Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

VIVA TIM-TIM*

A 3 de Março de 1983, um certo Georges Rémi falecia na cidade de Bruxelas, vítima de cancro. Para o pacato cidadão que folheia o jornal diário, a notícia inserida numa das páginas interiores não possuía qualquer interesse relevante, mas para os amantes da Banda Desenhada era a consternação. Hergé deixou-nos! O autor do herói imortal desaparecido para sempre...
“O Universo de Tintin é um universo onde a morte não existe” dissera Hergé. Sem dúvida que o espírito que emana das aventuras por si criadas prevalecerá, deixando-as como um modelo de épico romanceado. Porém o genial criador da célebre “linha clara” e das histórias paralelas não prosseguirá o seu caminho em busca da perfeição.

Bom aluno, exceto a Desenho. Hergé possuía um mundo interior em constante agitação o que lhe permitia assumir e incarnar cada uma das suas multifacetadas personagens em cada momento da narrativa. Facilitou sempre a difusão de notas biográficas, para que todos aqueles que pretendiam compreender Tintin, também o pudessem fazer através do prisma paterno.

Nascido do seio de uma família da pequena burguesia belga, afastou-se dos laços paternos aos oito anos, entrando para um colégio particular onde permaneceu até à conclusão dos estudos secundários. Por ironia do destino o pequeno Georges atingia ótimas cotações em todas as disciplinas, mas ficava-se pelo 10 a Desenho. Este facto não o impediu de plagiar os “comics” norte-americanos, associando a florescente indústria cinematográfica à sua própria experiência como escuteiro e criando a “United Rovers”, suposta firma dedicada à realização de “filmes cómicos” como os de “Totor, C.P. dos Besouros” (1).

Se a falta de precisão no traço revelou um amador inseguro e ainda ignorante na maioria das técnicas do desenho, a forma direta, elucidativa e plena de humor como a história nos era legendada, fazia com que a sua leitura se tornasse uma fonte inesgotável de aventuras imaginárias onde os jovens buscavam a realização dos seus sonhos. Outras personagens saem do lápis de Hergé: “Jo e Zette” (João e Maria - a que mais tarde se juntaria o macaco Simão), “Popol e Virgínia” e “Quick & Flupke”. Este último disputaria com Tintin o primeiro lugar no coração de Hergé.

1929, durante a crise, aparece o “Petit Vingtième”. Com uma vasta galeria de personagens, da qual sobressaía Tintin, Hergé vira-se para a comercialização dos seus trabalhos. Principia como publicitário, alcançando grande sucesso com várias realizações de apurada técnica. Este êxito permite-lhe dedicar-se inteiramente à banda desenhada. Funda com outros jovens desenhadores o “Petit Vingtième” (em tradução livre - o pequeno século vinte) onde editará a maioria das aventuras de Tintin.

Esta publicação foi a resposta europeia à invasão dos “comics” norte-americanos que dominavam mercado mundial. O período de recessão que se surgiu à crise de 1929 permitiu a Hergé conquistar um lugar no topo da hierarquia da banda desenhada. À volta deste pequeno número de génio, outros talentos vão aparecendo: Edgar P. Jacobs (2), Jacques Martin (3), Paul Cuvelier (4), Jacques Laudy (5) e muitos outros. Hergé adquiria a pouco e pouco uma escola de autores que captarão o seu estilo - a conhecida escola de Bruxelas.

O segredo de Tintin. Quem é esse pequeno herói de idade desconhecida, que com o seu fox-terrier sai triunfante de todas as situações? Tintin, nasceu fruto dos anseios e da imaginação de Hergé que, inicialmente o fez repórter do “pequeno século vinte”. Graças ao sucesso das pranchas de “Tintin no país dos sovietes” foi necessário criar personagens secundárias, do tipo: professor Girassol / Tornesol (o génio distraído), Dupond e Dupont (os irmãos siameses), general Alcazar (aventureiro sul americano, símbolo dos precários regimes da região) e o capitão Hadock (capitão beberrolas dominado pelo seu imediato Alan torna-se presidente da L.M.A. (6) e adquire o fantástico castelo de Moulinsart onde o insubstituível Nestor se encarrega das tarefas domésticas). Várias dezenas de outras criações povoam as histórias de Hergé: umas aliadas ao herói, outras pertencentes ao submundo (Rastapopoulos e seus sequazes).

Hergé é sobretudo um bom contador de histórias que se tornou o sósia europeu de Walt Disney. Possuindo arquivos extremamente bem recheados, realizava, como Júlio Verne, uma minuciosa pesquisa antes da elaboração de cada álbum. Trabalhando oito horas por dia e com uma vasta equipa de desenhadores, letristas, coloristas e numerosos técnicos, reproduzia nos estúdios de Bruxelas as paisagens de todo o mundo. Cada nova edição merecia-lhe o carinho e o cuidado de uma reestruturação do texto e principalmente do grafismo, melhorando o traço e atualizando os desenhos.

Dois marcos: Tintin no Tibete e Rumo à Lua. Tintin, no seu peregrinar constante, da Rússia pós revolução de Outubro aos Balcãs abalados pelo embate das ideologias fascistas, nazis e comunistas; do Egipto faraónico à Chicago da lei seca, controlada pela Máfia; do Médio Oriente ainda pleno de protetorados e onde já principiara a corrida ao ouro negro, à América Central, ontem como hoje povoada de guerrilhas; do europeu caso de Maria Callas, ao mistério do abominável homem das neves; do antigo Congo Belga à ignorada guerra do Chaco (7); dos problemas das minorias étnicas – ciganos, negros, índios - à guerra da Manchúria; da ciência de Von Braun e seus pares até aos enigmáticos e omnipotentes OVNIS; captou a alegria e o drama da vida atual.

Aquando da sua última aparição em público (a 18 de março de 1981) Hergé encontrou-se com Tchang Tchong Jen, o estudante chinês que em 1935 o ajudou consideravelmente a conceber “O Lótus Azul” que viria a ser o herói de “Tintin no Tibete”. “De entre os meus 23 álbuns não se deveria escolher mais do que um para a posteridade. Gostaria muito que fosse “Tintin no Tibete” o escolhido. É uma bela história de amizade. Quase uma história de amor” – disse no inverno de 1979 durante as comemorações dos “50 anos” de trabalhos verdadeiramente divertidos. 1979 foi sem dúvida um ano de consagração: os correios belgas publicaram um selo com a figura de Tintin; em Paris no “Hotel des Monnaies”, foram desterradas duas medalhas em tamanho natural, uma com a sua efígie e outra com a do seu herói; até os norte-americanos concederam-lhe um Mickey. Esta célebre estatueta de ouro não era atribuída desde a morte de Walt Disney.

Hergé consagrou “Tintin no Tibete”, mas para a maioria dos jovens que vibraram com as aventuras de Tintin, “Rumo à Lua” e “Explorando a Lua” foram os álbuns que mais atenção lhes despertaram.
Uma das críticas mais célebres das que lhe foram lançadas durante os seus 53 anos de atividade, acusava-o de não saber desenhar, baseando as suas criações em planos técnicos. Se Hergé se rodeou sempre de peritos das diversas matérias que abordava, apenas a sede de saber e o desejo de perfeição que o dominava justificaram o ambiente tecnicista presente nos seus trabalhos. O célebre astrónomo Alexandre Ananoff, que o auxiliou, como consultor técnico na elaboração dos dois álbuns que trataram a viagem e a exploração da Lua, construiu maquetas das diversas partes (15 elementos não separáveis) que constituíam o foguetão de Tornesol para que as vistas interiores fossem o mais autênticas possível.

Hergé retratou, 30 anos antes, todos os problemas técnicos e humanos com que os astronautas se debateram aquando da real viagem à Lua: desde a descolagem, a fortíssima aceleração, os diálogos com a Terra, a alunissagem, os primeiros passos na superfície lunar, a vida a bordo da nave, a exploração da Lua e o regresso, graças aos foguetões auxiliares. Os mil pormenores descritos na aventura permitiriam a elaboração de um projeto espacial viável, se… o professor Tornesol houvesse especificado o funcionamento do seu motor atómico, carburando a Ternosolite (pseudo-combustível à base de silicones).

“De Klare Lijn” (a linha clara). Em qualquer obra literária, seja ela um romance ou uma banda desenhada, a análise crítica primária vira-se para o aspecto gráfico/estilístico e para o significado e valor da obra, encarada no seu sentido global. Se Hergé possui tão vasta produção, aclamada por tão grande número de leitores, então existe algo nos seus trabalhos que atrai o público. O sucesso que o próprio autor dizia “não poder explicar” foi interpretado pelos críticos como uma bem-sucedida aliança entre um grafismo inovador e um conjunto de narrativas paralelas que dão ao leitor uma expectativa permanente em relação ao comportamento das diversas personagens com os quais se pode identificar. A aventura tocava o plano do real, com personagens que, apesar de fictícias, atuavam como o vulgar leitor, conferindo um carácter humano à obra.

Este grafismo cognominado “linha clara” (8) conseguiu uma numerosa (e frutuosa) descendência, quer entre os autores europeus quer entre os artistas norte-americanos. Com as personagens do criador, também a escola ultrapassou as fronteiras belgas. Edgar P. Jacobs, Jacques Martin, Bob de Moor, Yves Chaland (autor de Bob Fich) e Ted Benoît reconhecem Hergé como o pai do seu grafismo e do estilo claro e lúcido do texto. Como refere Ted Benoît “a linha clara continua sendo a melhor para descrever a nossa época”.

Quer na mente dos leitores quer nas pranchas daqueles que prosseguem a sua obra, Hergé e Tintin permanecem vivos e são continuamente (re)descobertos pela geração de jovens dos 7 aos 77 anos
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*com Mário João Fernandes.

(1) C.P., chefe de patrulha
(2) Edgar Pierre Jacobs, autor de “Blake e Mortimer”.
(3) Jacques Martin, autor de “Alix”.
(4) Paul Cuvelier, autor de “Corentin”.
(5) Jacques Laudy, fundou com Hergé, E. P. Jacobs e Paul Cuvelier, o Tintin belga.
(6) L.M.A, liga dos marinheiros antialcoólicos.
(7) Guerra do Chaco: disputa entre a Bolívia e o Paraguai pela posse do planalto do Chaco Boreal, que ocorreu entre 1928 e 1938.
“O Ídolo Roubado” foca essa guerra pouco conhecida.
(8)
“De Klare Lijn”, conceito introduzido pelo holandês Joost Swarte para definir o grafismo de Hergé.