Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Formas Únicas de Continuidade no Espaço

Em 20 de Fevereiro de 1909 foi lançado pelo poeta italiano Felippo Tommaso Marinetti, no jornal francês Le Figaro, o Manifesto Futurista. Este foi o ato inicial para dar início à criação de um movimento de cunho artístico e literário denominado Futurismo. Os futuristas pretendiam que a arte rompesse com os estilos clássico e renascentista ainda dominantes em Itália no início do século XX. Para alguns, a obra Formas Únicas de Continuidade no Espaço (Forme uniche della continuità nello spazio, 1913) de Umberto Boccioni (1882-1916) mostra uma figura a caminhar para o futuro. As suas superfícies ondulantes parecem transformar-se diante dos nossos olhos. Cerca de cinquenta anos depois de Charles Darwin ter introduzido a teoria da evolução e cerca de trinta anos depois de Nietzsche ter descrito o seu "super-homem" (Übermensch), no livro Assim Falou Zaratustra (Also sprach Zarathustra), Umberto Boccioni esculpiu em 1913, um homem do futuro: musculado, dinâmico e impulsionado.

O movimento como forma
O rosto da escultura está oculto numa cruz, sugerindo um capacete, uma referência apropriada para os futuristas ávidos de guerra. A figura parece não ter braços, embora formas semelhantes a asas pareçam emergir das costas ondulantes. No entanto, estas saliências não fazem necessariamente parte da própria figura, uma vez que Boccioni esculpiu tanto a figura como o seu ambiente imediato. O ar deslocado pelo movimento da figura é apresentado em formas não diferentes das do corpo real. Veja-se, por exemplo, as formas como que chamas de fogo que começam nos gémeos e mostram o ar a afastar-se do corpo em movimento.
A ideia de esculpir o ambiente à volta de uma figura é expressa na obra de Boccioni "Manifesto tecnico della scultura futurista" (1912) e mostra a influência do escultor Medardo Rosso, um italiano contemporâneo de Auguste Rodin que trabalhou em Paris (e que se tornou mais popular em Itália neste período graças aos esforços do então futurista Ardengo Soffici). Rosso realizou bustos impressionistas em gesso ou bronze, cobertos de cera, de pessoas em Paris, nos quais as figuras se fundem no espaço que as rodeia, como se pode ver nas suas Impressioni di boulevard. Donna con veletta, 1893. A obra Formas Únicas de Continuidade no Espaço foi também comparada ao L'homme qui marche sem braços de Rodin, de 1907.
Formas Únicas faz parte de uma série de esculturas de figuras a caminhar que Boccioni criou em 1913. Até 1912, Boccioni tinha sido pintor, mas depois de visitar Paris e a observação de inovações escultóricas como as experiências cubistas tridimensionais de Braque em papel, Boccioni ficou fascinado pela escultura. As suas esculturas de passos largos continuaram o tema do movimento humano visto nas suas pinturas, como Dinamismo de um Jogador de Futebol, 1913.
O movimento era um elemento-chave para Boccioni e para os outros futuristas, uma vez que a tecnologia dos transportes (carros, bicicletas e comboios avançados) permitia às pessoas experimentar velocidades cada vez maiores. Os artistas futuristas retratavam frequentemente veículos motorizados e as percepções que estes possibilitavam - a visão desfocada, fugaz e fragmentária criada por esta nova velocidade.

Quebrando as próprias regras
Ao contrário do colega futurista Giacomo Balla, que utilizava formas repetidas para representar o movimento, em trabalhos como Dinamismo di un cane al guinzaglio (Dinamismo de um cão com trela, 1912), Boccioni sintetizou diferentes posições numa figura dinâmica. Embora Formas Únicas de Continuidade no Espaço seja a escultura futurista mais famosa, há alguns aspectos da obra que não se enquadram perfeitamente nas declarações do artista. Por exemplo, três anos antes de fazer esta escultura, Boccioni e os outros artistas futuristas tinham proibido a pintura de nus por estarem irremediavelmente presos à tradição - e Formas Únicas é um nu masculino, embora oculto através de músculos exagerados e possivelmente protegendo a cabeça com um capacete.
Boccioni também quebra as regras do seu "Manifesto tecnico della scultura futurista", onde declara que a escultura futurista deve ser feita de linhas fortes e rectas: "A linha reta é a única forma de alcançar a pureza primitiva de uma nova estrutura arquitetónica de massas ou zonas escultóricas". Claramente, Boccioni ainda não tinha reconhecido o potencial para as curvas dinâmicas tão poderosamente expressas nesta sua obra. O seu manifesto também afirma que a escultura não deve ser feita a partir de um único material ou de materiais tradicionais como o mármore ou o bronze.

Bronze ou gesso?
Boccioni produziu várias esculturas de meios mistos e a original Formas Únicas de Continuidade no Espaço era, como a maioria das suas esculturas, feita de gesso. As versões em bronze que nos são tão familiares são moldes feitos muito depois da morte do artista, em 1916. A escultura original em gesso branco, que está em São Paulo, Brasil, no Museu de Arte Contemporânea - MAC, tem um aspeto mais transitório e delicado do que os moldes de bronze posteriores e é, por isso, muito mais adequada ao Futurismo, uma vez que muitos Futuristas afirmavam querer que as suas obras de arte fossem destruídas por artistas posteriores mais inovadores, em vez de serem preservadas num museu.
Formas Únicas de Continuidade no Espaço aparece na moeda italiana de 20 cêntimos de euro e é simultaneamente o símbolo mais famoso do Futurismo e um lembrete de que o próprio movimento era dinâmico e nem sempre seguia as suas próprias declarações. Os futuristas procuraram eliminar o legado da história da arte para que o futuro pudesse surgir mais rapidamente, mas Formas Únicas tem sido frequentemente comparada à antiga Vitória de Samotrácia e à Apolo e Dafne de Gian Lorenzo Bernini. Os futuristas queriam destruir os museus, mas no final, o seu trabalho foi acrescentado ao cânone da escultura italiana.
"Museus: absurdos matadouros de pintores e escultores, que se vão trucidando ferozmente a golpes de cores e linhas, ao longo das paredes disputadas!" – F.T. Marinetti, "Manifeste du Futurisme", 1909.

Umberto Boccioni, Formas Únicas de Continuidade no Espaço, 1913, 111,2 x 88,5 x 40 cm (Museu de Arte Contemporânea, MAC - Universidade de São Paulo, Brasil)

Adaptado de um texto de Rosalind McKever.