Contemplações
Francisco Gil
Formas Únicas de Continuidade no Espaço
- Partilhar 29/11/2023
Em 20 de Fevereiro de 1909 foi lançado
pelo poeta italiano Felippo Tommaso
Marinetti, no jornal francês Le
Figaro, o Manifesto Futurista.
Este foi o ato inicial para dar início
à criação de um movimento de cunho
artístico e literário denominado
Futurismo.
Os futuristas pretendiam que a arte
rompesse com os estilos clássico e
renascentista ainda dominantes em
Itália no início do século XX. Para
alguns, a obra Formas Únicas de Continuidade
no Espaço (Forme uniche della continuità nello spazio,
1913) de Umberto Boccioni (1882-1916) mostra uma figura a
caminhar para o futuro. As suas
superfícies ondulantes parecem
transformar-se diante dos nossos olhos.
Cerca de cinquenta anos depois de
Charles Darwin ter introduzido a teoria
da evolução e cerca de trinta anos
depois de Nietzsche ter descrito o seu
"super-homem" (Übermensch), no livro Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra), Umberto Boccioni esculpiu
em 1913, um
homem do futuro: musculado, dinâmico e
impulsionado.
O movimento como
forma
O rosto da escultura
está oculto numa cruz, sugerindo um
capacete, uma referência apropriada
para os futuristas ávidos de guerra. A
figura parece não ter braços, embora
formas semelhantes a asas pareçam
emergir das costas ondulantes. No
entanto, estas saliências não fazem
necessariamente parte da própria
figura, uma vez que Boccioni esculpiu
tanto a figura como o seu ambiente
imediato. O ar deslocado pelo movimento
da figura é apresentado em formas não
diferentes das do corpo real. Veja-se,
por exemplo, as formas como que chamas
de fogo que começam nos gémeos e mostram
o ar a afastar-se do corpo em
movimento.
A ideia de esculpir o
ambiente à volta de uma figura é
expressa na obra de Boccioni "Manifesto
tecnico della scultura futurista"
(1912) e mostra a influência do
escultor Medardo Rosso, um italiano
contemporâneo de Auguste Rodin que
trabalhou em Paris (e que se tornou
mais popular em Itália neste período
graças aos esforços do então futurista
Ardengo Soffici). Rosso realizou bustos
impressionistas em gesso ou bronze,
cobertos de cera, de pessoas em Paris,
nos quais as figuras se fundem no
espaço que as rodeia, como se pode ver
nas suas Impressioni di boulevard. Donna con veletta, 1893.
A obra Formas Únicas de Continuidade no Espaço foi também
comparada ao
L'homme qui marche sem braços de
Rodin, de 1907.
Formas Únicas faz
parte de uma série de esculturas de
figuras a caminhar que Boccioni criou
em 1913. Até 1912, Boccioni tinha sido
pintor, mas depois de visitar Paris e a
observação de inovações escultóricas
como as experiências cubistas
tridimensionais de Braque em papel,
Boccioni ficou fascinado pela escultura.
As suas esculturas de passos largos
continuaram o tema do movimento humano
visto nas suas pinturas, como
Dinamismo de um Jogador de Futebol, 1913.
O
movimento era um elemento-chave para
Boccioni e para os outros futuristas,
uma vez que a tecnologia dos
transportes (carros, bicicletas e
comboios avançados) permitia às pessoas
experimentar velocidades cada vez
maiores. Os artistas futuristas
retratavam frequentemente veículos
motorizados e as percepções que estes
possibilitavam - a visão desfocada,
fugaz e fragmentária criada por esta
nova velocidade.
Quebrando as
próprias regras
Ao contrário do
colega futurista Giacomo Balla, que
utilizava formas repetidas para
representar o movimento, em trabalhos
como
Dinamismo di un cane al
guinzaglio (Dinamismo de um cão com trela, 1912), Boccioni sintetizou diferentes
posições numa figura dinâmica. Embora
Formas Únicas de Continuidade no Espaço
seja a escultura futurista mais famosa,
há alguns aspectos da obra que não se
enquadram perfeitamente nas declarações
do artista. Por exemplo, três anos
antes de fazer esta escultura, Boccioni
e os outros artistas futuristas tinham
proibido a pintura de nus por estarem
irremediavelmente presos à tradição - e
Formas Únicas é um nu masculino, embora
oculto através de músculos
exagerados e possivelmente protegendo a
cabeça com um capacete.
Boccioni
também quebra as regras do seu
"Manifesto tecnico della scultura futurista", onde declara que a
escultura futurista deve ser feita de
linhas fortes e rectas: "A linha reta é
a única forma de alcançar a pureza
primitiva de uma nova estrutura
arquitetónica de massas ou zonas
escultóricas". Claramente, Boccioni ainda
não tinha reconhecido o potencial para
as curvas dinâmicas tão poderosamente
expressas nesta sua obra. O seu manifesto também
afirma que a escultura não deve ser
feita a partir de um único material ou
de materiais tradicionais como o
mármore ou o bronze.
Bronze ou
gesso?
Boccioni produziu várias
esculturas de meios mistos e a original
Formas Únicas de Continuidade no Espaço
era, como a maioria das suas
esculturas, feita de gesso. As versões
em bronze que nos são tão familiares
são moldes feitos muito depois da morte
do artista, em 1916. A escultura
original em gesso branco, que está
em São Paulo, Brasil, no Museu de Arte Contemporânea
- MAC, tem um aspeto mais
transitório e delicado do que os moldes
de bronze posteriores e é, por isso,
muito mais adequada ao Futurismo, uma
vez que muitos Futuristas afirmavam
querer que as suas obras de arte fossem
destruídas por artistas posteriores mais
inovadores, em vez de serem preservadas
num museu.
Formas Únicas de Continuidade no Espaço
aparece na
moeda italiana de 20 cêntimos de euro e
é simultaneamente o símbolo mais famoso
do Futurismo e um lembrete de que o
próprio movimento era dinâmico e nem
sempre seguia as suas próprias
declarações. Os futuristas procuraram
eliminar o legado da história da arte
para que o futuro pudesse surgir mais
rapidamente, mas Formas Únicas tem sido
frequentemente comparada à antiga
Vitória de Samotrácia e à Apolo e Dafne
de Gian Lorenzo Bernini. Os futuristas
queriam destruir os museus, mas no
final, o seu trabalho foi acrescentado
ao cânone da escultura italiana.
"Museus: absurdos matadouros de
pintores e escultores, que se vão
trucidando ferozmente a golpes de cores
e linhas, ao longo das paredes
disputadas!" – F.T.
Marinetti, "Manifeste du Futurisme", 1909.
Umberto Boccioni,
Formas Únicas de Continuidade
no Espaço, 1913, 111,2 x 88,5 x 40 cm (Museu de Arte Contemporânea, MAC - Universidade de São Paulo,
Brasil)
Adaptado de um texto de Rosalind McKever.
- Ano V • novembro 2023