
Contemplações
Francisco Gil
O Beijo: A tragédia de Francesca e Paolo
Em 1880, Rodin recebe a primeira
encomenda do Estado: criar um projeto
escultórico para as portas de entrada
do Museu de Artes Decorativas de Paris.
As dimensões da grande porta são de
1,80 m de altura. O escultor terá
assumido a ideia de que, dentro de
algumas décadas este, será o seu
inferno pessoal, voluptuoso e
agonizante, uma ideia que está
enterrada sob uma tonelada de esboços,
esculturas fundidas, composições
rejeitadas. Rodin escolheu como fonte
de histórias "A Divina Comédia" de
Dante para o impressionante projeto das
PORTAS DO INFERNO.
A escultura,
hoje conhecida como “O beijo” (Le
Baiser), foi uma das esculturas
excluídas do projeto das Portas do
Inferno, que originalmente foi pensada
para a coluna da direita. Rodin
decidiu não a incluir na composição
final, mas apresentou-o ao público em
1877 como uma escultura autónoma. A
obra teve um sucesso imediato e foi
reproduzida em mármore e bronze em
vários tamanhos. No entanto, Rodin
considerou-a demasiado tradicional,
chamando ao Le Baiser “uma
grande bugiganga esculpida segundo a
fórmula habitual". O título da obra, "O
beijo" foi batizado pelos críticos
posteriormente, pois para o autor era a
história do Inferno de Dante sobre
“Francesca de Rimini”. Francesca era a
mulher do governador de Rimini,
inflamada de paixão pelo seu cunhado
Paolo. Ambos, ao lerem a história
voluptuosa do cavaleiro Lancelot com
Guinevere, não resistiram ao beijo
apaixonado.
Francesca e Paolo
são os protagonistas do Canto V do
Inferno (primeira parte da “Divina
Comédia” de Dante Alighieri, Séc. XIV).
Francesca era filha de Guido il Vecchio
da Polenta, senhor de Ravena, que se
casou com Gianciotto Malatesta, o filho
manco do senhor de Rimini. Paolo era
irmão de Gianciotto e foi capitão em
Florença em 1282. Segundo o relato de
Dante, Francesca teve um caso adúltero
com o cunhado Paolo, e depois de
surpreendidos pelo marido, foram ambos
assassinados.
No episódio
infernal, é Francesca quem fala
sozinha, enquanto Paolo se cala e chora
no final do relato da amante. As duas
almas voam lado a lado na tempestade
infernal que arrasta os luxuriosos e
Dante pede autorização a Virgílio para
falar com elas; Francesca começa por se
apresentar e recorda o assassínio que
sofreu às mãos do marido, explicando a
causa do seu pecado, nomeadamente a
leitura do romance entre Lancelot e
Guinevere que os levou a envolverem-se
num caso amoroso.
A história de
Paolo e Francesca, é a história eterna
de um casamento arranjado, destruído
posteriormente por uma paixão ardente.
Uma paixão inocente, um romance
falhado, desproporcionado, injusto,
cruel. Rodin, como sempre, encontra
nesta história o ponto a partir do qual
o estático é de facto o elemento e aí,
a escultura torna-se dinâmica. É o
tempo de um centésimo de segundo antes
do beijo fatal – os amantes cujos
lábios, nesta escultura, não estão
fechados. É a representação do momento
mais excitante de qualquer história de
amor terrena e o seu castigo eterno. A
história completa.
A escultura
no século XIX – a mais conservadora de
todas as artes, consegue num breve
momento soltar-se das amarras do puro
academismo que durante séculos impôs as
suas regras. A liberdade criativa, que
cresceu com os impressionistas do Salão
dos Recusados, tem em Rodin um dos seus
primeiros escultores a tentar quebrar
as antigas regras. Um Rodin
escandalosamente explícito para a sua
época. Antes de Rodin, na escultura não
se retratavam casais apaixonados. Rodin
liberta o corpo feminino, permitindo
que ele tenha uma capacidade especial
de desfrutar da paixão. As figuras
entrelaçadas garantem que esta obra
seja esteticamente agradável de todos
os ângulos. Rodin referiu que optou por
manter as figuras nuas para que nada
pudesse interferir com a emoção crua
que queria que o espetador sentisse
imediatamente.
A paixão e o
romance de “O Beijo” são inegáveis; as
figuras estão tão envolvidas uma na
outra que os seus rostos mal são
visíveis. O abraço apaixonado torna
ainda maior a tragédia do seu amor e
Rodin recorre a temas que todos os
públicos podem apreciar de uma forma
simultaneamente romântica e sensual.
Embora ambas as figuras estejam nuas, a
habilidade de Rodin como artista
assegurou que a forma como as figuras
foram representadas não fosse
abertamente sexual. Alguns críticos
ficaram surpreendidos com a ausência de
trajes ou cenários que colocassem os
amantes como os da Divina Comédia de
Dante. No entanto, Rodin queria que a
emoção da cena fosse a única coisa que
as pessoas considerassem ao ver a
escultura e, por isso, optou por
apresentar o casal nu.
O Beijo
foi originalmente esculpido por um dos
assistentes de Rodin, Jean Turcan, mas
Turcan deixou a oficina de Rodin antes
de a obra estar concluída. Isto
significa que a cópia original de "O
Beijo" estava grosseiramente acabada,
mas Rodin optou por deixá-la assim em
vez de a mandar trabalhar por outro dos
seus outros assistentes. Se Auguste
Rodin foi alvo de críticas durante a
sua distinta carreira, não foi por uma
das suas obras mais queridas, O Beijo.
De facto, o próprio Rodin foi o crítico
mais severo desta obra.
Rodin
expôs “O beijo” em simultâneo com o seu
Monumento a Balzac em 1898 porque sabia
que esta forma mais clássica de
escultura seria bem recebida pela
crítica e pelo público e porque queria
atenuar a atenção que o seu Monumento a
Balzac, mais abstrato, iria atrair. As
previsões de Rodin estavam corretas e,
embora o Monumento a Balzac tenha sido
muito criticado, “O beijo” foi muito
bem recebido.
Apesar de “O
beijo” ter sido um sucesso, o próprio
Rodin não lhe deu muito valor.
Escreveu: "O abraço de “O beijo” é, sem
dúvida, muito atraente. É um tema
frequentemente tratado na tradição
académica, um assunto completo em si
mesmo e artificialmente isolado do
mundo que o rodeia; é um grande
ornamento esculpido de acordo com a
fórmula habitual e que concentra a
atenção nas duas personagens em vez de
abrir amplos horizontes aos devaneios".
Em diferentes alturas, mesmo no
século XX, "O beijo" foi colocado numa
sala separada do Museu e só foi deixado
ao público com uma autorização
especial. Começou a viver à parte das
“portas do inferno”.
- Ano V • 2023