Contemplações
Francisco Gil
Fountain (Fonte)
A Primeira Exposição Anual da Sociedade
de Artistas Independentes dos Estados
Unidos da América, abriu no Grand
Central Palace, em Nova Iorque, na
noite de 10 de abril de 1917. Milhares
de pessoas reuniram-se para celebrar o
que viria a ser a maior exposição de
arte jamais realizada em Nova Iorque.
Esta Primeira Exposição dos
Independentes, ou “A Grande Exposição”,
como mais tarde seria apelidada,
continha cerca de 2500 obras de pintura
e escultura, de 1000 artistas, de 38
estados norte americanos.
O
grande volume de obras foi sem dúvida a
característica mais célebre da
exposição, e a quantidade e diversidade
invulgar do trabalho apresentado foi o
resultado dos princípios liberais da
sociedade, cujo objetivo era
estabelecer uma organização dedicada à
liberdade total nas artes. Qualquer
pessoa que pagasse uma taxa de
iniciação de um dólar e uma quota anual
de cinco dólares tornava-se
automaticamente membro da Sociedade e
foi autorizado a mostrar duas obras na
exposição anual. O princípio diretor da
exposição, enfaticamente enunciado nos
numerosos comunicados de imprensa, foi
retirado diretamente da Société des
Artistes Indépendents de Paris: “Sem
júri e sem prémios”.
Integrado nesta
nova Sociedade de Artistas
Independentes dos Estados Unidos da
América, estava um francês de nome
Marcel Duchamp. Nascido em
Blainville-Vrevon, França, no dia 28 de
julho de 1887, estudou na Academia
Julian, tendo nesse período inicial de
atividade artística, realizado
trabalhos em praticamente todas as
tendências da época, sem se comprometer
com nenhuma delas. Em 1915, com 28 anos,
mudou-se para os Estados Unidos da América e, em
1916, entrou em contato com o movimento
“Dada” que abrangia
literatura, artes visuais e
performances deliberadamente
provocativas, que queria chocar as
pessoas para que saíssem de seu estado
de complacência e criasse uma forma de
arte livre dos valores e ideias que a
haviam precedido.
Em 1917 na
Primeira Exposição Anual da Sociedade
de Artistas Independentes dos Estados
Unidos da América, que abriu em Nova
Iorque, na noite de 10 de abril, Marcel Duchamp, através de
pseudónimo – R. Mutt – apresenta a
polémica obra Fountain, que viria a
ser considerado o golpe definitivo que
abalaria todos os fundamentos do que
era entendido até à data como “Obra de
Arte”.
A ação artística de
Duchamp na contestação e utilização do
conceito como um obstáculo ao uso da
palavra criação, começou com a compra
de um modelo padrão de urinol Bedfordshire da JL Mott Iron Works,
118 Fifth Avenue. Uma vez na sua
oficina, alterou a posição habitual do
urinol e assinou-o com o pseudónimo “R.
Mutt 1917”. A obra foi submetida, como
um readymade (objecto encontrado, na
sua tradução literal), à exposição do
Grand Central Palace de Nova Iorque,
sob o título Fountain.
A
partir desse momento, o mundo da Arte
foi abalado pela escolha do objeto mais
banal e a sua transformação numa “Obra
de Arte” pela mera intervenção
descontextualizada do artista. Uma
declaração do que é a Arte pelo artista
que tem sido interpretada de diferentes
pontos de vista, mesmo como uma alusão
à genitália feminina, embora a sua
maior contribuição seja a rutura total
dos cânones e critérios mantidos até à
data. Foi uma provocação que encontrou
a rejeição absoluta das autoridades do
museu, que retiraram a peça, apesar das
regras de participação aceitarem para a
exposição qualquer obra apresentada.
Foi a maior provocação da arte
do século XX. Uma peça cujo original se
perdeu. Não era o objeto que importava,
mas a ação, pelo que o próprio artista
fez uma série de réplicas nos anos 60
que hoje estão distribuídas por vários
museus. Uma peça que em si não era a
obra de arte, mas a própria intervenção
de Duchamp. O conceito ocidental de
Obra de Arte mantido
durante séculos provavelmente
desapareceu em 1917. Em Nova Iorque,
numa casa de banho pública...
- n.35 • abril 2022