Cante na Alma
Desidério Lucas do Ó
Grilos e boa gente
- Partilhar 20/02/2022
“Sou algum
grilo?” - Era com esta frase lapidar que os
jovens (ou menos jovens) da minha geração
respondiam, quando alguém lhes perguntava se
queriam salada para acompanhar a refeição.
Numa visita a Vila de Frades, nos anos
80 do século passado, jantei num velho café
acompanhado por um amigo estrangeiro. A
ementa prometia. Perguntei se vinha salada a
acompanhar. “Não, amigo, não temos salada”,
foi a resposta, com ar de alguma
consternação.
Mal tínhamos iniciado a
refrega quando apareceu na sala o Senhor
José Rosa, empunhando orgulhosamente uma
magnífica alface que tinha ido colher ao
quintal e, dirigindo-se ao empregado, disse
: “Tome lá, faça uma salada a estes amigos”.
Há situações que não se esquecem! Bom
homem, o Senhor José Rosa.
"Cante an Menino" de Vila
de Frades
" O Natal não era
uma grande festa comparada com o entrudo.
Mas sempre se fazia o presépio na igreja,
para o qual íamos buscar musgo ao Olival da
Casa e a descida do menino de Jesus pela
chaminé também era excitante. Uma prendinha
e já era um pau, um automóvel miniatura, sem
motor, mas disso tratávamos nós.
O
momento mais solene era o "cante an Menino",
em casa, ou melhor ainda, quando os homens
vinham bater à nossa porta e começavam a
cantar. A excitação era enorme entre mim e a
minha irmã, porque, na última quadra os
homens cantavam : " senhora dona de casa,
deixe-se estar que está bem/ mande-nos dar a
esmola/ p'lo filhinho (ou filhinha que aí
tem" e nós os dois, em pulgas, a disputar a
honra de lhes ir entregar a linguiça...
Depois o meu pai mandava entrar os homens e
todos bebiam um copo de aguardente ao pé do
lume."
E lá iam eles bater a outra porta
que o tempo era de miséria e a Guarda
proibia o cante na rua."
Obrigado, boas
festas e um forte abraço para todos.
Desidério
Namoro
- Partilhar 22/04/2021
Antigamente os
namoros eram muito diferentes: olhares,
sorrisos, alguma piscadela de olho, em
apalpanços nem pensar a não ser que nalgum
baile se oferecesse a oportunidade. Ir
passear com a namorada, nem pensar e quando
o namoro estabilizava e se queria falar com
a querida, era preciso ir falar com o pai
dela e pedir se dava autorização para
namorar à janela, ou ao postigo se a casa
era mais humilde.
Foi o que fez o
Jorge, simpático ruivo da Cuba (os de Vila
de Frades chamavam-lhe “o Almagrado”) quando
se apaixonou pela minha tia Manuela, irmã da
Bia, a mana mais velha, que uns anos atrás
tinha casado com o Zé do Ó, de quem já tinha
2 filhos.
Veio então o Jorge
expressamente da Cuba na sua pasteleira,
falar com o Sr. Desidério, pai da Manuela,
pedindo que os deixasse namorar à janela. O
Sr. Desidério, bom homem, disse que sim e
combinou-se que a primeira atracagem à
janela fosse no domingo seguinte. Grande
excitação!!!
Acontece que o Zé do Ó
e a Bia estavam convidados para um casamento
em Vila Alva, terra de gente simpática e bom
vinho branco. Convidaram logo a mana Manuela
que só acedeu caso estivessem de volta no
domingo por volta das 5, o primeiro dia
oficial de namorar à janela.
Lá
foram para Vila Alva. A “castanha” a puxar a
carrinha, habilmente conduzida pelo Zé do Ó.
O casamento foi fantástico:
começaram logo a cantar no “copo de água”, a
festa prolongou-se pela ceia com muitos
vivas à noiva e ao noivo, bailes de roda e
jogos.
Já o sol tinha nascido quando
um vilalveiro amigo desafiou o Zé do Ó e
mais uns quantos para ir provar o dele, que
a adega era logo ali. Aí continuaram de copo
e cante e como já era dia a Manuela começou
a ficar nervosa e a incitar a mana Bia a
procurar o Zé do Ó para iniciarem a viagem
de regresso à vila. Procuraram-no e lá o
encontraram numa segunda adega batendo a
moda e bebendo mais uns copitos.
Regressar já à vila para quê? Está-se aqui
muito bem. Mas tu prometeste... vamos mais
logo! A mim não deram autorização para
namorar contigo à janela e agora a tua mana
quer que eu a vá levar ao altar!... Mas a
Bia lá o convenceu. Atrelou a mula à
carrinha e até Vila de Frades não trocaram
uma palavra, o Zé do Ó embezerrado,
instigando a mula, ladeira abaixo, a Bia
cheia de medo que ele tombasse a carrinha e
a Manuela ansiosa por chegar a horas.
Chegaram às cinco em ponto, o Almagrado já
estava encostado à ombreira da taberna do Zé
Miúdo, à espera do seu Primeiro Dia de
Namoro com a Manuela.
Casaram
(gostei muito dos bolos folhados do
casamento) foram felizes e só há pouco nos
deixaram.
A avó Leonor
A avó Leonor era uma mulher de armas. Dominava com mão firme todos os membros da família e mesmo o avô Desidério, seu marido, nem sempre tinha a vida facilitada. O que ela tinha de dominadora, tinha ele de risonho, negociador, brincalhão.
Quando chegava o tempo dos vinhos novos, o avô Desidério e os amigos costumavam encontrar-se aos domingos de manhã na taberna do Zé Miúdo para curtir a amizade e beber uns copitos, dos pequeninos.
Naquele domingo, quando chegou a casa para o almoço, ouviu logo da sua Leonor um áspero: “Já vens com um olhinho pequenino!”. Moita carrasco, almoçou e foi deitar-se no quarto escuro.
Passado algum tempo ouviu-se na cozinha os seus gemidos. A Leonor Júlia teve um momento de compaixão e foi ao quarto, abriu a porta e gritou asperamente lá para dentro: “Atão o que é que tem?” “Tenho frio nos pés, Leonor, arranha-me aí uma mantinha”. “O calor que tem na barriga ponha-o nos pés” e fechou a porta com estrondo.
Os Artistas
Temos também cá na
vila outro grupo de homens de quem eu também
gosto e que fazem coisas bonitas: são os
artistas. Eu gosto muito dos carpinteiros,
dos abegões e dos barbeiros. Gosto de ficar
ali, nas oficinas, a ver o que eles fazem.
Falam comigo e contam coisas engraçadas.
O meu primo Sebastião
Estrela, que é abegão, faz trabalhos muito
difíceis: carros de bestas, de parelha e
charretes. Ele corta grandes troncos de
árvores com uma serra maior do que eu.
São precisos dois
homens, ele e um ajuda. Sentam-se um em
frente do outro, cada um segura numa das
pontas da serra e levam o dia a trabalhar e
a fazer um barulho muito especial, que os
ajuda a cortar:
"hã! hã! hã! hã!".
E depois ficam umas tábuas com as quais eles
fazem carros, carretas e uma coisa que eu
acho muito bonita: a roda de um carro ou de
uma carrinha.
O mais bonito neste
trabalho é que eles depois fazem um fogo com
bosta de vaca. Metem o aro de ferro da roda
no chão, fazem um lume redondo à volta do
aro e, quando o aro fica em brasa, tiram-no
de lá com umas tenazes muito grandes e
colocam-no à volta da roda. O trabalho é
feito muito depressa, antes que o aro
arrefeça. Eles ficam todos suados, às vezes
gritam uns com os outros mas, no fim, ficam
muito contentes com a sua obra.
As ferramentas do abegão são muito grandes e pesadas. Têm muitas serras, algumas muito grandes, uma enxó e uma roda para fazer buracos. O abegão faz os carros com madeira de azinho, que é muito pesada e rija. E preciso fazer muita força e ter ferramentas boas.
Desidério do Ó, 2019
in . “Do Alentejo pró Mundo com o Cante na Alma”
O Jogo da Bola
Desidério Lucas do
Ó
Eu gosto muito do jogo da bola, o pior é que não temos uma bola boa. Fazemos bolas com meias velhas e trapos e jogamos com elas. São boas para dar muitos toques, mas não saltam e o jogo é sempre rasteiro.
Um dia destes esteve cá um rapaz que não é da vila e trouxe uma bola de borracha que saltava muito.
A bola tinha laivos verdes e brancos, saltava mais do que o cão pelo de arame do primo Sebastião Estrela, era novinha em folha.
O moço até me deixou dar uns toques antes de começarmos o jogo. Quem escolheu as equipas foi esse moço e o Vítor. Eu fiquei a guarda-redes. Gostava mais de ter ficado a jogar a avançado, sempre podia ter metido algum golo, tão fácil era rematar com aquela bola linda!
Desta vez o jogo acabou em bem, não houve zaragata e até deixámos o dono da bola ganhar; ele até não era grande coisa, mas os companheiros passavam-lhe muito a bola para ele não se chatear, pegar na bola e ir-se embora.
Nessa noite não pensei noutra coisa: era bom ter uma bola assim e não aquelas bolas de trapo que se tornavam muito pesadas quando chovia.
Fui para a cama a pensar na bola, como seria bom ter uma! Sonhei com ela mas, quando acordei, ainda procurei debaixo das mantas mas nada, a bola não estava lá.
Pensei que, se voltasse a sonhar com ela, a seguraria com toda a força para que ela não se me escapasse outra vez. Não valia a pena tentar comprar uma, na vila não havia bolas daquelas à venda e se houvesse deviam custar muito dinheiro.
Nessa noite até fui mais cedo para a cama. Como não pensava noutra coisa tinha a certeza que ia voltar a sonhar com ela. E sonhei, sonhei com aquela bola linda, aos laivos brancos e verdes, dura, saltitona, que iria guardar muito bem guardadinha para a minha mãe não ver.
Acordei ainda era noite escura. Tinha as mãos engelhadas, doridas, mas a bola tinha-se novamente escapado.
Desidério do Ó, 2019
in . “Do Alentejo pró Mundo com o Cante na Alma”
O Cante
Desidério Lucas do
Ó
O Cante Alentejano
Desidério Lucas do
Ó
O Cante
Alentejano