século II, por determinação do papa Vítor, em documento do ano 190, era comemorada ao domingo. O Concílio de Niceia, em 325, decretou que o dia de Páscoa deveria ocorrer no domingo seguinte ao dia 14 do mês de Nissan, o nome do primeiro mês do calendário de Nipur, que correspondia aos meados de Março ou de Abril.

Com a moderna astronomia, pode prever-se a posição dos astros e a Páscoa teria como referência o Equinócio da Primavera e a primeira lua cheia, fixando-se no domingo seguinte, seja qual for o calendário. O Conselho Mundial das Igrejas tinha esperança de que a Páscoa ficasse com uma data fixa, o que implicava o consenso de todas as igrejas. Contudo, tal não foi possível.

Durante o período entre os Ramos e a Páscoa, o nosso país vive costumes e praxes que merecem ser referidas em detalhe. Uma delas menciona que não se devem comer couves na Quinta Feira Santa, uma vez que Nosso Senhor se escondeu num couval. Outro hábito, mais difundido, é não comer carne na Sexta feira Santa, por ser o dia da morte de Jesus Cristo e ter estado exposto numa cruz.

No Alentejo, mais concretamente em Castelo de Vide, tal forma de estar era tão respeitada que se queimavam as panelas, ritual que consista em colocar as panelas ao lume para fazer com que todo o resíduo de gordura, que houvesse, se fosse derretendo. Era esta a forma de purificação para as panelas que iriam ser usadas na quadra religiosa.

Quaresma implicava recolhimento e silêncio, luto e penitência. O mesmo se aplicava aos divertimentos e ao quotidiano. Assobiar ou cantar eram pecados que deviam ser evitados. Renunciava-se ao prazer de comer e havia apenas uma refeição por dia, composta de pão, legumes e água. A labuta no campo era acompanhada de cânticos religiosos.

Outra postura era a ausência de matrimónios e se os houvesse, não teriam a bênção desejada, que passaria para os tempos vindouros. Alguns homens usavam gravatas pretas e as mulheres vestiam de luto, se bem que mais leve. Contudo as cores garridas estavam banidas. Algumas mulheres, das mais devotas, mascavam folhas verdes das oliveiras, um castigo terrível.

Nas igrejas tapavam-se as janelas e os vitrais, as flores eram retiradas dos altares e os sinos não tinham ordem de toque até ao final do período pascal. Em sua substituição, existiam as matracas, que tocadas nas ruas, chamavam os fiéis para os actos litúrgicos. Estas matracas eram manobradas por jovens, escolhidos pelo padre, que levavam outros com eles.

As matracas eram feitas de madeira e de arame grosso, que emitia um som cavo e ritmado, com pancadas secas, a impor, de certa forma, um luto de rigor pela quadra, como obrigação dos crentes. Algumas vezes, a matraca era passada de mão em mão, pelos jovens, para dar mais ênfase ao ritual.

Março, marçagão, pela manhã rosto de cão, à tarde Verão.

No final da época tudo regressa ao habitual e a vida decorre sem limitações que possam ser apontadas. Será mesmo assim? Na verdade vive-se uma quaresma há anos, um tempo de contrição e de penitência onde o céu nem é invocado. O inferno reside na Terra e os homens de boa vontade têm outros interesses que a salvação da alma.

A ideia de uma entidade divina que a todos regula tem sido tema de reflexão de quem quer entender. O povo, essa amálgama de gentes que não se entende, discorda e acorda e volta a repetir o que disse e não disse. A quaresma evangeliza durante o tempo regulamentar. O que cada um sente não se enquadra em contextos.

Cada quaresma é única e mudam-se vontades consoante os tempos. Há quem se tenha remetido para uma quaresma contínua e dela não queira sair. Outras querem quebrar os votos e seguir até onde a luz possa indicar. Os velhos hábitos são difíceis de erradicar, tal como as arcaicas mentalidades que têm muito terreno para se fertilizar.

Os últimos tempos revolveram a terra e desenterraram mitos, receios, crenças, cismas e superstições que se querem aniquilar. Ganharam força e novos adeptos, cativaram os mais novos e voltaram à ribalta com os mais velhos. Um retrocesso até aos tempos mais escuros.

O senso comum ganha nova dianteira, assim como os dogmas que servem para muitos tapar. Agradece o poder que descobriu uma suave e delicada, sem qualquer tipo de esforço, maneira de a muitos manipular. Haja saúde que o resto é para continuar.


Os Caretos

Quando se fala em Carnaval, associam-se as máscaras e a liberdade de se viverem uns dias em que tudo é permitido. Das variadíssimas manifestações que o nosso país possui, merece particular importância a festa que se realiza em Podence, cujos figurantes estão, simbolicamente, ligados ao espírito do mal. Para tal, os trajes coloridos e as máscaras, faziam com que todos se assustassem e levassem a sério as superstições, que passavam de geração em geração.

Aqui, a encenação meramente pagã, levada a sério, está ligada às antigas festas dos Romanos, as Lupercais, efectuadas no dia 15 de Fevereiro, segundo uns, em louvor a Pã, o deus dos rebanhos, dos pastores e dos cabaneiros. Havia ainda quem falasse em fertilidade que, nas terras frias de Trás os Montes, era desejada como pão para a boca. Outro aludiam a Luperco, deus pastoril dos rebanhos e a protecção seria contra os lobos.

O importante, na Roma Antiga, seria o desfile pelas ruas, onde grupos de homens semi nus, fustigavam com peles de cabra, as mulheres que se cruzavam no seu caminho, num ritual punitivo, pretendendo mostrar que ficariam fecundadas. Roma Antiga e Podence podem ser muito afastadas, em tempo e geografia, mas as ideias são semelhantes e a mensagem passou.

O ritual perpetua-se de domingo a terça feira de Carnaval graças à actuação dos caretos que, percorrendo as ruas, vestidos de forma colorida e tapados para não serem reconhecidos, circulam pelas ruas atrás das raparigas e das mulheres, para as abraçar. Aqui o gesto toma o nome de chocalhar pois é feito lateralmente e com movimentos rápidos de semi rotação da cintura. Como carregam chocalhos na cinta, batem-lhes nas nádegas que acabam por funcionar como verdadeiros chicotes.

Algumas moças, solteiras e casadoiras, ficam de tal forma marcadas, que as nódoas negras são indícios da sua procura e prestígio. Os risos não faltam nem os gritos que se ouvem na suposta perseguição. É uma festa que mostra a pureza de sentimentos e a vontade de se fazer a corte à moda ancestral. Os papéis estão bem estudados e a alegria é geral. Na manhã de domingo e na de terça feira, era vê-los à solta em plena perseguição. Depois passou para a parte da tarde e prolonga-se pela tarde toda.

Os caretos são as figuras principais da festa, os seres quase fantásticos destes rituais lúdicos e pagãos, que passam de pais para filhos e que se tornam uma forma de união entre todos. Associados à ideia de um espírito do mal, um mistério que fazia todos tremerem, a forças sobrenaturais e ocultas, a curandeiros e bruxos ou qualquer poder diabólico, encarnam o próprio diabo, Satanás, mas auferem de total imunidade durante estes dias.

Tempos houve em que eram a representação da justiça pois faziam-na pelas suas próprias mãos, o que deixa de acontecer durante o período do Carnaval em que se transmutam e passam a ser temidos e assustadores, situados num patamar superior ao dos simples mortais. Os seus comportamentos atrevidos e até mesmo provocatórios, são agora olhados com bonomia, o que não aconteceu durante épocas anteriores.

Num escrito antigo é mencionado que o careto podia levantar as saias às raparigas, sendo que estas se defendiam como podiam e não tinham o direito de se considerarem ofendidas, mesmo que não estivessem de acordo com aquele tipo de brincadeira. Ainda assim, não podiam pedir satisfações e, por isso, teriam que seguir em frente sem saber quem as estava a assediar. Antes, elas preferiam ficar em casa mas, com o passar dos tempos, afoitam-se e até são elas que os provocam.

Os Mafarricos trepam terraços e muros, sobem a telhados, saltam portões, entram pelas portas e janelas, podendo até mesmo as arrombar, sem pedir qualquer tipo de licença a ninguém. O que querem é chegar às moças para que elas fiquem chocalhadas. Onde quer que estejam, há algazarra pois só sabem comunicar aos gritos, numa linguagem que só eles conhecem. Podem até mesmo roubar peças de vestuário ou de adornos e ainda apalpar as moças, uma vez que gozam de imunidade.

As vestes usadas compõem-se de calças, casacos com gorros e capuz, que são confeccionados com lã ou linho, cobertos com franjas de várias cores e com um rabo comprido. Como adornos têm um cinto de chocalhos, a chamada bandoleira, que são duas grandes campaínhas sobre o peito e ainda um pau ou uma bengala. A máscara de latão ou de folha da flandres, é vermelha ou negra e tem ainda um nariz a três aberturas, que são para os olhos e a boca.

Carnaval é tempo de libertação, de soltar demónios e de tudo permitir. A tão badalada expressão " É Carnaval, ninguém leva a mal ", aplica-se em toda a sua forma. Podence é apenas um exemplo do que se pode encontrar pelo nosso país, um manancial de costumes e alegrias que são património de todos e deve ser partilhado. Apesar de ser um país pequeno, as diferenças que se encontram são enormes e fazem todo o sentido, pois a geografia acaba por ser uma condicionante.

Torres Vedras pode ser a terra do Carnaval por excelência mas tem um outro aspecto a ser considerado. Por aqui são as Matrafonas, os homens que tiram estes dias para se fazerem passar por mulheres mas mantendo todas as suas características originais, o que lhes imprime uma maior riqueza. Claro que o resultado é de espalhafato e de muita alegria, aquilo que verdadeiramente se pretende. A crítica social está implícita e não há inocentes e muito menos santos. Todos são visados.

A sociedade moderna tende a apagar estas tão brilhantes marcas populares. É lamentável que assim seja. Este é o nosso passado, os passos que os antigos deram e legaram às gerações vindouras. Podence fica longe da capital, numa terra fria e cheia de montanhas. O calor que une os seus habitantes é que não se perde. Se cada um fizer a sua parte, conseguir manter viva a memória do que vale a pena, certamente que nada se perderá e a riqueza do que fica é um tesouro que todos vão querer guardar.


Ser Português, uma arte milenar

Vivemos num país tão banhado pelo mar e pelo sol que até nos esquecemos de quem somos. E como nos esquecemos é preciso explicar, dizer quem é o português, aquela criatura que consegue dar sempre a volta por cima. Parece complicado mas não apresenta dificuldade de maior. Querem saber como? É um mero exercício visual e auditivo que não necessita de requisitos prévios.

Vejamos:
Alguém tem um acidente grave e fica praticamente danificado, tetraplégico, condenado a uma cadeira de rodas. O que é que se diz? Teve sorte, não morreu. A vida perde toda a qualidade mas está vivo. Pois, teve sorte. É à português.

Um estrangeiro dirige-se a um português e pede-lhe uma indicação. Este não percebe nada mas isso não tem importância nenhuma. Puxa do seu linguajar, portugualês e pronto, já está. Manda-o para um sítio qualquer mas ele percebeu. Desenrascou-se. É à português.

Joga a selecção nacional, de futebol, claro está! e todos são patriotas. Sabem qual é a bandeira nacional, qual é o hino e ficam todos orgulhosos. Defendem a pátria, o seu âmago, a alma lusitana. Se alguém deita o português "abaixo" ficam ofendidos, respondem à letra e incham o peito. É à português.

No Algarve, os naturais, olham para as inglesas, holandesas, estrangeiras em geral. Dão-lhes duas tretas, engatam-nas e ficam convencidos que foram grandes conquistas, pensam eles. São depois relatos de safaris sexuais, quais autênticas feras selvagens e indescritíveis, daquilo que nunca aconteceu. Mas não faz mal. Inventam. É à português.

Quando uma mulher vai ao volante, apesar de, regra geral, ser mais cautelosa e responsável, não se escapa das piadas típicas do macho latino. Mesmo que tenha conseguido contornar um buraco gigante, evitado um acidente grave e conseguido chegar à hora combinada, tem sempre de ser rebaixada porque as mulheres são um perigo ao volante. É à português.

Os meninos andam na escola. Não estudam, não se aplicam, não querem saber e os pais só se interessam com os resultados. Saber não é importante, é irrelevante. Mesmo não sabendo nada, não tendo tão pouco aberto os livros nem dado atenção nas aulas nem, muito menos respeitado os professores, acaba por passar. O menino é esperto. É à português.

Ainda não chega? É preciso dar mais exemplos? Não faltam casos curiosos para relatar onde o homem, macho, sempre macho, dá a volta por cima porque um latino é sempre superior a qualquer outro ser humano. Masculino ainda pode ter comparação mas feminino nunca. O homem é sempre superior à mulher. É à português.

O trabalho tem de ser feito, é necessário apressar, o tempo está a ficar apertado mas o responsável nem está para aí virado. Aperta com a equipa, tudo fica concluído a tempo mas sem qualidade nem nível. Não tem importância. Ficou feito, não foi? Está bom. É à português.

Se as coisas começam a ficar feias e complicadas no governo, a crise instala-se e o futuro é negro, o primeiro ministro pisga-se ou faz-se de coitadinho. Vai para um lugar seguro, confortável e com as costas quentes. Quem fica desculpa-se com os outros. Não assume nem o falhanço nem a incompetência. É de homem. É à português.

Curiosamente é este epíteto, esta palavra que acaba por justificar tantas e tantas incongruências da vida. Como é à português, está tudo bem, está esclarecido. É toda uma apologia do tanto faz ou está bem assim. Ser e fazer é totalmente diferente mas, neste caso, acaba por ser exactamente o mesmo. Ser português é o mesmo que fazer ou deixar de fazer. É à português.

Mas o português também sabe como ser solidário e amigo do seu vizinho ou até mesmo do desconhecido. Dá um raminho de salsa, empresta um pacote de açúcar, ensina como se faz um refogado, olha para a roupa da vizinha, empurra o carro de quem ficou sem gasolina, tira as medidas a quem passa na obra, assobia como se fosse um herói, arrota como um labrego, coça os tomates só por prazer ou ajusta as mamas para as realçar. É à português.

A alma lusa não se perde no dia a dia. Há toda uma panóplia de gerações que se foram formando no universo nacional e que mostram como se produz a força da união. O tempo das caravelas já lá vai mas o desenrascanço ainda está a funcionar. Há uma vizinha que fica viúva e a do lado faz-lhe a companhia de alívio para chorar. Um homem ficou só na vida e outro, que o conhece bem, leva-o a sair para se distrair. Os anos trazem ombros e braços que se enrolam para a caminhada ser mais leve. É à português.

O português é de lágrimas, de desgraças, de meter a colher onde não deve. Chora pela desgraça alheia e arranca cabelos pela sua, é o primeiro a parar para ver o acidente e dar a sua opinião abalizada e correcta, sabe tudo sobre a vida dos outros mas a sua deixa escapar. Os filhos são os mais lindos e os mais perfeitos mas os outros é que os desencaminham. Nunca os próprios. Elas são puras e atinadas e eles muito inteligentes. Na verdade não há quem tenha defeitos a não ser os outros. É à português.

E, para finalizar, uma breve análise ao Hino Nacional, aquilo que poucos sabem o que significa. Heróis do mar, ou seja, aqueles destemidos e corajosos homens que se lançaram à aventura, ao incerto, num mar, oceano manhoso, cheio de incertezas, numas casquinhas de noz, naqueles embarcações de brincar, nobre povo, quer dizer as gentes que se destacaram, os primeiros numa Europa que ainda estava em eterno conflito, nação valente, superar piratas, corsários, medos, superstições, tempestades, mitos, e imortal, conforme dizia o poeta, " se vai da lei da morte libertando ", fica para sempre.

Agora com mais força ainda, levantai hoje de novo, sim, levantar mas não é o seu lado mais caricato, mais mesquinho e mais facilista. Levantar a fibra e a garra dos que sem medos nem tontices, se lançaram a aventuras que sabiam poder ter um final menos simpático. Pensar dá trabalho, custa muito e até pode fazer mal aos neurónios. Pensar é uma atividade perigosa.

Se os nossos avós, os do hino, fossem vivos, ficavam muito desapontados e desiludidos com os seus descendentes. Não era esta a raça que eles queriam, que eles tinham em mente. Dos fortes não parece haver rasto e os fracos gostam de se afirmar. Na verdade ainda estamos nas brumas mas falta chegar ao esplendor de Portugal. Quando lá chegarmos, quando finalmente estiver atingido esse patamar, então sim, é à português!


A vida sabe como se reinventar

É comum que se pense nos desejos para o novo ano que se avizinha. Cada volta ao sol, os conhecidos 365 dias, são sempre desafios que não páram de pregar rasteiras e espalhar lamas escorregadias. Os planos, aquilo que o ser humano tem por hábito delinear, podem não ser concretizados e, como tal, há que fazer um reforço para que os mesmos cheguem a bom porto.

Para o ano que se finda, o terrível 2021, certamente que a saúde terá sido o tema mais badalado, a palavra que se usou de forma quase gratuita e sem qualquer sentido válido. É que em nome dessa mesma saúde, a real e a tal, a verdadeira, foi relegada para um segundo plano. Milhares de consultas foram adiadas e, arrisco a escrever, milhões de exames médicos não chegaram a ser realizados, colocando em risco a vida de quem deles precisava.

Pode parecer um paradoxo mas é mais uma forma aligeirada de se olhar para o caos que se instalou por todo o lado. Certamente que estão recordados das medidas que foram exaradas para contenção de uma suposta pandemia que teve o condão de alterar a vida de muitos para pior. Quantos perderam os seus empregos, o ganha pão, o sustento da vida, para que a saúde colectiva fosse preservada? Esses não importam? Os que tudo continuaram a ter, de forma bem tranquila, não fazem ideia da luta pela sobrevivência que se agigantou.

É assim a nossa sociedade, uns são filhos e outros enteados e gostam muito de dizer coisas sem saberem. Certas e determinadas medidas chegaram a tocar o dantesco mas o povo é sereno e não se importa de ser enganado. Basta relembrar que há um ano fazer compras vulgares, uma simples ida ao supermercado, era quase uma aventura. Horários reduzidos, gentes bem acumuladas e exaustão de funcionários, aqueles que nunca pararam e de quem as autoridades nem se lembraram. Tudo em nome da contemção da pandemia.

O ensino foi uma verdadeira palhaçada com idas e vindas, com computadores e professores que se esforçaram para chegar aos alunos e outros que apenas se remeteram ao conforto do lar e se esqueceram das suas obrigações. Não havendo qualquer penalização, o melhor era mesmo deixar andar que nem se notava. Alguns alunos agradeceram muito, outros viram a sua vida parada já que a aprendizagem ficou para segundo plano. A função não se cumpriu e o mal continua sem cura à vista.

Os transportes foram reduzidos em horários e espaço mas quem trabalha e deles precisa, não foi visto como alguém que corria riscos pois a terciarização da sociedade permite que se fale sem saber, que se queixe sem motivo e que se chore sem lágrimas verdadeiras. O essencial continuou como de costume mas esses continuam a ser invisíveis pois o pão chega à mesa de quem o pode comprar, sem fazer a menor ideia do percurso até ao repasto.

Os centros de saúde ganharam estatuto mais elevado, de casas vazias, votadas os abandono pois o medo, essa coisa estranha, cheias de pernas, feia e com dentes de fora, entranhou-se em tantos que se esqueceram de viver. Foram esses medos, receios e outras palavras que permitiram que os seus velhos morressem sem o último abraço, sem a palavra de conforto e sem saberem que eram amados. Que curiosa forma de demonstrar que se gosta de alguém.

Encerraram-se as pessoas numa prisão dourada, cheia de coisinhas boas e foi ver os corpos a ganharem formas mais distintas e roliças, com rabos que se colavam a sofás fofos e convidativos, para assistirem a séries onde os heróis são capazes de tudo mas os que as viam, se ouvirem um tom de voz mais elevado, soltam as lágrimas, dizem que têm sentimentos e fecham-se em cascas de noz para não verem a luz do dia. Enfraquecem-se as pessoas e não sabem como resolver situações básicas.

Quem fez aconteceu não se podia dar ao luxo de confinamento. Imaginemos que quem varre as ruas ficava em teletrabalho. Como seria? Quem fazia o pão pegava no computador, dava as instruções e voilá! pimbas! estava feito? As prateleiras dos supermercados não se arrumaram sozinhas nem os campos fizeram brotar os produtos sem as mãos sábias das pessoas que os cuidam. É fácil falar quando não se sabe como é. Aliás, até é caso para ser aplaudido pois os que são iguais precisam de dirigentes que sejam a sua luz.

Podemos falar de tantas crianças que perdem a noção das expressões, não sabem o que as mesmas significam por as caras estarem tapadas com máscaras que escondem os sentimentos e as emoções. Que vida é esta? É isto que desejam para os filhos? Não saber interpretar o que o outro pretende transmitir? Ficar espoliado de sentir é hediondo e não há forma de recuperação.

Como se ensinam os mais novos, aqueles que entram no primeiro ciclo se não for em regime presencial? Quem lhes pega nas mãos e encaminha o lápis para que as letras fiquem direitas? Como se pode mostrar o exercício de contar quando há uma máquina que os afasta? Onde reside a sensibilidade se não se toca em cada um, para mostrar que se importa e se gosta?

Que dizer dos que ficaram com a vida arruinada, os que perderam os seus postos de trabalho e que dificilmente os irão recuperar? A cultura ficou em segundo plano mas essa não se vê a não ser que algumas vozes liguem os interruptores da revolta. Fecham-se salas de espectáculos e prometem-se ajudas que nunca aconteceram. Quando não se valoriza o que é nosso, a raiz de sermos como somos, então a identidade perde-se e não mais encontra o caminho certo.

Afinal qual é a ideia que está por trás de tantas restrições e falta de liberdade? Um enorme dogma, que é aceite de cabeça baixa e sem contestar. Há quem bata palmas de tanta verborreia e disparates, escudando-se da vida como se fosse algo pernicioso. Viver é um risco assumido e sem a aventura de acordar todos os dias, o interesse e o desafio seriam minimizados, pelo facto de se ser um autómato que apenas responde aos comandos recebidos.

E a saga continua com variantes que apenas mudam de nome. Quem se chega à frente para trabalhar, esses malandros da sociedade, ficam com as pernas cortadas e não se fala mais do assunto. O dinheiro não brota do céu nem da terra, apesar de muitos terem essa sensação de facilidade distributiva. Tem o nome de ignorância mas há quem goste de assim viver mesmo que lhes seja explicado como funciona o sistema.

A nova estrela amarela sofreu um refreshment e passou a ser electrónica. Há que se provar que se é dos escolhidos ou dos que seguem a doutrina sem contestar. Exibe-se a falta de tanto e ainda mais com orgulho. Limita-se a vida de quem não se quer ligar a radicalismos mas vê-se forçado a ter que seguir os carreiros que empurram para formigueiros estranhos.

Surge a poção mágica, aquela que vai dar a força descomunal e que irá permitir que se derrotem os inimigos, ou apenas um inimigo, cantando vitória de cabeça erguida. Há filas para que a toma seja eficaz e benéfica. Uns atropelam-se e querem ser os primeiros e outros nem querem saber do assunto. Há de tudo neste mundo que é de todos o que o habitam.

Estragam-se as reuniões familiares e arruinam-se as festas particulares em nome de quê? Perde-se o contacto com a realidade e a loucura toma conta de quem ainda acredita que o Pai Natal desce pela chaminé e vai entregar os presentes a quem se portou bem durante o ano. Afastam-se gentes de quem se gostava e os afectos passam a ser perniciosos e maléficos. Gasta-se a humanidade que ainda restava em cada um.

A questão que se coloca agora é bem pertinente: Valeu a pena? Deixaram os avós morrer sem amor, encafuaram as pessoas em espaços minúsculos e apertados, cancelaram situações essenciais, reduziram-se as mentes que estão a crescer e insiste-se que é para um bem comum. Que ano tão estranho.

É este o futuro que se deseja, um medo abissal que engole todos como se fosse um vacúolo louco? Onde fica a vida, a aventura constante, o desafio que tem que ser superado? E os amores, que lhes fazer? A linha entre o amor e o ódio é ténue, mas a que fica entre a sanidade mental e a loucura é ainda mais fina.

Feliz ano de 2022. Viva a vida!


A fundação de Cluny

A fundação da abadia de Cluny vem na sequência de uma reforma promulgada por Bento de Aniano, que foi um dos primeiros a preconizar a aplicação rígida da Regra de S. Bento nos mosteiros do ocidente. O abade será o chefe de uma grande família, mesmo que sejam apenas monges. O seu exemplo foi seguido e rapidamente centenas de casas cresceram no resto da Europa, ficando todas elas na dependência desta. O abade é nomeado pelo seu homólogo de Cluny e têm que seguir as mesmas normas e regras, acompanhando os capítulos que têm lugar na casa mãe.

A igreja é uma instituição que acompanha os séculos, segue-os a par e passo e, nesse sentido, tem necessidade de se adaptar de modo a estar pronta para colmatar as necessidades do foro espiritual que revelam a evolução das mesmas sociedades. Neste contexto, em 909, o Duque da Aquitânia, Guilherme, o Pio, decide fundar uma abadia, no fundo de um vale escuro, o vale de Cluny. Esta nova fundação irá modificar o sistema que estava imposto.

Em finais do século X, a igreja atravessa uma crise de grande profundidade. Tudo começa com a escolha dos abades e dos bispos dos grandes mosteiros que são recolhidos entre as famílias importantes. Assim sendo, a tentação dos bens e do luxo, bem como de uma vida desafogada, é seguida por muitos que anseiam por ser senhores de propriedades, cobertos de poder e de riqueza , esquecendo a sua missão de salvação de um povo cristão que se encontra perdido.

Os cargos são negociados e vendidos como se fossem bens materiais com capacidade de produzir riqueza e domínio económico, Na verdade, as abadias geram muito dinheiro e prestígio, levando alguns a entrarem em colapso e outros a enriquecerem com facilidade. A missão espiritual ficava para segundo plano, deixando os crentes desprotegidos e desamparados. A igreja funcionava como uma paternidade para um povo que necessitava de apoios, em todos os aspectos da vida, quer espiritual ou práctica.

Contudo continuam a existir lugares onde o saber e a vida digna ainda têm lugar. A oração e a caridade eram praticados em lugares que não se tinham conspurcado nem deixado ofuscar pelas demoníacas negociatas que eram feitas em nome de Deus. Aliada a esta postura há ainda transmissão de saber e a tão apregoada salvação da alma. Poitiers e Lorena preservam a sua pureza e serão o palco das mudanças a ser operadas nesta época. O curioso é que os poderosos, os que traficam bens e dignidades eclesiásticas, sentem que precisam de apoio e ajuda.

Em França, desde o início do século X que as doações aumentam, mesmo que as famílias nobres possam ficar em risco. O importante é ter quem reze por eles e que a sua alma siga para o caminho correcto. É neste contexto que os bens se tornam insuficientes e os donativos incluem um filho que entre no mosteiro como oblata ou, posteriormente, quando sentem o tal chamamento, mesmo que seja tardio, ingressam nessas casas religiosas onde terminam os seus dias em oração, para redenção dos pecados cometidos.

Guilherme de Aquitânia governava um território que ia da Catalunha ao Loire e do Atlântico aos montes do Mâconnais. Convicto de que a forte generosidade o iria levar ao reino da salvação, apadrinha monges e oferece benefícios. Com a carta da fundação, o Duque age de forma a que o mosteiro possa viver nas condições materiais e morais que tornem a sua existência agradável a Deus. Nada foi deixado ao acaso e a escolha do primeiro chefe recaiu em Bernon, um dos membros de uma família nobre e rica da Borgonha. Na verdade, este será um homem de garra que ficará cerca de três décadas à frente do mosteiro. A sua formação e o seu passado em Autun, deram frutos poderosos.

A independência económica é reforçada pelas sucessivas doações dos que se viam preocupados com a sua situação após a morte. Para que a situação fosse ainda mais clara, seria necessária autonomia e, neste contexto, a libertação de Mâcon é garantida em 909, dependendo apenas da Santa Sé. O abade de Cluny é independente e livre de estabelecer as suas regras. Os monges desta casa em vez de dividirem o seu tempo entre o trabalho e a oração, tal como era mencionado na regra de S. Bento, rezavam, celebravam ofícios esplêndidos e intermináveis, cantavam a grandeza de Deus em edifícios que se tornariam os mais belos de todos.

Mas Cluny iria sofrer dos mesmos males que tanto apontava. O tempo teve a tarefa de adulterar a independência com luxo e as críticas agigantaram-se. O mais conhecido, Bernardo de Claraval, apontava o caminho perdido e as múltiplas formas de esquecer o propósito inicial. De miseráveis e andrajosos, passaram a luminosidade de estar e de se mostrar às claras, em posições que em nada os dignificavam. A independência que havia conquistado era mal vista. O papa Calisto II abandonou-os à sua sorte, deixando-os à mercê de vis ataques dos seus pares e dos sarracenos.

A revolução Francesa foi o golpe final. Tudo foi destruído, os livros queimados, as instalações derrubadas e o local ficou votado ao abandono. O terreno foi vendido e somente no século XX, se deu uma reconstrução parcial do edifício. Em 2007, a abadia foi consagrada como Património Europeu. O passado ainda continua vivo mesmo que tenha renascido das cinzas da falta de conhecimento e da ausência de memória de muitos.

Hoje a religião ocupa um lugar mais escondido na sociedade mas ainda com algum relevo. Certas normas deixaram de ser conhecidas e outras sofreram branqueamento de maneira a acompanhar os tempos. O saber foi-se perdendo e o lado espiritual caiu em desuso. O materialismo ganhou terreno e passou a ser a nova forma de estar. Ter e exibir são mais valias que substituem os valores e o poder persiste com a sua tarefa de corromper.

Os livros continuam a existir mas são olhados com muito desprezo. Ler é aborrecido, as linhas fogem e o conteúdo esvaziou-se. Tudo ficou vazio. Pensar pode ser perigoso e entender a mensagem escrita exige alguma contenção. A palavra do pregador deve ser escutada com cuidado. Fazer o que ele diz não é igual ao que ele faz. Incongruências que recordam o passado e que tendem a ser continuadas.

O passar dos séculos não alterou os motes de cada um. Há necessidade de haver um chefe, alguém que diga o que deve ser feito. O povo precisa de ser levado. O ser humano está oco de humanismo e a sensibilidade está colocada em risco. Ser pessoa é tarefa longa e incompleta, onde os altos e os baixos ganham dimensão maior.

A seita que agora tudo regula é o dinheiro, esse vil metal que angaria milhões de seguidores, cegos de paixão e fé, alienados com as suas promessas de felicidade. O céu é o carro topo de gama, a casa tecnológica, o telemóvel de última geração e as roupas ditadas pela moda. A alma morreu. O resto é apenas distração, sons que batem em paredes e regressam com sons que endoidecem e retiram a humanidade que residia dentro de cada um.


A Ciência Reprodutiva

A reprodução sexuada caracteriza-se pela existência de dois fenómenos fundamentais: a fecundação e a meiose. A fecundação é a fusão de uma célula masculina com uma célula feminina, originando um ovo ou zigoto. Durante a fecundação dá-se a duplicação do número de cromossomas, o que faz do zigoto uma célula diplóide. Esta é a primeira célula do novo indivíduo. Recebeu um lote de cromossomas de cada um dos gâmetas, um de origem paterna e outro de origem materna. Estes formam pares e chamam-se cromossomas homólogos. Começa agora a vida.

A meiose é um fenómeno que compensa a fecundação, reduzindo para metade o número de cromossomas. É um processo complexo, que tem duas divisões sucessivas. Cada célula mãe com 2n cromossomas origina 4 células-filhas, tendo cada uma n cromossomas. Na profase da primeira divisão ocorre o crossing-over, em que os cromatídeos dos cromossomas homólogos trocam entre si segmentos de material genético. Inicialmente dá-se uma fraca espiralização da cromatina e os cromossomas estão finos e longos, não se avistando os cromatídeos. Os homólogos emparelham, são as díadas cromossómicas ou bivalentes. Este processo ocupa cerca de 90% da meiose. A recombinação genética é aleatória e contribui para a variabilidade genética.

A espécie humana tem uma fórmula cromossómica complicada, 23 pares de cromossomas, 44A+xx na mulher e 44A+xy no homem e a maior parte das características hereditárias resulta de efeitos multifuncionais. O carótipo humano é constituído por 46 cromossomas. Estes são constituídos por ADN, ácido desoxoribonucleico e são os responsáveis pela transmissão de informação hereditária. Este ácido é constituído por 4 substâncias químicas, a adenina, a timina, a guanina e a citosina. Os genes são segmentos de ADN e distinguem-se entre dominantes, que produzem efeito mesmo quando só existem num par e recessivos, produzindo somente efeito quando estão presentes nos dois cromossomas do par. O genótipo é o conjunto das heranças genéticas e o fenótipo é o conjunto das características do indivíduo que resultam do genótipo e do meio. O ser humano é um ser inacabado biologicamente; quando nasce ainda não tem todas as suas competências desenvolvidas, o que é uma grande vantagem pois possibilita-lhe melhor aprendizagem e desenvolvimento.

Na verdade a meiose é constituída por diversas fases, a profase, já referida, a metafase, quando os cromossomas se dispõem aleatoriamente na placa equatorial e presos ao fuso cromático, a anafase, onde ocorre a separação dos cromossomas e afastamento para os pólos opostos e a telofase, que é a despiralização cromossomática e a formação de dois núcleos haplóides. Estas mesmas fases repetem-se na fase II concluindo, assim, o ciclo e a contribuição para a grande variabilidade genética, assegurando a sobrevivência de evolução das espécies.

Mas nem sempre ocorre deste modo regular e sequencial. Podem dar-se falhas, erros. Um gene é uma sequência específica de pares de nucleótidos que codifica um determinado polipéptido. Basta haver uma pequena alteração na sequência dos pares de bases azotadas para que se sintetize um polipéptido diferente do que estava originalmente codificado. É um gene novo, alelo do primeiro, que ocupa o mesmo locus no cromossoma. É uma "gralha" genética que vai alterar todo o código. Estes fragmentos podem ser colocados em várias posições.

E o que acontece quando esta "gralha", esta não comunicação se dá? Um dos distúrbios mais conhecidos é o síndrome do "grito do gato", que acontece num braço mais curto de um dos cromossomas do par nº 5. Manifesta-se através de diversas malformações, como a microcefalia, atraso mental, quociente de inteligência baixo e modificações da laringe, o que provoca um som semelhante ao miar do gato em sofrimento.

A trissomia 21 afecta o par 21, que inclui outro cromossoma, ficando assim, na totalidade 47 e não 46. Também conhecido por mongolismo ou Síndrome de Down, manifesta-se por alterações de desenvolvimento físico e intelectual, anomalias nas mãos e pés e uma expressão facial caracterizada por maçãs do rosto salientes e olhos oblíquos, devido a uma particularidade na pálpebra superior.

Outro caso é o síndrome de Klinefelter ou trissomia xxy e pode resultar tanto da não separação dos cromossomas x durante a ovogénese, como da não separação dos cromossomas xy durante a espermatogénese. Os indivíduos afectados são do sexo masculino e possuem uma série de características anómalas.

A não disjunção dos cromossomas sexuais implica a formação de gâmetas sem nenhum cromossoma sexual. Dão origem a um zigoto de guarnição cromossómica xo, o que origina a chamada monossomia xo ou síndrome de Turner, que se manifesta pela baixa estatura e ausência de caracteres sexuais secundários.

De referir ainda um outro síndrome, o da supermasculinidade, que é o resultado de uma mutação cromossómica que só afecta os homens e ocorre durante a segunda divisão da meiose levando à formação de um outro cromossoma y. Esta trissomia xyy encontra-se em pessoas muito agressivas mas sem malformações fisiológicas e morfológicas.

Apesar da ciência ter evoluído, de se conhecerem novos caminhos e novas técnicas, a natureza ainda consegue tornear todas as descobertas, todas as leis e todas as teorias cientificamente aceites. É um desafio constante, um labirinto que leva a várias encruzilhadas e que continua a dar muitas dores de cabeça aos investigadores. Toda a tecnologia disponível ainda não consegue evitar estes "erros" que continuam a acontecer e que servem para provar que continuamos a evoluir, que o ser humano é um ser inacabado.

Marlene e David conheceram-se, como tantas pessoas o fazem. Entre eles estabeleceu-se uma ligação profunda e, sem qualquer constrangimentos, deram-se um ao outro. O amor é grátis, não obedece a regras e as leis não protegem os jovens que se amam. O código civil é de sentimentos e de emoções e nada mais pode ser dito para alterar.

Desta relação foi gerado um fruto, um bebé que se tornou amado e desejado como a perpetuação de dois seres que foram bafejados com o calor do amor, esse sentimento que escasseia e que deixa todos desorientados. Tudo parecia correr bem até ao dia em que o Rodrigo nasceu. A tormenta abateu-se sobre estes pais já que o pequenino, aquele que conhecia a luz do dia, mantinha a sua pura e nobre inocência.

O menino não tem rosto e nada lhes foi dito no sentido de estarem preparados para uma situação limite. Estiveram sempre tranquilos pois o médico nunca lhes disse que havia algum problema. Foi nessa circunstância que o Rodrigo veio ao mundo e, mesmo antes de se ouvir o seu primeiro choro, já o amor dos pais transbordava. Um filho é um milagre e uma bênção.

Contrariamente às expectativas, a criança é uma lutadora e já festejou mais um aniversário. O médico foi logo ilibado, como é costume neste país, de qualquer crime que possa ter cometido. Nos dias de hoje, os exames médicos mostram as irregularidades e os supostos. Não foi assim e o Rodrigo, um simples bebé, conheceu os braços dos progenitores que o aguardavam. Mãe é sempre mãe e pai sabe ou aprende a o ser.

Marlene recebe 61,00 euros pela deficiência do seu filho, aquele que o médico afiançou ser perfeito. Para cuidar dele que, como se sabe, tem necessidades especiais, há um complemento de apoio à 3ª pessoa de 110,00 euros. O médico não sofreu qualquer tipo de penalização. A mãe é cuidadora enquanto ele viver. Faz ginástica com o que tem e continua a amar o seu filho.

David é o pai e Marlene a mãe. Continuam a viver a sua vida sem que venham gritar para as redes sociais, a sua revolta e bem grande que deve ser. Não foram chorar para os programas dos vários canais de televisão. Continuam a cuidar do seu filho, o que foi feito com amor e compreensão. 171,00 euros é o valor que o estado português entende que serve para dar qualidade de vida a esta mãe e a este filho.

Rodrigo é um mistério para a ciência. As probabilidades de se manter vivo após o nascimento eram ínfimas. Continua nos braços de quem o ama, mesmo com a imensa dor que possam sentir. A perfeição não existe mas o amor faz milagres, curas poderosas e cria valências que se desconheciam. Os pais, pessoas dignas, estão a resguardar o seu filho, aquele que criou ainda um maior laço entre eles.

O amor não pode ser quantificado. Nem a dor. Contudo existem mínimos e a vergonha de entregar este valor humilhante a quem tanto precisa de ajuda, prova como somos todos iguais, ou seja, números que são calculados sem se saber onde estão as pessoas. Outros recebem valores escandalosamente elevados sem nunca terem dado o mínimo de contributo ao país. Just saying...

O amor pode ser uma dor tão profunda e aguda que, mesmo que continue a doer, ainda consegue estender os braços e receber em seu seio, o símbolo da esperança e da felicidade. Afinal o que é esta coisa da felicidade? Momentos ou restos de episódios que tiveram o condão de fazer sorrir. Assim se eterniza a vida.


Tribunal da Inquisição - século XXI

Quando comecei a escrever por aqui, decidi dar o nome de Novos Medievais à minha rúbrica. O título prendeu-se com o facto de as pessoas estarem em tempos de obscurantismo e de terem esquecido o que significa lucidez e bom senso. Estamos num século onde a informação está disponível para quem a quiser procurar mas, na verdade, é bem mais fácil "engolir" o que se vai dizendo e não cansar os neurónios.

Estes precisam de ser ginasticados e sem essa força de querer, perdem-se por caminhos estranhos, em boqueirões onde a luz não penetra e tudo é permitido. Usar a cabeça e pensar por si é um mote quase revolucionário pois deixar-se ir é sempre suave e sem percalços. Só que não. Os loucos, afinal são os que se deixaram cegar e não os cegos.

Estava longe de pensar que seria testemunha e atriz num episódio onde a igreja, aquela instituição tão santa que forma homens de bens e dá a mão a quem precisa, ainda tem em seu seio seres de caráter muito duvidoso e malévolo. Se representação do marrafico houvesse, este senhor podia encarná-la com perfeita forma. Aliás, o papel assenta-lhe que nem uma luva e o tom em que o fez é a prova da falta de humildade e nobreza de muitos, em personagem tipo desenvolvida por ele.

Uma destas noites, estava reunida com os meus colegas do grupo de teatro, a ensaiar a peça que teremos muito gosto de levar a palco ainda este ano, se nos for permitido pois os avanços e recuos são enormes, quando, sem nos darmos conta, fomos surpreendidos por uma viagem no tempo.

Convém que deixe bem claro que somos uma Associação cultural, identificada por quem de direito e que os ensaios são feitos no salão paroquial de uma igreja. É um recurso de que dispomos e foi o acordo feito com a Associação e o padre da paróquia. O espaço é usado exclusivamente para esse fim e foi nesse mesmo local que tivemos ensaios para levar à cena peças que oferecemos a todos.

Subitamente, sem que ninguém estivesse à espera, chega o tribunal da inquisição corporizado na figura de um padre idoso e acusador. O senhor, talvez julgando ser deus, ai valha-me deus que se me quebra o verniz!, nem cumprimentou os presentes, passando logo a presidir à acusação, mesmo que não usasse o famoso chapéu com borlas para ser levado a sério.

Assim, sem anestesia nem nada, um grupo de seis adultos, passou a ser enxovalhado, acusado e humilhado, como se fossem uns meros e perigosos fora da lei. O tom altivo e cheio de jactância que usou, além de lhe retirar qualquer razão, provou que deus faz escolhas muito erradas para os seus representantes. Ora não é na ideia de deus que todos são seus filhos? Afinal há os que são enteados e tratados com desprezo.

Para se proceder a acusações há que haver provas e como quando não se quer emprestar, qualquer desculpa serve, toca de chamar todos os nomes que trazia no bolso: ladrões, usurpadores e até ficou bem clara a ideia de uma certa prostituição. É bonito. Uma pessoa sente-se acolhida na casa do senhor que devia ser de todos.

Perante os factos e sem argumentos, o tom eleva-se numa súplica ao pai, talvez pedindo que lhe fornecesse provas do que não pode haver. A Idade Média só devia ser mais escura e mal cheirosa que o caráter era mesmo este. A tocha para queimar as bruxas, que até é posterior, estava acesa e bem forte. A camisa do senhor ganhava vida própria e a língua enrolava-se com palavras que lhe ficavam mal.

Desculpou-se por ser italiano e ter dificuldade na articulação de certos vocábulos, o que não é verdade pois expressou-se bem, em tom alto e bom som. Ocorreram-me algumas palavrinhas em italiano mas guardei-as para mim pois tenho mais nível do que alguém que devia ser um exemplo. Entende-se agora a falta de vocação e os espaços vazios nas igrejas.

Perante a realidade, as desculpas seriam bem vindas mas quem nasce torto escusa de se querer esticar. Ficou bem pior a emenda e é inadmissível que um padre tenha um comportamento deste teor. É assim que quer salvar as almas? Pois se nem a sua, que anda à deriva num espaço secular atrasado, retrógrado e bafiento, consegue, como fará com os que estão perdidos?

Apenas um homem e fez um estrago que não terá mais reparo. Uma quebra de honra, falando de quem não se pode defender, acusando o antecessor e soltando, pelos olhos e boca, o fel que nem o peixe de Tobias sarava. Assim deve ter sido a vida de milhares de pessoas que foram acusadas injustamente, por terem cometidos actos que não foram nunca seus. Dizia ele, que tinha autoridade para falar. Que pena, era mais para se calar, que direitos todos temos e os mais poderosos são os argumentos de defesa, por acusações que só circulam nas cabeças mal formadas e sem educação.

Mostrou quem era, um homem machista, injusto, frio e sem um pingo de clemência ou compaixão. Tivesse sido ao contrário e certamente que o resultado seria outro. Estando presente apenas um homem, no grupo, ainda perguntou quem era fulano de tal. A cegueira do ódio, a razia das cabeças a rolar e a pureza que nunca existiu, toldou-lhe a mente de tal forma que se queimou sozinho. Fel que não cura a cegueira pode matar de ódio.

Nunca fui crente e perante um exemplo tão evidente de violência e de maldizer, resta-me desejar aos paroquianos que rezem para que este pastor de almas arrastadas, seja substituído em breve. O céu deve estar envergonhado e o diabo bateu palmas, na certa. Não admito que falem nesse tom comigo e pouco me importa que seja um padre. Foi um estúpido e ordinário. A sorte dele foi ter lidado com gente bem formada.

No final disse qualquer coisa caricata, como o seu discurso todo o tempo e, entredentes, desejei-lhe um bom regresso à Idade Média e aos concílios onde se discutia se as mulheres eram seres dotados de alma, uma vez que os homens não o são. Que faça boa viagem e não se perca no século. Sugiro o X, que é mais alegre e animado.

Ele há coisas que não deviam acontecer mas ainda bem que são comigo. Sugo-lhes o sumo e ainda consigo fazer uma limonada. Aquela casa parece ter algo que atrai a raiva, a arrogância e o convencimento. Alguns dos jovens que a frequentam são tão queridos, fofos e altruístas que até olham para as outras pessoas com ar de desdém. Que fixe!

Que se acenda a fogueira!.


O ensino português

Estamos chegados a uma época complexa em que milhares de estudantes se interrogam sobre o percurso a seguir. Uns pretendem frequentar a universidade, seguir um curso superior, outros enveredam por anos sabáticos e outros ainda terminam o seu percurso académico. Não defendo a obrigatoriedade do ensino superior, não sou assim tão purista, simplesmente entendo que se deve estudar e aprender. O conhecimento faz falta durante toda a vida e desenganem-se aqueles que pensam que o seu trabalho chegou ao fim. A vida real é uma constante aprendizagem e não dá tréguas àqueles que se vão encostando nas idades tenras. Quanto mais se avança na vida, mais complicado se torna reter novas ideias e conceitos que parecem assustadores.

Hoje em dia existem várias opções para que essa continuidade seja mais fácil, as escolas profissionais, os institutos politécnicos, as universidades e tantas outras situações que permitem uma posição na sociedade, um modo de se ser útil e receber, em troca, os seus dividendos. Os títulos ainda continuam a ser uma mais valia teórica, no entanto sem o tal conhecimento prático de nada servem. São papéis que podem ser colocados nas paredes, sem qualquer tipo de préstimo. Mas já parámos para pensar como tudo começou?

Na Idade Média apenas uma minoria frequentava escolas e a sua maioria destinava-se à vida eclesiástica, logo, foi a igreja a primeira a preocupar-se com a cultura dos seus membros. Assim, nos conventos e junto às sés surgiram as primeiras escolas que asseguravam os rudimentos de leitura e de escrita. Nas escolas claustrais, ensinavam-se as crianças, que eram entregues pela família, aos mosteiros, para serem seguidoras da religião. Aprendiam leitura, caligrafia, canto, música e aritmética. Tudo era ministrado em latim e o ensino funcionava à base da memorização e, posteriormente, discussão. Depois passavam à gramática, através das escrituras e do canto sagrado. Para complementar este estudo, durante as refeições, havia leitura de textos bíblicos, o que justifica o púlpito nos refeitórios. O ensino, curiosamente, era igual para os mosteiros femininos e masculinos.

Após os Concílios de Latrão, nos finais dos século XII e início do século XIII, o clero secular era obrigado a ter escolas junto das catedrais e das colegiadas, onde o clérigo mestre escola, tinha a função de ensinar, examinar, ler, cantar e emendar os livros de estudo, ou seja, compreender. A mais antiga escola episcopal existente no reino pertenceu a Braga que se tornou a mais antiga escola pública. A base do ensino era o latim e os livros estudados eram obras de fundo moralizante e pedagógico, como os Ditos de Catão. A ascensão religiosa efetuava-se através do conhecimento e das letras.

O desenvolvimento das artes liberais permitiu aos melhores alunos frequentarem outros cursos, em universidades estrangeiras e na portuguesa, a partir de finais do século XIII. Estamos aqui perante o embrião do programa Erasmus, ainda numa vertente inicial. Quando se ausentavam para um especialização, num determinado ramo do saber, tinham de se dirigir a Bolonha para o estudo do Direito, Montpellier para a Medicina, Paris para a Teologia e outras cidades idênticas com universidades.

Os portugueses foram de uma importância crucial no ensino universitário. Mestre Vicente foi professor de Direito em Bolonha e um dos braços direitos do rei D. Afonso II, Pedro Hispano, o papa João XXI, foi professor em Montpellier, um dos mais ilustres do seu tempo como médico e filósofo, Álvaro Pais e João das Regras, figuras emblemáticas da II dinastia, a de Aviz e grandes apoiantes de D. João I, foram igualmente mestres em Bolonha.

Os Estudos Gerais foram solicitados ao papa pelo rei e, vários bispos bem como abades portugueses, estavam interessados na sua criação para evitar a saída de dinheiro para o exterior. Em 1290 surgem em Lisboa, os Estudos Gerais, no reinado de D. Dinis, tendo sido posteriormente transferidos para Coimbra. Nessa cidade passam a ter um outro nome, que é Universidade. Ainda hoje o seu nome é prestigiante e encerra em si toda uma longa e vasta tradição estudantil. Claro que os tempos mudam mas Coimbra tem mais encanto, na hora da despedida, conforme tange a canção.

Esta primeira universidade não teve um início muito agradável. Aliado à ausência,muita, de rendimentos, juntava-se um corpo docente pouco credível, sendo que a sua maioria eram estrangeiros, o que levou à saída de alguns alunos para as escolas fora do reino. De início ministravam-se aulas de Cânones, Direito Canónico, Leis, Direito Romano, Medicina, Gramática, Dialéctica e Artes, em geral. Acrescentou-se Música, Filosofia e Teologia. A língua não deixava de ser o latim, escrito e falado, tendo por base os textos de Aristóteles, Galeno e Hipócrates.

A universidade concedia os graus de Bacharel, com três anos de aproveitamento, de Licenciado, de sete a nove anos de estudo, de Mestre e Doutor, que ultrapassavam os já referidos nove anos. O curso mais longo era o de Teologia que exigia oito/nove anos para o Bacharelato e o mais curto era o de Artes, cuja licenciatura exigia somente de cinco a seis anos. Hoje em dia estes graus estão completamente fora do contexto mas o certo é que o ensino era bem diferente.

A questão que se coloca agora é outra. Consideram a vossa vida escolar difícil e extensa? Pois é altura de reconsiderarem tudo aquilo que pensam. Hoje não se aprende em latim, aprende-se na língua materna, o que para muitos ainda é ainda mais complicado e os graus académicos são cada vez mais curtos, em termos de anos de estudo. Conseguem imaginar como seria a vida destes estudantes?

Que oferta temos hoje? Existem dois sistemas de ensino superior em Portugal: universitário e politécnico cujas instituições podem ser públicas ou privadas. O sistema clássico, universitário, fornece a chamada formação académica para o desenvolvimento de atividades profissionais e incentiva a pesquisa e a análise crítica. Já o politécnico tende para a formação técnica que visa desenvolver as capacidades mais práticas e imediatas.

Neste momento a classificação está feita em ciclos, sendo que o primeiro ciclo é o correspondente a uma licenciatura, que pode durar entre três a quatro anos, o segundo ciclo, conhecido como mestrado e ainda o terceiro ciclo que é o chamado doutoramento. Alguns cursos implicam o seu seguimento, ou seja, têm o mestrado como sequência e outros apenas se ficam pela licenciatura. O doutoramento implica outro tipo de estratégia que exige dedicação e muito tempo de pesquisa.

Para se aceder ao ensino superior estatal, há que ter em conta o Numerus Clausus, ou seja, um número específico de vagas por instituição e curso. Nesses critérios estão ainda incluídos a nota mínima de acesso bem como certos requisitos. O mesmo não se aplica no ensino privado apesar de este ter outro tipo de regras. Existem pelo menos duas datas para candidaturas ao ensino superior, a primeira e a segunda fase mas, atendendo aos tempos que se têm vivido ultimamente, nestes dois últimos anos, não existe alteração em qualquer uma delas.

Na verdade, estes dois últimos anos letivos foram bem atípicos e o nível de conhecimento dos alunos pode ter ficado degradado. O que se necessita é de bons profissionais e para isso há que haver vontade de ensinar e de aprender. A sociedade vai precisar de todo o tipo de pessoas para continuar a funcionar e não são só os licenciados que a conseguem governar. Empola-se o ensino superior e esquece-se o ensino técnico e prático. Sem ele nada pode estar oleado e a roda pára sem forma de continuar.

É preciso que se valorizem todas as profissões, nomeadamente as de trabalho braçal, e não apenas aqueles em que o intelecto dê o seu melhor. Qualquer sociedade funciona em cadeia e se um dos elos se quebra a regularidade deixa de ficar assegurada. Os cursos profissionais são da maior importância para que a colaboração de todos seja preciosa. O país precisa de força de trabalho e de vontade de assegurar a sua evolução. O conhecimento não ocupa lugar e a vida ensina que nunca se pára de aprender.


A lepra

A lepra é uma doença infecciosa. O médico Gustav Hansen, em 1873, identificou o bacilo que a provoca, semelhante ao de Koch, o responsável pela tuberculose. Esta doença reveste-se de dois aspetos, sendo que um deles é a forma tuberculóide, com manchas que se infiltram nos nervos, de forma lenta e que lhe provoca uma atrofia das extremidades que acabam por ser amputadas de modo espontâneo. Este lento definhar pode durar até trinta anos. A outra forma é a lepromatosa, contagiosa, formando nódulos que se infiltram na pele, provocando o facies leonino, o osso do orifício nasal fica erodido e o palato esburacado. Acrescem ainda as febres, escamas e comichões que paralisam o corpo. Esta forma é mais rápida e em cerca de três a cinco anos leva à morte.

Nos tempos remotos, no auge das cruzadas, esta doença já era conhecida. A sua primeira referência é feita em França, no século II e a mesma remete para um santuário pagão, em Berry, cuja reputação milagrosa, curava a doença. A primeira leprosaria, se assim se pode chamar, tem a data de 460, construída ao lado da abadia de Saint-Claude. Os concílios debruçaram-se sobre o tema e a respetiva assistência, sendo que, cerca de 580, o bispo de Chalon-sur-Saône mandou construir um estabelecimento especializado, junto às portas da cidade.

Depois desta data ouve-se falar de novo da doença, no século VIII, aquando das invasões muçulmanas, que favoreceram a sua disseminação. Após esta data, a doença recua até ser falada, novamente, no século XII. Considerada como hereditária e incurável, já em pelo século XX, era tratada com sulfonas, nos Estados Unidos, em 1943. Mesmo depois da descoberta do bacilo, não se chegou a uma vacina.

A lepra é um dos flagelos da Idade Média pois pelo pânico que gera, o horror que espalha e a condição miserável dos doentes, leva a uma tomada de medidas preventivas urgentes de forma a evitar o contágio. No século XIII, no ocidente, era a doença dominante. O surto foi resultante das cruzadas pois foi a época de maior intercâmbio entre o Ocidente e a zona da Palestina, onde a lepra é endémica. É precisamente aí que é fundada, em 1189, a ordem hospitalária de S. Lázaro, que tem como mote o cuidado dos leprosos.

Leprosarias, gafarias ou lazaretos são nomes que identificam os locais onde os doentes são encerrados para fugir dos olhares assustados da população e terem um pouco de paz. Na ausência de conhecimento sobre a doença, o modo mais eficaz que foi encontrado, era o afastamento para esses locais específicos que foram fundados pelos príncipes. Esta seria a sua participação no combate à doença e o retomar da tranquilidade urbana. O leproso era vítima de denúncia, que podia ser de uma familiar ou alguém próximo. As autoridades eram alertadas e o suspeito comparecia perante um júri.

Inicialmente este era constituído por leprosos sendo que mais tarde tinha como membros, um médico, um preboste e um padre. Se fosse certo que padecia da doença, seguia-se um ritual que simbolizava a sua partida: o padre lançava, sobre a cabeça do leproso, um punhado de terra do cemitério e isso era como se tivesse morrido ali. Separado dos demais, fica sem possibilidade de ter mais vida. Não podia ter direito a porte de arma, de clamar justiça ou de casar com uma mulher saudável e muitos menos batizar os filhos.

Há toda uma parafrenália de identificação que o coloca em desvantagem. Tem que usar vestes especiais, com o aviso do seu estado, sapatos, luvas e ainda uma espécie de som especial, umas castanholas que indicavam que se aproximava. Ao ouvir esse barulho, os saudáveis afastavam-se e os doentes eram ainda mais mal tratados, chegando a ouvir insultos ou ainda estarem sujeitos a receberem pedras.Nas leprosarias os cuidados eram mínimos, apenas uns banhos e unguentos que de nada serviam. Em certos casos ainda se praticava a castração do homem.

Nestas circunstâncias, os leprosos tornam-se vagabundos pois ser internado significa que a vida acaba de vez. Como não podem entrar nas cidades, são errantes e tentam sobreviver conforme conseguem. O cenário pode parecer dantesco, com os doentes a caminharem em busca de alimento. Alguns camponeses, poucos, condoíam-se destes desgraçados e alimentavam estes corpos miseráveis. O ódio que gera a sua presença mostra bem como era o espírito da época que, curiosamente, nada mudou no século XXI.

Os reis dão grandes somas de dinheiro para as gafarias como forma de seguir as mais básicas indicações do evangelho que incita à ajuda ao próximo. Contudo a associação que é feita entre esta doença e o pecado torna tudo mais complexo. Em França, em 1320/1321, corria o boato de que os leprosos, enjaulados por judeus e muçulanos, envenenavam as fontes para matar os cristãos saudáveis. É assim que muitos leprosos morrem queimados nas fogueiras e não da doença.Tudo isto se perpetuou até aos finais do século XIV mas outros desafios apareceram para continuar o medo.

Hoje em dia a doença ainda existe e persiste. Cerca de 10 milhões de pessoas ainda são afetadas pela mesma, mudando apenas a situação geográfica. Na Europa são poucos os casos, pois a mesma chega através de um sistema de importação. Em África, sobretudo na dita África Negra, a contaminação é muito elevada e a sua contagem torna-se impossível. Na Ásia, a maior incidência é na Índia, com cerca de dois milhões de doentes, tendo-se, então, propagado à Oceânia através da imigração chinesa e japonesa. No que concerne a América, a América Latina, palco de grandes grupos de escravos, ainda é uma zona com grande incidência. O Brasil terá cerca de 160000 leprosos.

Apesar de se saber que é um bacilo o responsável pela doença, o mito da praga ainda se propaga. Como tratamento para a mesma, o primeiro passo continua a ser o isolamento, a profilaxia que evita o terror geral. Sabe-se que o microorganismo responsável é o mycobacterium leprae, que se vulgarizou pelo nome de bacilo de Hansen. O germe da lepra penetra no organismo através das mucosas, da pele e ainda das vias respiratórias, disseminando-se por todo o corpo. O diagnóstico é clínico e deve ser confirmado através de uma biópsia cutânea. O tratamento de eleição é a DDS, diaminodifenilsulfona, isolada e em associação com a rifampicina. Este tratamento pode durar até dez anos.

Em Portugal só se conheceu a primeira evidência paleopatológica em 2003, resultante de uma escavação próxima da Ermida de Santo André, em Beja. Foram encontrados corpos de indivíduos que teriam sofrido da doença, o que se verificou através das lesões. Outra descoberta foi feita em Lagos, com o mesmo tipo de lesão. Sabe-se que existiram cerca de 70 leprosarias, ou gafarias, conforme a nomenclatura, desde o século XI, que tinham como mote o internamento destes doentes, sendo que não se conhecia mais nenhuma forma de tratar a doença.

A gafaria mais conhecida foi o Hospital Rovisco Pais, no século XX. O professor Bissaya Barreto criou a Leprosaria Nacional Rovisco Pais, uma propriedade enorme, de teor agrícola, a Quinta da Fonte Quente, na Tocha. Aí os doentes, com uma lotação para mil, ficavam isolados das cidades e assim sendo evitavam os surtos de afastamento e de rejeição. O internamento era compulsivo e os seus direitos deixavam de existir. Qualquer tentativa de fuga era punível e o trabalho funcionava como processo terapêutico e de formação profissional. Esta era uma medida já a pensar na reinserção social. O ponto fundamental era a alfabetização dos que podiam sobreviver.

Independentemente da doença ter ou não cura, o cinema eternizou-a como algo de muito negativo e até mesmo assustador. Os leprosos eram os proscritos, os bandidos e por isso o castigo era aquela doença que o fazia morrer aos poucos, por não terem cumprido certas regras impostas pela sociedade. O imaginário popular tende a eternizar este mito. A palavra leproso era dita em tom receoso, como se fosse uma forma de nunca chegar perto do que se desconhecia, mas que aterrorizava todos.

O curioso é que em pleno século XXI os medos ancestrais regressaram todos levando a que as pessoas se afastem umas das outras e que se esqueçam do poder do toque e da sensibilidade de cada um. Há um saltar constante de egoísmos diários, de não querer saber e de denúncias como se nada se soubesse sobre medicina. Esta ciência continua em evolução, como é natural, mas a humanidade, aquilo que dá destaque às pessoas, parece estar em modo de esgotado ou até mesmo de desconhecido.

Agora não existem os sons matraqueantes das castanholas de aviso, mas sim os designs digitais que continuam a fazer a diferenciação entre as pessoas. Novos tempos e novos métodos de separar, de criar divisões, de afastar e manter os que não se deixam moldar, longe dos que tudo permitem. Em nome da saúde de todos, matam-se os sãos e os fracos e incapazes, ganham primazia e são o novo exército que se chega à frente e faz ouvir a sua voz. Mesmo que nem todos concordem, permitem que lhes seja roubada a liberdade de decidir.


Inês de Castro, o amor eterno

O amor é um sentimento grande e profundo que desnorteia quem o sente e torna refém quem o entoa. Falta de controle, ânsia, comunhão, beijos, abraços, corpos que se dão, borboletas que povoam a imaginação e linhas que se cruzam e entendem. O amor tem tanto de belo como de tirano.

A antiga província da Lusitânia, ocupada pelos Suevos e pelos Alanos e posteriormente pelos Visigodos, que foram banidos pela ocupação muçulmana, em 711, é reconquistada pelos reis cristãos em duas fases distintas. Cerca de 900, Afonso III das Astúrias toma-lhes dianteira e, em 1064, Fernando I de Castela, segue-lhe a tarefa.

No século XII, com Afonso Henriques, em 1143, o Condado de Portugal, o espaço da região do Porto, torna- se independente, com a subida deste rei ao trono, uma luta que só ficará esclarecida em 1179. O sul necessita de ser reconquistado e a capital situa-se em Coimbra. Os descendentes terminam a tarefa e Afonso III, será o rei de Portugal e dos Algarves.

Corria o ano de 1340 e Inês é escolhida como dama de honor de Constança, herdeira de uma importante família espanhola. Deixa a família e segue com a sua senhora para Portugal. Esta desposará Pedro, herdeiro do trono. Inês possui pergaminhos apesar de ser uma bastarda. A sua beleza estonteante faz perder a cabeça ao príncipe e tornam-se amantes, apesar das tentativas de Constança para o evitar. O rei, sabedor da situação, expulsa-a da corte.

A vida prega partidas cruéis. Em 1345, com a morte de Constança, Pedro fica livre para fazer regressar a sua amante à corte. A oposição é grande mas o amor é maior e muito poderoso. Da união nascem três filhos que fazem as delícias do avô Afonso IV. O tempo de calma é interrompido pela voz estrondosa dos obstáculos políticos. Os irmãos de Inês tentam incitar a divisões políticas. Pedro seria pretendente aos tronos de Aragão e de Castela, como testa de ferro dos cunhados. Afonso, que tentava evitar conflitos a todo o custo, é forçado a intervir.

Os conselheiros entendem que Inês é a génese da contenda, mesmo que nada tenha a ver com o assunto. Outro receio assola o rei, o medo de que o filho de Pedro, Fernando, seja morto e que um dos filhos do novo casal tome lugar no acesso ao trono. Só há uma forma de resolver tudo e será com a morte de Inês. Aproveitando a ausência do filho, em combate como se esperava de um jovem príncipe, dá ordem para que seja cumprida a sua sentença.

A 7 de Janeiro de 1355, Inês é entregue ao algoz que cumpre a ordem recebida. O seu corpo é enterrado no Convento de Santa Clara, onde estava instalada com os filhos. É assim, sem qualquer tipo de romantismo, sem dó nem piedade, que se acabava com os que pudessem fazer frente ao reino, mesmo que houvesse laços de sangue a ligar.

Pedro assim que toma conhecimento do desaparecimento de sua amada, cego de dor lança armas contra o seu pai. Felizmente que termina muito rápido e por acordo. Contudo a ira fica acumulada e os conselheiros responsáveis pelo trágico destino refugiam-se em Castela com receio de uma vingança sangrenta. Aos 37 anos e com a sua subida ao trono, a justiça começa a ser aplicada.

Dois deles são entregues pelo rei de Castela, perante grande pressão de Pedro, que são torturados e queimados. O terceiro conseguiu fugir. A cabeça quente e o ódio são maus conselheiros mas a paz é sempre serena. Mais tarde os descendentes dos carrascos serão agraciados com bens legados pelo próprio rei. Uma forma de equilibrar a justiça.

De seguida cuida da imagem da sua amada, fazendo com que o povo saiba qual era a sua força e intensidade de sentir. Reabilita-a fazendo com que os seus restos mortais sejam colocados na abadia de Alcobaça. Com pompa e circunstância, à luz de archotes e tochas, nobres, religiosos e o muito povo, assistem à cerimónia que termina com a inumação de Inês, no esplêndido túmulo que Pedro mandara construir para o propósito.

O dia 7 de Janeiro fica marcado como o que, com um machado, cortou o pescoço a Inês de Castro, a bela mulher por quem D. Pedro se tinha apaixonado. O seu crime foi ter amado alguém que a amou com a mesma pureza e intensidade e esse amor, que gerou filhos que tiveram papéis importantes, posteriormente, criou uma lenda que se perpetuou. Inês é a heroína que a todos toca.

Luís de Camões conta o seu fado com um episódio dramaticamente intenso e belo na epopeia Os Lusíadas. Este amor, grávido de sentimentos e de emoções, gerou uma onda literária que entusiasmou muitos. A sua fama corre fronteiras e é imortalizada em pinturas, música, literatura, em tudo o que for necessário. Algo de tão enternecedor, apesar de ter sido trágico, comoveu a Europa.

Inventam-se novas vidas, situações impossíveis mas Inês não pode ser uma mulher vulgar. A sua súplica, ao rei, enternece-o e arrepende-se da ordem dada mas o certo é que a heroína se transforma em mártir. A sua morte foi o palco para a imaginação, para o que se desejava, para o impossível de acontecer. Um romance que não calou um rei que a quis sempre rainha.

As lendas são formas de passar as ideias e de as tornar mais suaves e vistosas. Inês foi coroada rainha já cadáver, uma noiva que exalava o horror e a morte mas que, por um hábil golpe do destino, a deixou sempre jovem e perfeitamente bela. Filha do mordomo mor do rei D. Afonso XI de Castela, havia esperança para o seu futuro, tendo sido aia de uma rainha.

A realidade conta-nos algo de diferente, que D. Afonso IV mandou exilar Inês de Castro no castelo de Albuquerque de modo a afastá-la de Pedro, o que não surtiu qualquer tipo de efeito, mesmo que esse amor fosse epistolar. Depois da morte de D. Constança, o viúvo, manda regressar a sua amada.

Perante as aparências, D. Afonso tenta casar D. Pedro com uma conhecida e renomada nobre, mas tal sugestão foi logo rejeitada. O amor que os unia continuou e deu frutos, Afonso, que morreu pouco depois de nascer, João, Dinis e Beatriz, que foram o pomo da discórdia entre pai, filho e o reino.

Instalados no Paço de Santa Clara, casa mandada construir pela sua avó, a Rainha Santa Isabel, a vida continuava em plena felicidade. O casamento que os uniu, secreto, foi por D. Pedro confirmado, através da Declaração de Cantanhede, o que provocou, de imediato, um incidente político. Os filhos eram legítimos e teriam tanto direito ao trono como o seu irmão, D. Fernando.

A vida é madrasta e cruel mas oferece lições de sabedoria. Os filhos de Inês e Pedro, aqueles que pareciam o perigo para o reino, foram pessoas de grande relevo. D. Beatriz foi condessa de Albuquerque, D. João, duque de Valência de Campos e D. Dinis, senhor de Cifuentes. E se tal não bastasse, D. João I era filho de D. Pedo, um bastardo que vai dar origem a uma nova dinastia.

Mas há sempre uma justificação para certas atitudes. D. Afonso IV tinha raiva a Inês não por ser quem era, que a considerava uma excelente mãe, mas por ter sido criada por Afonso Sanches, filho bastardo de seu pai, D. Dinis, ou seja, seu irmão e defendido por sua mãe. O sangue real corria em ambos os corpos mas o receio de ser ultrapassado era maior.

Os nomes de Pedro Coelho e Álvaro Gonçalves podem ser desconhecidos para muitos, mas o sangue de Inês está nas suas mãos e D. Pedro, não se coibiu de se vingar. Já Diogo Lopes Pacheco conseguiu fugir para França, o que lhe permitiu continuar vivo e fugir da cega vingança do rei, mesmo que tenha sido perdoado na literatura posterior.

A arca tumular de Inês de Castro, estrategicamente colocada no Mosteiro de Alcobaça, de frente para a de Pedro, é uma peça exemplar pela rara beleza que mostra. Lamentavelmente desconhecem-se os nomes dos mestres que deram o seu melhor nesta obra mas o certo é que encanta quem a vislumbra.

Durante as invasões francesas, Massena, um dos generais de Napoleão, deu ordens para retirar tudo o que fosse possível e levar para França. O túmulo de Inês permanece adormecido mas danificado. O nariz, que está partido, não sofreu qualquer tipo de acidente mas foi danificado propositadamente. Apesar de tudo não lhe retira a beleza e aumenta a lenda.

Inês, mulher bela e apaixonada, morta jovem, mártir do amor é lenda que se vai fecundando na literatura e no imaginário popular. Coroada rainha depois de morta, continua a ser amada por gerações que sentem o sangue quente e leve que o amor pode proporcionar. Não foram as borboletas que a mataram mas sim as mãos humanas cheias de ódio, de raiva e de ciúme que jamais poderão ser esquecidas.


Santiago de Compostela

Em 1078, Afonso VI, rei de Leão e Castela, decidiu reconstruir a basílica consagrada ao apóstolo Tiago Maior, tendo recebido todo o apoio do bispo de Compostela. Tudo se prende a uma tradição remota, de 951, quando Gotescalc, bispo de Puy, efetua a primeira peregrinação a Santiago de Compostela, um hábito que não existia e que se tornou vulgar. Somente no final do século XI, quando a insegurança abandona o norte da Europa, com a acalmia das várias investidas mouras, este caminho religioso conhece o seu apogeu.

Segundo uma tradição, do século VIII, depois da morte de Tiago, decapitado em Jerusalém, os discípulos teriam depositado o seu corpo numa barca, de forma a manter o resto da sua integridade. Os anjos encaminharam a mesma até Espanha, reino já evangelizado por ele e que o estimava. Outra lenda fala de um eremita, no século IX que, surpreendido pela luz de uma estrela, seguia-a até chegar ao local exato da sua sepultura, que estava enterrado na Galiza, em Padron.

O bispo autenticou os despojos e mandou construir uma igreja nesse local. Rapidamente se tornou o patrono da luta contra os infiéis, os mouros, que dominavam uma grande parte do território. Num ápice foi-lhe atribuído o epíteto de Matamore, matador de mouros, É curioso verificar que um homem pacífico e de cariz peregrino, se transforme em guerreiro. Uma coabitação precisa e necessária. A fé tem contornos que o comum dos mortais nem sempre consegue alcançar.

Os trabalhos são entregues a dois mestres de obra que se supõe serem de origem francesa e com experiência neste tipo de edifícios. Tem 90 metros de comprimento e é adotada a cruz latina como planta, o que inclui três naves e um vasto transepto com 67 metros de comprimento. Na parte traseira situa-se o altar mor e abriga o túmulo do santo que pode e deve ser visitado. Em redor, várias capelas convidam à oração e o silêncio que se sente é de emoção. Com o passar do tempo, a decoração original foi sendo alterada.

Em meados do século XIII, Mestre Mateo, procede uma remodelação no portal principal e esculpe representações com grande significado teológico. Aí se encontra representado o santo, Tiago com vestes de peregrino, sentado e acolhendo os que o pretendem visitar. Todos este belo trabalho acabou por ser em vão pois no século XVIII o estilo barroco deu entrada nesta igreja e nasce assim o Pórtico da Glória, uma obra emblemática e que atrai ainda mais peregrinos, sejam eles religiosos ou não.

Este Pórtico, inicialmente pensado pelo Mestre Mateo, tinha como missão nivelar as naves do templo com o terreno circundante e por isso foi construída uma nova cripta. As figuras esculpidas tinham uma missão pedagógica e calmante pois a forma como eram detalhadas, levava os crentes a evitar o contacto direto. Foram, posteriormente retiradas e podem ser vistas no museu da catedral. O policromado esbateu-se e restam poucos vestígios das suas cores.

Os peregrinos que pretendem entrar em Santiago têm um longo caminho a percorrer. Trajados com uma túnica curta, com uma romeira e um chapéu de abas largas enfeitado com uma cocha de vieira, o símbolo de Tiago, tinham ainda uma saca de mendigo e um bordão. Era os auxiliar para a caminhada e a saca seria para recolha dos alimentos que conseguissem. Antes da partida eram abençoados pelo bispo e seguiam em grupo. Nos tempos idos as estradas, poeirentas e estreitas, pouco tinham de segurança e por isso os grupos ofereciam uma forma de apoio e de sobrevivência.

As pernoitas eram feitas nos mosteiros ou nos hospícios, os que incluíam esse serviço pois os albergues eram zonas onde a marginalidade acontecia com facilidade e assim sendo os roubos eram frequentes. A comida era mendigada mas como os cristãos sabiam que deviam ajudar os seus, por pouco que tivessem, não faltava para acalmar o estômago que pedia atenção. O caminho era longo mas o mote era ainda maior. Quando chegavam ao Monte da Alegria, sobranceiro a Compostela, as dúvidas que podiam existir, dissipavam-se e sentiam que a recompensa pelo esforço era grande.

Antes de entrar na Catedral o peregrino tinha um ritual a cumprir. Era a purificação através da lavagem e onde as dores que pudessem sentir ficavam esquecidas. Passavam a noite na catedral e entoavam cânticos como forma de agradecimento. No dia seguinte era o tempo das oferendas e da missa. Só depois é que se dirigiam ao altar mor e rezavam junto do túmulo do santo. Havia lugar ao beijo e às procissões, ao confessar e à comunhão. O ponto alto estava atingido. A partir do século XIV surge a compostela, um certificado que comprova a peregrinação e que deve ser marcado em todos os pontos.

As motivações de cada um eram diferentes e criavam expetativas fortes e singulares. A viagem é feita de livre vontade para pagar uma promessa, para procurar a cura ou apenas por agradecimento. No caso oposto, onde a dita era uma obrigação, seria uma penitência para a remissão dos pecados. Também havia quem fizesse a peregrinação em nome de outros para que Tiago tivesse a graça de auxiliar os que não a podiam fazer. A finalidade era sempre a mesma, o que variava era a forma de a obter.

Para um cristão estar junto da tumba de um santo era a porta aberta para a solução da questão que lhe colocava. Era a cura da doença, o desenlace do problema ou ainda os mais variados milagres que o patrono conseguia fazer. Aos doentes era dada a saúde, aos cegos a vista, aos mudos desata-se a língua, os surdos passam a ouvir, os coxos andam naturalmente, os possessos são libertados do mal, o pecado é perdoado e ao céu abre as suas portas para receber os crentes.

O Caminho de Santiago tem sete rotas históricas: o francês, o do Norte, a Via de la Plata, a Rota Marítima, o inglês, o Primitivo e o Português. Qualquer um deles tem como missão chegar a Santiago de Compostela e orar ao santo. Ou apenas conversar com ele e admirar as maravilhas da catedral. Dos tempos antigos até à modernidade tanto aconteceu e por isso os motes sofreram alterações. A época medieval deixou marcas profundas mas os que chegam agora sabem como se adaptar.

Percorrer os caminhos que os antepassados calcorrearam, com dor e lamento é um valor acrescido e poderoso. As estradas são as mesmas, mas os tempos são outros. Agora é tudo mais fácil mas o mote pode ser igual. O peregrino quer sempre algo de volta, o seu eu que foi sendo moldado ao longo da viagem. Hoje pode ser feito através de outros meios e até o carro, a bicicleta ou mesmo o cavalo, são auxiliares para o mesmo fim. Se antes o peregrino ia só, encontrando outros que palmilhavam as mesmas rotas, agora é muito possível cruzar-se com famílias que iniciam os seus elementos mais novos nesta tão salutar prática. Há a cultura e há a religião.

Quando o peregrino chega à Cruz de Ferro, sente que os outros todos, os milhares que lá estiveram, o abraça pois é um local emblemático. A partir de agora o caminho é sempre a descer e o destino está mais próximo. É neste local muito aprazível que se deposita o que se leva de propósito: um santo, um lenço, um pedaço de cabelo, um escrito, uma pedra, o que se quiser. Eu deixei a pedra que foi escolhida, de propósito, para esse fim. Estará em confraternização com todos os votos de cada um.

Não perca uma visita por Santiago de Compostela com detalhes acrescidos. Agora é zona de gentes bem jovens, que estudam na Universidade e, por isso, os bares estão sempre cheios de alegria e boa disposição. A noite também faz parte do final da peregrinação e pode ser celebrada em grande. Visite o Casco Histórico e oiça as vozes dos que por ali andaram e deixaram os seus lamentos e desejos. Passeie nos vários parques que estão equipados para receber os visitantes. Oiça os pássaros e sente-se no chão. Sinta tudo. Viva o momento.

Assista à Missa do Peregrino e delicie-se com o Botafumeiro, o incensário que seis homens empurram, de um lado para o outro da nave, perfumando o ambiente e soltando as mil e umas bênçãos que todos desejam. O som que se ouve é inesquecível e dá vontade de voltar, de sentir, com outros a mesma sensação de pertença e de união. Qualquer lugar é perfeito para se sentar e ficar. Fique. Ajoelhe-se perante o santo e coloque os dedos nos locais certos. Dizem que ajuda os estudantes e os necessitados mas a verdade é que tudo justifica o seu caminho.

Visite o Museo do Pobo Galego. Instalado num edifício emblemático, o antigo convento de San Domingos de Bonaval, reconhecido como "centro sintetizador dos museus e coleções antropológicas da Galiza". É um concentrado das tradições e da memória coletiva dos galegos, ao longo dos anos. Uma viagem comum a muitos povos e uma forma de se sentir ainda mais integrado na cultura popular. Além da coleção permanente ainda pode usufruir das exposições temporárias.

Este ano é o Xacobeo, ou Jacobeo. É o nome que se dá ao ano santo, quando o dia 25 de Julho, data de nascimento do santo, S Tiago, calha a um domingo. Isto significa que existem mais festas e mais comemorações especiais numa terra já de si sempre em festa. Como no ano passado, a pandemia não permitiu celebrações assim sendo, o ano santo prolonga-se até 2022 e terá muito para oferecer. Aproveite para conhecer os recantos desta cidade e entre em tudo o que seja possível. Há cafés com decorações únicas e ruas que sabem abraçar.

O peregrino tem os seus símbolos, que o identificam em cada sítio por onde passa. Um deles é a vieira, uma concha que tem o tamanho certo para recolher a água e servir de bitola para os alimentos. Um pouco de arroz ou qualquer outro abafo do corpo, se couber naquele espaço, é suficiente para o corpo. Os sulcos são uma metáfora pois convergem para o mesmo ponto, que é a catedral com o santo, a rota que todos une. O bordão ajuda na caminhada e se tiver um gancho serve de auxiliar de transporte, um outro braço que ajuda a carregar. A compostela é o passaporte, ou seja, onde é registado o percurso que cada um fez pois recebe um carimbo por cada local percorrido. O mais importante de todos é o que é colocado em Santiago de Compostela.

É natural que em cada recanto seja presenteado com grupos de músicos ou de novos saltimbancos que alegram todos com a sua arte. A cidade fervilha e não dorme. Há vida em todos os locais e as comidas são outro atrativo. Fique ciente que está na Galiza e come-se bem em todos os cafés, bares, restaurantes e similares. Aventure-se e deixe-se levar por tantos anos de história e de lendas. Compre recuerdos, vagueie pelas ruelas e sente-se nos degraus que, outrora, foram companheiros de quem sabia que a chegada a Santiago iria mudar a sua vida para sempre. Esses, mesmo não sendo vistos, continuam vivos.


A Peste Negra

A peste é propagada por um bacilo transmitido pela pulga quando passa do rato para o homem. Foi a maior catástrofe demográfica da Idade Média, que se abateu sobre a Europa em meados do século XIV, tendo levado ao pânico e a massacres, bem como à mortalidade tão elevada que ceifou um terço da população. Este século foi apelidado de nefro pelas mazelas que deixou.

O clima estava mais frio, as epidemias eram mais numerosas e a fome andou sempre de mãos dadas com as gentes. Além disso as guerras não tiveram tréguas sendo que a Guerra dos Cem anos tem o seu início nesta época, Bizâncio tem que lutar contra a pressão turca e os cavaleiros teutónicos invadem, por sucessivas vezes, a Prússia. Uma paleta de situações que em nada favorece os habitantes dos vários reinos europeus.

A ideia que se tem é que a peste terá tido a sua origem na Ásia, através dos navios que vinham da Crimeia e que aportaram em todos os portos europeus. Difunde-se com os viajantes, a partir das costas italianas e espanholas. Atravessa os Pirinéus e entra no sul da França, em Avinhão e Toulouse, em 1348. Atravessa a Mancha, com as mercadorias dos navios e Inglaterra e a Irlanda são infestadas. A Escandinávia não foi poupada e daí vai até à Rússia e à Hungria.

O que se notava, nos contaminados, eram gânglios nas virilhas, no pescoço e nas axilas que iam mudando. Primeiro ficavam duros e depois mudavam de cor, ficando pretos o que deu o nome à doença. Seguia-se a febre e vinham as hemorragias, levando à fraqueza. A parte final seria o delírio e a morte era certa. Em dois ou três dias, a ceifeira era eficaz. Este foi um fenómeno essencialmente urbano devido à proximidade das gentes. O campo, com o seu isolamento, funcionou como uma espécie de proteção, fazendo com que os que viviam nesses locais ficassem afastados da doença.

Claro que as classes sociais sentiam a doença de forma diferente. Os pobres eram os mais afetados devido à sua exposição. Sem comida nem poiso certo e muito menor roupa a proteger o corpo, era a porta de entrada para o mal. Há que referir que a higiene era muito duvidosa e deficiente. Sem posses de fugir do antro de propagação, a morte era certa. É assim que se sabe como foi escrito o Decameron. Boccaccio refugia-se nas suas villas, nas colinas de Florença e a inspiração surge com o auxílio de um grupo de jovens.

Sem saber a causa da doença, atribui-se ao ar e aos alimentos a sua origem. Ou até mesmo à água. As suspeitas ganham dianteira e o medo instala-se- Suspeita-se de todos, até mesmo dos mais próximos. A morte ganha contornos estranhos e irregulares. O pouco conhecimento que havia sobre a medicina leva a conjeturas estranhas e incongruentes: os quartos devem ser quentes e secos, deve comer-se apenas carnes brancas e evitar as bebidas.

Igualmente se aconselhava a evitar os amores, as carícias, qualquer tipo de toque e até mesmo as conversas que podem propagar a doença. Nenhuma destas medidas tiveram alguma eficácia, revelando-se todas impotentes. É compreensível que se buscassem ajudas externas, tais como a magia ou a astronomia. O mais comum era entregarem a sua vida nas mãos de santos protetores. É neste contexto que Sebastião, cujo corpo estava trespassado por flechas e cujo sangue jorra, se torna o patrono da esperança.

Os médicos usavam uma máscara com um bico e na ponte do mesmo colocavam ervas aromáticas para evitar o cheiro pestilento dos mortos e dos doentes. Assim ainda se mantinha o afastamento e o toque era quase impossível. Contudo nada resultava e a doença continuava a matar.

Procuram-se bodes expiatórios e os pavor dos pecados e castigos assolam a mente de muitos. Alguns açoitam-se e outros cometem outras atrocidades contra a sua pessoa na ânsia de encontrar uma cura. Tudo está envenenado, segundo eles e a culpa é dos judeus, os que mataram Jesus Cristo e querem, agora, a morte de todos os cristãos. Fazem-se execuções e queimam-se pessoas. Algumas cidades impõem prazos para a saída dessas indesejadas pessoas.

Com eles vão também os prestamistas, os usurários, os ricos e todos aqueles que os pobres, na cegueira do medo e do pânico instalado, acusam de serem os responsáveis pela peste. Com estes atos, as aversões sociais e os ódios raciais ficam ao rubro.

Tudo o que se refere aconteceu no século XIV, um tempo em que as trevas cobriam o mundo e toldavam as mentes. As pessoas viviam em profunda miséria e ignorância e os avanços científicos eram rudimentares ou nulos. O medo ganhava terreno fértil devido à inexistência de conhecimento e os comportamentos sociais eram a prova de que a ideia de o castigo existia.

A vida, mesmo que fosse assustadora e repleta de imagens de sofrimento real, continuou como se a tal doença, o castigo que entendiam ser maior, não desse quebra. Nada parou e a vida, dura e incerta, seguiu o seu rumo natural. A morte rondava os dias que se cobriam de tonalidade escura e pestilenta. A cidade e o campo pulsavam com os que sobreviviam à tormenta.

Hoje estamos no século XXI. Um tempo que cresceu com sinal contrário e onde as trevas encontram pouso seguro. Os avanços tecnológicos permitiram uma maior qualidade de vida da população mas, por oposição, retiraram o instinto natural de sobrevivência.Não sabem como se defender quando são alvo de ameaças e, sem se darem conta, regressam a um passado que deveria estar muito bem encerrado.

Em tempo de conhecimento o mundo decide parar, refugiar-se debaixo das camas como se houvesse um botão imaginário para retroceder no tempo, nas mentalidades funcionou em pleno, evitando encarar o que estava a acontecer. A vida continua mas as pessoas agora são mais fracas e desconfiadas. Vão perdendo a sua humanidade e tudo é motivo para atiçar os ódios que estavam recalcados.

Vivemos no século da ciência, das alterações da sociedade, da mudança de sexo e afinal nada sabemos. O medo, que aumentado exponencialmente resulta em pânico, continua a ser rei e senhor. Os maus hábitos não se perdem só que o horror à morte ganha dianteira, alguns sentem-se perdidos e outros seguem para uma nova guerra onde se cria um exército de soldados coxos que se limitam a reproduzir o que ouvem. Seja ou não verdade.

Tristes os que nunca perceberam que a morte é natural. Sempre se morreu e esse é o fim da linha da vida. Essa não termina nunca pois o seu ciclo é contínuo e perpétuo. Não há lugar para todos e a velhice é a recompensa para quem consegue viver muitos anos. Morrer é fechar os olhos de vez e seguir para uma paz ansiada. Felizes os que o conseguem.

Viver continua a ser uma aventura constante que apresenta inúmeros riscos. O simples facto de respirar é um perigo pois o planeta está a ser envenenado por todos, pela poluição que o Homem provoca e pela falta de cuidado que é da responsabilidade de todos. As doenças são barreiras naturais e algumas são fruto da civilização.

Os amuletos que se usavam na Idade Média, aqueles que davam alguma esperança para que a vida fosse maior e a morte se afastasse, estão agora de volta com novas formas. Volta-se a acreditar em fetiches, em bugigangas e outros que tais para que tudo se apague e seja perfeito. A realidade é outra mas a mentalidade é a mesma, pequenina e curta como se a ciência fosse uma vaca sagrada e não tivesse avanços e recuos.

O mundo que se conhecia está tapado com outras trevas que são difíceis de levantar. Os pobres, em frente unida, sentem-se escorraçados e humilhados e os ricos continuam a ser o mesmo, ricos e a olhar com desdém para os que não são da mesma laia. A divisão está maior e tende a continuar. Já há quem medigue a saúde e o comer, os restos, os despojos que os outros, os que têm a tal ciência do seu lado, ainda podem ou querem dispensar.


Feliz Aniversário

Passa um ano sobre a data em que o nosso país parou. As escolas encerraram, as pessoas foram enviadas para casa, o trabalho passou a ser feito de forma diferente e aquilo que se pensava, na santa ingenuidade de alguns, ser uns dias, passou a 365 deles, um ano redondo que veio alterar tudo. E continua.

Os alunos, como se esperava, passaram todos de ano e alguns com notas maravilhosas e milagrosas, os exames nacionais, esse tão extraordinário êxito, vai ser repetido este ano letivo, o saber deixou de fazer sentido e dá-se a primazia ao que não importa. Os alunos que estudam ficam equiparados aos preguiçosos, uma maravilha como se entende. O mesmo se aplica do outro lado, com o outro grupo, o dos professores: uns esforçam-se e outros nem por isso.

Muitas pessoas perderam os seus postos de trabalho e a miséria bate à porta de muitos, só que ainda é envergonhada. Proíbem-se as pessoas de trabalhar, as que ainda podem, esquecem-se os mais novos que precisam de crescer e brincar, os adolescentes passam a ser bonecos neste xadrez e as consultas nos hospitais deram uma volta tão grande que desapareceram ou então são feitas através de um aparelho, o telefone.

Nunca mais se morreu de velhice, de gripes, de pneumonias nem de outras doenças fatais, pois uma nova doença tomou a dianteira e usurpou os lugares cimeiros. Espalhou-se o medo e o pânico e as trevas desceram sobre a terra fazendo acordar os fantasmas tão adormecidos da denúncia e da delação. A nova Idade Média, com os seus novos medievais, chegou para ficar.

Colocam-se máscaras nas pessoas para não se lerem as expressões, encerram-se as pessoas em casa, tratam-nas como se fossem uns atrasados que precisam da mão para atravessar a rua e começam a fazer-se as divisões: uns de cara tapada e os outros com ela à vista para que provem que nada têm a esconder.

Acenam-se com as cenouras de apoios sociais que não existem ou que tardam em chegar ou são ridiculamente humilhantes mas, quando não há pão, todos ralham e ninguém tem razão. A melhor arma é a ignorância e quando menos o povo souber mais fácil é de ser manobrado. Mesmo que se tente explicar, a falta de bom senso fala com voz grossa e convence quem não sabe.

Criou-se o mito de “Vamos ficar todos bem” mas a verdade é que estamos bem mal, com gentes que mostram o seu pior, que afinal não sabem amar mas sim odiar e o egoísmo e a raiva, são os motes que arrastam milhares mas sua onda. Cortam-se os laços sociais e soltam-se as incertezas e desconfianças, matéria prima para as tormentas que se enfrentam em grande escala.

Sobreviver passa a ser a palavra de ordem e não importa o custo. Por mais elevado que seja o preço, não se olham a meios para atingir os fins. Engana-se, empurra-se, rouba-se e afinal está tudo bem, que o povo é sereno e afinal é tudo fumaça. Enquanto houver dinheiro para pagar a quem não tem preocupações, a vida irá fluir. Os outros, enfim... os outros que façam pela vida que os bem instalados não querem saber.

Chega a guerra das vacinas, dos laboratórios a faturarem que nem uns doidos, com preços que ninguém sabe e com informações que não batem certo. As vacinas precisam de tempo para serem testadas, para obter os resultados certos sem margem de erro e onde a eficácia seja a palavra que reine. A luta entre os ditos é aguerrida e o que se sabe não é do agrado geral. As notícias não batem certo e suspendem-se as tais vacinas, mas afinal não era nada e continua tudo na mesma. 

Criam-se grupos para receber as tão desejadas vacinas, as poções milagrosas que vão ser o talismã que irá acompanhar quem as quiser ou puder receber. Criam-nos novas e inúteis divisões. Uns são mais importantes do que os outros e ainda existe um outro grupo, o dos que estão sempre primeiro do que os primeiros, assim uma espécie de escolhidos que terá a bênção perfeita. Esses têm o futuro assegurado. É a glória que é atingida. 

Os mais velhos continuam assustados, com medo até de respirar e a palavra morte, aquela que esconderam de tantos durante anos, passa a ser a mais dita e divulgada, tal como a doença que quer ser mediática e trazer à ribalta os que são infetados com o tal vírus. Os testes são feitos às três pancadas e nada está dentro dos parâmetros a não ser a má vontade e a falta de educação. Essa conjugação está perfeita e funciona autonomamente. 

Outros estão tão encolhidos que não sabem como será o dia de hoje e muito menos o de amanhã. A luta é diária. Perderam o que tinham e ainda podem ter a esperança de que um dia recuperem o que foi seu. Contudo há os que sabem que nada voltará a ser como era e que a escuridão ainda vai persistir durante muito tempo. Esses estão bem conscientes da realidade mas outros há que continuam a tapar o sol com a peneira.

Esquecem-se de que tudo pode mudar e quando houver lutas por batatas e pão, o povo sabe mostrar que não tem qualquer tipo de educação educação, que não quer saber, que é capaz de qualquer coisa para se manter. Ficar à tona com elegância deixa de ser possível e a guerra, que já começou, há muito, em modo de suavidade, passa a violência da grossa e com consequências bem graves. 

Os constantes Estados de Emergência são assassinatos de muitos. Os pequenos negócios não têm capacidade para sobreviver a este abre e fecha e a tantas e tão díspares restrições. As pessoas querem trabalhar, serem cidadãos úteis à sociedade e não querem ser tratados como se fossem pedintes ou crianças que precisam de quem lhes dê a mão. A economia tem que funcionar e não se pode matar um país em nome de sabe-se lá o quê. Há que saber enfrentar as dificuldades. 

O futuro é hoje e agora. Quem é que ainda não percebeu? Se não se tomarem as devidas medidas e providências, a escuridão irá manter-se e tudo o que se conhecia antes, passará a histórico e entra no mundo estranho das quimeras e das utopias. Uns percebem e outros insistem, uns querem e outros não e a vida escoa-se como se fosse água que não mata a sede mas sim a humanidade.

Felizmente que a Primavera chega com os seus sons e tons, com as tonalidades de pastel que a todos encanta. Ver é delicioso, sentir é maravilhoso e viver é único!


Os Reinos Merovíngios

Nos finais do século V, o rei Clóvis conquista a Gália através das armas. Os romanos não aceitam esta derrota com facilidade por isso o período que se segue será de lutas pelo poder supremo. A boa e a má vontade dos nobres será testada até ao extremo através da violência e da desordem. Esta é a imagem que vai sendo passada na memória coletiva desta época, um período muito obscuro e sanguinário.

No decurso dos séculos V e VI, os Bárbaros fixaram-se nas regiões da Europa e aí criaram estados. Dir-se-ia que continuariam a chacina a eito mas algo se modificou nestas gentes que acabaram por dar origem a reinos que deixaram marcas poderosas mas com sinal oposto ao do seu início. Se antes a ideia era devastar, agora era conquistar e assim amealhar.

Oriundos da região do Elba, ao Anglos e os Saxões, tomaram posse do território que, mais tarde, ganhará o nome de Inglaterra. Fundaram sete pequenos estados que ficaram conhecidos com o nome de Heptarquia. Nortúmbria, Mércia, Ânglia Oriental, Essex, Sussex e Wessex. Reinos pagãos que depois se cristianizaram.

Os Ostrogodos tomaram Itália em 489-93 fundando um reino que vai passando de mãos. Meio século depois o imperador bizantino reconquista-o e, na sua última vaga de trocas, é substituído pelos últimos invasores germanos, os Lombardos já em 568. Um território que andou em bolandas e que se reinventou.

Os Visigodos, os mais temíveis e terríveis destruidores de Roma em 410, arrebanham caminho e seguem até à Gália, ficando instalados dos dois lados dos Pirinéus, quer na Aquitânia, quer em Espanha. Toulose vem a ser a capital do reino que estende os seus domínios até ao Loire.

Os Burgúndios instalam-se no sudoeste da Gália e no final do século V dominavam toda a zona da bacia do Ródano, marcando a sua forma de estar e de manter alianças com quem lhes poderiam trazer os maiores benefícios políticos, incluindo os casamentos.

Os Francos ficam no norte da Gália, dividindo-se em tribos com reis individuais. É uma destas tribos que tem como soberano Childerico, pai de Clóvis, sendo que consegue a unidade destes povos deixando aos seus sucessores um trabalho menos penoso.

Clóvis assistirá a inúmeros confrontos contra todos os mencionados povos. A guerrilha alastra até Espanha, contra a resistência basca, provando que estava apto a qualquer confronto. As guerrilhas dinásticas são um palco interessante para a conquista do poder, mostrando o alastrar da violência como se fosse um fósforo lançado em palha seca.

O assassinato político, o que leva à eliminação do inimigo, é uma técnica bem explorada nestes tempos apesar de não ser seu apanágio. A pesada herança romana assim o obriga. Sem corpo não existem provas e o dito fica por não dito. Ideia que terá seguimento ao longo dos tempos.

Clóvis será o primeiro a conduzir a unificação do seu povo e, como se pode calcular, passa ordens para que Sigesberto, o Coxo, rei de Colónia, deixe de existir. Fica o caminho liberto para que Ragnacário, rei de Cambrai e Riquier, o seu irmão, sejam também eliminados. Desta vez foi Clóvis que tratou do assunto com um machado.

O sangue não se perdeu e durante anos a chacina foi contínua chegando a ter requintes de malvadez de que se destaca o episódio da morte de Brunilde, uma mulher de 80 anos. Foi presa pelos cabelos à cauda de um cavalo selvagem. Um espetáculo de teor pedagógico com os resultados desejados. Claro que estamos a falar de contendas dentro da mesma família.

A escalada de terror e horror inclui ainda os grandes nobres e os prelados de que se destaca o martírio do bispo de Autun, Léger. Este, por se opor a uma certa nomeação, foram-lhe cortados os lábios e a língua, os olhos vazados e de seguida, como toque final, é degolado. Como se tudo não fosse suficiente, ainda foi ainda lançado a um poço.

É neste contexto que surge a lei sálica, uma forma de travar esta onda desenfreada que invadia povos e se propagava a olhos vistos. As penas criminais tentam tornar a pena de talião " olho por olho, dente por dente ", de forma a quebrar o ritmo das vinganças. Assim sendo, a forma de reparação dos males feitos pode ser amenizada com pagamento de coimas. Criam-se, assim, listas compensatórias para fechar o ciclo. Caso não haja possibilidade de pagar, o direito de represália assiste-lhes.

Tempos medievais que soam a muito familiares. Hoje a violência é exercida de modo mais suave, com nomes elegantes mas que continua a castrar de forma dolorosa. São as multas, os castigos, as detenções, o enxovalho público, o ansiado gozo popular. E o povo é sempre aquele que mais sabe apontar o dedo e virar o prego quando é preciso.

As trevas tendem a descer e a cobrir os céus de hoje. Se não é pelo lugar de chefia é pelo mediatismo e, estes novos dirigentes, precisam de ter um exército grande e bem domesticado. O pão que lhes lançam, cheio de ranço, é tido como especial. Os escolhidos, os que o pensam ser, estão atentos a todos os movimentos para ver se alguém levantou a cabeça e se as normas, aquelas que mudam a toda a hora, estão a ser cumpridas.

Hoje não são os reinos que se degladiam mas existem somente uma espécie de guerra civil. De um lado temos os mascarados e do outros os de cara lavada. Uns aparentam ser as formigas que se encaminham para o carreiro e os outros desviam-se para encontrar novas rotas. Ainda não são muitos, o que provoca o efeito necessário, o de revolução.

Se Jesus Cristo não tivesse dito que vinha salvar os pecadores, todos os que viviam naquela época continuavam a ser politeístas. Ele, um, o homem, apenas uma pessoa, conseguiu virar o mundo e transformá-lo de tal ordem que se tornou persona non grata. Se houve muitos que o seguiram, aquando da sua detenção, esses mesmos, viraram-lhe as costas e até o insultaram.

Galileu, aos olhos de agora, seria considerado um negacionista. Foi forçado a retirar o que tinha afirmado mas a ciência e o tempo vieram a dar-lhe toda a razão. Ele sabia mas o mundo da ignorância onde a população vivia, era bem mais confortável e seguro do que aquele que ele apresentava. Era um risco grande pensar.

A Resistência teve um papel preponderante. Sem a ajuda preciosa dos que se chegaram à frente, arriscando a sua vida para que se soubesse, por artes e manhas nem sempre fáceis, o que estava previsto acontecer do lado do inimigo, a guerra talvez tivesse um outro desfecho. A coragem e a audácia permitiu que o rumo desejado fosse atingido.

Salgueiro Maia não vacilou nem um momento. O que estava combinado, mesmo com desvios e percalços, foi levado até ao fim. Era uma ilegalidade, uma violência maior para um militar, um capitão que se revoltava. A ideia inicial podia não ser aquela em que se transformou mas a sua coragem e a garra, permitiram-lhe o avanço.

Que se passa, então? Onde está a fibra dos destemidos e ousados que deram novas terras ao mundo e que não se incomodaram de enfrentar as vagas em barcos que mais pareciam casca de noz? Os deuses estiveram do seu lado e encaminharam-nos até à vitória final, a chegarem a bom porto. Heróis que se glorificam e que se eternizam.

Onde reside a herança que nos foi legada? Que é feito daquela ancestral e poderosa audácia que favoreceu os bravos e os valentes? Estaremos destinados a entrar em declínio ou há esperança de que o Quinto Império ainda possa ser uma realidade? A liberdade sempre gostou de passar por aqui e há que a continuar a acolher e cuidar, como se fosse sempre jovem e atraente.


Os primeiros monges do Ocidente

Bento, um nobre italiano que vivia como se fosse um eremita na zona de Roma, funda a Abadia de Monte Cassino, no ano de 529. Como tal necessitava de normas que fossem aplicadas aos seus seguidores e, em 530, redige a regra fundamental da ordem beneditina: a Regra de S. Bento.

Na verdade Bento já tinha uma vida de solidão e meditação que o levara a olhar para os céus de modo especial. Apesar da inexistência de qualquer vida monástica, ele vivia em recolhimento e foi assim que a sua mente se moldou para um coletivo que iria mudar a vida de muitos e mudar a forma de estar religiosa.

Assim, nasce um estaleiro, o mais antigo de todos os mosteiros da Europa. Enquanto as obras decorriam a sua mente acelerava e queria chegar a um documento que pudesse ser a norma de todos os que seguissem a mesma ordem. Foi assim que nasceu um extenso e bem elaborado regulamento que estipulava as normas de convívio e de trabalho para todos os monges.

Um monge não se dedica apenas à oração e ao trabalho, precisa de estar sempre bem ocupado e com a certeza de que o que está a fazer é correto. A ociosidade é inimiga da alma e assim os ditos monges devem dedicar-se aos trabalhos manuais e à leitura das escrituras divinas. Só assim será a sua função certa.

O mosteiro estava dividido em várias partes e a vida acontecia nesse mesmo local sem necessidade de ajudas externas. Seriam auto suficientes e produtores. Além das celas onde pernoitavam, a biblioteca seria um lugar de primordial importância. Apesar de nem todos os monges saberem ler e escrever, os livros foram um tesouro que nos chegou até hoje.

Os monges copistas, escolhidos de forma especial, tinham a tarefa de copiar os livros que já existiam e outros completavam a obra com os desenhos e as iluminuras. Verdadeiras obras de arte que eram repartidas entre muitos trabalhadores aplicados. Um livro era um verdadeiro tesouro que demorava muito tempo a ser elaborado.

Outros dedicavam-se às oficinas, construindo o que fosse preciso, criando ferramentas que seriam usadas igualmente na agricultura pois o mosteiro possuía uma farta horta que alimentava toda a congregação e ainda permitia excedentes.

O moinho era essencial para que os grãos ficassem reduzidos a farinha e das mãos dos irmãos, palavra encontrada para se identificarem os que acreditavam no mesmo, saíam os alimentos que mantinham o corpo são e a mente desperta para a realidade.

O jardim permitia passeios que levavam à meditação e à prática do exercício físico. Eram monges mas, ao mesmo tempo, homens que sentiam no corpo os abusos alimentares e o pecado da gula. O lazer também era aproveitado para benefício da coletividade.

"Da quarta até à sexta hora devem ocupar-se da leitura. A partir da sexta hora depois de se levantarem da mesa, devem repousar no leito em perfeito silêncio, ou se quiserem ler não devem incomodar nenhum dos outros... Se a necessidade ou a pobreza assim o exigirem, devem ocupar-se das colheitas..."

Os monges beneditinos desempenharam um papel decisivo na história da civilização ocidental. Encerrados no
scriptorium, conseguiram a proeza de salvar do desaparecimento muitas obras de literatura da antiguidade. Só assim foi possível chegar até hoje esses pensamentos e ensinamentos antigos.

Situadas fora das cidades, as casas beneditinas tiveram uma função primordial na difusão da organização e da cultura bem como terem prestado os ensinamentos básicos para que a ordem social viesse, mais tarde, a ser o motor da revolução. Para estes homens, todos os outros eram merecedores do perdão e da salvação.

A regra coloca um abade à cabeça de cada mosteiro, que é eleito pela comunidade. Este deve amar os seus monges como se fossem seus filhos e tudo fazer para ser amado pelos mesmos. Contudo o caráter humano que este homem dá à dita regra, fará dele uma fonte de piedade e de misericórdia.

Bento pode ser considerado o pai da Europa, o fundador do ideal europeu, o que unifica e revitaliza os tempos e os homens. A sua inovação é o sustentáculo da igreja medieval primitiva e rompe com a forma intransigente que existia buscando o equilíbrio há muito buscado.

O ensino nas abadias beneditinas, nos períodos mais complexos e agitados onde a guerra ganhava terreno, era o único sistema de formação de homens cultos que se preparavam para as novas formas de governo e para os tempos de grandes mudanças. O certo é que em pleno século XXI, ainda está viva em muitos mosteiros espalhados pelo mundo.

Foi o inovador, o homem que sentiu o apelo e a necessidade de mudar o rumo das vidas que andam perdidas, alinhar as almas que esvoaçavam desorientadas e lhes encontrar um propósito. As vidas tinham um valor alto e deviam ter uma missão específica. Bento abriu portas e caminhos que ainda hoje são percorridos.

Nos nossos tempos a vida é bem diferente. Apesar de existirem regras, que não a deste visionário, os seres que habitam por estas localidades são todos diferentes e com ideias próprias onde as interpretações são múltiplas. Contudo há sempre quem as quebre ou seja contra as mesmas. Faz parte duma sociedade que evolui.

Os tempos em que vivemos são estranhos e confusos. As novas trevas tomaram conta da vida quotidiana e os cegos que conseguem ver, deixam-se levar como se estivessem acorrentados a uma grade invisível onde os pregos servem de suporte. Picam-se como se fosse coisa boa, sangram sem que a cor se veja e aceitam tudo o que lhes dizem.

Servidão humana. Aceita-se que se quebrem todas as lutas, que se rasguem as conquistas de anos e anos de progresso que afinal não surtiram o efeito que os nossos tão honrados antepassados, aqueles que deram o corpo às balas, pretendiam. Para onde foi a liberdade que tanto custou a conquistar?

Agora a religião é outra, passa a ser a sobrevivência, a do salve-se quem puder e nada mais interessa. Os valores esgotaram-se, escorregaram por entre os dedos e tornaram-se apenas ideias dum passado que não interessa recordar. O ser humano, aos poucos, vai-se desumanizando e perdendo o saber ser pessoa. Vai ficando uma réstia de algo que foi grandioso.

Não aceitar opiniões diferentes, atacar que nem um leão quem o contestar e a educação, a das regras sociais e de etiqueta, caiu por terra e foi espezinhada por todos. Saltam as ameaças, o palavrão, a ausência de carácter e a baixeza que enfeita os convencidos. Ai de quem tente provar o seu ponto de vista que a falta de tolerância, a cegueira mental é tão forte que tolda as mentes fracas que se deixam levar em rebanhos de tudo e de coisa nenhuma.

A liberdade de viver está condicionada e os que mais dedos apontam são aqueles que, em tempos que já não se recordam, queriam que as amarras fossem quebradas, que o proibir fosse proibido e que a vida era um bem maior. Os tempos são de mudanças mas querer ficar amarrado por querer apenas deve ser se for por amor.

A regra que nos regula hoje está bem distinta da de S. Bento. A auto suficiência perdeu-se, a meditação é de outro teor, a leitura passou a ter conotação negativa, as hortas são dos rurais e o ensinar, passar a mensagem para as gerações vindouras, é um cabo dos trabalhos, ou das tormentas, que as tempestades continuam a assolar
.


Os invisíveis

Cristo disse que haveria sempre pobres. O apóstolo Paulo explicou o que era a caridade e o auxílio ao próximo. Nos dias de hoje fala-se de solidariedade, de consciência cívica, de voluntariado. Uma dupla corrente atravessa a Idade Média, uns continuaram a sê-lo, na sua expressão mais viva e outros, animados pelo fermento evangélico e estimulados pelo movimento franciscano, tentaram conciliar a abjeção da miséria vivida com a virtude da pobreza e aliaram-se nas obras de misericórdia.

Perceber a diferença entre pobres e marginais, uma vez que poderiam ter proveniências diferentes e as suas conotações, será muito difícil de definir e de limitar, encontrando-se claros cruzamentos ao longo do seu percurso de vida. O espaço ocupado poderia variar, pois as flutuações eram endémicas e sem qualquer tipo de controle. Em tempos de tanto desconhecimento a luta pela sobrevivência era o mote principal.

Os pobres

São aqueles que, de uma maneira permanente ou temporária, se encontram numa situação de fraqueza, de dependência, de humilhação, caracterizada pela privação dos meios variáveis, segundo as épocas e as sociedades: dinheiro, relações, influências, poder, ciência, qualificação técnica, honra, capacidade intelectual, liberdade e dignidade.

Encontramo-los nos campos e nas cidades, onde o crescimento urbano e a riqueza material tornaram a pobreza um problema estrutural. Eram os camponeses, assalariados rurais e urbanos, os sem emprego, os incapacitados, os órfãos, as viúvas, os velhos e os pedintes. Existiam vários graus de pobreza involuntária: limiar fiscal, que isentava o pagamento de impostos ao rei; limiar económico, condição do indivíduo que caiu em desgraça; limiar biológico, idade e saúde física e mental para servir a comunidade; limiar social, o fraco e o desprotegido e limiar de sociabilidade, os marginais fora da ordem social.

A pobreza caracterizava-se pela ausência de uma ou mais qualidades essenciais para que o indivíduo conseguisse vingar na sociedade e se pudesse auto-afirmar. Eram identificados como os velhos e mancos e cegos e doentes bem como os mesquinhos, minguados, esbulhados, forçados e vilões. No entanto as comunidades também caíam em pobreza e arrastavam consigo as gentes honradas. Era uma situação diferente dos pobres de nascimento e podia ser temporária. Era a pobreza envergonhada pois eram gentes que não podiam esmolar. Para estes foram criadas as casas de mercê, onde eram acolhidos e resguardados dos olhares indiscretos. Eram-lhes fornecidos alimentos e conforto. Chamavam-se mercearias.

À ausência do ter juntava-se a consciência do não ser. O pobre começa a exigir uma maior justiça social e o reconhecimento da dignidade humana. Tal ficou a dever-se à sua mobilidade, ao ideário da pobreza evangélica e às Ordens menores de Francisco de Assis e Domingos de Gusmão. A mobilidade era um grito de revolta individual dos mais fracos contra os poderosos. Os eremitas e os emparedados eram chamados os pobres de vida era uma pobreza assumida e integradas nas ordens religiosas. Outros, os irmãos conversos, viviam no exterior dos mosteiros, despojando-se do mundo.

O pobre passa a ser conhecido por Pobre de Cristo. Uma das funções da igreja era dar conforto aos miseráveis da sociedade. A prática da caritas era uma manifestação de amor ao próximo para todo o cristão e era apregoada nos sermões, como medida pedagógica de salvação da alma. O pobre era o intermediário para as portas do céu e a eles estava destinado o fim melhor, a recompensa. As carências económicas eram muitas das vezes, com a debilidade física, a idade, a viuvez ou a orfandade, a razão da queda em pobreza de homens, mulheres e crianças.

Esta situação preocupou os soberanos que tomaram medidas para colmatar e evitar que se repetissem. Além das mercearias já citadas, foi fundado um hospital para homens e mulheres honrados que caíam em pobreza, os pobres envergonhados, impedidos de ter a sua vida anterior, contemplado na 1ª Lei da Sesmarias.

Os marginais

Era um grupo que não possuía nem independência económica nem direito de cidadania. Podiam ser assalariados de diversos tipos mas um grupo maior é de elementos pouco estabilizados, inclinados para as migrações, sem relação profissional ou produtiva durável. Tem uma fronteira flutuante onde a rejeição e a aceitação andam de um lado para o outro. Não têm função permanente, nem vida social estável. Temos que cortar deste grupo os criminosos vulgares, os ladrões, os homicidas e os traidores e incluir a falsa mendicidade, a prostituição, os saltimbancos, os jograis e outros grupos do mesmo teor, que são muitos.

Os falsos mendigos eram aqueles que não tinham ofício, bens ou senhor, sendo apelidados de maus homens e sujeitos à expulsão. A errância provocada pela oferta e pela procura acompanhava a mendicidade temporária bem como a mendicidade crónica dos falsos pedintes. Estes eram um perigo para a sociedade trabalhadora que não os via com bons olhos, formando grupos de vagabundagem. São criadas leis que proíbem a mendicidade quando existe capacidade de trabalho.

A única indigência oficial era a invalidez do indivíduo atestada pelas autoridades municipais. Os falsos mendigos eram inúteis à sociedade e não estavam contemplados na assistência caritativa tendo- se tornado num flagelo.

A prostituição

O mundo da prostituição era quase exclusivamente feminino. A mulher surge associada a uma família, do pai ou do senhor, em solteira e do marido, se casada ou viúva. A mulher estava muito condicionada e as opções que tinha para fugir a este jogo eram sempre mal vistas na sociedade. A violação devia ser vulgar, por parte do senhor da terra, do clérigo, das autoridades, de todo o tipo de homens. E era praticada com todo o tipo de mulheres.

Os reis publicaram leis que castigavam o violador mas a sua execução tornava-se difícil. Caía a infâmia sobre a família ou sobre a mulher , tornando-se uma presa fácil da marginalidade, o que fazia com que não houvesse denúncias. As jovens que rompiam com as estruturas familiares frequentemente caíam na prostituição.

Os nomes porque eram conhecidas eram vários: mancebas, soldadeiras, mulheres da segre, barregãs e putas. Habitavam na rua, na rua da putaria, ou mancebia e usavam um vestuário que as distinguia das mulheres honestas. Era-lhes proibido o uso do ouro, prata e adornos no vestuário, nos véus e nas camisas. Trabalhavam também nas estalagens, nas tabernas e nos caminhos ou arraiais militares. Por vezes acompanhavam grupos de jograis e saltimbancos. Podiam ser açoitadas publicamente, nos pelourinhos, juntamente com o cliente, desde que não fosse nobre.

A boémia

O mundo da boémia era pertença de todos. O jogo era a causa do empobrecimento individual e das perturbações de ordem pública. O vício era tão forte e estava tão enraizado que vários monarcas se pronunciaram sobre esta calamidade, soltando leis e medidas que podiam ir até à hipoteca de bens e animais. Os taberneiros, os rufiões e os jograis eram vistos com maus olhos porque incitavam a hábitos pouco saudáveis.

Os escravos

Tinham proveniência islâmica devido ao resultado das guerras entre cristãos e muçulmanos. O prisioneiro nobre e culto era tratado com alguma consideração pelo novo senhor, vivendo com ele no paço. Os mais humildes desempenhavam tarefas domésticas ou ligadas à agricultura e ao artesanato. O estatuto jurídico era de um objecto que o senhor podia vender, trocar, castigar ou até matar.

A alforria era o desejo destes homens que pretendiam voltar às suas origens e famílias. Podia ser comprada ou concedida pelo dono. Outras vezes bastava abjurar a sua religião e o caminho para a liberdade estava aberto. Os escravos oriundos da África Negra remontam à época do Infante D. Henrique, no Rio de Ouro. O papa deu o seu aval para a captura e escravidão, tendo como objectivo o lucro imediato, pois trabalhavam em tudo o que fosse necessário. D Afonso V sugeriu que fossem utilizados no povoamento das regiões desertificadas do reino.

Apesar de terem passado séculos, o mundo se ter alterado, as descobertas terem sido muitas, a ciência ter vencido e as pessoas serem educadas, a mentalidade pouco ou nada mudou. Continuamos a colocar barreiras entre as pessoas, catalogamos tudo e todos, as mulheres ainda não têm o papel de igualdade que merecem e a cor da pele ainda é um estigma. O mundo do jogo não se alterou, os vícios são mais modernos mas continuam e a prostituição adquiriu outras formas mas visa sempre a satisfação do cliente.

A ciência passou a ser uma espécie de magia que ainda assusta mas que, ao mesmo tempo, acalma. Os espíritos voltaram a estar à solta e os amuletos são as novas formas de prevenção. Máscaras ou líquidos com cheiros fortes são agora as águas bentas e as réstias de alhos que afastam os novos vampiros. Escolhidos e miseráveis persistem e pratica-se uma nova modalidade que tem a chancela do século XXI: a coitadice. Os mais fracos e menos dotados são enaltecidos e promovidos. Exibem-se as chagas, toca-se ao coração dos que, por penitência e salvação dos seus pecados, dão a esmola, com um certo nojo mas depois vão exibi-la, com uma modéstia reles e cínica, nas redes sociais.


Os filhos e os enteados

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A sociedade medieval estava bem fragmentada. O senhorios eram governados por cada senhor e as leis e as regras, se assim se podem chamar, eram da responsabilidade de cada um. O tecido social era pouco uniforme sendo que os servos da gleba seriam os mais fáceis de moldar. Sem qualquer perspetiva de futuro, a terra dava-lhes o sustento e criava-lhes os laços que jamais conseguiriam cortar. A escravidão tinha outro nome mas estava em pleno. Uns pedaços de alguns restos e estava a família alimentada.

Contudo novos ventos e novas marés chegaram a uma Europa que cheirava a mofo. O Renascimento veio oferecer uma visão mais alargada da vida e o teocentrismo, a ideia de que Deus era o centro de mundo, altera-se para dar lugar à luz que ensina o novo caminho, o antropocentrismo, o homem passa a ser a medida de todas as coisas. Não quer isto queira dizer que a noção de Deus e da religião tivesse sido abandonada mas a frescura das novas ideias aliciavam os mais afoitos.

Assim, uma nova sociedade apresenta um caminho mais aprazível onde a luminosidade e a abertura da mente terão a primazia. Itália, não como a conhecemos agora, será a pioneira do movimento que mudará as formas de se posicionar. Os povos desta zona, vivendo com uma confortável e basta largueza de bens materiais, serão os arrojados da beleza e cultura que ainda hoje pode ser apreciada.

Pegando nos clássicos, os Gregos e os Latinos, dão-lhes uma nova roupagem usando os novos instrumentos de que dispõem. As ciências são agora de interesse coletivo, sobretudo a matemática e a geometria. Assim sendo o chamado número de ouro entra em funcionamento e as proporções, aquilo que havia sido esquecido, passam a ser naturais, leves e realistas. O Homem, ainda adolescente, tarda a dar os primeiros passos para um jovem adulto.

A máquina do estado inicia-se agora, criando um monstro que conhecemos muito bem. Aos poucos os cargos foram sendo criados de forma a servir um grupo de gentes que se individualiza e ganha caráter próprio. É o nascimento da burocracia, não como a sabemos hoje mas ainda pequena, envergonhada e cheia de boa vontade. Uma criança que vai crescer cheia de manias e de birras, até aos dias de hoje e que não se cala.

Na Administração Municipal, a Câmara, detinha o governo através da vereação. Para isso necessitava de oficiais subalternos como o escrivão da câmara, o da almotaçaria, o meirinho, alcaides pequenos, quadrilheiros, porteiro e caminheiro. Aqui está um esboço das necessidades. Na Fazenda estavam os juízes das sisas, coadjuvados pelos escrivães, varejadores, alcaides, meirinhos porteiros e seladores. Outros cargos importantes eram o tesoureiro e os recebedores e contadores. Umas finanças em embrião que se enrolavam de tal forma que conseguiam cobrir todo o território.

Mas ainda restava a parte da Politia, onde os almotacés tinham uma palavra a dizer, bem como os juízes dos órfãos que se faziam acompanhar dos seus respetivos escrivães, avaliadores e partidores. Havia ainda o procurador do concelhos que representava e zelava por um determinado concelho. Como se compreende a máquina crescia a olhos vistos e apenas se fala duma parte da administração.

Na parte da Justiça tinham lugar os juízes ordinários e os juízes de fora que tinham a função de desempate em contendas que se arrastavam. Sendo externos ao concelho seria mais fácil a tomada de decisão. Neste caso há a acrescer os oficiais de justiça mais os escrivães das notas e tabeliães, escrivães do judicial, inquiridores e contadores. Uma perfeita especialização, como se depreende. Resta a Milícia com o seus oficiais militares e ordenanças que ainda incluia os alcaides mores dos castelos, capitães das ordenanças, alferes das ordenanças e sargentos mores.

Os tempos agora são outros. O rei é apenas uma ideia que foi ficando e a república tomou-lhe o lugar. O aparelho ficou pesado e forte e dividiu-se em duas posições bem desiguais: o setor público e o setor privado. Ainda são muitos os que alimentam o sistema e com tendência a aumentar. A terciarização da sociedade permite que assim o seja e apresenta inúmeras vantagens que podem tornar-se o seu oposto.

Os que estão no Estado acabam por ter a protecção de um pai quase invisível mas que os acolhe. Cuida-os, acarinha-os ainda lhes oferece doces de tempos em tempos. Mas não chega, que os meninos choram, barafustam e fazem birras, clamando que ficaram esquecidos. E o pai, conscencioso e atento, continua a ter alguns rebuçados na manga para os calar.

Os outros, os que são de outra mãe, calam-se e não comem. Continuam a olhar para ver se lhes sobra alguma pequena migalha mas raramente a conseguem. São como as meninas feias de família vulgares que não conseguem casamento nem dote decente. As gatas borralheiras a quem não é permitido ter um dia de descanso e que todos os dias se deparam com pilhas de loiça para lavar.

Ora, se todos fazem parte do mesmo não se entendem estas diferenças. Qual o motivo de tanta discriminação? Não vai tudo para o mesmo saco? Claro que vai mas separa-se de modo bem diferente. São estas, as últimas que servem de carne para canhão, que alimentam o batalhão dos que veneram o rei que um dia foi deposto. Mas não. Eles são os escolhidos e os outros, os que se vergam.

Façamos um pequeno exercício para melhor entender. Imaginemos que os enteados, os que lavam as escadas e as ditas tarefas menores, deixavam de o fazer. Um dia acordavam todos mal dispostos e zangados e recusavam-se a trabalhar. Não serviam os senhores, não ouviam as suas solicitações, não produziam nada. Do outro lado, os patrões, aguardavam ansiosos pela refeição inicial e pelas seguintes. Tardava a chegar. Não vinha. Desapareceu. E agora?

Podem, os outros, os eleitos, argumentar que eles também são peças da máquina e que a sabem olear. E depois? São mais as vezes que não estão do que as que estão. São tantas as más vontades que demonstram e os impedimentos encontrados que só demonstram uma enorme falta de empatia. São tantos os que olham para as horas para se irem embora em vez de as dividir para as rentabilizar e trabalhar.

Por mais que se avance, que se saiba evoluir num caminho plano, há quem crie sempre os obstáculos e as barreiras para justificar a sua presença e lugar. Contudo estão bem firmes, de costas quentes e seguros, apoiados num pai que os beija e acolhe como se ainda fossem meninos. Um pai que cegou e não sabe atribuir as tarefas aos que as sabem desempenhar mas oferece-as para os calar.

Os enteados existem em números grandes, em batalhões de força, em grupos que sabem como é importante fazer. Sem estes nada acontecia, tudo mirrava e desaparecia. O que deixam para todos, os impostos, são bem mais elevados do que se pensa, mas no dia em que não puderem continuar a contribuir, são os mais lesados, os que menos levam para o conforto do lar, se ainda continuarem a ter um lugar que chamem de seu.

Filhos e enteados, duas formas bem distintas de tratar os que são da mesma casa, do mesmo país e que deveriam ser abraçados do mesmo modo. Os que continuam do lado do rei estão sempre com a graça do seu senhor mas os outros, os que se afoitam e querem que se faça mais e ainda mais, são olhados como desertores e serão penalizados.

Caminhamos para os jardins do mal onde os que ainda sabem ver, avistam uma luz estranha que os conduz até ao caminho real.

01-12-2020


A Ciência e a Magia

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A Idade Média, tempo compreendido entre o século V e o século XV, ficou conhecida pela Idade das Trevas. Nada mais errado. Durante tantos anos as transformações sofridas pela sociedade foram inúmeras e de tal forma importantes que moldaram a sociedade que hoje conhecemos. Contudo a falta de conhecimento e o ódio irracional pela História, faz com que as pessoas se convertam em profetas da ignorância.

O século XIV foi fustigado pela desgraça e ainda hoje é um marco impossível de esquecer. A fome, as guerras e a doença tornaram-se uma constante nos povos que tiveram que enfrentar estes tão negativos acontecimentos. Guerra é palavra que soa a constante e fome tornou-se atual. Da qualidade adquirida, passa-se ao seu oposto e num dia tudo desaparece. Quanto à doença, o caso torna-se bem mais interessante.

A chamada Peste Negra, o horror que levava todos pela frente e que, passados três dias do contágio, levava à morte, assolou a Europa levando a uma drástica redução da sua população. Acarretando custos elevados, o homem medieval soube contornar as misérias e recomeçar de cabeça erguida. Sem grandes ou nenhuns conhecimentos de ciência e medicina, tinha como aliado o improviso e com ele fazia o que entendia ser mais certo para o combate ao flagelo.

As máscaras, em feitio de bico de pato, bem conhecidas nos manuais e no imaginário popular, eram uma forma de defesa contra os males que não tinham ainda nome e que eram totalmente desconhecidos. Com ervas aromáticas, para conseguirem aguentar o cheiro pestilento que o ambiente libertava, ainda tinham uma outra função, que era purificar e defender o organismo. Hoje olha-se para esse tempo e é inevitável sorrir da ingenuidade de pensamento.

Mais tarde, na época dos descobrimentos, o medo voltou com formas distintas. Não que as doenças tenham desaparecido mas outros receios se ofereceram para que a humanidade voltasse a ser testada. Agora foi a vez dos monstros, dos seres de várias cabeças e disformes, os que comiam os seres humanos ou os colocam em torturas inimagináveis e horripilantes. O medo ganhou o nome de monstro mas o sentimento era o mesmo.

Isso não impediu que os fiéis descendentes dos clássicos, esses bravos homens que tanto fizeram pela humanidade mas que caíram em completo e total esquecimento, continuassem com os seus intentos e chegassem onde pretendiam. A conquista do caminho marítimo para a Índia foi um marco que a todos beneficiou e serviu como prova para testar as capacidades escondidas dos destemidos.

Chegados ao século XXI, com anos e mais anos de qualidade, de evolução da medicina, de conhecimento vários e de vidas tão díspares como interessantes, voltamos a bater num muro de ignorância e de medos. Os vírus são estruturas simples e não são organismos pois não possuem organelos nem ribossomas, ou seja, não possuem potencial bioquímico para sobreviver. Como é que algo minúsculo pode assustar tanto?

A ignorância, e não o véu de ignorância como um certo filósofo defendia, ainda cobre grande parte da população. As pessoas, simplesmente, não querem aprender. Recusam-se a abrir os olhos e a mente e viver em mundos paralelos onde as fantasias persistem torna-se mais simples. Afinal que temem? O acordar para a realidade? A verdade? O saberem que estão cada vez mais fracos e não conseguem superar uma dificuldade?

Que tipo de geração estamos a criar? A dos coitadinhos que se assustam logo com palavras e que nem sabem o que é sentir? Sentimentos? Emoções? Dói e a dor evita-se, o importante é o prazer e a felicidade mesmo que não saibam o que verdadeiramente significa. Vivem em completo pânico e criaram uma ansiedade que tende a permanecer e se espalhar. Por mais que se faça para desmistificar a situação, os receios iniciais ficam ativos.

Levam todos pela mão como se fossem crianças inaptas ou com problemas cognitivos graves. Proíbe-se tudo e acaba-se com os direitos fundamentais sem que exista revolta nem sentimento de indignação. Aceita-se como se fosse normal espoliar o que tanto custou a conquistar. O rebanho está domado e o cão pode dormir tranquilo. Só falta o bibe que a chucha, a que é colocado na boca para não falar, está perfeita e pode ter variados nomes.

Que é feito dos destemidos guerreiros que nos legaram a herança? Onde é que ainda habitam os que sabiam dar o corpo e a alma ao desconhecido? O mundo nunca foi seguro nem nunca o será. O mundo é dos audazes, dos que se aventuram e que vão à conquista do desconhecido. Que se passa com as pessoas de agora que vivem em redomas? Não se podem colocar barreiras nem almofadas para se caminhar com segurança e de cabeça erguida. É preciso que haja coragem e esse é inerente a cada um.

Se os novos aventureiros não derem a cara e colocarem mãos à obra para o que se possa avizinhar, estaremos muito mal e no fim da civilização. É preciso ter garra e firmeza para se ultrapassar os portais e entrar nas dimensões certas e corretas. Vamos todos enrolar o corpo e regressar à posição fetal? Para quando o crescer e ser adulto? Que exemplo se passa aos mais novos?

As máscaras sempre foram simbólicas. Umas por conterem a génese da cura e da saúde, outras por taparem o rosto de uns quantos e lhes permitirem certas liberdades que não ousariam de cara destapada e estas, as modernas, onde os estampados, os bonecos e tanto mais marcam presença, servem para retirar a humanidade que ainda restava em cada um. Roubam as emoções, as marcas de personalidade e a individualidade que é a marca pessoal.

Descaraterizando as pessoas, não lhe vendo as expressões e muito menos os sentimentos aliados a elas, há apenas a desconfiança e o medo e esse, como tão bem se sabe, faz maravilhas sem trabalho algum. Semeia a discórdia entre todos, espalha o pânico e gere conflitos que tendem a nunca terminar. Logo a seguir ao medo surge a ignorância e séculos de avanços redundam logo em trevas que se instalam e que permitem, sem qualquer tipo de entrave, que a vontade e os direitos fundamentais desapareçam.

07-11-2020