
Contemplações
Francisco Gil
VIVA TIM-TIM*
- Partilhar 2/12/2021
A 3 de Março de
1983, um certo Georges Rémi falecia na
cidade de Bruxelas, vítima de cancro.
Para o pacato cidadão que folheia o
jornal diário, a notícia inserida numa
das páginas interiores não possuía
qualquer interesse relevante, mas para
os amantes da Banda Desenhada era a
consternação. Hergé deixou-nos! O autor
do herói imortal desaparecido para
sempre...
“O Universo de Tintin é
um universo onde a morte não existe”
dissera Hergé. Sem dúvida que o
espírito que emana das aventuras por si
criadas prevalecerá, deixando-as como
um modelo de épico romanceado. Porém o
genial criador da célebre “linha clara”
e das histórias paralelas não
prosseguirá o seu caminho em busca da
perfeição.
Bom aluno, exceto
a Desenho. Hergé possuía um mundo
interior em constante agitação o que
lhe permitia assumir e incarnar cada
uma das suas multifacetadas personagens
em cada momento da narrativa. Facilitou
sempre a difusão de notas biográficas,
para que todos aqueles que pretendiam
compreender Tintin, também o pudessem
fazer através do prisma paterno.
Nascido do seio de uma família da
pequena burguesia belga, afastou-se dos
laços paternos aos oito anos, entrando
para um colégio particular onde
permaneceu até à conclusão dos estudos
secundários. Por ironia do destino o
pequeno Georges atingia ótimas cotações
em todas as disciplinas, mas ficava-se
pelo 10 a Desenho. Este facto não o
impediu de plagiar os “comics”
norte-americanos, associando a
florescente indústria cinematográfica à
sua própria experiência como escuteiro
e criando a “United Rovers”, suposta
firma dedicada à realização de “filmes
cómicos” como os de “Totor, C.P. dos
Besouros” (1).
Se a falta de
precisão no traço revelou um amador
inseguro e ainda ignorante na maioria
das técnicas do desenho, a forma
direta, elucidativa e plena de humor
como a história nos era legendada,
fazia com que a sua leitura se tornasse
uma fonte inesgotável de aventuras
imaginárias onde os jovens buscavam a
realização dos seus sonhos. Outras
personagens saem do lápis de Hergé: “Jo
e Zette” (João e Maria - a que mais
tarde se juntaria o macaco Simão),
“Popol e Virgínia” e “Quick & Flupke”.
Este último disputaria com Tintin o
primeiro lugar no coração de Hergé.
1929, durante a crise, aparece o
“Petit Vingtième”. Com uma vasta
galeria de personagens, da qual
sobressaía Tintin, Hergé vira-se para a
comercialização dos seus trabalhos.
Principia como publicitário, alcançando
grande sucesso com várias realizações
de apurada técnica. Este êxito
permite-lhe dedicar-se inteiramente à
banda desenhada. Funda com outros
jovens desenhadores o “Petit Vingtième”
(em tradução livre - o pequeno século
vinte) onde editará a maioria das
aventuras de Tintin.
Esta
publicação foi a resposta europeia à
invasão dos “comics” norte-americanos
que dominavam mercado mundial. O
período de recessão que se surgiu à
crise de 1929 permitiu a Hergé
conquistar um lugar no topo da
hierarquia da banda desenhada. À volta
deste pequeno número de génio, outros
talentos vão aparecendo: Edgar P.
Jacobs (2), Jacques Martin (3), Paul
Cuvelier (4), Jacques Laudy (5) e
muitos outros. Hergé adquiria a pouco e
pouco uma escola de autores que
captarão o seu estilo - a conhecida
escola de Bruxelas.
O
segredo de Tintin. Quem é esse
pequeno herói de idade desconhecida,
que com o seu fox-terrier sai
triunfante de todas as situações?
Tintin, nasceu fruto dos anseios e da
imaginação de Hergé que, inicialmente o
fez repórter do “pequeno século vinte”.
Graças ao sucesso das pranchas de
“Tintin no país dos sovietes” foi
necessário criar personagens
secundárias, do tipo: professor
Girassol / Tornesol (o génio
distraído), Dupond e Dupont (os irmãos
siameses), general Alcazar (aventureiro
sul americano, símbolo dos precários
regimes da região) e o capitão Hadock
(capitão beberrolas dominado pelo seu
imediato Alan torna-se presidente da
L.M.A. (6) e adquire o fantástico
castelo de Moulinsart onde o
insubstituível Nestor se encarrega das
tarefas domésticas). Várias dezenas de
outras criações povoam as histórias de
Hergé: umas aliadas ao herói, outras
pertencentes ao submundo (Rastapopoulos
e seus sequazes).
Hergé é
sobretudo um bom contador de histórias
que se tornou o sósia europeu de Walt
Disney. Possuindo arquivos extremamente
bem recheados, realizava, como Júlio
Verne, uma minuciosa pesquisa antes da
elaboração de cada álbum. Trabalhando
oito horas por dia e com uma vasta
equipa de desenhadores, letristas,
coloristas e numerosos técnicos,
reproduzia nos estúdios de Bruxelas as
paisagens de todo o mundo. Cada nova
edição merecia-lhe o carinho e o
cuidado de uma reestruturação do texto
e principalmente do grafismo,
melhorando o traço e atualizando os
desenhos.
Dois marcos:
Tintin no Tibete e Rumo à Lua.
Tintin, no seu peregrinar constante, da
Rússia pós revolução de Outubro aos
Balcãs abalados pelo embate das
ideologias fascistas, nazis e
comunistas; do Egipto faraónico à
Chicago da lei seca, controlada pela
Máfia; do Médio Oriente ainda pleno de
protetorados e onde já principiara a
corrida ao ouro negro, à América
Central, ontem como hoje povoada de
guerrilhas; do europeu caso de Maria
Callas, ao mistério do abominável homem
das neves; do antigo Congo Belga à
ignorada guerra do Chaco (7); dos
problemas das minorias étnicas –
ciganos, negros, índios - à guerra da
Manchúria; da ciência de Von Braun e
seus pares até aos enigmáticos e
omnipotentes OVNIS; captou a alegria e
o drama da vida atual.
Aquando
da sua última aparição em público (a 18
de março de 1981) Hergé encontrou-se
com Tchang Tchong Jen, o estudante
chinês que em 1935 o ajudou
consideravelmente a conceber “O Lótus
Azul” que viria a ser o herói de
“Tintin no Tibete”. “De entre os meus
23 álbuns não se deveria escolher mais
do que um para a posteridade. Gostaria
muito que fosse “Tintin no Tibete” o
escolhido. É uma bela história de
amizade. Quase uma história de amor” –
disse no inverno de 1979 durante as
comemorações dos “50 anos” de trabalhos
verdadeiramente divertidos. 1979 foi
sem dúvida um ano de consagração: os
correios belgas publicaram um selo com
a figura de Tintin; em Paris no “Hotel
des Monnaies”, foram desterradas duas
medalhas em tamanho natural, uma com a
sua efígie e outra com a do seu herói;
até os norte-americanos concederam-lhe
um Mickey. Esta célebre estatueta de
ouro não era atribuída desde a morte de
Walt Disney.
Hergé consagrou
“Tintin no Tibete”, mas para a maioria
dos jovens que vibraram com as
aventuras de Tintin, “Rumo à Lua” e
“Explorando a Lua” foram os álbuns que
mais atenção lhes despertaram.
Uma
das críticas mais célebres das que lhe
foram lançadas durante os seus 53 anos
de atividade, acusava-o de não saber
desenhar, baseando as suas criações em
planos técnicos. Se Hergé se rodeou
sempre de peritos das diversas matérias
que abordava, apenas a sede de saber e
o desejo de perfeição que o dominava
justificaram o ambiente tecnicista
presente nos seus trabalhos. O célebre
astrónomo Alexandre Ananoff, que o
auxiliou, como consultor técnico na
elaboração dos dois álbuns que trataram
a viagem e a exploração da Lua,
construiu maquetas das diversas partes
(15 elementos não separáveis) que
constituíam o foguetão de Tornesol para
que as vistas interiores fossem o mais
autênticas possível.
Hergé
retratou, 30 anos antes, todos os
problemas técnicos e humanos com que os
astronautas se debateram aquando da
real viagem à Lua: desde a descolagem,
a fortíssima aceleração, os diálogos
com a Terra, a alunissagem, os
primeiros passos na superfície lunar, a
vida a bordo da nave, a exploração da
Lua e o regresso, graças aos foguetões
auxiliares. Os mil pormenores descritos
na aventura permitiriam a elaboração de
um projeto espacial viável, se… o
professor Tornesol houvesse
especificado o funcionamento do seu
motor atómico, carburando a
Ternosolite (pseudo-combustível à
base de silicones).
“De Klare
Lijn” (a linha clara). Em qualquer
obra literária, seja ela um romance ou
uma banda desenhada, a análise crítica
primária vira-se para o aspecto
gráfico/estilístico e para o
significado e valor da obra, encarada
no seu sentido global. Se Hergé possui
tão vasta produção, aclamada por tão
grande número de leitores, então existe
algo nos seus trabalhos que atrai o
público. O sucesso que o próprio autor
dizia “não poder explicar” foi
interpretado pelos críticos como uma
bem-sucedida aliança entre um grafismo
inovador e um conjunto de narrativas
paralelas que dão ao leitor uma
expectativa permanente em relação ao
comportamento das diversas personagens
com os quais se pode identificar. A
aventura tocava o plano do real, com
personagens que, apesar de fictícias,
atuavam como o vulgar leitor,
conferindo um carácter humano à obra.
Este grafismo cognominado
“linha clara” (8) conseguiu uma
numerosa (e frutuosa) descendência,
quer entre os autores europeus quer
entre os artistas norte-americanos. Com
as personagens do criador, também a
escola ultrapassou as fronteiras
belgas. Edgar P. Jacobs, Jacques
Martin, Bob de Moor, Yves Chaland
(autor de Bob Fich) e Ted Benoît
reconhecem Hergé como o pai do seu
grafismo e do estilo claro e lúcido do
texto. Como refere Ted Benoît “a linha
clara continua sendo a melhor para
descrever a nossa época”.
Quer
na mente dos leitores quer nas pranchas
daqueles que prosseguem a sua obra,
Hergé e Tintin permanecem vivos e são
continuamente (re)descobertos pela
geração de jovens dos 7 aos 77 anos.
*com Mário
João Fernandes.
(2) Edgar Pierre
Jacobs, autor de “Blake e Mortimer”.
(3) Jacques
Martin, autor de “Alix”.
(4) Paul
Cuvelier, autor de “Corentin”.
(5) Jacques Laudy, fundou
com Hergé, E.
P. Jacobs e Paul Cuvelier, o Tintin
belga.
(6) L.M.A, liga dos
marinheiros antialcoólicos.
(7)
Guerra do Chaco: disputa entre a
Bolívia e o Paraguai pela posse do
planalto do Chaco Boreal, que ocorreu
entre 1928 e 1938. “O
Ídolo Roubado” foca essa guerra pouco
conhecida.
(8) “De Klare Lijn”,
conceito introduzido pelo holandês
Joost Swarte para definir o grafismo de
Hergé.
- n.31 • dezembro 2021