
Contemplações
Francisco Gil
Robert Gober: O coração não é uma metáfora
- Partilhar 17/02/2025
Quando Robert
Gober começou nos anos 90 do século
passado, a criar objetos
hiper-realistas em cera, já se tinha
tornado, após uma carreira curta e
meteórica, um dos artistas
contemporâneos mais conhecidos dos
Estados Unidos.
O que atraiu a
atenção do público foram reproduções de
objetos do quotidiano, com os quais
combinou uma multiplicidade de memórias
intuitivas: lavatórios, parques
infantis, urinóis, cestos para cães,
etc., com alterações na sua forma, por
vezes de redução minimalista e por
vezes de complicação neossurrealista.
Gober carregou os artefactos de
associações, transformando-os no
mobiliário sinistro de uma casa não habitada. Nos seus
esgotos, por exemplo, sublinhou a forma
de cruz e transformou o local onde a
água e o nosso olhar se agitam num
mundo escuro, sem limites e ameaçador,
um espaço de ressonância de proibições
e promessas eclesiásticas.
A
infância de Gober foi marcada por um
fardo particular, porque a sua
homossexualidade se desenvolveu sob os
constrangimentos de uma família
puritanamente conservadora e
estritamente católica. Esta biografia
reflete-se na sensibilidade
psicossocial e sociopolítica particular
da sua obra. Desde 1990, Gober já não
se dedica apenas às coisas em que
inscreve os traços de sensações
corporais ambivalentes, mas ao próprio
corpo. Uma experiência casual foi a
causa: “Detesto viajar... estava num
avião minúsculo, sentado ao lado de um
homem de negócios bonito, com as calças
puxadas para cima das meias, e fiquei
paralisado nesse momento pela sua
perna”. Moldou em cera o molde de uma
perna perfeitamente normal, aplicou
pelos um a um na canela e na barriga da
perna com uma pinça sob uma lâmpada de
calor e vestiu-a convencionalmente:
calças, meias e sapatos robustos, mas
gastos. Nas exposições, Gober instalava
a perna de forma a parecer que esta
atravessava a parede ao nível do
lambril, projetando-se para a sala de
exposição e, consequentemente, para o
espaço do observador como um objeto
parcial estranho e fisicamente
intrusivo.
Nos anos 90, o
motivo da perna sofreu novos
desenvolvimentos. Por um lado, Gober
reduziu-a a um sapato de cera, em cuja
palmilha brotavam pelos, por outro
lado, modelou abdómens inteiros e
transformou-os à maneira das fusões de
objetos surrealistas com velas, tampões
ou partituras musicais, estas últimas
inspiradas por um motivo do Jardim das
Delícias Terrenas de Hieronymus Bosch.
E nos quadros de sala, cada vez mais
complexos, aos quais acrescenta
continuamente obras, as referências a
conotações sexuais, à transitoriedade,
ao catolicismo, à discriminação e à
violência contra os homossexuais
tornam-se mais intensas.
Como
escreveu o historiador de arte,
Alexander Braun na sua monografia sobre
o artista: “As obras de Gober não
representam piadas, mas emoções. As
obras de Gober funcionam como difusores
de fragrâncias na sala, mas em vez de
difundirem aromas, difundem atmosferas
sinistras.”
Na foto,
artefacto (sem título) de 1990: cera
de abelha, madeira, sapato de couro,
tecido de algodão e cabelo humano.
Adaptado de um texto de Kerstin Stremmel
- Ano VI • 68 • 2025