Justiça Restaurativa
Joaquim Manuel da Silva
A FAMÍLIA DAS CRIANÇAS NA SEPARAÇÃO DOS PAIS
- Partilhar 16/02/2021
Voltamos, porque o Universo, o amor, assim o
exige. Contra o todo, não há mente válida.
“Sou juiz das
crianças e não dos paizinhos!” Isto tem
sentido? Já ouvi e senti isto.
No dia 4-2-2021,
numa agradável
live
promovida pela Associação Portuguesa de
Criminologia[i],
a Dra. Paula Varandas, mentora da iniciativa
de apoio a adolescentes, apelidado de
“Educar para o Direito”[ii],
na sua missão de ajudar adolescentes, que
efetua há anos em Escolas por este bonito
país, dizia: “nós não conhecemos os nossos
miúdos, não falamos a sua linguagem, mas
quem os ouve sabe que os problemas graves
deles são, invariavelmente, todos,
decorrentes de separação e grande conflito
dos pais”.
Apesar de a conhecer
há muito, e até de ter tido o enorme prazer
de estar com ela em conferências para onde
fomos ambos convidados, nunca tinha sentido
esta perceção intensa e certeira dela,
rigorosamente a minha, e que decorre das
experiências de 20 anos de processos da
jurisdição das crianças.
A pergunta que fiz em
2005 em Loures foi o que estamos a fazer no
sistema judicial? Isto ajuda? Relatórios
para decidir, zero de trabalho com famílias,
mesmo em promoção e proteção, onde se vai em
revisão, 5 meses decorridos, que se
transforma em 9 com as insistências, a
correr fazer mais um relatório?!
Isto ajuda as
crianças? Sou juiz das crianças, mas assim
estou a ser de facto?
Como ajudar a criança
sem o sistema familiar delas, os pais e
demais família? Impossível! Hoje, apesar de
apelidado de “juiz amigo das crianças” por
uma grande amiga do lado do amor, sou sim
juiz do sistema familiar, da consciência
sistémica familiar, e só assim serei, cada
vez mais, materialmente, o “juiz amigo das
crianças”.
Mais do que censurar,
precisamos saber fazer: “como matar o casal
conjugal e fazer nascer o casal parental?”
Uma coisa é certa, o
sistema judicial não sabe, não nos
ensinaram, e tem medo de olhar para a (in)eficácia que tem, na linha da “alegoria da
caverna” de Platão, na posição confortável
de dizer que o problema é a falta de bom
senso dos pais, da falta de meios, etc… tudo
menos do próprio sistema.
Quanto à posição dos
pais, passem por esta experiência (e eu não
passei) e depois falem, censurem menos, e
façam o que Einstein afirmou, de que será
absurdo continuar à espera de novos
resultados, fazendo o mesmo.
Entretanto, temos
toda uma geração de crianças e adolescente,
como a Dra. Paula Varandas também observa no
seu contacto com milhares no seu projeto
maravilhoso, projeto junto dos adolescentes,
destruída na sua condição de criança,
postergada do direito a sonhar e a ter toda
a gente na sua vida, com amor e sentindo-se,
todos, da família dela.
Vamos lá todos refletir em futuros artigos
sobre tudo isto, partindo do diagnóstico,
para um novo paradigma da forma como somos e
estamos, e depois em concreto como isso
determina e nos traz outro saber ser e
fazer.
[i]
[Online]. [Citado: 2021-02-16].
https://www.facebook.com/apcriminologia
[ii]
[Online]. [Citado: 2021-02-16].
https://www.facebook.com/Educar-Para-o-Direito-848831975226022
* Juiz de Direito, colocado no Juízo de Família e Menores de Mafra, Comarca de Lisboa Oeste. E-mail: joaqmds@hotmail.com.
As Barrigas de Aluguer, os Genes e as Crianças
Quando o Tribunal Constitucional decidiu recentemente, e novamente, considerar inconstitucional a norma que não dava possibilidade de escolha de ficar com a criança às mulheres que tinham alugado a sua barriga para a gerar em ambiente uterino
(1), perguntei: Como? Porquê?
O acórdão
citado fundamenta da seguinte forma:
(…) Ora, ao reproduzir, sem qualquer
alteração, o teor do n.º 8 do artigo 8.º da
LPMA, relativo à «gestação de substituição»,
sem introduzir concomitantemente qualquer
modificação nos n.ºs 4 e 5 do respetivo
artigo 14.º, referentes ao regime do
«consentimento», o artigo 2.º do Decreto
propõe-se reintroduzir na ordem jurídica o
modelo decorrente das alterações levadas a
cabo pela Lei n.º 25/2016, de 22 de agosto,
na parte em que limitava a possibilidade de
revogação do consentimento prestado pela
gestante ao início dos processos
terapêuticos de procriação medicamente
assistida.
Apesar de consubstanciar uma
nova manifestação do poder legislativo no
âmbito da definição do regime jurídico da
gestação de substituição, o Decreto n.º
383/XIII propõe-se retomar, assim, quanto à
possibilidade de revogação do consentimento
da gestante de substituição, a mesma exata
solução que foi objeto de apreciação no
Acórdão n.º 225/2018. Isto é, «a limitação à
revogabilidade do consentimento da gestante
estabelecida em consequência das remissões
dos artigos 8.º, n.º 8 [n.º 13, na
renumeração operada pelo artigo 2.º do
Decreto], e 14.º, n.º 5, da LPMA, para o n.º
4 deste último», que o Tribunal considerou
ser inconstitucional «por restringir
excessivamente o direito da gestante ao
desenvolvimento da personalidade,
interpretado à luz do princípio da dignidade
da pessoa humana, e o seu direito de
constituir família (artigos 1.º e 26.º, n.º
1, e 36.º, n.º 1, em conjugação com o artigo
18.º, n.º 2, todos da Constituição)»
(…)
E os genes e as
crianças, como pessoas e a sua dignidade?
Nem um/uma palavra no citado acórdão.
Quando visitamos os avanços da genética,
como ocorreu já no livro escrito por Richard
Dawkins (2), em 1977, perfeitamente atual,
percebemos, como diz o autor do livro, que
imortais são os genes; isto é, o que passa
nos genes não são apenas códigos, como se
pensava, mas eles próprios (em cada célula
do nosso corpo 23 da mãe, do óvulo, e 23 do
pai, do espermatozoide) levam toda a
identidade geracional dos nossos
antepassados, criando um campo quântico de
entrelaçamento entre eles, interdependente,
como as Constelações Familiares,
desenvolvida por Bert Hellinger (3),
recentemente falecido a 19 de setembro de
2019, comprovam de forma inequívoca.
Este
conhecimento e terapia tem lugar no nosso
Juízo de Família e Menores de Mafra e no
âmbito do projeto de Justiça Restaurativa,
encontrado na procura de novas respostas e
sustentado em conhecimento interdisciplinar.
Respostas que saiam deste mundo cartesiano e dos adultos em que o Tribunal Constitucional se moveu neste caso ao produzir esses dois acórdãos sobre as barrigas de aluguer e também sobre o aborto, aquando da legalização do mesmo, acrescente-se.
E partimos para esse tipo de respostas porque
tivemos acesso a um caso de um pai com
filhos gémeos, em que um deles, com 4 anos,
não respeitava o pai de maneira nenhuma, e
ele tinha tentado tudo quer em termos
educativos quer de ajudas tradicionais de
profissionais, como psicólogos. E nada.
Recorreu depois às constelações familiares e
descobriu-se que esse pai não respeitava o
seu próprio pai, avô paterno da criança.
Pouco importam as razões porque tal ocorria, mas o facto é que recorreu às terapias usadas nessa resposta, e o pai do gémeo passou a honrar o seu próprio pai, desde logo porque lhe deu a vida, e também porque o conseguiu compreender, já que de alguma forma percebeu também as circunstâncias do seu pai, embora não concordasse com as respostas que aquele tinha dado, expresso no comportamento que censurava e o tinha levado a rejeitar e desrespeitar o seu pai. Quando o pai da
criança fez isto, o seu filho deixou de ter
o comportamento desafiador e de falta de
respeito que tinha para com ele, sem
qualquer intervenção direta sobre a criança.
Isto é, os genes do pai transportaram a
mesma falta de respeito pelo avô paterno da
criança para os genes desta e transferiu-lhe
o comportamento associado de desrespeito
pela figura do pai.
A única resposta
possível qual é? Os genes são de fato os
mesmos, e são imortais na forma como passam
de geração em geração, e estão interligados,
levando não apenas códigos, mas também os
comportamentos, vocações, expetativas, etc.
Levam a vida. Somos eternos afinal através dos filhos.
Tivemos alias um caso recente no nosso juízo de FM de Mafra que mostra também isso. Uma criança de dois
anos a viver com a avó materna, e que não
conhecia o pai. A mãe está imigrada. Para
motivar o pai a interessar-se pelo seu
filho, estávamos a explicar-lhe estas
questões de eternidade dos genes e do
entrelaçamento entre os que estão nos nossos
corpos e os dos nossos filhos, e a avó
interrompeu-me e disse: “sabe, agora percebo
porque o meu neto fez de uma camioneta
grande que lhe comprei uma guitarra, é que o
pai é guitarrista de profissão, pois a
criança passa o tempo todo a usar aquilo
como guitarra, e nós nem tocamos nem ouvimos
muita música”.
De facto, estes
conhecimentos interdisciplinares, impedem e
tornam incompreensível esta decisão do
Tribunal Constitucional, que ignora
totalmente no fundo o direito da criança à
sua dignidade, a pertencer e a ter na
afetividade com aqueles a quem pertence e
está eternamente ligado através dos genes.
Afinal neste entendimento as crianças
não são pessoas. São objeto dos adultos, na
consagração nestes dois acórdãos do direito
à barriga como superior e absoluto face ao
direito a pertencer, a ser eterno, violando
de forma total esse entrelaçamento genético
como direito básico da dignidade de cada
criança. Reduz as crianças a meros objetos.
Na visão do Tribunal Constitucional, dignidade e personalidade das crianças são assim questões de tamanho, quanto mais pequeno mais objeto ou mercadoria, e já tinha feito isto no acórdão que permitiu a legalização do aborto até às 10 semanas (4).
Faltam, com o devido respeito, conhecimentos interdisciplinares nesta visão informada apenas e só pela mera física clássica e a filosofia cartesiana, expressada bem num equívoco total, um erro, na reflexão de António Damásio (5).
Fica a reflexão, porque as crianças também são pessoas, representam a eternidade, e este centrar da dignidade das crianças precisa-se urgentemente, e será aprofundado no nosso II Congresso de Justiça Restaurativa agendado para os dias 30 e 31 de outubro em Mafra
(6).
Venham todos.
(1) - Acórdão n.º 465/2019, Processo n.º 829/2019, Plenário. Relator: Conselheira Joana Fernandes Costa (Conselheiro Cláudio Monteiro) [Online]. [Citado: 2019-09-29]. https://www.tribunalconstitucional.pt/tc/acordaos/20190465.html
(2) - DAWKINS, Richard (1976) - O Gene Egoista. Brasil: Companhia de Letras. LeLIVROS, PDF [Online]. [Citado: 2019-05-03]. https://www2.unifap.br/alexandresantiago/files/2014/05/Richard_Dawkins_O_Gene_Egoista.pdf
(3) - [Online]. [Citado: 2019-09-29]. https://en.wikipedia.org/wiki/Bert_Hellinger
(4) - Aprovado pela Lei n.º 16/2007, de 17 de Abril - Exclusão da ilicitude nos casos de interrupção voluntária da gravidez. E Acordão do TC n.º 617-2006, de 25-10, Constitucionalidade do referendo sobre o aborto. [Online]. [Citado: 2019-07-24]. https://data.dre.pt/eli/actconst/225/2018/05/07/p/dre/pt/html
(5) - DAMÁSIO, António (1995) – O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. 14.ª Ed. Lisboa: Europa-América. ISBN 972-1-03944-6
(6) - II Congresso de Justiça Restaurativa agendado para os dias 30 e 31 de outubro em Mafra: Inscrições online na página:
https://forms.gle/bAdArmvbt6Vgp9xD7 - Secretariado, inscrições e informações:
iijrmafra2019@gmail.com ou Tlm. 966.291.150
Que Assessoria para os Tribunais
Joaquim Manuel da Silva
Efetuado o
trabalho referido na crónica anterior, de
transmissão de conhecimentos e avaliação da
posição do paradigma comportamental do
sistema familiar materno e paterno face ao
direito das crianças a manter toda a sua
família na sua vida, sendo esse sempre o
objetivo do processo, quando se constata que
não é suficiente aquele trabalho inicial
para que a partir dali a criança veja o seu
superior interesse satisfeito, recorre-se à
Assessoria Técnica Especializada (ATE) nos
tutelares cíveis e a medidas de Promoção e
Promoção com acompanhamento também da
assessoria disponível.
Que assessoria
temos atualmente para a jurisdição da
família e menores?
Como sabemos, a
interna, em regra é dada pelo Instituto de
Segurança Social, através das Equipas
Multidisciplinares de Assessoria Técnica
(EMAT), com exceções pontuais, como em
Lisboa, onde a Santa Casa da Misericórdia de
Lisboa tem estas competências na área
tutelar cível.
Porque é
inadequada a assessoria atual aos tribunais,
que gera por exemplo as denominadas “adoções
ilegais” ou as “garagens” na vida das nossas
crianças?
Há um ditado
popular a propósito da função judicial e dos
juízes que encaixa bem aqui: como
infelizmente se afirmam factos com realidade
nos processos que nunca ocorreram no mundo
natural, por força de falsos testemunhos não
detetados, diz-se que os juízes vão para o
inferno, mas vão às escavalitas das
testemunhas. Como diz o povo, na sua
sabedoria popular, será que o sistema
judicial e os juízes não estão a “comer
palha”, a pensar que é “erva verde”? Eu
estava!
Quando em 2011,
ainda no Juízo de FM de Sintra optei por
convidar a Dra. Teresa Villas, uma técnica
social, pré-reformada, que tinha até agora
sido presidente da CPCJ de Sintra, a
colaborar nos meus processos com aquilo que
desde 2015 se chamou depois Assessoria
Técnica Especializada, aqui através da
direção do juiz, sem hierarquia e sistemas
externos, fez-se luz.
Um caso de 2012
trouxe de forma inequívoca essa luz. Um
casal em conflito, criança confiada à mãe,
com visitas ao pai, que vivia a 200
quilómetros de Sintra. As visitas não
funcionavam, havia sempre impedimentos e
dificuldades, com pai e mãe a acusarem-se
mutuamente quanto às razões dos
incumprimentos. Por lapso, na primeira
conferência de pais, ordenou-se um
acompanhamento duplo, pela EMAT e pela
Assessoria Externa, com a nomeação da Dra.
Teresa Villas.
Marcou-se para
cinco meses depois nova conferência para
avaliação, com a presença das assessorias,
sem relatórios. A EMAT chamou os pais às
instalações do Instituto de Segurança
Social, recolheu declarações dos mesmos
sobre o momento presente, primeiro a mãe e
depois o pai, e emitiu um parecer a
favorável à posição da mãe. A Dra. Teresa
Villas, em sessões nas instalações do
tribunal, ouviu o pai e a mãe, primeiro em
separado e depois fez sessões em conjunto.
Ouviu também a criança, e alguns outros
familiares com intervenção no sistema
familiar paterno e materno. Avaliou as
razões da separação, e até a infância e
juventude de cada um dos pais. O diagnóstico
dela era absolutamente contrário à da EMAT.
De facto, o que estava a ocorrer era que
esta mãe não aceitava a separação com o pai
da filha, agora agravado porque ele tinha
uma nova relação conjugal, e por raiva
estava a vingar-se dele, usando a filha.
Desmascarada, a estratégia emocional
negativa presente, esta mãe mudou. O
conflito desapareceu. O distress que
a criança vivia também desapareceu. O
processo findou por acordo, na terceira
conferência de pais, cinco meses depois da
segunda.
Levaremos este
caso, e outros mais recentes, ao
II Congresso de Justiça Restaurativa em
Mafra no dia 30 e 31 de outubro de 2019,
porque mais do que teorias, as práticas
mostram-se fundamentais na desmonstração das
doutrinas e paradigmas que vivemos e nos
regemos.
Um processo
preparado para produção de prova pode ter só
entidades externas, e isso é associado à
função do juiz tradicional, distante,
passivo. O juiz e justiça do modelo
contencioso. Mas para se atingir a Justiça
nesta jurisdição este modelo contencioso é
em regra incapaz de dar a cada um o que lhe
cabe, que é o conceito de justo, como define
Platão em A República.
Analisando o
modelo atual fornecido pelas EMAT´s, o mesmo
está centrado no essencial apenas em
declarações das partes, sujeitas a
condicionantes e interpretações aleatórias,
e das naturais falências dos elementos
emocionais dos próprios técnicos socias,
afundados em trabalho, muito dele inútil,
vezes demais, por relatórios pedidos pelos
próprios tribunais. O resultado só pode ser
mau. Emitem-se depois juízos de valores e
pareceres sem qualquer realidade, subjetivos
e injustos para os avaliados. Não se analisa
o sistema familiar, não se estudam as
motivações das pessoas, que exige outro tipo
de análise, que passa também por terceiros,
como as escolas. Em regra, quase absoluta,
isto não é feito. O resultado é de facto mau.
Mau demais. Com esta prova, os juízes têm de
decidir mal. O inferno nos espera.
Com a experiência
que descrevi com a assessoria externa, a
proximidade com o caso, os pais, as
crianças, as escolas, avós, tios, etc., é
muito grande, atualmente em Mafra com
equipas multidisciplinares a trabalharem em
conjunto entre elas e com o juiz, e também
em articulação com as respostas instaladas
no Concelho, veremos com mais pormenor no
supra citado Congresso e também aqui em
futuros artigos, como é possível resultados
tão diferentes, e a propósito de uma notícia
recente de crianças na zona da Amadora, com
todos a trabalhar uns para cada lado,
segundo artigo de Maria João Marques no
Observador, as garagens serão apenas
isso, garagens. Todos criticam. Alguém
ajuda?[1]. E onde ficam as “crianças, meus
senhores?”, como diz a minha querida amiga
Professora Maria José Núncio em artigo
recente no jornal
Público.
Com outra
assessoria numa justiça procedimental
restaurativa é mais fácil ser justo, dar a
cada um o que é seu, e livro-me do inferno,
pelo menos do divino.
[1]
No próximo
mês vamos trazer um caso de ajuda e não
ajuda na mesma situação, e a diferença no
olhar sobre uma mãe as suas competências e
os efeitos que teve na criança a alteração
na intervenção.
.
Matar o casal conjugal, para fazer nascer o casal parental
Joaquim Manuel da Silva
No sistema de justiça, mais do que novas leis, e de reclamarmos por falta de meios, importa olhar para as nossas práticas. Na gestão, Peter Drucker [1], postula algo que nos parece fundamental, na diferença entre eficácia e eficiência, e tem a ver com tudo na vida, e na justiça igualmente:
“eficiência é fazer as coisas de maneira correta, eficácia são as coisas certas. O resultado depende de fazer certo as coisas certas”.
Isto é, pouco interessam grandes tratados, sentenças ou acórdãos, se as mesmas não forem eficazes. Mas também nos procedimentos e gestão dos recursos que temos ao nosso alcance. Primeiro é fundamental encontrar uma atuação eficaz, procurá-la e só depois ser eficiente com esse procedimento. Na função pública somos bons a ser eficientes e pouco interessados na eficácia, no resultado. Aliás se o cliente é “rei” no privado, pois as empresas vivem do lucro, dos seus clientes, todos sentimos que no setor público, vezes de mais, os nossos cidadãos que recorrem à justiça são assumidos “por aqueles que aborrecem”. Tivemos 18 anos no privado, os 10 últimos nos recursos humanos, e dois em organização e métodos. Quando viemos para a magistratura em 1999 tivemos muitas dificuldades em perceber muitos dos procedimentos. Se perguntarmos porque praticamos tantos atos inúteis, apesar das normas processuais em vigor [2], dirão, como na experiência “dos 5 macacos” [3], “não sei, as coisas sempre foram assim por aqui…”. Foi o que sentimos!
E de facto nesta jurisdição de Família e Menores a situação agrava-se, desde logo porque tem pouco de jurídico, é interdisciplinar, e os juristas não são preparados para esta intervenção, e desconhece-se o fim do processo. Se é apenas para decidir, nada ou pouco se altera ao nível do funcionamento do sistema familiar, pois sabemos hoje, de forma inegável, que comportamento tem um “Seth” quase todo inconsciente e paradigmático. Isto é, parte de um conjunto de convicções sobre a realidade. Já Kant [4] tinha afirmado isto, nós não temos acesso às coisas em si. Partimos sempre de sentidos e modelos cognitivos que interpretam a realidade, e formam sentimento, dizemos nós na senda de Damásio [5], e nessa medida para ser alterado importa antes de mais avaliar onde está em termos cognitivos ancorado esse paradigma interpretativos da realidade, e depois contribuir para o mexer nele, não sendo adequado, porque falta desde logo horizonte aos pais em questão.
Nessa medida, no quadro do protocolo em desenvolvimento no Juízo de Família e Menores de Mafra, e que levaremos a Congresso de 30 e 31 outubro de 2019 em Mafra, começamos sempre as conferências de pais a transmitir conhecimentos sobre a capacidade e competência parental, sobre estudos que revelam os efeitos no desenvolvimento infantil da exposição a ambientes adversos, chamadas feridas invisíveis [6], etc. Este trabalho começou a ser feito com pais com mais profundidade quando saímos do mero direito, onde se fazia o tradicional “partir pedra” com as nossas experiências pessoais (que não servem, porque cada sistema familiar é diferente), com pouca eficácia, e “mergulhamos” nos conhecimentos interdisciplinares, recorrendo-se nas conferências de pais ao apoio de apresentações de PowerPoint e vídeos; começamos por o fazer no gabinete, a cada casal parental; mas já em Mafra passou-se há cerca de um ano a fazer para grupos de pais, primeiro no gabinete, todos juntos, e atualmente na sala de audiências, onde outras pessoas podem assistir [7]. Os resultados são incríveis, positivos a todos os níveis. Os pais, muitos deles, 62%, só com este trabalho, com capacidade de insight alteram logo a sua visão e objetivos na relação que pretendem para o casal parental, isto é, projetam, e alguns concretizam o “matar o casal conjugal, para fazer nascer o casal parental”, porque amam os filhos como todos nós, e os efeitos no desenvolvimento a médio e longo prazo dos filhos sujeitos a estes ambientes stressantes é insuportável, pois compreendem que mantendo esses comportamentos conflituosos, os filhos terão muito provavelmente mais depressões e todo o tipo de doenças físicas, como cancro, AVC´s, doenças pulmonares, suicídios etc., como o demonstra estudo efetuado nos EUA desde 1995 [8].
Os pais gostam dos filhos como nós, não sabem é o que estão a fazer, como já referido, pois a marca emocional negativa do fim da conjugalidade é intensa (só há um evento mais grave: a morte de um filho [9]), e fica no inconsciente, definindo o sentimento negativo entre os pais, e ativará de forma quase absoluta inúmeros conflitos sobre tudo, e em particular também na parentalidade. Daí a frase de que é necessário sempre “matar o casal conjugal”, pois sem isso nunca existirá um casal parental, e só ele é gerador de base segura aos filhos, coração do desenvolvimento [10].
Dois casos meramente exemplificativos e recentes, que estão dentro dos ATE (Assessoria Técnica Especializada) [11], interna, das EMAT (Equipas Multidisciplinares de Apoio Técnico aos Tribunais), onde temos 20% do trabalho, e terminados apenas há semanas. Primeiro: Pais em conflito, criança de 5 anos em sofrimento. Fixada residência alternada em 2018 por acordo, e voltaram por o conflito permanecer. Não se entendiam sobre nada. Muito distress. Primeira conferência do novo processo em janeiro de 2019, e tínhamos tido uma conferência anterior, de um processo longo, mais de 10 anos, que está connosco desde 2017. Falei-lhes dele, um pai a morrer com uma doença autoimune, uma mãe de baixa e deprimida há mais de dois anos, vários familiares mortos por cancro, e agora até a criança tinha sido diagnosticada com um problema cárdeo. Claro, sendo invisíveis, não podemos afirmar perentoriamente que tudo isto é causado por este conflito de mais de uma década, mas ninguém duvida que terá contribuído, na senda do que o demonstra a nova biologia [12], que afirma que os nossos genes são neutros, sendo a sua expressão fruto muito mais do ambiente em que vivemos, passamos à epigenética. Mas voltemos ao caso. Em janeiro ordenamos que fossem acompanhados em ATE. Marquei a conferência para continuação, que ocorreu como referido há duas semanas; a técnica nomeada para o ATE disse logo que quando chegaram os pais já estavam amigos, e permaneceram. Eles de seguida confirmaram. O que os mudou? Disseram os pais, foi termos demonstrado que as feridas invisíveis um dia tornam-se visíveis através daquele caso suprarreferido, e logicamente não queriam aquilo para eles e para a sua filha querida. Mudaram os objetivos no seu relacionamento, tiveram cuidado com a comunicação, e o sentimento de ambos mudou. Ontem inimigos, hoje um casal parental amigo, gerador de base segura para a filha se desenvolver como tem direito. Estava difícil tirá-los o meu gabinete, de tão agradecidos que estavam.
Segundo: uma adolescente que na primeira conferência há cerca de 6 meses me disse que não acreditava que os pais mudassem a sua relação, foi sempre assim durante toda a vida, disse, pois era pequena quando os pais se separaram. Foi efetuado o trabalho supra exposto de transmissão de conhecimentos e ordenou-se a realização de ATE; seis meses depois na conferência designada para avaliar a evolução do caso, também neste caso a técnica da EMAT nos disse que os pais logo mudaram, que foi fácil fazer o ATE, e a criança, a adolescente, disse-nos: “não sei o que fizeste, mas os meus pais são agora amigos como nunca vi”, acompanhando esta verbalização com expressão emocional de enorme felicidade.
De facto, estes
resultados, em que estes dois casos, são
apenas meros exemplos de tantos outros,
permitem grande eficácia à ATE, pois muda-se
o sentimento ao alterar ou mexer nos
pressupostos onde os pais ancoravam o seu
comportamento, num modelo que aplicamos e
está na base deste protocolo, bem descrito
por Lair Ribeiro [13] da seguinte forma:
pensamentos geram sentimentos, que geram
comportamentos, dado que o organismo humano
responde primordialmente às representações
cognitivas sobre o seu meio e não ao seu
meio; estas representações cognitivas
encontram-se funcionalmente relacionadas com
os processos e parâmetros da aprendizagem,
que é no essencial mediada cognitivamente,
isto é, pensamentos, sentimentos e
comportamentos são causalmente interativos.
Os processos de alteração das responsabilidades parentais e de incumprimento, respetivamente supra descritos, foram arquivados por inúteis, não era preciso alterar nada, não havia já qualquer incumprimento. Os processos, no entanto, alteraram o sistema familiar das crianças, devolvendo-lhes a sua família, apesar da separação dos pais.
É isto a justiça restaurativa, no protocolo que continuaremos a descrever em futuros artigos, um caminho que procura eficácia, e depois eficiência, estudando o comportamento humano e depois adaptando o processo a esse fim.
Joaquim Manuel da Silva,
Juiz de
Direito colocado no Juízo de Família e Menores de Mafra, Comarca de Lisboa Oeste. E-mail:
joaqmds@hotmail.com
II Congresso de Justiça Restaurativa da Família e das Crianças, 30 e 31 de outubro 2019
[2] O artigo 130.º do Código de Processo Civil (art.º 137.º CPC 1961), com a epigrafe “Princípio da limi-tação dos atos”, dispõe que “Não é lícito realizar no processo atos inúteis”.
[3] Como nascem os Paradigmas - Grupo Macacos Experiência Banana & Água. Vídeo. [Online]. [Citado: 2015-05-18]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=_ZSSyI3my38
[4] KANT, Immanuel (2008) – Crítica da Razão Pura. Acrópolis. Versão PDF. [Online]. eBooksBrasil.org. [Online]. [Citado: 2015-09-17]. https://www.marxists.org/portugues/kant/1781/mes/pura.pdf
[5] DAMÁSIO, António (1995) – O erro de Descartes: emoção, razão e cérebro humano. 14.ª Ed. Lisboa: Europa-América. ISBN 9721039446. DAMÁSIO, António (2004) – Ao encontro de Espinosa: as emoções sociais e a neurologia. 6.ª Ed. Lisboa: Europa-América. ISBN 972105229-9. DAMÁSIO, António (2004) – O sentimento de si: o corpo, a emoção e a neurobiologia da consciência. 15.ª Ed. Lisboa: Europa-América. ISBN 972104757-0. DAMÁSIO, António (2013) – E o cérebro criou o homem. Brasil, S. Paulo: Editora Schwarcz, SA. ISBN 8535919615. DAMÁSIO, António (2017) – A Estranha Ordem das Coisas. A vida, os sentimentos e as culturas humanas. Portugal: Editora Temas e Debates. ISBN 9896443344
[6] Feridas invisíveis: um importante estudo constata que as crianças que foram maltratadas psicologicamente sofrem efeitos que são iguais ou maiores do que as crianças que foram abusadas física ou sexualmente. [Online]. American Psycological Association [citação: 2015-08-31]. http://www.apa.org/monitor/2015/07-08/ce-corner.aspx
[7] Tem havido posições que afirmam até nos processos que esta organização das conferências de pais, com mera transmissão de conhecimentos no início viola o princípio da reserva da vida privada daqueles pais, quando as pessoas nada dizem sobre a sua vida, apenas recebem conhecimentos, posições que são a expressão do imobilismo e conservadorismo, ancorado na emoção básica medo, hábito e homeostase, que em futuras oportunidades melhor abordaremos.
[8] HARRIS, Nadine Burke (2014) - How childhood trauma affects health across a lifetime. TEDMED 2014 · 15:59 · Filmed Sep 2014. [Online]. [Citado: 2015-04-21], estudo que é sempre revelado nas conferências de pais no modelo exposto. https://www.ted.com/talks/nadine_burke_harris_how_childhood_trauma_affects_health_across_a_lifetime?hootPostID=d1fdf4c45f85b2d74d193373eb6e9a44#t-301884 , e em http://www.childtrends.org/wp-content/uploads/2014/07/Brief-adverse-childhood-experiences_FINAL.pdf
[9] LAMELA, Diogo. 2009. Desenvolvimento após o divórcio como estratégia de crescimento humano. [Online] 2009. [Citação: 3 de março de 2015.] Rev. Bras. Crescimento Desenvolvimento Hum. 2009; 19(1): 114-121. http://www.revistas.usp.br/jhgd/article/viewFile/19908/21984
[10] Vide nesse sentido observe-se esta experiência com primata, que demonstra onde há exporação criativa, e com ela desenvolvimento: HARLOW, Har-ry F. (1963-1968). Harlow e os macacos RHESUS. [Online]. [Citado: 2015-05-18]. http://psicologiaexperimental.blogs.sapo.pt/1627.html
[13] ATE, assessoria técnica especializada, prevista no artigo 38.º do RGPTC, onde cabe todo o tipo de me-todologias, como as usadas na mediação, terapias cognitivas, comportamentais ou ocupacionais, por exemplo, e visa acordo entre os litigantes, mas aqui apenas é eficaz com mudanças de comportamento relacional entre o sistema familiar maternal e pa-ternal, como explicado.
[12] LIPTON, Bruce (sd) - A Biologia da Percepção. Youtube: Video. [Online]. [Citado:2018-05-03]. https://www.youtube.com/watch?v=4OQ3lR1tWaY
[13] RIBEIRO, Lair (sd) – Como ter sucesso querendo e conseguindo completo. Vídeo, YouTube. [Online]. [Citado: 2014-11-27]. https://www.youtube.com/watch?v=9xogOnrn1jA
Justiça com abraço de uma criança
Joaquim Manuel da Silva
É com uma inefável felicidade e honra que respondo ao pedido que me foi feito neste espaço comunicacional. Abordar temas do sistema da justiça em geral, mas em especial da jurisdição de família e menores. Fruto de uma experiência de mais de 15 anos, tenho procurado outras respostas dos tribunais nesta área, que devolva a família às crianças, apesar da separação dos pais, e que torna a realidade das crianças e do sistema familiar como descrevi há dias no Facebook, sem as identificar, pela beleza e o que ela representa para a sociedade, do seguinte modo:
O que está subjacente a esta prática e procedimento do Tribunal que leva a estes resultados, e que até a mim me surpreendem? Que conhecimentos teóricos sustentam esta prática, e lhe dão estes resultados, que felizmente é apenas um mero exemplo de tantos outros no nosso dia a dia.
Nesta reflexão pessoal e profissional tenho nos últimos anos efetuado várias intervenções públicas (orador em conferências, artigos, um programa de Rádio, mensal na RCM - Tribunal de Família -, etc.), com o objetivo de todos pensarmos o sistema, e também nesse esforço organizamos em Mafra o primeiro congresso de JUSTIÇA RESTAURATIVA nos dias 30 e 31 de outubro de 2017, onde tivemos 530 participantes e um leque amplo de oradores sobre temáticas muito relacionadas como os tutelares cíveis (alienação parental, mediação, gestão eficaz do conflito parental, etc.).
Iremos agora organizar a segunda edição deste evento, também a 30 e 31 de outubro, deste ano 2019, que terá vagas para 750 participantes, agora dedicada à Promoção e Proteção de Crianças em Perigo, com programa provisório já divulgado nas redes sociais , e que representa uma evolução de todo este trabalho, que tem subjacente uma filosofia de abertura e de trabalho com grande proximidade com as forças vivas da área territorial respetiva, no caso no concelho de Mafra, e que envolve por exemplo respostas sociais do poder local, escolas e modelos, equipamentos sociais instalados, etc. Far-se-á também uma reflexão sobre o conhecimento científico que está por detrás desta intervenção, mas que terá como central a demonstração em casos concretos dos fatores decisivos do sucesso da intervenção, e explicam e aprofundam cada vez mais a eficácia de uma intervenção aberta e interdisciplinar, em grande proximidade e interligação com o meio e as respostas nele existentes, e que nos próximos artigos neste espaço irei aprofundar.
* Este texto é publicado
conjuntamente no
aspectus.online e no
postal.pt
Juiz de Direito colocado no Juízo de Família e Menores de Mafra, Comarca de Lisboa Oeste. E-mail: joaqmds@hotmail.com