Ouvir na Noite a Maresia


Gastão Cruz: Poeta do Real
Augusto Miranda

Gastão Cruz, poeta nascido em Faro, acompanha o Grito Claro de Ramos Rosa em 1958. Diria este, mais tarde, que a “poesia de Gastão está embebida na sua percepção da hostilidade do mundo, fruto de uma extrema tensão em que a afirmação vital se efectua através da própria negatividade”. A “Morte Percutiva”, na aventura dos cinco poetas da Poesia 61, ”Hematoma” e “Doença”, obras iniciais, reflectem exactamente essa sua percepção, então de um país doente, cercado, onde os movimentos são vigiados ou mesmo proibidos, como ele próprio diz nos “Poemas Reunidos”, de 1999. Começa aqui a sua procura incessante de adequar as palavras às coisas, numa construção verbal cada vez mais rigorosa, em que a palavra quer saltar para o real de que é retirada, com ele se confundindo. Fá-lo quando na sua vasta obra fala do amor, do mar, da sua ria, do campo, das coisas, do mundo, do homem, dos poetas, dos amigos e da sua perda... A sua incursão no teatro e na encenação da coisa poética reflectem essa vontade de confundir a poesia com o que em nós há de mais íntimo, a nossa vida.

E a sua poesia é um hino à vida.


Ramos Rosa, o poeta da liberdade livre
Augusto Miranda

Da sua Obra muito se disse e muito há a dizer. Muitos viveram de perto com Ramos Rosa, partilhando a sua aventura poética e literária. Outros, pelo seu percurso académico e porque a entenderam, tiveram a sua obra por perto, dela fazendo o seu objecto de estudo em variados trabalhos universitários de Mestrado e de Doutoramento.

Quando em 1998, a 8 de Janeiro, tomei posse como Vereador da Cultura da Câmara Municipal de Faro, um dos projectos presentes tinha a poesia como eixo principal.

A Memória da grande tradição da poesia árabe, com Ibn Ammar, Al Mutamid, Assantamari, que Adalberto Alves nos fez recordar; o Cancioneiro de Afonso X, onde Faro aparece representada; João de Deus e Júlio Dantas do Séc. XIX; o Heraldo e os Futuristas, no primeiro quartel do Séc. XX, Cândido Guerreiro, Emiliano da Costa e, já na década de cinquenta, o “Grito Claro” e os “Cadernos do Meio Dia” de Ramos Rosa, Casimiro de Brito, Gastão Cruz, Lia Viegas, Luísa Neto Jorge…,nomes que marcaram de forma indelével a poesia portuguesa na segunda metade do Séc. XX.

Ramos Rosa, aparentemente longe de tudo e de todos, remetido à sua condição de explicador de Francês, dá passos firmes na afirmação da sua universalidade, fruto da relação que, apesar da sua juventude, vinha estabelecendo com as modernas correntes da poesia europeia, em particular com a cultura francesa, à época relevante em tudo o que na europa das artes e da cultura ia acontecendo. O Maio de 68 só podia aparecer em França.

Foi este propósito que nos fez crescer a aventura dos “OUTONOS da POESIA”, sob o lema de António Pereira, poeta de Armação de Pera, “A minha rua tem o mar ao fundo…”.

Não foi por acaso que os Outonos da Poesia aconteceram em Outubro. Quisemos que assim fosse porque António Ramos Rosa nasceu em Faro a 17 de Outubro e quisemos assinalar essa data com o encerramento da primeira edição com uma homenagem ao Poeta. O seu nome foi proposto para patrono da Biblioteca Municipal, cuja primeira pedra foi lançada nas festas do Dia da Cidade em 7 de Setembro de 1999.

Os Outonos da Poesia culminaram um trabalho de que foram elaboradas Actas. Faro, como disse Casimiro de Brito numa das suas sessões, reconciliou-se com os seus poetas.

E Faro envolveu-se nessa caminhada. A AJEA (Associação de Jornalistas e Escritores Algarvios) e os seus associados, a Acta, companhia de teatro, os poetas populares, os jovens do Tretas, do Liceu, da Tomás Cabreira, da Pinheiro e Rosa, o Grupo de Teatro Lethes, o Grémio dos Artistas, o Ginásio de Faro, o Club Farense e a Banda Filarmónica, mas também a Universidade do Algarve, a Delegação Regional da Cultura e o PEN Club Português, com os seus “Jornais Falados da Poesia”. Pontificámos no Aliança, no Lethes, no Instituto Português da Juventude, no Museu Municipal, na Biblioteca, nas Pirâmides, na Praça dos Poetas…

António Grosso, Luís Vicente, Filipe Ferrer, Eurico Gonçalves, António Pedro Cerdeira, Maria Emília Correia, Sindicato da Poesia de Braga, a Noite, de Coimbra…,aproximaram-nos das palavras dos poetas que nos trouxeram. Do Séc. XI ao Séc. XX, soubemos dar a palavra aos que da “lei da morte se vão libertando”.

Seguiu-se a Bienal de Poesia e o Grande Prémio Nacional António Ramos Rosa que teve como vencedores Fernando Echevarria, Fernando Guimarães, João Rui de Sousa e Nuno Júdice. Ramos Rosa foi sempre o inspirador desta nossa tarefa. Fizeram questão de estar connosco tantos e tantas para quem Ramos Rosa era uma figura incontornável das Letras.

Referirei, para além dos premiados atrás mencionados, Casimiro de Brito, comissário das Bienais, Gastão Cruz, Teresa Rita Lopes, Fernando Pinto do Amaral, Alberto Vieira, Inês Pedrosa, Ana Hatherly, Eduardo Lourenço, Paulo Teixeira, António Manuel Venda, Fernando J. B. Martinho, Manuel Frias Martins, João Barrento, Armando Silva Carvalho, Jacques Darras, Esther Tellermann, Pierre Léglise Costa, …

Nos contactos com todos, em todos vi a enorme admiração pela universalidade, generosidade, despojamento, incessante procura de nova estética poética, reconhecida nesse ser inteiro que Ramos Rosa sempre foi. E foi-o, nessa procura isolada, silenciosa, quase obsessiva, pelo sentido primordial da poesia e das palavras, despojadas das emoções de quem as escreve. Uma insatisfação permanente na procura do ideal, tão bem expressa nos seus milhares de esquiços do tal rosto feminino a cuja beleza definitiva aspirava. Ia assinando alguns que partilhava com a família e os amigos…

Recordo dos contactos com António Ramos Rosa também a sua enorme humildade. Quando lhe pedi um poema para o mural da Biblioteca, leu-mo com a sua voz trémula ao telefone. Pediu-me a minha opinião. Quem era eu para lha dar? Mas queria-a, como se disso dependesse a sua assinatura no mesmo. Ele, o homem da “liberdade livre”, despojando-se, porque a Biblioteca não era sua. Era de todos e para todos, como disse no dia da sua inauguração em Abril de 2001.

É a memória deste homem inteiro que importa perpetuar. Daqui deixo um apelo para que o Prémio Nacional António Ramos Rosa, em boa hora retomado pelo actual executivo Municipal, seja uma marca bienal desta cidade que o viu nascer. A cidade merece e a memória de António Ramos Rosa exige-o.

Faro, o Algarve e a sua luz estão presentes na poesia de Ramos Rosa.

Ouvir na noite a maresia

Ouvir na noite a maresia e ver o arco inteiro dos astros
é pertencer inteiramente ao grande harmónio do universo
Mas nós vivemos em quartos poeirentos
e já não vemos as constelações ofuscadas pelas luzes da cidade
O silêncio já não tem a placidez planetária
de um grande bálsamo de sombra universal
Lembro-me ainda na minha terra solar
de me estender ao comprido no ladrilho do terraço de frente para as estrelas
e o firmamento inteiro abria-se num vasto leque tranquilamente cintilante
Ondulava na grande embarcação do universo
e respirava o seu vagaroso e rescendente pulmão
Ninguém navega já assim no espaço
e por isso se perdeu a fértil lentidão da terra
Se o poema é um búzio em que ressoa a maresia do mundo
poderá ele suscitar o desejo de pertencer à terra
como uma árvore que se inclina sobre as ondas
ou uma torre vegetal de sombras embriagadas pela brisa marinha?”

António Ramos Rosa.