Contemplações
Francisco Gil
Cabeça de Touro
A escultura mais importante de Picasso
feita com objetos pré-existentes e
uma das obras-primas da arte do século
XX é a Cabeça de Touro,
realizada em Paris,
em 1942.
O artista, fiel aos
princípios da identidade e da
descontextualização simultânea de
objetos reais, reuniu dois elementos,
um selim de couro e, sobre ele, o
guiador invertido da mesma bicicleta de
corrida. Com estes, configurou a cabeça
do animal com um realismo exato. Os
testemunhos de Picasso explicam o
processo e o significado da escultura.
A importância destes, devido à clareza
do artista, à profundidade e à força
das suas reflexões, relega as
interpretações para um papel
secundário.
«Um dia, encontrei
numa pilha de objetos desordenados um
velho selim de bicicleta mesmo ao lado
de um guiador ferrugento. Como que num
relâmpago, juntei as duas coisas. A
ideia para esta cabeça de touro
surgiu-me por si só. Simplesmente
soldei-os. O que o bronze tem de
maravilhoso é o facto de poder dar aos
objetos mais heterogéneos uma tal
unidade que, por vezes, é difícil
identificar os elementos que o compõem,
dos quais é composto. Mas também é
perigoso: se só conseguíssemos ver a
cabeça do touro e não o selim da
bicicleta e o guiador, esta escultura
perderia todo o interesse.»
As
palavras de Picasso esclarecem a
inversão do sistema. Ele não procedeu
com base numa referência cujas
propriedades formais impusessem o
sentido da investigação, ele associou
os objetos a um conceito cuja
aproximação alcançou através do impulso
do jogo e o resultado é a representação
do mesmo de um ponto de vista realista,
mas contrário ao princípio da
individuação, porque não define
qualidades concretas, e sendo uma
escultura real é a representação de uma
ideia. A complexidade intelectual é
máxima. Não se trata de uma simples
ocorrência.
Picasso produziu uma
escultura de um realismo insuperável
que não representa a realidade, mas o
conceito desta, a sua definição verbal
ou a ideia mental que produz. O
princípio da individuação não pode
exercer a sua tirania excludente, pois,
como defendia Picasso, a objetivação
não fechava as possibilidades, uma vez
que, em última análise, ele queria que
os objetos que a compõem mostrassem a
sua realidade na própria escultura, ou
seja, Picasso queria que o espectador
visse ou a cabeça do touro ou o selim e
o guiador ou vice-versa.
Depois de
concretizar a obra, disse: «Foi bom!
Mas o que eu devia ter feito
imediatamente era deitá-la fora. Depois
alguém teria passado e apanhado. Talvez
essa pessoa se tivesse apercebido que
com aquela cabeça de touro podia
utilizá-la como uma sela e um guiador. E tê-lo-ia
feito. Teria sido extraordinário. É o
dom da metamorfose.»
A Cabeça de
Touro de Picasso é a escultura que
culminou a variante do sistema em que
ele associava combinações de formas
pré-existentes com as imagens mentais
dos conceitos que lhe serviam de
referência. O resultado foi uma
escultura realista, livre das condições
de estilo, sempre pronta a transcender
essa realidade e a transformar-se de
novo numa combinação de objetos que,
como tal, têm um uso correspondente.
Reconvertidos e oferecidos de forma
imediata e direta, a relação binária
manifesta-os com uma grandeza raramente
igualada. A monumentalidade é
excecional; a simplicidade é
diretamente proporcional. Isto
distingue-o das escolhas naturalistas
dos seus contemporâneos.
Leituras adicionais:
Walter, I. F. (1992). Pablo Picasso. El genio del siglo. Taschen.
Gilot, F., & Lake, C. (2010). Vida con Picasso, Editorial Elba.
- Ano V • novembro 2023