Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

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Os Espíritos de Inisherin (2022)

O realizador e argumentista Martin McDonagh regressa ao grande ecrã com uma nova tragicomédia e, desta vez, transporta-nos até uma ilha remota na costa da Irlanda durante a guerra civil dos anos 20. O filme estreou nas salas de cinema portuguesas a 2 de fevereiro.

Os Espíritos de Inisherin (título original: The Banshees of Inisherin) é protagonizado por Collin Farrell e Brendan Gleeson, a mesma dupla de atores que protagonizou Em Bruges (2008), também da autoria de McDonagh.  Os Espíritos de Inisherin recebeu 9 nomeações para a 95ª edição dos Óscares que decorrerá a 13 de março, incluindo Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Argumento Original; sendo que Collin Farrell foi nomeado a Melhor Ator Principal; Brendan Gleeson e Barry Keoghan foram ambos nomeados a Melhor Ator Secundário e Kerry Condon foi nomeada a Melhor Atriz Secundária.

Inisherin é uma ilha pacata onde álcool, música, catolicismo e bisbilhotice são os únicos passatempos para entreter os poucos habitantes que lá vivem. Apesar dos sons dos canhões serem transportados através da água, os habitantes de Inisherin pouco ou nada se interessam pela guerra civil. Tanto lhes faz qual lado ganhe porque, afinal de contas, nem sabem que lado é que começou a guerra ou porque lutam sequer já. É apenas som de fundo para a sua vida simples e calma. Mas, de repente e sem qualquer aviso, um conflito surge em Inisherin quando o velho músico Colm (Brendan Gleeson) termina a amizade com o simplório pastor Pádraic (Collin Farrell) sem qualquer razão aparente, justificando-se apenas com “simplesmente já não gosto de ti”. Esta desavença é um conflito que os habitantes de Inisherin não conseguem ignorar e a notícia rapidamente corre todos os cantos da pequena ilha.

Tal como o taberneiro do único pub da ilha aponta: a amizade de Colm e Pádraic nunca fez muito sentido uma vez que são o completo oposto um do outro. Pádraic é um homem simples e feliz, que ama os seus pequenos animais e consegue passar horas a fio a falar sobre assuntos sem qualquer substância. Colm, por sua vez, é reservado, cínico e um intelectual preocupado com pautas de música e com o legado que irá deixar depois de morrer. Pádraic fica destroçado com a decisão abrupta de Colm e não entende o porquê. Mesmo depois de Colm explicar que considera Pádraic um homem aborrecido e que conversar com ele é um desperdício de tempo, Pádraic continua a não aceitar o fim da amizade. Colm responde a esta persistência com um ultimato e promete que se Pádraic voltar a falar com ele mais uma vez, cortará um dos seus próprios dedos.

Entretanto, Pádraic ampara-se nas conversas com a irmã Sióbhan (Kerry Condon), uma leitora ávida, inteligente e empática; e com o pacóvio inocente da aldeia, o jovem Dominic (Barry Keoghan), que é regularmente agredido pelo pai (o único polícia em toda a ilha); enquanto continua a tentar resolver o dilema com Colm e reanimar a amizade. Porém, a situação escala até ao ponto de se tornar irreparável.

Colm usar automutilação como ameaça é uma medida extremista e completamente absurda que só um homem profundamente corroído pelo desespero seria capaz de levar a cabo. E é também uma medida tipicamente à Martin McDonagh. O mestre moderno da comédia negra tem um toque sublime para criar violência absurda que nasce do vazio existencial, crises de espírito e medo do esquecimento das personagens. Espíritos de Inisherin é um filme terrivelmente engraçado com o diálogo cortante e inconfundível de Martin McDonagh que explora a solidão, a depressão e a mortalidade.

Mas toda esta negatividade existente no filme não funciona por si só, é em contratempo com a beleza da ilha e com a bondade de personagens como Shióban, que escolhem não serem levadas pela corrente de ódio, que a história se eleva e solidifica. Os Espíritos de Inisherin mostra como a amargura só gera mais rancor e como até a pessoa mais simpática, ou mais simples, pode ser corroída pela dor. É uma história que nos leva a questionar o porquê de o legado ser tão importante e o porquê dos simples prazeres da vida serem tão desvalorizados face à nossa mortalidade, quando o completo oposto é que deveria acontecer. Cada personagem tem o seu próprio mundo interior complexo que influencia como existem no mundo exterior e todos os atores do elenco principal desempenham performances formidáveis, demonstrando um tato sensível e pendor melancólico, que os tornam inesquecíveis.

Os Espíritos de Inisherin é quase como uma folk tale irlandesa com paisagens verdes pitorescas, povoadas por variados animais domesticados, capturadas idilicamente pelo diretor de fotografia Ben Davis. A música folk, a presença constante de símbolos católicos, o simbolismo tirado de velhas lendas (uma das personagens assemelha-se ao ceifador, a personificação da morte, por exemplo) e as idiossincrasias culturais de um pequeno povoado rural irlandês só reforçam essa mesma qualidade de folk tale. Por outro lado, a alegoria à guerra civil através do conflito de Colm e Pádraic é clara, mas não se torna o objetivo do filme, uma vez que foco mantém-se naturalmente na inimizade entre os dois.

Com Os Espíritos de Inisherin, Martin McDonagh volta a comprovar que é um dos grandes autores modernos. Atualmente, não há falta de realizadores talentosos, mas argumentistas excelentes são muito mais raros. E é esta a qualidade de Martin McDonagh que torna os seus filmes tão especiais e únicos.

Classificação: ★★★★★


Os Olhos de Allan Poe (2023)

O thriller Os Olhos de Allan Poe (título original: The Pale Blue Eye), protagonizado por Christian Bale, é a produção original mais recente da Netflix. O filme dirigido e escrito por Scott Cooper, baseado no livro homónimo de Louis Bayard publicado em 2006, estreou a 6 de janeiro na plataforma de streaming.

O enredo do mistério decorre durante o inverno ríspido de 1830 na base militar de West Point no estado de Nova Iorque. O detetive Augustus Landor (Christian Bale) é discretamente contratado pela Academia Militar dos Estados Unidos para investigar a morte de um cadete que foi encontrado enforcado numa árvore. O caso complica-se quando é revelado que alguém mutilou o cadáver e removeu o coração.

Landor é um detetive competente e com muita experiência, que se afastou da profissão e da sociedade por escolha própria, mas que encontra agora obstáculos na investigação devido à rigidez da mentalidade militar. O ambiente social da Academia é tão agreste e frio quanto o clima ambiental que os rodeia. Os cadetes, regidos pelo código de silêncio e pela cultura de punição, não falam abertamente e os oficiais, por sua vez, são obcecados com estatuto e apenas desejam uma resposta rápida e clara que não afete o prestígio da Academia Militar.

Porém, Landor encontra o aliado mais invulgar para o ajudar na investigação: um jovem cadete muito inteligente, estranho e sensível, chamado Edgar Allan Poe. Sim, o famoso escritor e poeta americano, o pioneiro do género literário de histórias de detetive, é quem ajuda o nosso protagonista. É verdade que o autor se alistou no exército por razões económicas e esteve destacado em West Point, mas os factos verídicos acabam por aí porque, afinal de contas, este é um conto ficcional e o que interessa é o espírito de Poe. O nosso Poe ficcional, representado pelo ator Harry Melling, vê a vertente poética e simbólica da carnificaria cometida - “O coração é um símbolo ou não é nada. Retire o símbolo e o que tem? É uma mão-cheia de músculo sem mais interesse estético que uma bexiga” explica a Landor.

Os dois homens desenvolvem uma afinidade emocional.  Talvez este laço nasça do respeito intelectual mútuo; talvez seja por ambos serem forasteiros reclusos que não se enquadram ou, talvez ainda, por ambos serem assombrados por pessoais reais – Poe pela mãe falecida, Landor pela filha desaparecida – ou talvez por todas estas semelhanças e tantas outras.

Entretanto, o caos multiplica-se quando o assassino volta a atacar e vitimiza outro cadete usando o mesmo método. Landor apoia-se na introspeção de Poe e continua a investigação destes homicídios aparentemente satanistas. O elenco do filme inclui ainda Gillian Anderson, Toby Jones, Lucy Boynton e Harry Lawtey que formam a peculiar família Marquis que Landor investigará; Charlotte Gainsbourg como a proprietária de uma taberna e Robert Duvall como um perito em questões do oculto.

Com 2 horas e 10 minutos de duração o filme demora-se na ação primária que serve apenas de embuste, de uma forma algo esperada e desinteressante, para a reviravolta final. Os Olhos de Allan Poe é um filme com um meio moroso enquadrado por um início e final magnéticos. Porém, tanto Christian Bale e Harry Melling maravilham nos respetivos papéis.

A vasta natureza paisagística coberta de neve; as árvores grandes e rios gelados; e os fortes e tabernas pontilhados pelo azul-escuro do uniforme dos militares adequam-se harmoniosamente ao tom desta história. Os Olhos de Allan Poe é uma história em que os vivos são assombrados pelos mortos. É funesto, gélido e sombrio, mas também é romântico e empático. É um filme que revela ser mais do que um filme de mistério ao invocar temáticas de vingança e de expiação.

Os Olhos de Allan Poe é um ótimo filme para passar um bom serão durante os dias mais frios do inverno.
 

Classificação: ★★★

 


O Menu (2022)

O Menu é a adição mais recente ao crescente número de sátiras sobre o capitalismo moderno e, desta vez, a alegoria transporta-nos para o mundo dos aficionados de restaurantes gourmet. O filme, que conta com realização de Mark Mylod e argumento de Seth Reiss e Will Tracy, chegou às salas de cinemas portuguesas a 1 de dezembro.

As diferenças económicas entre as classes sociais foram sempre um assunto predileto para cineastas. Porém, nestes últimos anos, e especialmente após Parasitas (2019) de Bong Jong-Hoo ter conquistado vários Óscares em 2020, tornou-se claro que o público tem cada vez mais apetite por filmes dentro dos géneros de thriller e humor negro que satirizem o capitalismo, como por exemplo, O Ritual (2019), Não Olhem Para Cima (2021) e, mais recentemente, O Triângulo da Tristeza (2022).

Em O Menu, o casal Tyler (Nicholas Hoult) e Margot (Anya Taylor-Joy) viajam até uma ilha privada para jantar no Hawthorne, um restaurante superexclusivo destinado apenas aos mais ricos que têm o luxo de poder gastar 1250 dólares numa única refeição, e saborear a ementa do talentoso chef Slowik (Ralph Fiennes). A ementa de Hawthorne é diferente todas as noites e é planeada até ao mais pequeno detalhe com toda a dedicação. O restaurante tem uma lotação limitada de 12 pessoas e conseguir um lugar é um motivo de orgulho.

Os restantes convidados que acompanham o jovem casal são uma crítica gastronómica elitista (Janet McTeer) e o seu editor (Paul Adelstein); um trio de amigos que trabalham numa grande empresa tecnológica (Rob Yang, Arturo Castro e Mark St. Cyr); um casal de idosos milionários (Reed Birney e Judith Light); um ator outrora famoso (John Leguizamo) e a sua assistente/namorada (Aimee Carrero). Por fim, e de forma a totalizar os 12 convidados, temos uma idosa (Rebecca Koon) sozinha numa mesa ao canto que, mais tarde, é revelada ser a mãe de Slowik. Os convidados são guiados pela chefe de mesa (Hong Chau) para o que promete ser uma noite inesquecível.

A atitude calculista, assertiva e calma com que o chef Slowik conduz a sua equipa e restaurante maravilha Tyler, um autoproclamado perito gastronómico, mas Margot não está minimamente impressionada ou interessada pelos pratos extremamente elaborados. A verdade é que Margot foi convidada à última hora por Tyler depois da sua parceira o deixar. Margot é como um peixe fora de água, simplesmente não se enquadra com o perfil social dos outros convidados, e o chef Slowik repara nela de imediato, não só porque não tem aprecio pelo requinte da sua arte, mas porque ela não fazia parte do plano de ementa meticulosamente aperfeiçoado com cada convidado em mente. “Não devia estar aqui”, confessa o chef à jovem que fica cada vez mais desconfortável.

A teatralidade do menu de Slowik passa rapidamente de um tom intrigante para sombrio quando os pratos revelam ser mensagens insultuosas e acusatórias para cada convidado. Confusão instala-se e ânimos exaltam-se. E eis a revelação do chef, que assume agora a função de juiz e carrasco orgulhosamente, e explica como este menu tão especial, desde as ementas à sobremesa, é um longo plano de vingança e que todos os convidados irão morrer porque representam tudo o que está errado com a atual cultura gastronómica. Ricos que pagam não para saborear as ementas criadas com tanto esforço todas as noites, mas sim porque é uma prova de estatuto para eles. O pretensiosismo, elitismo, desinteresse, desrespeito e ego desta classe de pessoas corroeram a paixão de Slowik e isso é um crime imperdoável.

A famosa expressão “a vingança é um prato que se serve frio” não se aplica a um chef, a ira de Slowik não consegue ser contida num só prato, é preciso um menu inteiro. É um jogo de opressores versus oprimidos, ricos versus pobres, os que servem versus os que são servidos. E Margot tem agora de escolher e agir corretamente para sobreviver.

A desconexão da realidade e pretensiosidade destes convidados gera trocas de diálogo engraçadas que são o ponto alto do guião e se adequam na perfeição ao tom de humor do filme. Mas falta subtileza ao argumento, as motivações são óbvias e as críticas básicas, ou seja, depois da camada superficial não há muito mais nada de substância. E apesar de umas quantas reviravoltas interessantes, estas surpresas acabam por se tornar algo entediantes porque o chef aparenta ter sempre o controlo da situação. Inicialmente, o filme lembra um pouco os contos de Agatha Christie ao ter vários desconhecidos presos no mesmo sítio sob perigo mortal, mas ao contrário dessas histórias em O Menu a maioria das personagens são esquecidas com o decorrer do filme e passam para segundo plano. Anya Taylor-Joy e Ralph Fiennes detêm o foco e os seus performances são o aspeto mais forte e memorável do filme.

Se o filme O Menu fosse uma refeição seria uma refeição decente, mas que não sacia a fome.
 

Classificação: ★★★

 


Alma Viva (2022)

Alma Viva é a primeira longa-metragem da cineasta luso-francesa Cristèle Alves Meira, autora das curtas Sol Branco (2015), Campo de Víboras (2016) e Invisível Herói (2019). O filme foi apresentado pela primeira vez em maio na 75ª edição do Festival de Cannes e em setembro foi selecionado pela Academia Portuguesa de Cinema como candidato português aos Óscares 2023.  Alma Viva, produzido pela Midas Filmes em coprodução com França e Bélgica, chegou às salas portuguesas no passado dia 3 de novembro.

Alma Viva é uma história fictícia marcada por realismo mágico, mas baseada nas experiências reais da autora. Todos os verões, a nossa protagonista e guia, a pequena Salomé (Lua Michel), filha de emigrantes portugueses em França, visita a terra natal da mãe em Trás-os-Montes. Salomé conhece todos os cantos da casa e sabe todos os caminhos da aldeia e dos montes que a rodeiam. Ela acompanha as rezas e canções que a avó (Éster Catalão) lhe ensina com toda a naturalidade e certidão - uma prova incontestável do laço emocional e espiritual que a une à matriarca da família, considerada uma bruxa por muitos dos aldeões. Mas depois da avó morrer inesperadamente durante a noite, Salomé convence-se que foi possuída pelo espírito dela.

O corpo da velha senhora ainda está por enterrar e os seus filhos, os adultos da família, criam o caos ao discutirem incessantemente sobre dinheiro. As diferenças monetárias e os rancores individuais entre os filhos que emigraram e os que ficaram em Portugal tornam-se óbvias. Entretanto, Salomé deambula pela aldeia de noite, possuída pelo espírito da avó, e procura vingar-se da vizinha que acredita ser a culpada pela morte da avó. A menina sucede e fere a vizinha, mas a força espiritual que comanda o corpo de Salomé continua inquieta. Rapidamente o comportamento anormal de Salomé é descoberto pelos habitantes da aldeia, que ficam convencidos que “a garota tem o Diabo no corpo”, e confrontam a família de Salomé, a família das bruxas.

Em Alma Viva os espíritos são reais porque as pessoas acreditam; os mitos e rituais fazem parte do legado vivo comunitário desta pequena aldeia. As preces e cânticos à luz das celas; os chás de ervas; São Jorge, o santo guerreiro; as máscaras e as festas; as tradições antigas… Tudo isto torna o surreal em algo palpável, e é pelos olhos de Salomé, uma criança que confronta pela primeira vez a morte de alguém que ama, que o realismo mágico ganha forma e respira.

Alma Viva é um filme profundamente autêntico que explora o ruralismo, o espiritualismo, o núcleo familiar, a questão da emigração e o papel das mulheres que se rebelam em comunidades tradicionais, “mais tarde ou mais cedo, todas as mulheres independentes serão acusadas de bruxaria”. O filme foi rodado em Junqueira, a aldeia da mãe de Cristèle Alves Meira, e o elenco é composto por atores profissionais e não-atores da região, incluindo a atriz Lua Michel, filha de Cristèle. A receita da cineasta, em que a fantasia e o real convergem e dialogam até alcançarem um equilíbrio, resulta em cenas incrivelmente familiares e tangíveis que a maioria da audiência certamente reconhecerá. Um filme extremamente rico em cultura e simbolismo no qual o humor e a tragédia coexistem em simultâneo.
 

Classificação: ★★★★

 


Blonde (2022)

O realizador australiano Andrew Dominik, conhecido pelo filme biográfico O Assassinato de Jesse James (2007), regressa ao oratório popular com Blonde, o filme sobre Marilyn Monroe, que veio estilhaçar a vénus loira de Hollywood. Mas Blonde não é uma biografia, trata-se sim de uma adaptação do romance homólogo da escritora Joyce Carol Oates publicado em 2001, uma história de ficção baseada na vida de uma pessoa real que se prolonga durante 700 páginas.

Andrew Dominik encontrou a sua Monroe na atriz colombiana Ana de Armas, que graças à magia da maquilhagem, guarda-roupa e ângulos e lentes escolhidos a dedo assemelha-se fisicamente à blonde bombshell americana com toda a naturalidade. Blonde, classificado para maiores de 18 anos, teve como palco de estreia o Festival de Veneza e dias mais tarde, a 28 de setembro, chegou a casa de todos os assinantes do serviço de streaming Netflix.

Com quase três horas de duração o filme pouco ou nada nos diz sobre a verdadeira Marilyn Monroe. Blonde foca-se maioritariamente na Marilyn já famosa. Inclui uma breve parte introdutória focada na infância turbulenta de Norma Jeane (o verdadeiro nome de Marilyn Monroe) traumatizada pela violência da mãe mentalmente instável e pela ausência do pai, o qual nunca chegou a conhecer, e que termina com Norma Jeane a ser levada para um orfanato após o internamento da mãe num hospício. O período de adolescência no orfanato e o início da carreira como modelo são menosprezados e substituídos por uma sequência rápida composta pelas diferentes capas de revistas para as quais a jovem posou. E passamos então para a Marilyn adulta, de caracóis loiros oxigenados, a capturar a atenção predatória de todos os homens que a rodeiam.

Dominik durante cerca de 2 horas e 40 minutos dedica-se a criar um inferno cíclico abusivo para a sua Marilyn, desde violações por homens que detêm poder e estatuto, a casamentos miseráveis, passando por violência doméstica, abortos induzidos contra a sua vontade e um aborto espontâneo. Os relacionamentos românticos são motivados por psicologia freudiana, uma temática martelada incessantemente ao longo de todo o filme ao ponto de se tornar psicologia barata, com Marylin a procurar uma figura paternal em todos os homens que ama numa tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pelo pai que nunca conheceu. Esta é a origem incontornável de toda a dor de Marilyn que Blonde nunca nos permite esquecer. E, entretanto, começa a afogar a dor em comprimidos e álcool e rapidamente se torna toxicodependente. Por outro lado, das poucas vezes que a atriz mais famosa da América trabalha em Blonde, seja a fazer audições, a filmar ou a ver a estreia do seu filme, encontra-se completamente miserável e odeia-se profundamente.

Blonde é um filme fatalista. Torna-se aparente ao longo do filme que Marilyn Monroe é para Dominik apenas uma figura trágica pela qual o realizador tem uma obsessão mórbida. Quando o realizador é questionado, numa entrevista para a revista Sight and Sound [1], sobre o porquê de não abordar as vitórias de Marilyn (criar a sua empresa de produções fílmicas, lutar contra a discriminação racial, etc) este responde: “O filme não é sobre isso. É sobre uma pessoa que se vai matar.”. Dominik reduz Marilyn a uma tragédia em Blonde.

Blonde é uma fantasia cruel, redutora e simplista na qual Marilyn é retratada como uma boneca de porcelana que se desfaz em cacos vez após vez durante quase três horas. E todos os pontos fortes do filme: os truques visuais surreais, poéticos e tecnicamente impressionantes; a qualidade do departamento de guarda-roupa e maquiagem; e a semelhança física e o performance emocionalmente carregado de Ana de Armas (se bem que o sotaque estrangeiro atraiçoou a semelhança à voz de Marilyn) não conseguem atenuar os pontos fracos do filme.

Devido ao teor temático de Blonde, e ao facto de ser tão facilmente acessível agora que está no catálogo da Netlix, o filme amassou muita atenção e várias críticas foram apontadas: a objetificação sexual desnecessária (Ana de Armas passa uma parte bastante considerável do filme nua), o retrato explorativo e de mau gosto de abusos sexuais (especialmente numa cena com o Presidente John F. Kennedy); a falta de empatia; a factualidade dos acontecimentos, etc. Mas, para mim, a falha mais gritante do filme é a falta de interesse do realizador pelo seu sujeito. Dominik está apenas interessado na fração miserável de Marilyn e não no seu total, e, portanto, ignora tudo o resto. Blonde pode não ser um filme biográfico tradicional, mas continua a ser um filme sobre Marilyn Monroe, uma pessoa real. Em vez de procurar encontrar a mulher por trás do mito de Hollywood este filme cria o seu próprio mito e escolhe ativamente ignorar toda uma carreira, conquistas, amizades, e todo o espectro emocional fora da dor.

Blonde é um filme fracionado e emocionalmente raso, que não explora a complexidade do seu sujeito, e em vez disso, fabrica uma Marilyn diluída e dizimada. Se Blonde tivesse dedicado metade do esforço que foi necessário para recriar até ao mínimo detalhe fotografias de Marilyn no que toca à escrita de uma Marilyn que se assemelhasse à verdadeira, ou pelo menos fosse uma personagem redonda, teríamos uma noção mais sólida e multifacetada da atriz.

É difícil dizer para quem exatamente este filme foi feito para além do Andrew Dominik. Mas certamente não foi feito para um público que aprecie complexidade e nuance emocional. E muito certamente não foi feito para aqueles que querem conhecer a mulher por detrás de Os Homens Preferem as Loiras (1953), Quanto Mais Quente (1959) e Os Inadaptados (1961).

Classificação: ★★

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[1] Entrevista na revista Sight and Sound: https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/interviews/im-not-interested-reality-im-interested-images-andrew-dominik-blonde

 


Nope (2022)

Jordan Peele, o ator e comediante tornado realizador, estabeleceu-se como uma das vozes mais promissoras do género de terror com os filmes Foge (2017) e Nós (2019). Nope, a terceira longa-metragem escrita e realizada por Peele, volta a comprovar o engenho do realizador para assustar e maravilhar a audiência. A estreia do filme ocorreu a 18 de julho em Los Angeles e um mês mais tarde, a 18 de agosto, chegou às salas de cinema portuguesas, e revelou ser um dos melhores filmes do verão, que muito tem dado de falar, pelos seus mistérios e simbolismos.  Nope é um filme de puro terror que é parte western, parte-ficção científica, no qual um OVNI aterroriza os donos de um rancho de cavalos na Califórnia.

O filme conta com os atores Daniel Kaluuya, Keke Palmer, Brandon Perea, Steven Yeun e Michael Wincott no elenco principal; e ainda com o diretor de fotografia Hoyte van Hoytema, cujo portfólio inclui Interstellar (2014), Dunkirk (2017) e Tenet (2020); e também com o editor, e colaborador de longa data de Peele, Nicholas Monsour.

Os heróis desta trama são os irmãos Haywood, o OJ (Daniel Kaluuya) e a Em (Keke Palmer), que depois da morte inesperada do pai, o fundador do rancho Haywood onde cavalos são treinados para produções cinematográficas, passam por dificuldades económicas que ameaçam o encerramento do negócio. De forma a assegurar a sobrevivência do rancho, OJ começa a vender alguns dos cavalos a Ricky “Jupe” Park (Steven Yeun), uma ex-estrela de cinema e televisão infantil que se tornou dono de um rancho aberto ao público para entretenimento.

Desde início é evidente que as circunstâncias que rodeiam o rancho Haywood não são só uma questão de azar, mas sim efeito de uma causa sobrenatural: a queda de pequenos objetos do céu, como moedas e chaves, que vitimou o pai de OJ e Em; o comportamento estranho dos cavalos; as falhas de energia elétrica sem explicação aparente. Estas suspeitas são confirmadas quando um OVNI é avistado a sobrevoar o rancho e os irmãos Haywood, ao reconhecer uma oportunidade de ouro e motivados pela falta de dinheiro, decidem capturar prova de vida alienígena em vídeo. Para ajudar a concretizar esta missão entra em cena o jovem Angel Torres (Brandon Perea), técnico numa loja de produtos eletrónicos e conspiracionista de extraterrestres, e posteriormente, junta-se também ao grupo o diretor de fotografia e documentarista, Antlers Host (Michael Wincott).

A grande surpresa e complicação do enredo, descoberta e revelada por OJ, é que o disco voador não é uma nave espacial que transporta figuras humanóides vindas de outros planetas como Hollywood prometera, mas é sim o próprio extraterrestre. Ou seja, o objeto que os aterroriza não se trata de nenhum objeto, mas sim de um ser inteligente. Um predador gigantesco que voa e devora tudo que tenha pulso e depois esconde-se por entre as nuvens, omnipresente e inalcançável, um verdadeiro Leviatã dos céus vindo dos confins do espaço. Um monstro que evolui da sua forma oval ancestral para uma forma final, que se desmembra e se expande, como uma medusa que se move pelo ar em vez da água. Esta revelação física final é o pontífice num filme que é visualmente cativante de início ao fim.

A origem do extraterrestre, ou do Jean Jacket como é apelidado por OJ, é desconhecida, mas a razão pela qual fez deste vale californiano sossegado o seu território torna-se clara para OJ: Jupe tentou domesticar um predador e usá-lo como atração principal do seu rancho, mas o tiro saiu-lhe pela culatra e foi devorado. Porque afinal de contas, e sendo este um filme assinado por Jordan Peele que usa o género do terror para ridicularizar a sociedade moderna, o Jean Jacket não é o único monstro do filme, há um outro monstro em jogo: a cultura do espetáculo. Desde a rendição total de Jupe aos horrores do espetáculo em nome do lucro; passando pelo estado permanente de vigia devido à obsessão contemporânea com a perpétua documentação fotográfica; tocando até mesmo na insensibilidade que rege a indústria do entretenimento e dos média. Desta forma e através de simbolismos e paralelos, Peele põe a sociedade do espetáculo debaixo do holofote em Nope.

Nope
é uma convergência de referências culturais e géneros fílmicos com uma cinematografia e design de produção originais, coloridos e marcantes. A receita incomum de western moderno e ficção-científica clássica resulta no filme de terror perfeito, desde as sequências horríficas das vítimas no interior do aparelho digestivo do extraterrestre às sequências emocionantes do OJ montado no cavalo pronto a enfrentar um inimigo do tamanho de um titã. É um filme de terror recheado de momentos divertidos graças à química entre as personagens e as suas personalidades que chocam umas com as outras. Todos os performances do elenco principal elevam o filme, mas é a Keke Palmer como Em, extrovertida e inquieta, e o Daniel Kaluuya como OJ, sério, calado e focado no trabalho, evocando os cowboys dos velhos clássicos, que dominam o ecrã e perduram na memória.

Nope, é o filme de Jordan Peele com a premissa mais simples, mas é também o filme mais criativo e ambicioso do realizador até à data. Incrivelmente imersivo e visualmente estimulante.

Classificação: ★★★★★


Não Está Tudo Bem (2022)

Não Está Tudo Bem (título original: Not Okay) é uma comédia satírica sobre influencers digitais. O filme da autoria de Quinn Shephard conta com Zoey Deutch no papel de Danni Sanders, uma aspirante a influencer, sedenta por atenção e fama. O filme estreou a 29 de julho e foi lançado diretamente em plataformas de streaming, com distribuição na Hulu nos Estados Unidos e na Disney Plus nos restantes países, incluindo Portugal.

O filme inicia-se com um aviso de conteúdo irónico em que se lê “Este filme contém luzes estroboscópicas, temas de trauma, e uma protagonista detestável. O conteúdo pode ferir suscetibilidades”.  Aviso este que serve como amostra do tom humorístico do filme e como crítica da personagem principal. Conhecemos Danni após a implosão das consequências das mentiras que fabricou. Fechada no quarto, com lágrimas a escorrer pela face e os olhos colados ao ecrã do computador enquanto clica em vários artigos, comentários e vídeos de ódio a ela direcionados. Por meio de narração confessa-nos como desejava ser reconhecida e amada, como sonhava em ser alguém importante, e depois quebra a narração e a quarta parede, dirigindo-se diretamente à audiência, e avisa-nos para termos cuidado com o que se deseja. De seguida, através de analepse, retrocedemos na história para o princípio da trama.

Danni Sanders é uma jovem adulta preocupada com as trends atuais e presa à câmara frontal do telemóvel da mesma forma que Narcisso ficou cativado pela sua reflexão na água. Quando não está a tirar selfies ou a ver vídeos de influencers, por norma, está ocupada a ignorar prazos de trabalhos que tem a entregar na empresa de jornalismo digital viral (semelhante ao Buzzfeed) onde está empregada como editora de fotografia. O seu foco está em tornar-se alguém mais importante, desejo este fruto não só da vaidade e egocentrismo que definem o seu carácter, mas também de uma solidão debilitante uma vez que não tem amigos e os colegas de trabalho não gostam dela. Quando por sorte do acaso encontra na rua Collin (Dylan O’Brien), o colega de trabalho e influencer pelo qual se sente atraída, ela aproveita esta chance para o impressionar ao afirmar que foi convidada para um workshop de escrita em Paris e, pela primeira vez, Collin verdadeiramente repara nela.

Danni, entusiasmada com a reação que obteve e desesperada por seguidores e fama, leva essa pequena mentira para outro nível quando começa a postar no Instagram fotografias manipuladas no Photoshop e cria uma realidade em que está em Paris. Porém, quando um ataque terrorista ocorre em Paris a fabricação que criou fica em risco de ser descoberta, mas rapidamente percebe que pode aproveitar esta tragédia e a sua mentira evolui para ter presenciado o atentado terrorista e sobrevivido.  De forma a tornar a sua mentira ainda mais realista Danni frequenta um grupo de apoio para vítimas de atentados onde conhece a jovem Rowan (Mia Isaac), uma sobrevivente de um tiroteio numa escola, e uma figura famosa no movimento de legislação de armas. Danni, reconhecendo uma oportunidade de ouro, rapidamente aproxima-se de Rowan e torna-se sua amiga, tendo como objetivo aprender a ser como ela por via de imitação. Ao utilizar o trauma, a dor e a empatia a jovem ganha cada vez mais clicks e likes, mais seguidores, o carinho dos colegas de trabalho, a atenção de Collin, e quando publica o seu artigo e cria uma hashtag viral consegue alcançar, finalmente, o seu objetivo de ser famosa. Mas essa fama tão desejada rapidamente se transforma em infâmia quando uma colega de Danni descobre o seu segredo e a põe entre a espada e a parede.

Enquanto comédia o filme tem momentos bons em que a futilidade, ignorância e privilégio originam cenas de diálogo caricatas uma vez que a desconexão com a realidade é tão gritante que se torna ridículo. As dinâmicas entre certas personagens são bastante cómicas, nomeadamente entre a Danni e a chefe de trabalho quando a tenta chamar a atenção sem sucesso ou ainda entre a Danni e o Collin, o influencer superficial que deixa sempre uma nuvem de fumo de vape atrás por onde quer que passe. Enquanto sátira falta-lhe acidez, por outras palavras, é como uma faca pouco afiada. A ironia e sarcasmo estão presentes, mas são minados pelo teor honesto, e quase justiceiro, da crítica social presente ao longo do filme, especialmente quando relativa ao trauma da Rowan e a violência dos tiroteios nos Estados Unidos, que ceifam tantas vidas por ano. O filme demarca uma posição ao condenar a violência e as ações explorativas de tragédias para proveito próprio, defendendo que a protagonista não tem direito a uma redenção e que tem de sofrer as consequências. Mas apesar do filme explicitar desde o início que a protagonista é uma pessoa detestável, a verdade é que é feita uma contextualização da personagem (a depressão diagnosticada, a solidão e falta de propósito) que acabam por gerar alguma empatia. De qualquer das maneiras, o seu final está definido, e ela sai de cena, sendo engolida pelas sombras, não há lugares ou holofotes para Danni Sanders nesta sociedade, a crítica é clara.

Em termos técnicos a cinematografia é adequadamente vibrante para o mundo superficial de aparências online e enaltecida por uma banda sonora de música Pop. Algumas das sequências são criativas com slides, enquadramentos e cores que invocam a energia das transições de vídeos em redes sociais, mas aplicado de forma cinemática ao filme.

De forma geral Não Está Tudo Bem é um filme decente, com alguns bons momentos de comédia, mas que deixa a desejar enquanto sátira. No entanto, a crítica social é sólida e relevante à atualidade, abordando e recriminado a obsessão com atenção a qualquer custo nos espaços digitais, a ignorância nascida do privilégio, a superficialidade que germina nas redes sociais e a violência na sociedade norte-americana.

Classificação: ★★★

 


Elvis (2022) – “O Retorno do Rei”

Elvis Presley, o Rei do Rock ‘N’ Roll, volta a resplandecer no grande ecrã pela mão do realizador australiano Baz Luhrmann. Elvis foi apresentado pela primeira vez em maio no Festival de Cannes e estreou em Portugal a 23 de junho. O drama biográfico musical é tudo aquilo que se poderia esperar do realizador de Romeu + Julieta (1996), Moulin Rouge (2001) e O Grande Gatsby (2013): excêntrico, elétrico e efervescente. É um rodopio de cores e transições que nunca perde velocidade ou ritmo. O estilo maximalista impactante de Baz Luhrmann é o veículo ideal para contar a vida e obra do icónico Elvis Presley, interpretado pelo jovem ator Austin Butler.

A saga de Elvis, desde o nascimento e infância na pequena cidade de Tupelo até à sua morte 42 anos mais tarde, é contada a partir do ponto de vista do seu agente, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks). Endividado e doente, o Coronel deambula pelos casinos de Las Vegas e recorda o seu relacionamento com o cantor, o diamante em bruto que transformou na sua galinha de ovos dourados pessoal ao ter se estabelecido como uma pessoa pela qual Elvis tinha confiança e carinho, quase como uma figura parental. Mas as mentiras e ganância de Parker rapidamente se tornam evidentes durante a narração que nos guia pela montanha-russa espetacular que foi a vida de Elvis Presley: os altos e baixos, as virtudes e falhas, o sucesso estratosférico e, por fim, a morte prematura.

Elvis foi um artista prolífico e uma das figuras mais importantes da cultura popular do século XX, uma pessoa cujo percurso de carreira reflete as mudanças sociais do próprio país. Conter quatro décadas da vida de um artista desta magnitude num filme é uma tarefa impossível, mas o realizador Baz Luhrmann constrói um caleidoscópio dos momentos definidores de Elvis e mapeia a sua ascensão a ícone musical e cultural: desde a infância; às primeiras músicas gravadas na Sun Records; os concertos do Hayride; o sucesso depois de estar sob a alçada (e controlo) do Coronel; as aparições na televisão; o furor que causava nos jovens e a indignação dos políticos conservadoristas; o tempo no exército onde conheceu a sua futura esposa Priscilla (Olivia DeJonge); o declínio da carreira após uma série fracassos de bilheteria em Hollywood; o renascer das cinzas com o especial de ‘68 e o êxito descomunal no International Hotel em Las Vegas, onde regressaria anualmente até à sua morte.

O filme dá nos um entender profundo de quem Elvis era e do que o tornava tão especial. É dada uma ênfase especial às inspirações que o moldaram enquanto artista e indivíduo: desde a infância passada num dos bairros mais pobres de Tupelo, onde passava o tempo a sonhar acordado e imaginar-se um super-herói das bandas desenhadas, e a absorver a cultura e música negra, os Rhythm and Blues e o Gospel da igreja; até à mudança para Memphis onde frequentava regularmente a Beale Street, conhecida como a “Home of the Blues”. A música Gospel, em especial, era uma fonte de consolo e força em momentos de crises pessoais e de carreira para Elvis. O que tornava Elvis tão único, e perigoso, é toda a influência de música negra à qual dava um toque de música Country branca, o que assustava os pais conservadoristas dos estados segregacionistas do Sul.

É verdade que Elvis nem sempre é factualmente correto. Motins aconteciam em alguns concertos de Elvis Presley, mas o concerto em Russwood Park em ‘56 não acabou em motim depois de uma só música, para além do mais, em ‘56 Elvis não conhecia a “Trouble” uma vez que a música só seria escrita em ‘58 para o filme que iria protagonizar, King Creole. A reunião inicial para o especial de ‘68 não aconteceu no letreiro danificado de Hollywood, mas sim num escritório. O especial de 68’ não foi feito às escondidas do Coronel e não foi uma surpresa para os produtores executivos, essa reviravolta seria tecnicamente impossível de fazer. Mas se pensarmos nestas incongruências factuais como as liberdades artísticas intencionadas que são e que mostram o contexto, motivações e consequências reais e, simultaneamente, movem a história no ritmo tão característico de Baz Luhrmann, rapidamente se torna evidente que não são falhas apontáveis, mas sim mecanismos melhorativos da narrativa. Enquanto autor, Baz Luhrmann, aborda as suas histórias como espetáculos visuais com um ritmo alucinante e inclui elementos que modernizem e choquem estilisticamente. Um desses elementos é a inclusão de música da atualidade, e Elvis não foi exceção, contando com remixes de músicas de Blues clássicas por artistas de Rap como Doja Cat e Denzel Curry.

Elvis Presley é um artista “larger-than-life” (expressão anglofóna que significa “maior do que a própria vida” e tão bem descreve o fenómeno que foi o cantor) com uma carreira tão longa que não consegue ser contida num filme de duas horas e meia. Mas Baz Luhrmann cria uma visão completa e multifacetada do Rei do Rock ‘N’ Roll: a dicotomia do jovem sulista extremamente bem-educado e do jovem artista rebelde perturbador do equilíbrio social; o filho dedicado que ficou perdido depois da morte da mãe; o artista explorado e aprisionado economicamente pelo Coronel Parker; os comprimidos prescritos que rapidamente passaram de conforto a vício debilitante; o sonho não concretizado de fazer um verdadeiro filme clássico; e o talento inato para estar em palco e conquistar tudo e todos à sua frente.

Mas o que torna Elvis tão formidável não é só aquilo que Baz Luhrmann mostra, mas, mais importante, como mostra e as sensações que cria ao longo de todo o filme, evocando com a sua direção artística o espírito de Elvis Presley e o efeito incendiário que o cantor provocava. Como, por exemplo, o êxtase eufórico e sensual da sequência do concerto de Hayride, composta por um frenesim elétrico de planos curtos e cortes rápidos, em que Elvis pisa pela primeira vez o palco e provoca uma exaltação nunca antes vista entre as adolescentes com música de Rhythm Blues e o abanar lascivo das ancas e pernas, transmitido visualmente como Elvis foi um fruto proibido para uma América reprimida e um precursor para a revolução sexual. Ou ainda a sequência final do filme, uma montagem do último concerto que passa suavemente do Elvis de Austin Butler para imagens de arquivo do verdadeiro Elvis, num adeus final solene no qual o cansaço físico não afeta o brilho inesquecível da sua voz, que permanece e ecoa eternamente mesmo depois da sua morte.

E se Baz Luhrmann evoca Elvis ao construir o filme, o ator Austin Butler encarna Elvis do início ao fim sem nunca se perder. Desde o sotaque (que muito facilmente poderia ter parecido uma caricatura) aos maneirismos e expressões mais subtis, desde o abanar do corpo enquanto é possuído pelo ritmo dos Blues até ao olhar sedutor que aliciou milhares. Até a voz do cantor o jovem ator conseguiu dominar, sendo que ele mesmo cantou várias das músicas de Elvis para o filme (entre as quais “Baby, Let’s Play House”, “Hound Dog”,Trouble” e “That’s Alright”). E não só cantou as músicas, como esteve à altura do talento de Elvis, o que por si só já é uma performance de uma perfeição completamente admirável.  O Elvis de Austin Butler parece-se tanto com o original que poderia ser uma cópia praticamente idêntica, mas descrever a interpretação de Austin Butler como uma mera cópia não faz justiça à profundida e sensibilidade emocional que o ator deu à personagem, fruto de uma dedicação profunda. Elvis é o primeiro grande projeto do ator e, certamente, irá consagrá-lo como uma estrela em Hollywood.

Depois dos sucessos comerciais em anos recentes de filmes sobre músicos do Rock ‘N’ Roll como Bohemian Rhapsody (2018) e Rocketman (2019), estava mais do que na altura do Rei do Rock ‘N’ Roll ter o seu momento no grande ecrã. E Elvis foi muito mais além do que os seus predecessores graças, em grande parte, à audácia de Baz Luhrmann e ao talento de Austin Butler. Luhrmann é um autor polarizante, o seu estilo maximalista tende a dividir o público, ou se adora ou se odeia, mas é exatamente esta exuberância estilística que se adequa a Elvis Presley, imortalizado no panteão da cultura popular americana com o seu legado musical, estilo icónico e ornamentação ostensiva.

Elvis é um caleidoscópio cinemático de cores vibrantes, flashes e movimentos rodopiantes de câmaras, tiras de bandas desenhadas animadas, justaposições de efeitos, títulos, cartazes, mapas e fotografias numa colagem visual glamorosa com uma quantidade excessiva de planos por sequência. Elvis é um filme que só poderia ter sido feito por Baz Luhrmann, um filme do mais puro e cru Rock ‘N’ Roll em que o seu Rei é apresentado visualmente como um super-herói lendário.

Classificação: ★★★★★


Top Gun: Maverick (2022)

Trinta e seis anos depois da estreia de Top Gun - Ases Indomáveis Tom Cruise volta a encarnar o mítico piloto Pete “Maverick” Mitchell, papel que lançou o ator para a estratosfera e o estabeleceu como uma estrela entre as estrelas.  Durante anos Cruise recusou-se a fazer uma sequela para o original de 1986, mas depois do realizador Joseph Kosinski lhe ter apresentado o argumento, movido pela relação de Maverick e o filho de Goose, o ator foi finalmente convencido. Tom Cruise e Val Kilmer retomam os papéis originais e junta-se ao elenco Miles Teller, Jennifer Connely, Jon Hamm, Glen Powell, Monica Barbaro, Lewis Pullman e Ed Harris.

Top Gun: Maverick foi exibido pela primeira vez no festival de Cannes a 17 de maio onde obteve uma receção positiva e valeu a Cruise uma Palma de Ouro honorária. O filme estreou em Portugal a 26 de maio e alcançou sucesso comercial a nível mundial, tornando-se o filme com maior receita de bilhetaria na carreira de Cruise.  

Em Top Gun: Maverick reencontramos Maverick como um piloto de testes, um verdadeiro ás que se destaca entre os melhores pilotos da Marinha e ultrapassa limites com um talento inegável. Apesar de ter sido condecorado com várias distinções pelos seus feitos ao longo de mais trinta anos de serviço, Maverick nunca subiu na hierarquia da Marinha e continua a ser só um capitão, o que lhe permite continuar a voar em serviço. Devido à importância e improbabilidade de sucesso de uma missão especial, Maverick regressa à academia Top Gun, mas desta vez no papel de instrutor. Foi feita uma seleção dos melhores pilotos da Marinha para aprenderem sob a tutela de Maverick e entre estes encontra-se Bradley “Rooster” Bradshaw (Miles Teller), filho do falecido melhor amigo de Maverick, Nick “Goose” Bradshaw (Anthony Edwards). O relacionamento entre Maverick e Rooster é turbulento e conflituoso devido à tentativa de Maverick de manter Rooster fora da Marinha e longe do perigo.

No cerne da questão que move a narrativa do filme está o desejo que Maverick tem de ser uma figura paternal para Rooster e de o proteger de uma morte antecipada; a culpa que sente pela morte de Goose e o fardo de enviar jovens para uma missão mortífera na qual muitos poderão perder a vida.

Mais de trinta anos depois do original, Top Gun: Maverick pode ser uma das melhores sequelas algumas vez feitas. A nova geração de pilotos é tão arrogante, confiante e audaz como a primeira, desafiam-se uns aos outros à primeira chance que têm, mas o sentido de camaradagem une-os ao final do dia. O filme faz paralelos e referências diretas ao original e reitera o sentido de humor, a música icónica e o espírito juvenil e imparável que definem Top Gun, tendo até recriado montagens icónicas como a montagem introdutória e a montagem do jogo de volleyball na praia, sendo desta vez futebol americano durante o pôr-de-sol e em contraluz. É um filme que entende o poder da influência que o original tem na cultura popular e que percebe como reavivar o mito da personagem de Maverick sem a banalizar.

Os relacionamentos entre as personagens conduzem a ação, mas Top Gun: Maverick mantem-se preso ao cânone estabelecido e previsível do género de ação. Os adversários são os “maus”, tal como no original trata-se de um inimigo cuja identidade e nacionalidade é omitida ao público, apenas interessa o foco nos “bons”, nos heróicos e valentes pilotos. O romance é obrigatório, como é de esperar de um filme de ação deste calibre, e desta vez o interesse romântico é a Penny (Jennifer Connely), que apesar de ser um ótimo ombro amigo para Maverick, a química com o mesmo é por vezes algo insípida e fica muito aquém do romance original de Top Gun com Charlie (Kelly McGills).

Mas o que torna Top Gun: Maverick tão formidável é o aspeto técnico por detrás da pilotagem dos caças. As manobras e voos são reais e as reações do elenco genuínas. Tom Cruise, conhecido fazer as próprias acrobacias nos filmes e não utilizar duplos, queria autenticidade e realismo na sequela de Top Gun. O ator formulou um plano de treinos para preparar os atores a suportarem a força G e os voos nos caças F-18. Óbvio que os atores não pilotaram os caças, mas voaram nos mesmos no lugar do pendura enquanto os pilotos verdadeiros da Marinha faziam as manobras. Foram necessário meses de treino e foram investidos milhões de dólares para alugarem os caças F-18. Foi necessário um excelente trabalho de equipa e coordenação entre atores (que tinham de controlar as câmaras nos cockpits) e o resto da equipa técnica para obterem boas filmagens de dentro do cockpit.

Isto resultou em montagens de voos viscerais e realistas, em que o poder bruto destas máquinas e o impacto que a gravidade tem no corpo humano prevalecem e espantam os espetadores. As sensações alcançadas nestas cenas de ação dificilmente serão desmerecidas até pelo mais impiedoso crítico. 

Top Gun: Maverick veio para dominar as salas de cinema, é um filme do mais puro e aliciante entretenimento que relembra a saudosa era de quando os filmes de ação não eram filmados maioritariamente com green screens. É um filme que promete maravilhar desde os fãs mais ardentes até à geração mais jovem. 

Classificação: ★★★★


Northman (2022)

The Northman, cujo título português é O Homem do Norte, trata-se do terceiro filme do realizador norte-americano Robert Eggers e estreou nas salas de cinema portuguesas a 21 de abril. Eggers, aclamado por The Witch (2015) e The Lighthouse (2019) e reconhecido pela sua preferência por filmes históricos no género de horror, embarca agora numa aventura diferente com o épico de vingança viking de grande orçamento.

The Northman é baseado na lenda nórdica de Amleth, a inspiração direta para a peça Hamlet de Shakespeare. Esta adaptação passada no século X, co-escrita por Robert Eggers e Sjón, segue a jornada sangrenta e destrutiva do jovem príncipe viking Amleth (Alexander Skarsgård) para vingar o pai, o Rei Horvendill (Ethan Hawke), traído e assassinado pelo próprio irmão Fjölnir (Claes Bang) que cobiçava o trono e a rainha Gudrún (Nicole Kidman). Amleth consegue escapar com vida e jura vingar o pai, salvar a mãe e matar Fjölnir; jura cumprir o seu dever e cumprir o que lhe foi profetizado. Muitos anos passam e Amleth torna-se um grande guerreiro que saqueia povos na Europa com um grupo de vikings. É numa destas aldeias que Amleth encontra uma bruxa que o relembra da profecia que lhe foi lida em criança, que um dia ele iria matar o assassino do pai num lago de fogo, e do juramento que ainda não cumpriu. Amleth, com sede de vingança, infiltra um barco de escravos destinados a serem vendidos a Fjölnir, onde conhece a escrava eslávica Olga (Anya Taylor-Joy) que o irá ajudar a alcançar o seu objetivo.

Esta produção conta, para além dos atores anteriormente referidos, ainda com Willem Dafoe e Björk nos papéis de bruxos profetas, formando desta forma um elenco principal de renome que fortifica o filme com excelentes performances. 

Sendo The Northman o primeiro projeto de Eggers financiado e produzido por um grande estúdio, e uma vez que a temática trágica de Amleth (e Hamlet de Shakespeare) é bastante familiar, é natural que este seja o filme mais acessível e amigável para o grande público da autoria de Eggers até à data. Porém, The Northman mantém os elementos que caracterizam a visão artística do cineasta: o estranho, o fantástico, o sombrio e o violento. São todos estes aspetos, mais o esforço por demonstrar e incutir o aspeto histórico e mitológico no mundo das suas personagens, que destacam o trabalho de Eggers, e que são plenamente evidentes na sua obra mais recente.

O grande orçamento permitiu ao realizador envergar por caminhos que ainda não tinha explorado, como por exemplo, cenas de lutas inegavelmente complexas com imensos figurantes, sendo um dos momentos mais louváveis em termos técnicos do filme o plano-sequência do saqueamento de uma das aldeias, que envolveu não só os guerreiros e habitantes como também ainda cavalos e fogo. O maior uso de efeitos especiais em sequências fantasiosas e simbólicas foi explorado com mestria criando imagens que misturam o mitológico com o psicadélico. Eggers provou desta forma ser capaz de dirigir um filme épico de grande escala sem comprometer a sua visão artística individual.

The Northman é, inclusive, a terceira colaboração de Eggers com o diretor de fotografia Jarin Blaschke cuja cinematografia foi, mais uma vez, tão impecável quanto implacável ao capturar a beleza agreste deste conto viking passado maioritariamente na Islândia.

A história de vingança protagonizada por Amleth é simples, mas a simplicidade do objetivo não a torna menos interessante. As dinâmicas entre as personagens, tanto de ódio e de amor; as temáticas de dever, justiça, honra e profecia; o bizarro e brutal da religião dos velhos deuses nórdicos e a promessa de Valhalla; e, por fim, a impossibilidade de fugir ao destino, são todos componentes narrativos que cativam do início ao fim. 

The Northman é o resultado de quando grandes estúdios apostam em jovens realizadores inovadores, é a perfeita simbiose entre o fantástico e o violento. É um filme que deve ser obrigatoriamente visto em sala de cinema para apreciar a escala e beleza. 

Classificação: ★★★★★


Competição Oficial (2021)

A co-produção espanhola-argentina Competição Oficial, protagonizado por Penélope Cruz, António Bandeiras e Oscar Martínez, estreou nos cinemas portugueses a 24 de março. O projeto é dirigido pelo duo de realizadores Gastón Duprat e Mariano Cohn, que contam com um longo trajeto de colaborações cinematográficas.

Competição Oficial trata-se de uma comédia dramática com uma ideia simples, mas original: Humberto Suaréz (José Luís Gomez), um magnata da indústria farmacêutica obscenamente rico, decide impulsivamente financiar e produzir o melhor filme de sempre para ser lembrado como o homem por detrás dessa produção. Suaréz contrata Lola Cuevas (Penélope Cruz), uma realizadora renomeada e irreverente, e esta, por sua vez, traz a bordo do projeto dois atores talentosos de círculos bastante diferentes: Félix Rivero (António Banderas), uma estrela de cinema extremamente popular internacionalmente, e Iván Torres (Oscar Martínez), ator de teatro e professor de prestígio, conhecido pelo título de “Mestre” dentro do círculo artístico das artes de representação. A escolha de atores de Lola foi feita de forma consciente para aproveitar a diferença entre ambos e cultivar a rivalidade e utilizá-la para dar forma às personagens do filme. Esta tensão entre os dois artistas, que irão fazer de irmãos no filme de Lola, é posta à prova e intensifica-se com o decorrer das sessões de ensaios.

A rivalidade e o ego artístico e pessoal dominam toda a ação do filme, no fundo, são o centro gravitacional da história. A importância do legado está no centro das motivações das personagens: o bilionário com desejos de imortalizar-se por meio de um legado positivo; a realizadora que se define como genial, incompreensível e sensível; a estrela de cinema e os seus prémios, cheques milionários e mansões e o ator elitista que olha com repugnância tudo aquilo que é popular e adorado pelas massas.

São os egos exacerbados das personagens que tornam Competição Oficial tão aliciente, divertido e, por vezes, chocante. A rivalidade existe primeiramente entre os dois homens, mas a relação do trio é igualmente tensa e volátil. Lola, completamente rendida à sua visão artística, é exaustiva e implacável gerando o caos com exercícios arriscados durante os ensaios. A rivalidade entre Félix e Iván transborda toxicamente dentro e fora de cena, e cresce até se tornar ódio, ao ponto de poderem traçar-se paralelos entre a vida real dos atores e o par de irmãos fictícios que representam. Por fim, todo este desdém culmina em reviravoltas surpreendentes e consequências desastrosas que ameaçam o plano inicial do filme de Lola.

Competição Oficial executa brilhantemente uma ideia original ao criar um guião cativante e fazer um excelente uso do talento do elenco que protagoniza o filme.  É ainda elevado por uma cinematografia e direção de arte que enfoca a magnitude dos edifícios e salas de ensaios remetendo, desta forma, para o tamanho do ego destes artistas. Outra faceta louvável é ainda o empenho em demonstrar a intensidade e intimidade da arte da representação ao executar planos grandes em que o ator olha diretamente para o público como se fosse o seu parceiro de cena.  

Com uma duração de quase duas horas Competição Oficial nunca perde o ritmo ou o fio à meada. E apesar da qualidade excêntrica das personagens, usada naturalmente para fortalecer a comédia e drama do enredo, há um fundo de verdade nas perguntas que surgem sobre prestígio, cultura do espetáculo, popularidade, criatividade e ingenuidade artística, porque é, afinal de contas, um filme sobre fazer filmes. “O que é um bom filme? Quem decide? Por gostares de algo significa que é verdadeiramente bom?” são várias das perguntas que borbulham por entre disputas e confissões.

Competição Oficial é um daqueles filmes com a qualidade rara de nos prender desde início e perdurar na mente muito depois de sairmos da sala de cinema.

Classificação: ★★★★★


A Vida Extraordinária de Louis Wain

A Vida Extraordinária de Louis Wain estreou nas salas de cinema portuguesas a 20 de janeiro. Este filme biográfico, da autoria do realizador Will Sharpe, é protagonizado pelo ator Benedict Cumberbatch que encarna o enigmático artista britânico que encantou o mundo com as suas pinturas de gatos caracterizadas por um estilo único reconhecível (e imitado) até à nossa atualidade. Esta produção britânica traz ao grande ecrã a vida e obra de Louis Wain, seguindo as suas peripécias desde a década final de 1800 até 1930.

Inicialmente, a personagem de Louis Wain enquadra-se perfeitamente no arquétipo de génio excêntrico, estranho e com pouca aptidão social. Arquétipo este pelo qual o ator Benedict Cumberbatch é conhecido (Sherlock na série homónima da BBC, Alan em The Imitation Game, Doctor Strange no universo cinemático da Marvel). Conhecemos Wain num frenesim, sempre em movimento, dedicado a todas as suas paixões em simultâneo, desde composição de óperas às suas patentes, porém não tem sucesso nessas experiências. Sendo um pintor talentoso, Wain encontra nas ilustrações para o jornal a forma para providenciar para as irmãs mais novas e mãe, visto que era a sua responsabilidade enquanto chefe de família. Wain é audaz, frenético e completamente obcecado pela ideia de “eletricidade”, a ideia de energia como força omnipresente e capaz de solucionar todos os males.   

A criatividade e necessidade de desvendar a misteriosa “eletricidade” parte não só da curiosidade inerente ao jovem artista, mas também de uma dor profunda, que assume forma em pesadelos e neuroses presentes desde criança. Como se tornam então os gatos o objeto de interesse nas pinturas de Wain, um artista torturado e brilhante? A resposta é simples: devido à sua esposa, Emily Richardson (Claire Foy). Pouco tempo depois de se casarem, Emily é diagnosticada com cancro. É nessa altura que o casal encontra um gato bebé e adota-o como animal de estimação, algo incompreensível para a altura, e Louis começa a desenhar o gatinho, Peter, para Emily. Incentivado pela esposa, Louis mostra os desenhos dos gatos ao editor do jornal e estes são publicados.

As ilustrações de Louis são uma revolução artística e social, tornaram-se extramente populares rapidamente e mudaram a opinião pública sobre gatos, outrora olhados com desconfiança foram agora elevados a animais de estimação adoráveis. Este sucesso deve-se, tal como a esposa e amigos próximos de Wain afirmam, ao facto de o pintor ser o primeiro a entender a natureza dos gatos (forasteiros; ridículos, mas ternurentos; assustadiços, mas corajosos) e expressá-la com esse leque de facetas, em parte por ele próprio partilhar essas mesmas características.

Mesmo depois da dor descomunal que foi perder Emily, depois da queda da popularidade das suas ilustrações e do seu estatuto social e económico, Louis continuou a desenhar gatos até ao fim e a sua fixação na “eletricidade” apenas aumentou. A evolução na sua arte demonstra esse mesmo declínio mental e emocional, chegando a ter traços psicadélicos.

O mais louvável em A Extraordinária Vida de Louis Wain é a dedicação em contar visualmente a história no estilo artístico que reflete o artista e a sua época. Os exemplos são vários desde pesadelos filmados de forma a lembrar os filmes do início do séc. XX tingidos em azul a sequências psicadélicas perto do internamento de Wain. Mas, o mais admirável são os planos que se transformam ao ponto de se assemelharem a quadros autênticos com pinceladas, por meio de efeitos visuais, desfoque, tonalidade e vivacidade da luz e das cores na paisagem, capturando e imortalizando a “eletricidade” a que Louis se refere quando estava na presença de Emily, aquela energia única, a conexão e amor sentidos naqueles momentos, o pontífice do belo capaz de solucionar tudo.

A Extraordinária Vida de Louis Wain é um filme em termos estilísticos maximalista, decidido a reproduzir o sentimento da obra e carácter do pintor, que pela maior parte mantém uma narrativa coesa e interessante, balançando o eufórico e disfórico da vida elétrica de Wain.

Classificação: ★★★★


A Mão de Deus (2021)

A Mão de Deus, cujo título original é È stata la mano di Dio, é o filme mais recente e, inclusive, o mais pessoal do realizador italiano Paolo Sorrentino. O autor alcançou renome internacional com A Grande Beleza (2013), vencedor do Óscar de Melhor Filme Estrangeiro, e The Young Pope (2016), a aclamada mini-série da HBO. Sorrentino que é caracterizado por um estilo cinematográfico maximalista e ostentativo opta agora, pela primeira vez na sua carreira, por um estilo mais simples e sóbrio para A Mão de Deus.  O filme estreou no Festival de Veneza em setembro, onde ganhou o Grande Prémio do Júri, e estreou globalmente na plataforma Netflix a 15 de dezembro.

Em A Mão de Deus, Sorrentino regressa à sua terra natal de Nápoles e aborda, pela primeira vez, a tragédia dolorosa que foi perder os pais quando era apenas adolescente. O jovem Fabietto (Filippo Scotti) é o protagonista desta obra autobiográfica ficcional colorida por toques de realismo mágico que relembram o grande realizador italiano Frederico Fellini.  Partindo do real, o autor revisita Nápoles dos anos 80 durante o verão em que Diego Maradona é adquirido pelo clube de futebol da cidade, um acontecimento tido como milagroso e divinal, e que no coração de fã fervente do Fabietto significaria um verão promissor para si, para a sua família e para Nápoles.

Fabietto tem uma família bastante extensa e vizinhos excêntricos. É este grande leque de personagens caricatas como, por exemplo, a tia infértil que pensa que foi curada pelo milagre do Pequeno Monge; a mãe que adora demonstrar o seu talento para partidas e truques; a velha baronesa com a qual Fabietto tem a sua primeira experiência sexual; que tornam possível o humor vivaz e, por vezes, absurdo do filme.

Em A Mão de Deus a alegria e dor são dimensões que coexistem no mesmo plano, sobrepondo-se em diferentes maneiras e intensidades. Porém, um acontecimento trágico muda tudo, e desta forma, o filme é composto por duas partes: o antes e depois da perda de Fabietto. O adolescente escolhe ver o Maradona a jogar em Nápoles e não viaja com os pais para a casa de férias, onde o casal acaba por morrer devido a uma fuga de monóxido de carbono.

Fabietto torna-se órfão inesperadamente e de um dia para o outro tem de viver com uma perda de um peso esmagador e a sua infância termina. A cidade de Nápoles banhada pelo Mediterrâneo, e os seus antigos monumentos e marinas, tornam-se o palco para a catarse que Fabietto procura. Para Fabietto esta catarse surge com o seu desejo de se dedicar ao cinema, de se tornar realizador de filmes.

A Mão de Deus é o filme mais contido, íntimo e vulnerável de Sorrentino, é definido pelo tom caloroso da nostalgia e do amor dos pais e da revelação do cinema como salvação e transformação, como uma forma de arte capaz de digerir uma dor inexplicável. Momentos de realismo mágico entrelaçam-se no filme como revelações através de encontros fugazes, quase oníricos, com o realizador Capuano (mentor de Sorrentino) e a aparição do Pequeno Monge.

A Mão de Deus é um ponto de viragem em termos de estilo e temática para Paolo Sorrentino e é, inclusive, o seu melhor filme.

Classificação: ★★★★


Spencer (2021)

O filme biográfico sobre a Princesa de Gales, Diana Spencer, da autoria do realizador chileno Pablo Larraín, não é um filme biográfico convencional, mas sim um drama psicológico que se desenrola como uma história de fantasmas. O aviso que antecede o início da ação, “Uma fábula baseada numa tragédia real”, encapsula a sensação de conto de fadas distorcido que permeia Spencer.

Spencer é o segundo filme biográfico da autoria de Pablo Larraín. Em 2016, Larraín realizou Jackie sobre Jacqueline Kennedy, esposa do Presidente JFK e Primeira-Dama dos E.U.A de 1961 a 1963. Após a receção positiva de Jackie nos circuitos de festivais de cinema, Larraín une-se agora ao argumentista Steven Knight, à diretora de fotografia Claire Mathon e ao compositor Jonny Greenwood para a produção de Spencer, protagonizado pela atriz Kristen Stewart.

A Princesa Diana é um ícone da cultura popular que perdura na memória global mesmo quase 25 anos após o seu trágico falecimento em Paris. Mas Spencer não tem como objetivo explorar uma cronologia que se desenvolve ao longo de vários anos nem os detalhes da sua morte prematura. Spencer foca-se somente no fim-de-semana de celebração de Natal de 1991, um total de três dias, quando a família real se reúne em Sandringham House tal como dita a tradição. Durante este fim-de-semana Diana batalha as repercussões da rigidez, alienação e escrutinação do sistema monárquico britânico e decide terminar o casamento com o Príncipe Charles, herdeiro ao trono.

Spencer é, acima de tudo, um estudo psicológico e emocional da personagem Diana durante estes três dias. O realizador Pablo Larraín e o argumentista Steven Knight basearam-se em relatos do staff da família real, mas adotaram várias liberdades artísticas para esta biografia ficcionalizada. Os problemas matrimoniais e casos extraconjugais do casal real; o conflito e tensão dentro da família e o desgaste mental, bulimia e automutilação de Diana são factos publicamente conhecidos.

O filme parte destes factos e constrói uma narrativa que se assemelha a um pesadelo: os corredores e quartos de Sandringham House tornam-se as trincheiras da batalha interior de Diana, que deambula pelo espaço como um fantasma, atormentada por visões da rainha Anne Boleyn (sentenciada à morte pelo marido, Rei Henry VIII) e delírios com o colar de pérolas oferecido a Diana por Charles que, por lapso de memória, é idêntico ao colar que ofereceu à amante, tornando o colar o símbolo físico da traição cometida.

O frenesim emocional sentido por Diana é amplificado pelo sentimento de impotência, claustrofobia e aprisionamento consequente da rigidez do sistema tradicional real. A abordagem narrativa de Spencer lembra desta forma dramas psicológicos como Black Swan (2010) de Darren Aronofsky ou Vertigo (1958) de Alfred Hitchcock e afasta-se formalmente dos típicos filmes biográficos.

A tensão e miséria são palpáveis em Spencer, mas, no entanto, o filme não se reduz a esse fatalismo. Após três dias de inquietação e desespero, Diana liberta-se da sua jaula impulsionada pelo debate interno entre as forças do passado, presente e futuro; pelo conforto encontrado na empatia de alguns dos membros do staff; e principalmente, pela felicidade de ser a mãe de duas crianças incríveis.

Spencer é, no fundo, um conto de fadas invertido uma vez que a felicidade é encontrada quando a princesa rejeita o príncipe, o título e o sistema e, por fim, reclama o seu apelido, liberdade e vida.

Para além do brilhantismo da narrativa ficcional que explora psicologicamente como a fascinante Diana poderá ter feito uma das decisões mais importantes da sua vida, Spencer é um filme que em termos formais e técnicos é inequivocamente formidável. É de salientar, em especial, a contribuição do compositor Jonny Greenwood (membro da banda Radiohead e compositor regular dos filmes do realizador Paul Thomas Anderson) que criou uma banda sonora eclética e frenética que mistura o género musical jazz e o género clássico barroco, demonstrando o confronto entre o espírito livre da Diana e a austeridade do sistema monárquico, resultando na criação de uma verdadeira paisagem sonora que conta e caracteriza a história musicalmente.

Em termos visuais, Spencer tem uma tonalidade e estética notavelmente meticulosa e onírica, algo que reconhecemos visualmente como antigo, mas não longínquo. Esta dimensão foi alcançada através do uso de película de 16mm para as filmagens e do olhar da diretora de fotografia Claire Mathon (Portrait of a Lady on Fire, Petite Maman).

Outra formalidade técnica que tem obrigatoriamente de ser referida quando se aborda Spencer é o desempenho da atriz Kristen Stewart. Stewart adotou e incorporou os maneirismos da Princesa de Gales enquanto simultaneamente procurou não ser uma imitação da pessoa, o que se provou ser uma escolha adequada e humanizadora tendo em conta o teor psicológico e alucinogénio presente nesta fábula. Stewart graciosamente encarna Diana e, consequentemente, perde-se nela.

Spencer é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes de 2021. É um filme orgulhosamente diferente, característica esta partilhada igualmente pela Diana Spencer.  Spencer estreou a 6 de setembro no Festival de Veneza e chegou às salas de cinema portuguesas a 4 de novembro. E, certamente, terá uma receção positiva nos circuitos de festivais e premiações que se aproximam nos próximos meses.

Classificação: ★★★★★


Dune (2021)

O realizador canadiano Denis Villeneuve regressou ao grande ecrã com a adaptação cinematográfica da obra literária de ficção-científica Dune, da autoria de Frank Herber, publicada em 1965.  Denis Villeneuve é reconhecido como um autor de renome no género fílmico da ficção-científica sendo que realizou anteriormente as aclamadas produções Arrival (2016) e Blade Runner 2049 (2017).

Dune é o filme distópico futurista mais antecipado do ano e estreou nas salas de cinema portuguesas a 21 de outubro. Esta adaptação de Dune conta com o ator Timothée Chalamet no papel de Paul Atreides, o protagonista, e ainda com os atores Zendaya, Charlotte Rampling, Oscar Isaac, Stellan Skarsgård, Javier Bardem e Jason Mamoa.

O clássico literário de Herber foi anteriormente adaptado para o grande ecrã pelo realizador David Lynch em 1984, porém o filme recebeu reações mistas de críticos e público, sendo considerado geralmente como uma adaptação fraca da história original.

O mundo de Dune é complexo, detalhado e inspirado por diversas culturas e religiões (especialmente pela cultura islâmica). Trata-se de um vasto império galáctico dividido em domínios feudais em que Casas governam não regiões, mas sim planetas inteiros. Existem vários conflitos pelo poder entre populações nativas e colonizadores; entre líderes de Casas, do governo imperial e as Bene Gesserit (organização religiosa) e entre crentes e não-crentes de mitos.

A história de Dune centra-se em Paul Atreides, um jovem dotado de vários talentos, herdeiro da Casa Atreides, filho de uma Bene Gesserit e designado como Messias pela influência de figuras poderosas encobertas por sombras e regras rígidas. Após o Imperador atribuir à Casa Atreides o planeta Arrakis, um planeta coberto pelo deserto e pela matéria-prima mais cara do universo por ser necessária para efetuar viagens intergalácticas, o jovem Paul tem de lutar pela sobrevivência da sua família e desvendar o significado das premonições que aparecem nos seus sonhos.

A versão de Dune de Villeneuve é um filme de proporções épicas que deslumbra com a escala da ação e sucede na junção de efeitos especiais de combates explosivos com a beleza da magnitude árida do deserto da Arrakis. É uma narrativa visualmente estimulante intensificada pela banda sonora do compositor Hans Zimmer.

O cuidado estético, a mitologia estipulada e a seriedade do dilema do protagonista de Dune distinguem o filme de outras produções de ficção-científica contemporâneas de grande orçamento de Hollywood, que dominam as bilheteiras com histórias omnipresentes de super-heróis ou sequelas repetitivas de franchises. Dune é neste sentido uma lufada de ar fresco necessária, uma alternativa ambiciosa e revigorante, uma história sobre imperialismo e subjugação, sobre crença e esperança. No entanto, este é só o início da viagem de Paul e, por essa razão, o final e deixa-nos com uma sensação incompleta, porém promissora, da história.

Felizmente, a continuação, Dune – Part 2, já foi confirmada após a grande afluência de espetadores na semana de estreia de Dune. A sequela irá chegar às salas de cinema em 2023.

Classificação: ★★★★


Noite na Terra (1991)

O filme “Noite na Terra” de 1991 da autoria do realizador americano Jim Jarmusch trata-se de uma antologia de cinco comédias que ocorrem em cidades diferentes na mesma noite e sempre dentro de um táxi. Não se trata de um filme com um início ou final particularmente arrebatador, não aprendemos nenhuma lição, não somos surpreendidos com nenhuma reviravolta ou deslumbrados com uma conclusão inesquecível. É apenas um momento de partilha, um momento de comunhão, sem inibições, durante a noite entre estranhos que provavelmente nunca mais se irão encontrar.

Começamos em Los Angeles, com uma diretora de casting glamorosa (Gena Rowlands) que tenta convencer uma jovem rapariga taxista, aspirante a mecânica, pouco sofisticada, porém bastante romântica (Winona Ryder) a aceitar o papel num filme, mas sem sucesso. Seguimos para Nova Iorque, onde conhecemos o estiloso jovem Yo-yo (Giancarlo Esposito), natural de Brooklyn, que ensina o taxista oriundo da Alemanha de Leste (Armin Mueller-Stahl) como conduzir um carro, já que a profissão anterior do velhote alemão era ser palhaço de circo. De seguida, atravessamos o Atlântico até Paris, onde um taxista marfinense (Isaach De Banko), vítima de comentários discriminatórios, coloca perguntas discriminatórias e ignorantes à sua cliente cega (Beatrice Dalle) que lhe responde fervorosamente sem nenhum momento de hesitação. Viajamos depois até Roma, onde um taxista (Roberto Benigni) domina completamente a conversa com o cliente, um bispo, ao confessar os seus pecados carnais numa corrente de descrições de atos sexuais absurdos. Terminamos a coletânea de histórias na cidade de Helsínquia, na qual um taxista (Matti Pellonpää) leva a casa três homens depois de uma noite a afogarem as mágoas em álcool. Os homens acabam a expor a tragédia sofrida pelo amigo apenas para o taxista contar a sua própria tragédia, uma perda tão grande, que coloca numa nova perspetiva os problemas dos fregueses.

O foco do filme “Noite na Terra” é a universalidade. As cidades existem como pano de fundo que conferem o tom e possibilitam a transmissão de localizações, culturas e línguas diferentes, porém são nos apresentadas conversas íntimas que conferem a sensação de familiaridade. Grande porção do filme é sempre passada no interior dos diferentes táxis, o filme é acima de tudo um exercício de escrita e um exercício de representação uma vez que ao confinarmos personagens num espaço físico será a arte do diálogo a dominar a cena. Jim Jarmusch contrapõe personagens extremamente diferentes e explora como as dinâmicas fervem como quem estuda a reação de químicos. Certas histórias são mais engraçadas que outras, umas mais lentas, outras mais tristes, e outras de tal forma absurdas que parecem uma anedota. Mas todas elas têm o toque característico do autor Jim Jarmusch, um toque específico de humor que recaí na estranheza reconfortante. 

“Noite na Terra” não é um filme de voyeurismo, mas sim de companheirismo no qual o espetador é um passageiro invisível dentro do táxi, a absorver histórias contadas por intervenientes desinibidos no conforto da noite. 

“Noite na Terra” encontra-se disponível para visualização na plataforma de streaming Filmin.

Classificação: ★★★★


Bem Bom (2021)

O filme biográfico “Bem Bom” sobre a primeira girl band portuguesa, as Doce, estreou nas salas de cinema a 8 de julho. “Bem Bom”, da autoria da realizadora Patrícia Sequeira, conta com a atriz Bárbara Branco no papel de Fátima Padinha, Carolina Carvalho como Lena Coelho, Ana Marta Ferreira como Laura Diogo e Lia Carvalho como Teresa Miguel.

O filme inicia-se em 1979, com a formação das Doce, e segue a banda, na sua vida pública e privada, até à participação no festival da Eurovisão em 1982.  As Doce nasceram com o intuito de revolucionar o panorama musical de Portugal e serem um êxito imparável. O sucesso da primeira girl band portuguesa, e inclusive uma das primeiras girl bands europeias, estava dependente da harmonia entre as quatro mulheres do grupo, mas uma harmonia que ia para além do aspeto vocal já que o que torna as Doce especiais é a fórmula aperfeiçoada e sincronizada resultante de quatro partes distintas. Cada Doce tinha uma função e trazia um ingrediente diferente à banda.

Seguimos assim o início complicado e agreste das Doce, marcado por discussões entre as integrantes do grupo, os produtores, a gravadora e o estilista. O processo criativo foi turbulento, mas bem-sucedido graças à vontade de singrar das quatro cantoras. Êxito após êxito, desde o primeiro single “Amanhã de Manhã”, as Doce causaram furor e dominaram as vendas de discos, mas, no entanto, perderam o Festival da Canção, que era um dos principais objetivos, consecutivamente. Somente em 1982 ganharam o Festival da Canção e garantiram lugar na Eurovisão.

Mas “Bem Bom” é mais do que uma história de sucesso com um percurso atribulado, é um filme sobre a condição feminina num período marcadamente machista, uma época condicionada ainda pela falta de liberdade e pelo tradicionalismo incutidos no povo durante a ditadura. As Doce foram mais do que uma novidade musical uma vez que através da sua presença nos palcos foram, de certa forma, uma revolução social ao serem ousadas, provocantes e sensuais, algo que era impensável naquela época para as mulheres portuguesas. O filme aborda os aspetos das vidas pessoais das integrantes: os seus problemas familiares, românticos e financeiros; temáticas tabus como o aborto ou as polémicas sexuais alimentadas por boatos que nasceram de preconceitos machistas e racistas.

O filme biográfico ficcionado das Doce é uma obra inegavelmente agridoce que explora o lado negro da fama e do reconhecimento nacional, que explora a alegria e sofrimento vivenciados pelas quatro mulheres que formaram um dos grupos femininos musicais mais amados em Portugal. A narrativa parece perder o ritmo de uma forma insossa durante a segunda metade do filme, mas antes do final regressa ao estado energético e conciso inicial. Mas são as dinâmicas das Doce que foram interpretadas com habilidade, ferocidade e impetuosidade pelas talentosas atrizes que são o ponto forte desta produção cinematográfica. É aliciante presenciar as Doce a interagirem umas com as outras tanto na faceta pública a atuar em palcos ou na faceta privada a trabalhar no estúdio, a celebrar em bares ou a conversar nos quartos durante as digressões. Também a parte visual do filme é aliciente, especialmente durante as atuações das músicas, através da captura da jovialidade, sensualidade e eletricidade das jovens.

“Bem Bom” é uma produção cinematográfica nacional imperdível que celebra um dos grupos musicais com maior impacto na pop culture portuguesa. E, por sua vez, o documentário “Bem Bom – Realidade e Ficção” sobre a produção e objetivo do filme, disponível para visualização na RTP Play, é uma adição positiva e enriquecedora após visualização do filme.

Classificação: ★★★★


O Homem Que Vendeu a Sua Pele (2020)

“O Homem Que Vendeu a Sua Pele” é um filme, inspirado numa história verídica, realizado e escrito pela cineasta tunisina Kaouther Ben Hania. O filme esteve nomeado a Melhor Filme Estrangeiro na última edição dos Óscares e estreou nos cinemas portugueses a 24 de junho.
“O Homem Que Vendeu a Sua pele” conta a história de Sam Ali (Yahya Mahayni) e de como este jovem sírio se tornou numa obra de arte viva, num objeto vendível e colecionável, de forma a escapar à guerra no seu país e reunir-se novamente com a pessoa que ama. Sam é um jovem sensível, impulsivo e romântico, que é forçado a fugir do seu país após ser aprisionado injustamente pelo governo. Sam acaba a viver no Líbano onde conhece o artista Jeffrey Godefroi (Koen De Bouw) após ter sido apanhado a roubar comida numa exposição de arte pela assistente de Jeffrey, Soraya (Monica Belluci). Sam aceita a proposta polêmica que Jeffrey lhe faz uma vez que o jovem é movido pela falta de meios e pelo desejo de voltar a ver sua namorada Abeer (Dea Liane), que casou com um homem que trabalha na embaixada síria na Bélgica para fugir à guerra.
Sam vende as suas costas a Jeffrey e transforma-se numa tela humana para um dos artistas mais controversos do Ocidente. Jeffrey tatua na pele de Sam um visto, um comentário à falta de direitos dos refugiados. Consequentemente, Sam torna-se uma mercadoria artística e obtém um visto que lhe permite viajar pelo mundo e ser exposto em galerias e museus.
Sam aceitou tornar-se um objeto, um trabalho artístico, porque só através deste pacto imoral e desumano foi possível alcançar liberdade. Um paradoxo trágico ao qual decidiu submeter-se. Porém, ao iniciar a sua vida enquanto obra de arte viva Sam percebe que o contracto que assinou é tudo menos liberdade.
Apesar das novas paisagens europeias e dos confortos básicos assegurados, o desespero volta a criar raízes em Sam. O jovem começa a desmoronar-se emocionalmente dentro das paredes dos hotéis de luxo em que vive devido a ser desfilado e exibido em museus e ser controlado, cuidado e vendido como uma mercadoria; devido à impossibilidade de reunir-se com Abeer, o amor da sua vida; e devido ao peso da culpa de ter fugido à violência da guerra enquanto a sua família vive essa violência diariamente.
“O Homem Que Vendeu a Sua Pele” expõe através de uma narrativa extremamente controversa e invulgar os limites que pessoas ultrapassam para escapar aos horrores da guerra e as circunstâncias desumanas e dolorosas que são capazes de enfrentar em nome da liberdade. É um filme que expõe o desespero e tenacidade humana dos refugiados e que igualmente mostra a falta de empatia, humildade, companheirismo daqueles que nunca viveram em situação de guerra. É um filme que através da formulação de um contracto absurdamente não-convencional, em que um homem é tornado mercadoria, obriga a refletir sobre o valor da vida humana e sobre o que significa ser livre.
A realizadora Kaouther Ben Hania inspirou-se na história verídica do artista belga Wim Delvoye que tatuou uma obra no suiço Tim Steiner, que posteriormente vendeu a um colecionador por 150 mil euros, para escrever “O Homem Que Vendeu a Sua Pele”. A realizadora tem uma preferência notável por planos com enquadramentos dentro de enquadramentos e planos com foco em reflexões de espelhos que utiliza para criar imagens de separação e alienação de forma a relatar a história de Sam Ali.
O desespero subsequente da falta de escolhas e meios do protagonista é transversal a todos os refugiados que arriscam as suas vidas na tentativa de fugir às guerras que desolam os seus países. Obras como “O Homem Que Vendeu a Sua Pele” são filmes necessários uma vez que abordam e incentivam a discussão sobre esta crise humanitária que se vem alastrando há vários anos e continua a roubar vidas, e como tal, permanece um tema de extrema importância.

Classificação: ★★★★


O Pai (2020)

“O Pai” é a primeira longa-metragem realizada por Florian Zeller, dramaturgo e escritor francês. Trata-se da adaptação para o grande ecrã da peça de teatro homónima e é protagonizado por Anthony Hopkins, uma das figuras mais celebradas e galardoadas na arte da representação. “O Pai” foi criticamente aclamado desde a sua estreia e tornou Anthony Hopkins a pessoa mais velha, aos 83 anos, a vencer um Óscar na categoria de representação. O filme estreou nas salas portuguesas a 6 de maio.

O filme segue a mente em detioração do idoso Anthony (Anthony Hopkins), que outrora fora um homem com uma personalidade extremamente independente e difícil, mas com um humor cortante e inteligente. A sua filha Anne (Olivia Colman) tenta contratar alguém para cuidar do pai uma vez que ele não está apto para viver sozinho, mas Anthony dificulta ativamente o processo sabotando as iniciativas de Anne ao aterrorizar a ajuda que contratou. Anthony acredita-se capaz de cuidar de si mesmo, não aceita a sua condição e considera que a preocupação da filha não tem fundamento. Mas a sua mente atraiçoa-o e prega-lhe sustos cada vez mais graves até o idoso começar a duvidar daqueles que o rodeiam e da própria realidade.

Outros grandes filmes como “O meu nome é Alice” (2014) ou “Amor” (2012) já abordaram a doença Alzheimer, demência e envelhecimento, mas “O Pai” acresce algo de novo já que a narrativa do filme enfoca o ponto de vista do idoso em vez de seguir a visão externa e objetiva da progressão da condição do Anthony pelas lentes dos familiares. Por outras palavras, temos acesso à decadência mental e emocional de Anthony segundo o relógio interno desregulado do idoso, nós vemos como ele vê. Primeiramente as mudanças são lentas, mas progressivamente perdemo-nos com o idoso no labirinto mental que se complica, sem norte nem sul que o guie. A narrativa torna-se ilógica, caótica e repetitiva, a linha do que é real e irreal desvanece com a mente de Anthony: objetos desaparecem, pessoas mudam de aparência, conversas repetem-se. A noção de espaço-tempo de Anthony desmorona-se sendo que dias transformam-se em meses, lugares transformam-se noutros lugares e pessoas que já morreram há anos voltam à vida na mente estilhaçada do idoso. É uma prisão mental sem fim nem início, demonstrada habilmente pelas escolhas visuais e de cenário do autor, em que tudo tem a mesma estrutura, as mesmas portas e os mesmos corredores, apesar de serem lugares diferentes em tempos diferentes.

“O Pai” é um filme angustiante que mostra sem inibições o interior de uma mente em deterioração no outono da vida e que não nos permite desviar o olhar do terror e confusão do envelhecimento ou da dor daqueles que nada podem fazer para ajudar. É um filme excelente, com argumento e realização exemplares, que conta ainda com um dos melhores desempenhos de Anthony Hopkins. É um filme difícil de se ver porque retrata uma realidade que a grande maioria das pessoas não quer ver por ser dolorosa e incurável, mas é a franqueza face à fragilidade e incapacidade da mente humana que torna “O Pai” um filme tão emocional e, consequentemente, necessário.

Classificação: ★★★★★


Sound of Metal (2019)

Sound of Metal (título em português: O Som do Metal) é o novo filme de Darius Marder protagonizado pelo ator Riz Ahmed. O filme acumulou vários prémios desde a sua estreia no Toronto International Film Festival, culminando em seis nomeações para os Óscares e sendo galardoado com as estatuetas de ouro de Melhor Montagem e de Melhor Som.

Sound of Metal segue a mudança abrupta de 180º graus na vida do baterista ex-toxicodependente Ruben quando este perde a audição repentinamente. Quando um médico o informa do seu estado, ele julga ser o fim da sua vida e da sua carreira. A namorada e vocalista Lou (Olivia Cooke) interna o parceiro numa casa e comunidade para surdos, para que este possa ser ajudado a adaptar-se às suas novas circunstâncias e evitar que tenha uma recaída depois de quatro anos sóbrio. Ruben inicia assim uma longa aprendizagem amortecida pelo sentido de uma nova comunidade e sensatez do mentor Joe (Paul Raci). No entanto, uma inquietude permanece em Ruben que anseia por recuperar a audição através de implantes e reunir-se com a namorada e retornar à vida que deixou para trás.

A ânsia que governa Ruben leva-o a fazer decisões extremas numa tentativa frustrante para recuperar o que não é recuperável, mas a escolha mais difícil que terá de fazer será entre o seu novo normal silencioso ou a vida cacofónica, que outrora, fora a sua realidade.

Sound of Metal é uma grande produção audiovisual com ênfase no áudio, é uma longa-metragem imersiva que faz uso do som para demonstrar a mudança violenta que Ruben vivencia e para nos colocar no lugar do jovem ao serem realizadas frequentemente transições sonoras entre o som ambiente e a experiência sonora pessoal de Ruben: os sons abafados, distorções, silvos e zumbidos agudos e, por fim, o silêncio.

Música tem um grande peso no que toca a criar o tom de uma obra e despoletar emoção no espetador num filme dramático, e por vezes, em certos filmes, também o silêncio é utilizado para o mesmo propósito. Sound of Metal, por sua vez, faz um uso arrebatador do ruído, por exemplo, na cena de dueto de piano quando a agradável e melódica voz de Lou transforma-se num ruído distorcido agudo e inteligível seguido por palmas distorcidas impossíveis de suportar, esta é a realidade de Ruben mesmo depois de todo o seu esforço para conseguir voltar a ouvir com  a ajuda de implantes. O som da sua vida passada nunca regressará.

O destaque deste filme é, sem dúvida, a mistura e edição de som, a soundscape construída que nos revela uma realidade nova e merece todo o mérito que recebeu nos últimos meses. Também o desempenho de Riz Ahmed é de louvar sendo que Ruben é o moto, sempre em movimento, do filme, um motor turbulento, volátil, indefeso e sensível que precisa de ser remendado.

O silêncio é ensurdecedor para Ruben, é assustador e alienante, mas é também reconfortante e poderoso uma vez aceite. Sound of Metal é sobre a descoberta de um mundo novo, é sobre a aceitação de uma realidade diferente e a aceitação da quietude.

Sound of Metal encontra-se disponível para visualização no Prime Video.

Classificação: ★★★★


Se Esta Rua Falasse (2018)

O realizador Barry Jenkins alcançou furor internacional com o filme Moonlight (2016), uma história que tem início nos anos 80 e segue as vivências de um jovem afro-americano gay e a discriminação de que foi alvo até se tornar adulto. Moonlight valeu a Jenkins várias nomeações de prémios incluindo os prestigiados Óscares para Melhor Realizador, Melhor Argumento Adaptado e Melhor Filme. Jenkins levou para casa as estatuetas de ouro das últimas duas categorias.

Não é um exagero afirmar que Moonlight é um dos filmes que mais marcou a década de 2010. Barry Jenkins sucedeu Moonlight com o filme Se Esta Rua Falasse (título original: If Beale Street Could Talk) que estreou em 2018. Se Esta Rua Falasse é a terceira longa-metragem de Jenkins e trata-se da adaptação do “romance-manifesto” homónimo do romancista, poeta, dramaturgo, crítico social e ativista James Baldwin. Baldwin foi uma das vozes mais fortes na defesa dos direitos dos afro-americanos e homossexuais, tendo dedicado a sua vida e obra à luta contra a discriminação social.

Se Esta Rua Falasse conta a história de um casal que é tragicamente separado devido a um sistema preconceituoso. Tish (Kiki Layne) e Fonny (Stephan James) conhecem-se desde crianças, crescem juntos, aproximam-se e, por fim, apaixonam-se, acontece de forma natural, quase despercebida, como se simplesmente estivesse predestinado. Planeiam um futuro juntos com uma casa só deles e repleta com as obras de Fonny, que sonha em ser escultor. Mas este futuro é lhes roubado quando Fonny é preso injustamente devido a uma acusação de violação. Quando Tish descobre que está grávida decide que tem de encontrar um meio de provar a inocência de Fonny e garantir a sua liberdade para que ele possa ver o filho crescer, para que possam ser uma família juntos. As famílias do jovem casal embarcam então numa difícil e extenuante jornada para provar a inocência de Fonny, uma tarefa que, em última instância, acaba por se provar impossível. Fonny continua injustamente preso e é engolido pelo sistema prisional e judicial como tantos outros.

A história destes jovens acontece na década de 70 em Beale Street em New York, mas tanto poderia ter acontecido em New Orleans, Louisiana ou em Jackson, Mississippi. “Todos os negros da América nasceram em Beale Street” é a afirmação que inicia o filme. Intitular Se Esta Rua Falasse como um “romance-manifesto” é a descrição que faz mais justiça à história. É uma história de amor entre dois jovens sonhadores, mas é também um retrato fiel do preconceito que existe desde do nascimento dos Estados Unidos da América para com a comunidade afro-americana.  Preconceito este de tal forma cravado nas fundações do país que para além das ramificações vivenciadas diariamente se traduz ainda num sistema judicial injusto, discriminatório, incompetente e violento.

Filmes que relatam e atacam a temática do preconceito social têm sido favoritos nos circuitos de festivais nas últimas décadas como, por exemplo, 12 Anos Escravo (2013) ou Green Book – Um Guia Para a Vida (2018). Porém, as longa-metragens de Jenkins diferenciam-se de filmes como os referenciados anteriormente. Para além do cunho de autor único de Jenkins, alcançado através da construção de um estilo visual distinguível e caracterizado pela ênfase em cores ricas e quentes, a pouca profundidade de campo e o posicionamento das faces dos atores a centímetros da câmara que criam planos profundamente íntimos, acresce ainda a mestria do realizador na criação de narrativas incrivelmente sensíveis, ternurentas e vulneráveis. É esta ternura que distingue os filmes de Barry Jenkins, é a naturalidade e intimidade dos momentos simples e felizes que em contraste com o preconceito perpetuado incessantemente tornam as histórias tão comoventes. Jenkins dota os seus filmes de uma sensibilidade única e tem, desta forma, vindo a estabelecer-se como um dos cineastas norte-americanos mais talentosos da sua geração.

Se Esta Rua Falasse esteve nomeado para três Óscares, mas venceu apenas na categoria de Melhor Atriz Secundária com a atriz Regina King no papel de mãe de Tish. Para além da mestria demonstrada por Jenkins no seu ofício é importante ressaltar a qualidade dos desempenhos do elenco principal e o contributo essencial do compositor Nicholas Britell, com quem Jenkins colaborou previamente em Moonlight (2016), para o sucesso do filme.

Se Esta Rua Falasse é como uma canção de blues, é doce e amarga; é sensual, sensível e violenta; é sobre a alegria do amor e a tristeza, pautada por momentos fervorosos de raiva, que um sistema impiedoso e cruel inflige; é sobre escolher ter esperança quando tudo o resto falha. Se Esta Rua Falasse continua a ser tão relevante hoje como foi em 1974 quando James Baldwin escreveu a história. Os tempos mudam, o sistema evoluí, o preconceito assume novas formas e o mal existente na sociedade continua a afetar várias comunidades em diversas formas. São histórias que são necessárias recordar e discutir.

Se Esta Rua Falasse encontra-se disponível para visualização no catálogo da Netflix até dia 20 de abril.

Classificação: ★★★★★


Hiroshima, Meu Amor (1959)

Em 1959, após ter dedicado uma década à realização de documentários, o realizador Alain Resnais apresentou a sua primeira longa-metragem, Hiroshima, Meu Amor. O filme demarcou-se de imediato pela sua linguagem visual poética e é até hoje um dos filmes mais celebrados do cinema francês, um marco da Nouvelle Vague e uma obra incontornável no cinema de autor.

Hiroshima, Meu Amor é o entrelaçar do passado e do presente, de trauma pessoal e de uma grande tragédia pública, é uma dança entre memória e esquecimento. O encontro, por sorte do acaso, entre uma atriz francesa (Emmanuelle Riva), a trabalhar num filme sobre Hiroshima no Japão, e um arquiteto japonês (Eiji Okada), resulta num romance breve, mas intenso, que serve como pano de fundo para dialogar sobre o bombardeamento de Hiroshima e as sequelas da guerra.  Ambas as partes estão casadas e a atriz irá voltar para França dentro de um dia, ou seja, é um amor condenado desde o início, mas o par continua a encontrar-se uma vez que são movidos pelo desejo mútuo de conhecerem-se um ao outro e entenderem como se tornaram nas pessoas que são.

Este desejo de conhecer depressa transforma-se numa ocasião para auto-examinar o passado e exorcizar feridas profundas e escondidas. Desta forma, Hiroshima, Meu Amor desdobra-se elegantemente numa estrutura de flashbacks inovativa. No fundo, o filme é o desbravar da memória, é a observação dos movimentos de um relógio de areia. A estrutura narrativa flui suavemente devido ao guião escrito pela romancista Marguerite Duras, pelo qual recebeu uma nomeação a Óscar para Melhor Argumento Original, e pelo tom definido pelo olhar sensível, íntimo e simbólico de Resnais, que permeia todo o filme. Com este filme, Alain Resnais ganhou o prémio de melhor filme do Sindicato Francês de Críticos de Cinema, de melhor filme estrangeiro do Círculo de Críticos de Cinema de Nova Iorque e um prémio da Academia Britânica de Cinema.

Hiroshima, Meu Amor é simultaneamente uma história de amor e um filme anti-guerra. A impossibilidade deste relacionamento amoroso e o facto que nunca mais se irão ver afeta ambos de forma impiedosa e resulta consequentemente na confissão de vivências, passadas durante a guerra, nunca antes partilhadas. Estas revelações e reflexões são feitas por entre as ruas, cafés e hotéis de Hiroshima, e desta forma, são interligadas com a devastação causada pela bomba atómica. É um filme poético sobre o tempo, o amor e a guerra. Hiroshima, Meu Amor é sobre aceitar que o esquecimento face à tragédia, que acontece aos poucos e poucos, não só é inevitável como também é necessário para conseguir prosseguir com a vida.

Hiroshima, Meu Amor é um filme anti-bélico essencial sobre a vida após a Segunda Guerra Mundial. É uma obra-prima cinematográfica imperdível.

Hiroshima, Meu Amor encontra-se disponível para streaming na plataforma Filmin.

Classificação: ★★★★★


Pieces of a Woman (2020)

Pieces of a Woman, realizado por Kornél Mundruczó (Deus Branco, Johanna, A Lua de Júpiter), estreou no 77º Festival de Veneza. Em dezembro, o filme foi adicionado ao catálogo da Netflix, sendo uma das estreias mais antecipadas desse mês.

O filme conta com Vanessa Kirby, Shia LaBeouf, Sarah Snook, Ellen Burstyn e Benny Safdie no elenco. Pieces of a Woman é um filme incontornavelmente pesado que retrata as consequências da perda de um bebé recém-nascido durante o parto e como esta tragédia afeta uma família. Esta é uma temática que raramente é o foco de um filme, abortos espontâneos, nados-mortos e mortes durante o parto são, por norma, uma reviravolta e não o centro da narrativa. Isto é compreensível uma vez que é intimidante abordar e retratar a dor indiscritível, e raramente discutida publicamente, de perder um filho desta forma, mas Pieces of a Woman enfrenta esta dor sem nunca fechar os olhos à crueldade das sequelas.

O filme tem uma duração de duas horas, mas o título só surge 30 minutos depois do início após um longo plano-sequência, íntimo e vulnerável, do parto extenuante que culminou na morte da primeira filha de Martha (Kirby) e Sean (Labeouf). Esta sequência é o ato mais forte e exemplar do filme, sempre intensa, oscilando entre ansiedade e esperança, espelhando a intimidade e amor do casal e terminando no desfecho mais temido. O resto do filme consiste na junção de retalhos focados na Martha demarcados por um vazio, silêncio e distância palpáveis. Dias tornam-se meses e acompanhamos Martha, contida, letárgica e distante, no fundo, emocionalmente fechada enquanto lida com as pressões do companheiro, da mãe controladora (Burstyn) e as atitudes intrusivas de conhecidos. Martha quer prosseguir com a sua vida, afastar-se da tragédia, e nesta tentativa acaba por se afastar de toda a sua família, tensões borbulham, desentendimentos nascem e relações desmoronam-se irreparavelmente. O companheiro e a mãe pressionam Martha para tomar medidas legais, e posteriormente, depor no julgamento da parteira, mas ela demonstra-se reticente, e por vezes, agressiva, perante a ideia.

A narrativa construída através de retalhos, de várias cenas durante vários meses, encapsula o sentimento de isolamento e estagnação de Martha causado pelo sofrimento e demonstra os estilhaços da sua saúde mental. No entanto, o ponto mais fraco do filme é quando a manta de retalhos perde a força ao focar-se em enredos secundários, insípidos e por vezes desnecessários, de outras personagens (como a traição de Sean) comparativamente ao foco na Martha. Se esses enredos secundários tivessem sido abordados na mesma perspetiva de “show, don’t tell” como foi o circo mediático do julgamento da parteira através de pequenos, mas inequívocos vislumbres, a narrativa teria sido mais sólida. Por outro lado, o facto do enredo decorrer durante o frio agreste do outono e inverno num ambiente citadino ao som da banda sonora, solene e melancólica, da autoria de Howard Shore (Senhor dos Anéis, O Caso Spotlight, Seven – Sete Pecados Mortais) enaltece o tom da narrativa. Outro aspeto louvável no filme são os desempenhos dos atores, em especial de Vanessa Kirby com uma atuação visceral, um verdadeiro tour de force da arte da representação. Este papel valeu-lhe o prémio Volpi Upi de Melhor Atriz no Festival de Veneza.

Pieces of a Woman é a história de uma mulher fragmentada após ter vivido o pior pesadelo de qualquer mãe e sofrido uma perda inconsolável, é uma história sobre dor e a catarse necessária para conseguir voltar a viver. O processo para superar a perda é longo, errático e doloroso, mas é possível através da aceitação. O cantor e poeta Leonard Cohen disse “there is a crack in everything, that’s how the light gets in”, o que sintetiza sucintamente o processo de cicatrizar. Martha nunca irá esquecer a dor, mas não obstante, é possível seguir em frente rumo a novos caminhos, novas possibilidades. Afinal, o inverno é sempre sucedido pela primavera e é nessa estação frutuosa que encontramos a Martha, anos mais tarde, num epílogo sereno.

Pieces of a Woman sobressaí pela sua qualidade destacando-se como uma das melhores adições ao catálogo da Netflix.

Classificação: ★★★★


Soul – Uma Aventura com Alma (2020)

  •         02/01/2021

Depois de um adiamento inicial devido à pandemia Covid-19, Soul – Uma Aventura com Alma trocou a estreia nas salas de cinema portuguesas pela estreia exclusiva e direta na plataforma de streaming Disney Plus no dia 25 de dezembro.

A mais recente adição ao catálogo cinematográfico dos gigantes da animação, Pixar e Disney, trata-se de uma história focada no género musical jazz e na procura do propósito para viver. Este é o primeiro filme da Pixar protagonizado por um afro-americano. O realizador de Soul, Pete Docter, é responsável pelas adoradas obras de animação Monstros e Companhia (2001), Divertida-mente (2015) e Up – Altamente (2009), que foi galardoado com o Óscar de Melhor Filme de Animação.

O filme segue Joe Gardner, um professor de música apaixonado por jazz, que após uma audição, finalmente conseguiu atingir o seu sonho de tocar num bar de Nova Iorque com uma banda talentosa. Joe fica eufórico, é domado por uma felicidade incontrolável. No entanto, não vê o seu sonho realizado uma vez que acaba por sofrer um acidente grave que o deixa à beira da morte. A sua alma separa-se do seu corpo, mas o músico recusa-se a morrer sem realizar o seu propósito de vida. Começa aqui a viagem de Joe e sua tentativa de escapar do Grande Além. Joe acaba por tornar-se o mentor de uma jovem alma reticente em iniciar a sua vida, a número 22, no Grande Antevida, o lugar onde as almas existem antes de começarem a viver na Terra. O músico aproveita esta oportunidade para regressar ao seu corpo e tocar o concerto mais importante da sua vida.

Soul lembra o filme Coco (2017), também da autoria da Pixar e Disney, uma vez que em ambos existe a temática musical e a missão do protagonista consiste em tentar regressar à vida. Mas as semelhanças ficam por aí, Soul é inserido numa cultura e vivência completamente diferente e a sua mensagem não é focada na importância da família e legado, mas sim no significado e propósito de viver.

Através de viagens espirituais por diferentes dimensões de existência e aventuras pela cidade de Nova Iorque marcadas por desentendimentos, obstáculos e confusões caricatas as duas personagens descobrem facetas da vida que previamente tinham ignorado. Soul levanta aquela derradeira e incontornável pergunta que apoquenta tantas, mas tantas pessoas: “Qual é o meu propósito de vida?”. Soul demonstra como a falta ou a obsessão por um propósito destroem o espírito humano, como as pessoas se perdem na procura por um propósito, como paixões se tornam prisões.

Com o outono nova iorquino como cenário e jazz a pautar a história, Soul desmistifica como ter um propósito não é o significado da vida. No fundo, Soul demonstra e ensina que o significado da vida está no simples ato de aproveitar a beleza de viver, a companhia dos outros, as experiências e sensações mais simples (tidas, tantas vezes, como banais) e a natureza em si.

Soul trata do tema que mais cativa e aterroriza a humanidade, a grande incógnita que é o propósito e significado da vida, de uma forma divertida, leviana e ternurenta com sequências ora mágicas, ora serenas. O humor, tal como é habitual nos projetos da Pixar, é um dos pontos fortes do filme. Soul é reconfortante, é o filme perfeito para um serão em família no conforto do seu lar.

Soul está agora disponível para streaming no Disney Plus.

Classificação: ★★★★


Mank (2020)

  •         07/12/2020

O realizador David Fincher, um dos cineastas americanos mais aclamados da atualidade, reconhecido e celebrado por Seven (1995), Fight Club (1999), Zodiac (2007) e The Social Network (2010), regressa finalmente ao grande ecrã, seis anos após Gone Girl (2014), com o filme biográfico Mank.  A adição mais recente à filmografia de Fincher estreou a 13 de novembro em algumas salas de cinema e a 4 de dezembro estreou globalmente na plataforma de streaming Netflix.

Mank não se trata somente da biografia de Herman J. Mankiewicz, argumentista e guionista de Citizen Kane, considerado por muitos cinéfilos como o melhor filme alguma vez realizado, como também é um retrato e crítica de Hollywood na década de 30 através dos olhos de Mank.

O actor Gary Oldman encarna Mankiewicz, conhecido e tratado por Mank, um dramaturgo e crítico do The New York Times tornado argumentista de cinema. O filme segue o processo de escrita do guião de Citizen Kane, escrito em 60 dias a pedido de Orson Wells (Tom Burke), enquanto em simultâneo, através de flashbacks, explora o início e final aparatoso da carreira profissional de Mank na indústria hollywoodiana nos anos trinta. Mank é um alcoólico, detentor de um sentido de humor astuto e de uma natureza extremamente opinativa. Estas qualidades, que outrora divertiam os outros, rapidamente se tornam defeitos quando Mank nada contra a corrente e cria tensões com indivíduos poderosos como William Hearst (Charles Dance), um magnata dos meios de comunicação, dono de um império de jornais e revistas, que serve de inspiração para a personagem de Kane.  Hearst tem um relacionamento amoroso com a estrela Marion Davies (Amanda Seyfriend) que se torna amiga de Mank e é tida por muitos como a inspiração para a amante de Kane.

Mank no estilo e na essência, homenageia Citizen Kane criando paralelos com esse filme clássico. A obra de Fincher foi filmada inteiramente a preto e branco e a narrativa consiste numa mistura de vários flashbacks com o enredo principal. A cinematografia é marcada por algumas transições e planos wellsianos (pessoas aparentam ser bastante maiores em comparação a outras; a utilização da escuridão para esconder faces ao enaltecer sombras; etc.) e o filme é editado como as produções “hollywoodianas” da altura, desde os créditos introdutórios às cue marks (pequenas marcas no canto direito que serviam para sinalizar que o rolo de filme estava a terminar). Mank é pautado por uma soundtrack de jazz adequada à época e energia do filme e o elenco, na sua totalidade, têm desempenhos que fazem justiça ao argumento e estilo exemplar de Fincher. No entanto, em algumas ocasiões, o guião perde toda a sua força e agudez ao ponto de ser tornar insípido.

Ambos os filmes são sintetizados pela seguinte frase, proferida por Mank relativamente ao guião de Citizen Kane: “É impossível capturar a vida inteira de um homem em duas horas. Só se pode dar uma ideia dessa vida”. É neste aspecto que Fincher triunfa. Ele não se limita só a demonstrar o processo tumultuoso de escrita de Citizen Kane (dificultado pela recuperação de um acidente de carro e pelo alcoolismo de Mank) ou a luta entre em Wells e Mank para que o último seja creditado no filme. Fincher demonstra o carácter de Mank ao expor os seus valores, atitudes, qualidades e vícios enquanto contextualiza com o que o rodeia: o clima político da Califórnia (caracterizado pelo medo do socialismo); a influência, ganância e exuberância dos titãs dos meios de comunicação (dos grandes estúdios de filmes aos magnatas dos jornais); o processo de escrita e produção da indústria e o grupo social em que insere. É nesta exposição narrativa abrangente que apreendemos quem Mank era e como encarava o seu ambiente, e é aqui que residem as inspirações e razões por trás do guião de Citizen Kane.

Mank emerge assim de 2020, um ano em que streaming online foi uma solução face aos problemas vividos na indústria fílmica, como um dos filmes mais memoráveis e imperdíveis

Classificação: ★★★★


On the Rocks (2020)

On the Rocks assinala o regresso de Sofia Coppola ao grande ecrã e a antecipada reunião da realizadora com o ator Bill Murray, com quem colabora pela terceira vez.  On the Rocks é uma comédia e drama leve que segue a história de Laura (Rashida Jones), uma jovem mãe e escritora nova-iorquina, que começa a suspeitar que o marido (Marlon Wayans) lhe é infiel. Esta suspeita descontrola-se e ganha forma quando o pai de Laura, Felix (Bill Murray), um carismático e charmoso “old school playboy”, a convence a seguir o marido para descobrir a verdade.

Ao contrário de filmes anteriores da realizadora, como em Lost in Translation, Marie Antoniette ou Bling Ring, em On the Rocks a personagem principal não é “atirada” para um ambiente estrangeiro e diferente, sendo a própria personagem, Laura, a tornar-se o elemento externo no seu ambiente natural. O filme inicia-se com o dia do casamento, idílico e perfeito, distinguível pela cinematografia comparável à usada nos anúncios publicitários de perfume, e depois avança alguns anos, para o quotidiano familiar do casamento do qual nasceram duas filhas.  É neste contexto de domesticidade segura, confortável e algo estagnada, que surge espaço para dúvidas, sobre o estado do casamento e sobre a sua capacidade de escrever o livro que está a desenvolver.

Lost In Translation e On the Rocks são as obras entre as quais se traçam várias relações, e com razão. Separados por 17 anos de diferença, em ambos os filmes existe uma cidade, que é mais uma personagem do que localização, que realça os dilemas dos protagonistas, sendo no primeiro Tóquio e no segundo Nova Iorque. Em ambos os filmes, Bill Murray é um pai que falha aos filhos por demasiadas vezes, é uma figura masculina mais velha, bastante opinativo e engraçado, e é um mentor para a jovem mulher com quem interage. No entanto, Bob Haris em Lost in Translation, oferece bons conselhos e muda no final do filme, tornando-se uma melhor pessoa, marido e pai, já Felix em On the Rocks é o oposto, apesar das suas boas intenções. O tom jovial marcado pela música new wave ou post-punk em Lost in Translation, e nos restantes filmes, deu lugar a um tom maduro e à música jazz em On the Rocks.

A expressão “on the rocks”, referente a bebidas alcoólicas, traduz-se para “com gelo”, o que reflete, em parte, a energia do filme: suave e maduro, como gelo a derreter num copo de whisky. Passado na cidade que nunca dorme, com bares, restaurantes, apartamentos, escritórios e ruas elegantes, não falta estilo ao tom de On the Rocks. No entanto são as personagens principais, o duo de pai e filha, que carecem dessa qualidade. Laura, por ser afetada pelo tédio da domesticidade e pelo bloqueio artístico, e Felix, que apesar de ser um excêntrico magnata do circuito artístico, é um fóssil de um tempo passado com noções antiquadas, especialmente no que toca ao sexo oposto. Na falta de “coolness” do par reside a comédia do filme, como a perseguição a alta velocidade num carro clássico vermelho descapotável (que quase vai abaixo devido à idade) pelas ruas noturnas cheias de vida de Nova Iorque como se fossem detetives, ou na fuga de uma festa, em que se vê o par a andar atrás muito devagar para não ser visto pelos outros convidados.

A missão de detetives dá pretexto para pai e filha passarem mais tempo juntos, para dialogarem por entre bebidas sobre a natureza do matrimónio, monogamia e amor. Felix afirma que Laura tem de pensar como um homem e intensifica as dúvidas da filha sobre a possível traição do marido, porque ele mesmo cometeu infidelidades no passado.  Ambos falam e questionam com franqueza os seus casamentos e famílias.

On the Rocks é um filme curto. Os diálogos não são densos nem melodramáticos, mas falta-lhe a irreverência cortante característica dos filmes da realizadora. É o filme com a temática e personagens mais maduras de Sofia Coppola. No fundo é um filme sobre “assentar” e sobre o confronto e desconforto do quotidiano familiar. No final, nenhuma das personagens mudou, ou cresceu, não há necessidade para tal, o que é necessário é a reafirmação da normalidade. Coppola conclui o filme como se terminasse de embrulhar um presente e lhe colocasse o laço no topo com um final previsível, agradável e tranquilizante, e, por isso, pouco memorável.

On The Rocks está agora disponível para visualização na plataforma de streaming AppleTV.

Classificação: ★★★


Tudo Acaba Agora (2020)

Tudo Acaba Agora é uma das mais recentes, e uma das melhores, produções cinematográficas da Netflix. O filme, cujo título original é I’m thinking of Ending Things, estreou a 4 de setembro na plataforma de streaming e marcou o regresso do aclamado argumentista e realizador Charlie Kaufman. Kaufman é um dos artistas mais irreverentes do cinema americano, tornou-se uma figura-chave do cinema de culto ao escrever os argumentos de Queres Ser John Malkovich? (1999), Inadaptado (2002) e O Despertar da Mente (2004).  Tudo Acaba Agora é o terceiro filme realizado por Kaufman depois de Sinédoque, Nova Iorque (2008) e Anomalisa (2015).

Tudo Acaba Agora foi produzido, escrito e realizado por Charlie Kaufman e é baseado na obra literária homónima de Iain Reid. A narrativa aparenta ser simples: uma jovem mulher (Jessie Buckley) pondera acabar a relação com o novo namorado, Jake (Jesse Plemons), durante uma viagem até à quinta remota dos pais dele – mas rapidamente torna-se claro que nada é o que aparenta ser à superfície e que há algo profundamente estranho e maligno nesta viagem. A jovem, cujo nome nunca é definido, tratada por Lucy, Lucia, Louisa e até mesmo Ames, começa não só a questionar o que julga conhecer sobre o namorado, mas também sobre si mesma e o mundo.

A jovem mulher pondera várias vezes ao longo do filme durante o monólogo interior terminar a relação com Jake, pois considera que o relacionamento não tem futuro. A sua linha de pensamento é constantemente interrompida pelo namorado, que parece conseguir ouvir os seus pensamentos, para discutirem poesia, musicais, cinema, teorias sociais e científicas. O diálogo é viciante e robusto, levanta questões existenciais e simultaneamente transborda com informação e referências, e sempre dotado de uma qualidade constrangedora e desconfortante devido à falta de química propositada entre o casal, que mesmo sentados lado a lado no carro, têm entre eles um fosso abismal de distância. Este constrangimento é enaltecido pela escolha de proporção de tela 4:3 que confere uma sensação de aprisionamento.

À medida que o enredo principal avança, ao atravessar o nevão que gradualmente se intensifica, explorar a quinta sombria e conhecer os pais bizarros de Jake, Kaufman intercala um enredo secundário sobre a vida mundana de um velho auxiliar de uma escola. Pessoas e linhas temporais convergem neste filme errático, estranho e surreal. O tecido do tempo e da realidade é elástico e mutável (durante o jantar os pais de Jake avançam e regridem no tempo, ora jovens, ora idosos); pessoas, vivências e infâncias tornam-se uma amálgama compartilhada por um todo, por Jake, pelo auxiliar, pela jovem mulher, porque “Tudo é igual visto de perto (…) Tu, eu, ideias. Somos todos uma coisa.” Tudo Acaba Agora é sobre uma questão de perspetiva, não é um filme literal, mas sim abstrato, em que o tudo é tingido pelo que foi, o que é, o que será, o que poderia ter sido e o que nunca irá acontecer. É uma fantasia idealizada criada pela necessidade, alimentada e alicerçada por todos os tipos de media, de conhecimento, de arte e de memórias porque, no fundo, como a jovem mulher afirma: “Os outros animais vivem no presente. Os humanos não conseguem, por isso, inventaram a esperança.”

Tudo Acaba Agora é um filme pouco convencional, marcado durante as 2 horas e 15 minutos de duração por uma estranheza palpável que culmina num ato final imprevisível. O filme explora o âmago da psique humana, é um ensaio sobre solidão, estagnação, passagem do tempo, individualidade e a formação de carácter.  O diálogo e execução de Kaufman é cortante e memorável, alcançado com os desempenhos cruciais do pequeno, mas talentoso elenco, que conta com Jessie Buckley e Jesse Plemons como personagens principais e David Thewlis e Toni Colette como pai e mãe respetivamente.

O novo filme de Kaufman é o melhor trabalho do cineasta, provou-se igualmente o melhor filme de 2020 até à data. Da mesma forma que arte abstrata não agrada a todos o mesmo acontece com este filme, mas quem acompanhar esta viagem com certeza sentir-se-á recompensado no final uma vez que Tudo Acaba Agora é um dos filmes mais interessantes do ano, que levanta perguntas e inicia discussões.


Tenet (2020)

Depois de vários adiamentos devido à pandemia Covid-19, o filme mais antecipado do ano, Tenet do realizador Christopher Nolan, finalmente estreou em 70 países, incluindo Portugal, a 26 de agosto. Nolan regressa ao grande ecrã e debruça-se novamente sobre o seu conceito favorito, o tempo, tal como fez previamente com Memento (2000), Inception (2010) e Interstellar (2014).

A nova adição à filmografia de Nolan é um thriller de ficção-científica e ação que envolve o mundo da espionagem internacional e segue o Protagonista, um agente da CIA que é recrutado por uma organização secreta intitulada Tenet, encarregado com a missão de impedir que a Terceira Guerra Mundial aconteça e armado apenas com a palavra Tenet. A Terceira Guerra Mundial será causada por pessoas no futuro que desejam destruir o passado e desta forma impedir a extinção da humanidade no futuro, ou seja, é uma tentativa desesperada de apagar os erros cometidos no passado. Andrei Sator é o contacto entre o presente e o futuro e para o parar e salvar o mundo o Protagonista utiliza a inversão do tempo, uma manobra desenvolvida no futuro e enviada para o passado, que consiste em inverter o fluxo de entropia de um objeto ou pessoa e consequentemente inverter o fluxo do tempo.

Em Tenet, Nolan desconstrói e desdobra o tempo, apresentando a ideia de que o tempo não é linear, mas sim circular e sobreposto, em que várias realidades existem simultaneamente no mesmo plano. Os mesmos objetos ou pessoas, ou melhor, as várias versões dos mesmos objetos ou pessoas, coexistem e por vezes cruzam-se, no mesmo plano de existência ora movendo-se para a frente ou para atrás através da inversão do tempo.

Tenet é um filme de espionagem centrado à volta de teorias e paradoxos temporais. É o filme mais ambicioso e complexo de Nolan, é um verdadeiro quebra-cabeças desafiante que exige toda a atenção da audiência e requere uma reflexão profunda. Em termos técnicos destaca-se a cinematografia de Hoyte van Hoytema que proporciona um grandioso espetáculo visual com sequências de ação inovadoras e a banda sonora composta por Ludwig Göransson. O elenco é um componente fulcral para o sucesso de Tenet onde se destacam os desempenhos de John David Washington (o Protagonista), Robert Pattinson (Neil) e Elizabeth Debicki (Kat).

Tenet é um bom filme, mas não é uma obra-prima apesar de todas as suas qualidades positivas. O ritmo acelerado da narrativa e o constante bombardeamento de novas informações e detalhes dificultam o seguimento e compreensão do enredo. A mistura do som é desagradável já que por vezes os efeitos sonoros sobrepõem-se ao diálogo das personagens tornando-se difícil discernir as falas. No fundo, a sobre-exposição constante de informação torna-se cansativa. Por outro lado, algumas das personagens, com exceção de Kat, são emocionalmente rasas e poderiam e deveriam ter sido mais exploradas nesse sentido.

Tenet é sem dúvida o filme mais ambicioso de Christopher Nolan, mas está longe de ser um dos melhores filmes do realizador, como Memento (2000) ou Dunkirk (2017), porque carece de elegância, poder imersivo e densidade emocional na narrativa. No entanto, é um filme único e imperdível, um puzzle temporal visualmente deslumbrante, que deve ser apreciado no grande ecrã.


Palm Springs (2020)

 O filme norte-americano Palm Springs estreou na plataforma de streaming Hulu a 10 de julho e é um dos melhores filmes de 2020 até à data. É uma comédia romântica com elementos de ficção-científica que revitaliza e aperfeiçoa a fórmula do time loop (um ciclo de tempo interminável e inescapável que repete sempre o mesmo dia) popularizada com o filme O Feitiço do Tempo (1994). Palm Springs, escrito por Andy Siara, é a primeira longa-metragem do realizador Max Barbakow e é protagonizado pelos atores Andy Samberg e Christin Milioti.

O enredo passa-se em Palm Springs, durante a celebração de um casamento, e segue a vida de Nyles (Andy Samberg) que está condenado a viver eternamente o mesmo dia. Não existe nenhum amanhã, existe somente o hoje que se repete dia após dia num ciclo infinito. Até que Sarah (Christin Milioti), a irmã da noiva e dama de honor, fica aprisionada no time loop. Os dois estão agora presos no mesmo dia, no mesmo local e incapacitados de fugirem de si mesmos ou um do outro.

O que distingue Palm Springs do famoso O Feitiço do Tempo (1994) e dos consequentes filmes que seguiram o conceito do time loop como, por exemplo, o filme de terror Feliz Dia Para Morrer (2017) ou o filme de ação No Limite do Amanhã (2014) é uma mudança simples mas crucial: em vez de somente uma pessoa experienciar o mesmo dia infinitamente serão duas pessoas a experienciar o mesmo purgatório.

Palm Springs é um filme refrescante devido ao argumento inovador, sólido e divertido de Andy Siara que o realizador Max Barbakow capturou num ritmo rápido e com um tom colorido e leve. As duas personagens principais foram profundamente desenvolvidas ao longo de toda a duração do filme, com personalidades em que as motivações, medos e falhas brilham, algo que é raro em comédias românticas. A dinâmica e química que a dupla romântica demonstra enquanto navegam pela absurdidade de um time loop é intoxicante. A realidade desprovida de sentido e significado, em que se está preso no mesmo dia e mesmo lugar sem qualquer escapatória, e como tal não existe consequências pelas ações tomadas levanta questões existencialistas importantes: resignação total face à situação, aceitar o limbo e encontrar desta forma alguma paz ou procurar lutar e consequentemente lidar com as consequências dolorosas do possível amanhã? Permanecer no conhecido estagnado ou arriscar o desconhecido repleto de incertezas? Alimentar uma fachada segura e distante ou ter confiança e apostar num relacionamento romântico duradouro?

Palm Springs é um filme divertido e surpreendentemente profundo, sem nunca se tornar pesado, que aborda temas existencialistas, conexões humanas e o fardo das consequências através de personagens bem-escritas e humor divertido. Palm Springs não só é um dos melhores filmes de 2020 como também é uma das melhores comédias românticas dos últimos anos e o melhor filme sobre um time loop. 


Honey Boy (2019)

Honey Boy é uma produção norte-americana que estreou em 2019 no Sundance Film Festival. O filme foi realizado por Alma Har'el e escrito pelo ator Shia Labeouf. Honey Boy é um filme semiautobiográfico, uma história fictícia inspirada pela infância de Labeouf e o subsequente internamento para curar a dependência alcoólica em adulto.

Honey Boy acompanha o ator Otis em duas alturas cruciais da sua vida: aos 12 anos, representado por Noah Jupe, quando se estava a estabelecer como ator enquanto lidava com o relacionamento tóxico que tinha com o pai, e aos 22 anos, representado por Lucas Hedge, quando é internado para reabilitação e diagnosticado com Stress Pós-Traumático. Para Otis vencer o alcoolismo e tratar os problemas psicológicos e emocionais é necessário fazer terapia e confrontar a origem da sua dor: o seu pai. Shia Labeouf representou o próprio pai, James, um veterano da Guerra do Vietname, criminoso com um passado de abuso de substâncias que trabalhou em circos.

Shia Labeouf escreveu grande parte do guião do filme durante o seu internamento para reabilitação da dependência alcoólica, em que teve de escrever sobre os momentos mais negros da sua vida. O filme Honey Boy é como uma sessão de terapia pública que reconta e expõe trauma para poder cicatrizar, em que dor é transformada em arte. O filme traça relações de causa-efeito ao descortinar as razões do sofrimento de Otis durante as sessões de terapia.

A realizadora Alma Har’el guia o filme através do uso recorrente de paralelismos entre o Otis em criança e adulto. Estes paralelos narrativos são normalmente puramente visuais, em que as situações são as mesmas, mas as circunstâncias diferentes. Como por exemplo, o Otis ser alçado com cordas e puxado para trás num set de um estúdio em criança e adulto ou o Otis a gritar de raiva, contorcido sobre si mesmo, em adulto ou a gritar com os braços no ar e cabeça erguida, com a vida toda pela frente, em criança.

Honey Boy é profundamente pessoal e intrinsecamente honesto, é um filme catártico tingido por uma nudez emocional. Estas qualidades são especialmente notáveis no guião de Labeouf e no seu desempenho a representar o pai, mas também nos dois atores que representam Otis. São estas características que tornam Honey Boy tão especial e empático, em que não se julga as personagens, mas há sim uma tentativa para entendê-las. O pai, apesar de todo o sofrimento que causou e de todas as falhas que tem, não é um vilão nem um monstro. É apenas um homem com vários problemas, capaz de proporcionar tanto momentos de felicidade ou dor ao filho. E o filho nada mais deseja do que ser amado e entendido pelo pai.

Honey Boy é sobre sarar feridas profundas infligidas pela família, é sobre um filho reconciliar-se com o pai, com a dor que este lhe causou e com o amor inerente que sente pelo mesmo. É sobre aceitar que dor e amor coexistem por mais paradoxal e tortuoso que esta noção seja. É um filme semiautobiográfico, mas o seu tema é universal: trauma geracional, um ciclo de dor que passa de pai para filho. Honey Boy é sobre quebrar esse ciclo. 


Cléo de 5 à 7

Cléo de 5 à 7 (título português: Duas Horas na Vida de Uma Mulher) é um filme francês de 1962 realizado e escrito por Agnès Varda. Varda foi uma figura marcante da Nouvelle Vague e uma das realizadoras mais importantes do cinema do século XX, sendo uma das vozes femininas mais influentes na Sétima Arte.

Cléo de 5 à 7 é a segunda longa-metragem que realizada por Varda e segue a vida de Cléo, uma jovem cantora de música pop, enquanto espera ansiosamente pelo resultado de um exame médico. O filme tem uma duração de 90 minutos e a narrativa decorre em tempo real, iniciando-se às 17 horas e concluindo às 18 horas e 30 minutos.  Filmado inteiramente a preto e branco (com a exceção do genérico que consiste numa cena de leitura do tarot) e com uma montagem fluída e precisa, Varda emprega um realismo elegante ao capturar Paris dos anos 60 e a jornada emocional da protagonista.

Acompanhamos o quotidiano de Cléo que foi obscurecido pelo medo da morte enquanto a jovem se tenta distrair: desde as viagens de táxis às idas a cafés, das conversas com amigos às reações a estranhos, dos ensaios de música às deambulações por parques. Varga utiliza estas situações mundanas do dia-a-dia para explorar o mundo interior da personagem. Cléo de 5 à 7 é um olhar íntimo sobre a vida de uma mulher, sobre as preocupações com a carreira (desejo por sucesso e reconhecimento do seu talento), sobre as preocupações relativas à vida amorosa (o seu companheiro é um homem bem-sucedido mas não lhe dá atenção). A Cléo é retratada com honestidade e fragilidade: é mimada, vaidosa, supersticiosa e exagerada, no entanto, ela é consciente destas falhas, o que gera empatia para com a personagem.

A sombra da morte paira sobre Cléo, infligindo-a com ansiedade e acuidade sobre o que a rodeia. Quando Cléo conhece, por sorte do acaso, Antoine, um soldado que partirá em breve para a Guerra da Argélia, floresce entre os dois um sentimento de pertença e compreensão. Na reta final do filme, e apesar da incerteza do futuro, a ansiedade de Cléo finalmente dissipa-se e dá lugar a esperança e felicidade. A Cléo emerge desta experiência uma pessoa mudada.

Apesar da premissa fatalista, o filme é uma mescla espirituosa entre melodrama e humor, sendo marcado por jovialidade e leveza. Destaca-se as cameos divertidas de Jean-Luc Godard e Anna Karina, a banda sonora de Michel Legrand, a edição experimental com sequências poéticas e a cinematografia harmoniosa. O movimento de câmara é marcado por uma leveza exemplar ao deslizar por entre cafés e ruas repletas de pessoas, ao capturar introspetivamente a sentimentalidade de Cléo quando canta, passeia sozinha no parque ou cria laços com Antoine.

Ao longo de Cléo de 5 à 7, acompanhamos as oscilações entre pavor e esperança da Cléo, como a ameaça da morte influencia como interage com o que a rodeia. Desta forma, Cléo de 5 à 7 aborda o tempo, a mortalidade e o ponto de vista feminino. É um filme existencialista e poético, que por ser dotado de naturalidade e sensibilidade não cai no pretensiosismo.

Cléo de 5 à 7 é um dos melhores filmes de Agnès Varda e uma obra imperdível da Nouvelle Vague. Quase sessenta anos depois da sua estreia o filme continua a ser refrescante e moderno devido ao seu conteúdo e estilo. 


“Ensaio sobre a Cegueira” (2008)

Nas últimas décadas parece que o interesse por filmes sobre epidemias e cenários pós-apocalípticos aumentou. Existe um variado leque de escolhas desde filmes sobre zombies de drama como 28 Days Later (2002) ou de comédia como Shaun of the Dead (2004) até filmes sobre vírus assustadoramente reminiscentes do Covid-19 como Contagion (2011). Devido à grande quantidade de filmes deste género há sempre obras fílmicas que não têm tanta atenção no panorama audiovisual como deveriam ter, como é o caso de Ensaio Sobre a Cegueira (2008), a versão cinematográfica da renomada obra literária homónima de José Saramago, adaptada para o grande ecrã por Fernando Meirelles, o aclamado realizador de Cidade de Deus (2002). O filme é uma co-produção entre o Canadá, Japão e Brasil sendo falado maioritariamente em inglês e em algum japonês. O elenco principal é constituído por Julianne Moore, Mark Ruffalo, Alice Braga, Gael García Bernal, Danny Glover, Yusuke Iseya e Yoshino Kimura.

A história de Ensaio Sobre a Cegueira inicia-se com um homem que sem aviso nem explicação, e no meio do trânsito, fica cego e a sua visão é mergulhada num mar branco. A cidade depressa é afetada por esta estranha epidemia de cegueira branca que se alastra pela população. O governo declara quarenta obrigatória e os primeiros infetados são aprisionados num hospital. Nos dias seguintes, mais afetados chegam e as alas do hospital ficam sobrelotadas. Aqueles que não estão afetados temem a cegueira branca como se fosse uma praga, evitando os cegos e exercendo força para os manter isolados.

As personagens em que a narrativa se foca são da ala 1: o Primeiro Cego, a Mulher do Primeiro Cego, o Médico, a Mulher do Médico, a Mulher dos Óculos Escuros, o Ladrão, o Menino e o Velho da Venda Preta. Tal como na obra original, não são utilizados nomes para as personagens e a ação não se passa em nenhum país reconhecível, uma vez que o foco da história não é em localizações ou pessoas específicas, mas sim na humanidade.

Desorientados com a cegueira branca e sob a ameaça de serem mortos a tiro por militares se tentarem sair das instalações, sem racionamentos de comida suficientes nem qualquer ajuda externa, o hospital rapidamente é engolido pela desordem. Lutas por poder instalam-se apesar dos esforços do Médico de organizar democraticamente as alas e da Mulher do Médico de ajudar e guiar os cegos sem revelar que consegue ver, já que ela mentiu sobre ser cega para poder acompanhar o marido. O lado mais vil e cruel da natureza humana emerge quando os mais fortes usam a força e o monopólio dos mantimentos alimentares para subjugar os mais fracos, o caos governa o hospital e semeia humilhação, violência e mortes.

A Mulher do Médico, a única pessoa que inexplicavelmente não foi afetada pela cegueira, é quem os liberta do inferno do hospital e abre os portões após os militares terem abandonado as instalações. É ela quem guia o seu pequeno grupo pela sociedade destabilizada e em direção a um refúgio longe dos cruéis instintos primitivos do Homem.

O verdadeiro horror de Ensaio Sobre a Cegueira não é a misteriosa epidemia que roubou a visão à humanidade, mas sim a complexa natureza humana no seu pior momento, entranhada de uma crueldade adormecida que brotou atos atrozes, mas também de uma necessidade e procura vital por empatia. A natureza humana é confusa, e de certa forma inexplicável, é uma amálgama de contradições, tanto capaz de praticar o bem como o mal, tal como Saramago diz, no livro através da voz da Mulher de Óculos Escuros e no filme através da voz do Velho da Venda Preta: “Dentro de nós há uma coisa que não tem nome, essa coisa é o que somos”.

Ensaio Sobre a Cegueira é uma boa adaptação de uma obra literária de excelência. Ficou aquém do original, mas tal facto é esperado, já que cinema e literatura são meios de comunicação com complexidades muito distintas. Meirelles não transpôs toda a riqueza do original, mas foi fiel à narrativa original e capturou a sua essência com naturalidade. O tom e estética do filme destacam-se em especial com o uso e manipulação de luz, cores e composições pictóricas engenhosas e experimentais. Os brancos dominantes, ofuscantes e desfocados dos planos em conjunto com transições inteligentes e precisas transmitem de uma forma imersiva como a cegueira branca é. Por sua vez, os desempenhos do elenco foram razoáveis com a exceção de Julianne Moore, que interpretou a Mulher do Médico, que demonstrou uma acuidade emocional impressionante.

A aclamada obra de Saramago originou um dos filmes de ficção científica do século XXI mais invulgares e conturbados. Ensaio Sobre a Cegueira termina com um final aberto, da mesma forma que a cegueira branca se instalou no Primeiro Cego assim aparenta desaparecer, sem explicação. Mas uma coisa é certa: a cidade continua de pé, onde sempre esteve. Mas e o que irá acontecer à humanidade? Depois de tudo o que fizeram uns aos outros e de tudo o que virão a fazer no futuro?

“Mãe e filha. Que mistura terrível de sentimentos, confusão e destruição”: Sonata de Outono

Sonata de Outono (título original: Höstsonaten) é um filme sueco de 1978 realizado e escrito por Ingmar Bergman, um dos autores mais importantes do cinema europeu e um dos grandes mestres da Sétima Arte.

O filme é um drama que se foca em duas personagens femininas e na sua relação de mãe-filha. Charlotte Andergast, uma pianista bem-sucedida, depois de perder o companheiro Leonardo, reencontra-se pela primeira vez em sete anos com a filha, Eva, quando esta lhe escreve a pedir que a visite durante alguns dias. Eva está casada com um clérigo e vive numa pequena cidade. As duas mulheres têm uma relação complicada que se torna ainda mais tensa quando Charlotte descobre que a sua outra filha Helena, que sofre de uma doença terminal que a deixou paralisada e incapaz de falar, foi retirada da instituição e vive agora com Eva. O reencontro desencadeia um confronto entre Charlotte e Eva.

Ingmar Bergman disseca a relação entre as duas personagens ao abrir feridas do passado e expô-las pela primeira vez numa discussão longa e dolorosa. Charlotte desprezou o papel de mãe para se focar na carreira de pianista e Eva cresceu sem conhecer carinho, conhecendo apenas o controlo em forma de críticas da mãe, o que incutiu na jovem um sentimento de fraqueza e impotência desde cedo, e Eva despreza a mãe por não conseguir lidar com a situação de Helena.  Ambas são marcadas pela falta de afeto e pelo desejo do mesmo, a herdança de mãe para filha é a dor.

O passado condiciona o presente de Eva e Charlotte desde os seus relacionamentos às suas personalidades. Em Sonata de Outono, os planos gerais são compostos como quadros clássicos e a iluminação é pálida o que confere uma sensação de longinquidade e alienação. Estes planos são sempre usados quando Eva recorda o passado, a captação pitoresca ressalta como o passado aprisiona, mas ao mesmo tempo é intocável, como um sonho distante.  Quando estes planos são usados no presente é como se as personagens, por vezes, desvanecessem no meio em que se encontram.

Sonata de Outono é um escrutínio angustiante da relação repleta de incongruências de amor e ódio, desejo e repúdio que existe entre Eva e Charlotte. A forma como ambas são capturadas é quase cruel, Ingmar Bergman não nos permite desviar o olhar da fealdade que decorre ao usar grandes planos fechados, com a câmara a centímetros das faces das atrizes, durante os momentos de confronto, em que a raiva outrora adormecida explode.

A intensidade e honestidade emocional de Sonata de Outono recai não só na direção precisa de Ingmar Bergman, mas também nas atuações das conceituadas atrizes Liv Ullmann e Ingrid Bergman nos papeis de Eva e Charlotte, respetivamente.

Tal como o título indica, o filme é pautado por uma banda sonora exemplar, escolhida a dedo para as tonalidades emocionais certas, composta por peças de Händel, Chopin e Bach.

Sonata de Outono termina com um retorno ao início, com Eva a escrever uma carta para a mãe após esta partir abruptamente depois de terminarem a discussão, e num tom ambivalente, marcado por esperança e desilusão, nascido do confronto que era há muito necessário nesta relação conflituosa entre mãe e filha.


“Eu sou grande! Os filmes é que ficaram pequenos”: Sunset Boulevard

“Sunset Boulevard”, cujo título em português é “O Crepúsculo dos Deuses “, é um filme de 1950 da autoria do realizador Billy Wilder, é um dos grandes clássicos do cinema americano e uma das obras fílmicas noir mais aclamadas. “Sunset Boulevard” é uma reflexão sobre a indústria do cinema, a sede pela fama e a incapacidade de encarar a realidade, no fundo, o filme é um pesadelo hollywoodesco.

Um grande filme é o culminar de vários fatores e decisões artísticas, mas a história é a essência da obra. “Sunset Boulevard” foi escrito por Billy Wilder, Charles Brackett e D.M Marshman Jr. e é considerado por muitos uma das melhores narrativas que nasceu de Hollywood, é uma história inesquecível com diálogo cortante. O filme é sobre a relação perigosa que se desenvolve entre o argumentista fracassado e endividado Joe Gillis e Norma Desmond, uma estrela do cinema mudo que caiu no esquecimento e na ilusão de magnificência.

“Sunset Boulevard” é marcado por um tom sombrio e fatalista, inicia-se com o assassínio de Joe Gillis e é narrado pelo mesmo, que retrocede no tempo para mostrar como chegou àquele fim. É uma reflexão sobre a indústria implacável de Hollywood e sobre todos os que a compõe desde os argumentistas aos atores, dos fãs aos jornalistas, e uma critica ao Star System, ao processo criativo e ao estado da indústria.

É um comentário ao papel do argumentista, que é muitas vezes esquecido pela audiência, e que se tem de submeter ao modelo dos estúdios que procuram apenas o lucro, prescindindo assim da originalidade e liberdade artística. Joe Gillis é um homem cínico e procura apenas sobreviver através da sua escrita, no entanto, ele muda quando conhece a jovem Betty Schaefer, uma aspirante a argumentista cheia de paixão que se foca na mensagem e honestidade necessária para criar uma boa história e não nas exigências dos estúdios. Betty e Joe são duas faces da mesma moeda, são as duas fases dos argumentistas face à máquina de Hollywood.

“Sunset Boulevard” é uma obra que mostra o lado negro da fama e como esta destrói artistas. Norma Desmond foi esquecida pelo mundo e vive sozinha na sua grande mansão, repleta de fotos de quando era jovem e outros artefactos dos seus tempos de glória, acompanhada apenas pelo seu mordomo Max, que é posteriormente revelado ser o realizador que a tornou famosa. Esta é uma mulher de meia-idade presa ao passado e incapaz de enfrentar o presente, obcecada com preservar a sua beleza e reprimir o envelhecimento, é uma megalomaníaca consumida por ilusões de grandeza que acredita no seu regresso ao grande ecrã, algo que nunca irá acontecer. Norma Desmond é interpretada por Gloria Swanson, que foi uma grande estrela do cinema mudo e regressou ao grande ecrã para este papel. A interpretação de Swanson é imbatível e solidificou Norma Desmond como uma personagem icónica, a sua expressividade facial e corporal e a loucura no seu olhar são assombrosas, são características únicas pertencentes a uma verdadeira estrela do cinema mudo.

Para além de Swanson o elenco é também composto por figuras do cinema mudo como o realizador Cecil B. DeMille que se interpreta a si mesmo no filme, Erich von Stroheim que interpreta o mordomo Max e H.B Warner, Buster Keaton e Anna Q. Nilsson que fazem aparições como os velhos contemporâneos da Norma Desmond. Os atores William Holden e Nancy Olson que interpretam Joe Gills e Betty Schaefer respetivamente têm desempenhos naturais que são perfeitos em oposição aos maneirismos dramáticos de Norma Desmond.

A cinematografia convenciona o tom sombrio da narrativa enquanto simultaneamente captura a riqueza e ostentação ofuscante a que Norma Desmond desesperadamente se agarra.

“Sunset Boulevard” é um filme sobre os artistas no grande ecrã e atrás das câmaras. É um olhar cru e critico sobre a indústria de Hollywood que engole e cospe pessoas, descartando-as. É um filme que nos compele do início ao fim, e que tem uma das sequências finais mais fortes do cinema com Norma Demonds a ser devorada pela loucura e pela ilusão de fama que fabricou, ela vive apenas para a glória das câmaras. “Sunset Boulevard” obriga a encarar a realidade e relembra que o motor para fazer cinema deve ser a devoção à arte de criar boas histórias e não à fama.


O triunfo técnico e artístico de “1917”

O épico de guerra “1917” do realizador Sam Mendes foi inspirado pelas histórias da Primeira Guerra Mundial que o avô lhe contara. O filme tem sido criticamente aclamado. Mendes foi eleito melhor realizador nos prémios do Sindicato de Realizadores de Hollywood e “1917” é um dos grandes concorrentes dos Óscares com 10 nomeações, incluindo Melhor Filme e Melhor Realizador.

“1917” conta a história de dois soldados britânicos, o cabo Blake (Dean-Charles Chapman) e cabo Schofield (George MacKay), encarregados com a missão aparentemente impossível de atravessar território inimigo para transmitir uma mensagem que irá parar a investida de um batalhão de 1600 soldados britânicos, entre os quais se encontra o irmão de Blake, e salvá-los de cair numa armadilha mortífera alemã.

É um enredo convencional: missão suicida e contrarrelógio. Mas o que distingue e eleva “1917” é a mestria técnica alcançada através da direção arrojada de Sam Mendes e da visão de Roger Deakins, considerado um dos melhores diretores de fotografia da atualidade. O filme foi rigorosamente arquitetado de forma a dar a ilusão de ter sido filmado em dois planos-sequência, o único corte no filme acontece quando um dos soldados fica inconsciente, desta forma a audiência acompanha a história em tempo real e tal como os protagonistas não tem tempo para processar e parar devido à natureza da guerra, o que intensifica a ação. Este feito é uma tarefa árdua que requere planeamento, precisão e organização de todas as partes envolvidas durante todo o processo de gravação e montagem.

O triunfo artístico e técnico de “1917” não só é impressionante como é também fundamental para a cimentação do filme como uma experiência imersiva, na qual o espetador é forçado a confrontar a realidade bélica. A audiência acompanha os protagonistas, segue-os no seu encalço e coloca-se nos seus lugares, ao atravessar as trincheiras, frias e inóspitas, lotadas de homens desgastados, feridos e cadáveres; ao vivenciar a horripilante Terra de Ninguém, a quietude e beleza dos campos de França e a destruição de vilas e casas.

“1917” começa e termina com um plano de um campo cheio de flores, uma visão serena que contrasta severamente com a carnificina da guerra. O filme explora de uma forma intimista a jornada física, mental e emocional destes jovens, expondo a desolação sentida, a ânsia por sobreviver, o desespero por suceder, a dor das mortes de companheiros, mas também o confronto encontrado na camaradagem e nas piadas, histórias e canções saudosas sobre casa.

A cinematografia de Deakins captura tanto a beleza campestre como o terror e frenesim da guerra de uma forma assombrosa, recorta silhuetas com paisagens e luz criando imagens inesquecíveis. “1917” é uma proeza visual que é fortificada pela trilha sonora exemplar composta por Thomas Newman, pelo elenco constituído por talentos como Colin Firth, Mark Strong, Benedict Cumberbatch, Andrew Scott e Richard Madden (que têm participações curtas no ecrã, mas marcantes) e pelos dois atores principais, George MacKay e Dean-Charles Chapman, que se destacam com os desempenhos naturais, convincentes e emotivos.

É pela mestria técnica e a audácia artística que “1917” se consagra como um dos grandes épicos de guerra, é uma obra imersiva sobre o inferno travado por entre lama, balas e cadáveres. “1917” reflete sobre a magnitude das perdas e a inutilidade da guerra e recorda os valores, os atos e os homens, porque guerras não são ganhas por massas anónimas, mas sim pelo esforço coletivo e contínuo de homens que carregam muito mais do que as suas mochilas e armas às costas.


“Une femme est une femme” em memória a Anna Karina

A atriz Anna Karina faleceu a 14 de dezembro de 2019 aos 79 anos. Anna é um ícone do cinema e o seu falecimento é uma enorme perda para o mundo da Sétima Arte.

Anna nasceu na Dinamarca e emigrou para Paris aos 17 anos. Para além de uma carreira extensa enquanto atriz foi também modelo, realizadora, cantora e escritora. Mas é no cinema, e ao lado do realizador francês Jean-Luc Godard, que criou o seu maior legado e os filmes pelos quais mais se destaca. Anna, uma atriz de talento inegável, é considerada por muitos a cara que representa a Nouvelle Vague. Foi a musa de Godard e sua esposa entre 1961 e 1967. Protagonizou vários filmes do cineasta como “Le Petit Soldat“, “Une femme est une femme”, “Vivre sa Vie”, “Pierrot le Fou”, “Alphaville” e “Bande à Part”.

A atriz maravilhou audiências com o seu charme e beleza representado várias personagens inesquecíveis, cada uma com as suas idiossincrasias, e através das quais brilhou ao explorar uma amálgama de nuances como sentimentalidade, timidez, jovialidade, melancolia, impertinência, um sentido de humor irresistível, entre tantas outras mais. 

A Anna Karina era carismática, elétrica e hipnotizante, e penso que a maioria dos espectadores nunca se esquece da primeira vez que a vê atuar, o que foi o meu caso e a razão por querer refletir sobre “Une femme est une femme”, o primeiro filme em que a conheci e uma obra que revisitei muitas vezes.

“Une femme est une femme” traduzido para português significa “Uma mulher é uma mulher”. O filme estreou em 1961 e é a segunda colaboração de Anna Karina com Godard, sendo, no entanto, a primeira a estrear devido à censura imposta em “Le Petit Soldat”. O Festival Internacional de Cinema de Berlim premiou a obra com o Prémio Especial do Júri e Anna Karina com o Prémio de Melhor Atriz por demonstrar qualidades raras numa atriz que tinha acabado de iniciar a carreira.

“Une femme est une femme” é um filme de comédia, drama, romance e um musical. É uma obra marcante da Nouvelle Vague e uma das grandes obras-primas de Godard. É um filme inovador e criativo que continua a ser uma lufada de ar fresco décadas depois, cimentando-se como único e irreverente.

O enredo do filme é bastante simples: Angela (Anna Karina), uma dançarina de cabaret, deseja desesperadamente ter um filho com o seu namorado Émile (Jean-Claude Brialy), mas este é relutante à ideia e para alcançar o seu sonho seduz o amigo Alfred (Jean-Paul Belmondo), que está apaixonado por ela, provocando ciúmes em Émile. O triângulo amoroso questiona, ao longo da ação, se o que estão a viver é uma comédia ou uma tragédia, questionando o amor e a relação complexa entre homem e mulher.

É um filme vibrante em forma e conteúdo, que se destaca por ser o culminar de vários talentos sob a visão arrojada e visionária de Godard. As trocas de diálogo são inteligentes, repletas de humor e atrevidas sendo acompanhadas por uma banda sonora que exalta o cariz bizarro das discussões. No entanto, a banda sonora tem uma particularidade muito singular já que é marcada pela dissonância: começa e termina abruptamente, e em momentos que esperamos ouvir som há apenas o silêncio, como por exemplo, na atuação da Angela no cabaret que quando começa a cantar a música desaparece restando apenas a sua voz. O filme é uma homenagem aos musicais clássicos e simultaneamente quebra as regras convencionais dos mesmos.

Nesta carta de amor ao cinema, Godard desafia convenção atrás de convenção criando assim o seu estilo único e experimental, fazendo meta-referências a filmes da sua autoria e referências a outras obras e figuras do cinema; as personagens estão conscientes da presença do espetador e quebram constantemente a quarta parede ao olharem para a câmara, dirigindo-se e falando diretamente com a audiência. É um filme deslumbrante com uma mise-en-scène harmoniosa que nos revela imenso sobre quem as personagens são e o desempenho do trio de atores é exemplar e fascinante.  A cinematografia de Raoul Coutard captura toda a vivacidade das cores ricas que sobressaem no grande ecrã, das personagens, e da Paris dos anos 60.

“Une femme est une femme” mantém-nos agarrados ao ecrã desde da sequência de introdução até ao fim do filme, com Angela a dirigir-se à audiência e piscar-nos o olho uma última vez, depois de retorquir ao namorado “Je ne suis pas infâme, je suis une femme” (não sou infame, sou uma mulher), que para além de ser um trocadilho inteligente, é também relevante, já que a grande questão do filme é a mulher e a beleza, confusão, impertinência e desejos que a caracterizam.

Anna Karina desempenha em “Une femme est une femme” uma das melhores atuações da sua carreira e é um dos elementos-chave para a excelência e magia deste filme. Angela é uma personagem cheia de conflitos internos encarnada com leveza, ternura e tremenda beleza por Anna. Os maneirismos, olhares, expressões e hábitos com que compõe a personagem permanecem connosco, resultando numa atuação apaixonante e memorável.

Com o seu charme a talento, Anna Karina encantou o público e marcou o grande ecrã durante anos e em troca o Cinema cristalizou-a no tempo e imortalizou-a. Obrigada, Anna, e até sempre!

“Eu soube que tu pintavas casas”: O Irlandês

O novo filme de Martin Scorsese estreou na plataforma Netflix a 27 de novembro. “O Irlandês” irá estar no grande ecrã apenas num pequeno número de cinemas pelo mundo e Portugal não faz parte dessa seleção.

Scorsese volta à ação com um filme sobre mafiosos, um género pelo qual se distinguiu, e com caras que estamos habituados a ver em filmes da sua autoria: Robert De Niro e Joe Pesci. A estes grandes atores junta-se Al Pacino, de igual calibre, que colabora pela primeira vez com o realizador.

À semelhança de “Tudo Bons Rapazes” e “Casino” a nova obra de Scorsese tem toda a ação, violência e sangue característicos dos seus filmes sobre gangsters, mas há um novo elemento na sua equação, um componente que tinge e modifica o sentimento presente ao longo do filme e que o diferencia: este é um filme reflexivo, este é um filme que confronta a fealdade e finalidade da morte.

A obra cinematográfica inicia-se com Frank Sheeran (De Niro), velho e débil, encarcerado a uma cadeira de rodas num lar, onde conta-nos a sua vida em retrospetiva e como passou de um simples condutor de camiões a “pintor de casas”, código para quem assassina a ordens da máfia. Sheeran, o Irlandês, narra a sua história a partir da década de 50 quando conhece o mafioso Russel Bufalino (Joe Pesci), que o graceja com a sua confiança e orientação, e que mais tarde, o põe a trabalhar para o presidente da maior união sindical dos Estado Unidos, Jimmy Hoffa (Al Pacino). Estes três homens desenvolvem laços estreitos de amizade e respeitam-se mutuamente.

Mas o mundo da máfia é implacável e toda a ação tem uma reação. Quando Hoffa se insubordina contra os desejos da máfia ele tem de ser eliminado e essa tarefa cabe a Sheeran. Russ e Sheeran tentam desesperadamente salvar Hoffa, fazê-lo entender que tem de mudar os seus comportamentos, mas o velho sindicalista recusa-se a ouvir e inevitavelmente sofre as consequências.

Em “O Irlandês” o glamour e ostentação da máfia não domina o ecrã, mas sim a melancolia, o peso das ações. É uma história densamente ligada a noções de amizade e família, lealdade e traição que são subjugadas ao mundo do crime organizado. Hoffa desaparece e é esquecido pelo mundo, os mafiosos são presos (por razões nunca ligadas ao desaparecimento de Hoffa) e morrem na prisão com a exceção de Sheeran. Ao contrário dos protagonistas em “Tudo Bons Rapazes” e “Casino”, Frank Sheeran não tem direito a um recomeço, não tem um final remotamente positivo. É castigado pela idade, repudiado pela sua família, abandonado à solidão e aos seus pecados, resta-lhe apenas as suas memórias, o conforto da religião e o caixão verde que o aguarda.

“O Irlandês” é o filme mais contemplativo de Scorsese, é o produto do estilo característico do realizador conjugado com a reflexão que advém da velha idade. As sequências elétricas, os movimentos de câmara deslizantes, a trilha sonora exemplar e a cativante narração do protagonista estão agora embutidas de uma sensação funesta que paira durante toda a duração do filme e se intensifica no final. Com uma duração de 3h30mins o filme salta entre linhas temporais, avança e recua na história, a um ritmo contido e narrado por um mafioso vergado pela velhice. Para além da direção sublime com que Scorsese orquestra o filme também o desempenho dos atores deve ser louvado, principalmente o Joe Pesci que maravilha ao encarnar um mafioso racional e ponderativo, em oposição aos seus outros papéis de mafiosos que fervem em pouca água. A nova entrada para a filmografia de Scorsese é um grande filme, a única falha apontável é que apesar do CGI conseguir rejuvenescer as caras do trio principal de atores as suas capacidades motoras não podem ser modificadas, e isto é notável quando Sheeran pontapeia o merceeiro lentamente e sem força.

“O Irlandês” é dotado de um sensibilismo que deixa o seu traço em cada momento. É um filme que se despede com um plano inesquecível que ecoa dentro do espetador: o corredor escuro e a porta entreaberta para o quarto de Sheeran com este sozinho e no silêncio, deixado apenas com as represálias das suas ações e a sua consciência, à espera da inevitável morte e o consequente esquecimento.


Família e Sonhos em “Little Miss Sunshine”

“Little Miss Sunshine”, cujo título em português é “Uma Família à Beira de um Ataque de Nervos”, é um filme de comédia e drama realizado por Jonathan Dayton e Valerie Faris em 2006. É sobre uma família disfuncional determinada a atravessar o país até à Califórnia, numa velha carrinha Volkswagen, para levar a sua filha Olive às finais de um concurso de beleza infantil.

O filme apresenta-nos assim uma família peculiar e caótica com membros muito individualistas, cada um com os seus sonhos, problemas, temperamentos e filosofias. Olive, a filha de sete anos, quer participar no concurso “Little Miss Sunshine”; Dwayne, o filho adolescente, fez um voto de silêncio para pilotar na “U.S Air Force”; Richard, o pai, desesperadamente tenta que o seu negócio tenha sucesso; Sheryl, a mãe, é sobrecarregada com stress; Frank, o tio, é um ex-professor universitário suicida e Edwin, o avô, é viciado em heroína.

Os pontos fortes de “Little Miss Sunshine” são o guião (pelo qual Michael Arndt ganhou o Óscar de Melhor Argumento) e o elenco composto inteiramente por atores excecionalmente talentosos (Greg Kinnear, Toni Collette, Steve Carell, Paul Dano, Abigail Breslin e Alan Arkin, tendo os dois últimos sido nomeados a Óscares que Arkin venceu) que criaram um retrato memorável de uma família com laços frágeis à beira da bancarrota. O enredo desenvolve-se como uma montanha-russa alternando entre os altos e os baixos a um ritmo aliciante. O desenlace da história e as várias dinâmicas entre os membros da família tanto suscitam risos com situações descabidamente bizarras e cómicas, momentos reconfortantes ou situações excruciantes de tristeza. É um filme cativante desde o início ao fim, com uma banda sonora que exalta a miscelânea de sentimentos eufóricos e disfóricos e uma cinematografia que captura coloridamente a excentricidade desta família.

Os desejos que guiam cada indivíduo, para além da dinâmica da família, são o tema central de “Little Miss Sunshine”. Existe uma grande luta dicotómica (Ganhar Vs. Perder) presente vincadamente no Richard (pai) que defende que “só existem dois tipos de pessoas neste mundo, perdedores ou vencedores”, que todos os que não são vencedores são falhados e desistiram de si próprios. Richard age, e citando o próprio Michael Arndt, como o “antagonista filosófico” do enredo e o filme desconstrói a filosofia que ele defende, a vida não é um concurso e não se resume a perder ou ganhar.

O filme afirma verdades difíceis de aceitar, apesar de todo o esforço nem todos os objetivos são concretizáveis. Todas as personagens são confrontadas com as suas limitações e com a dor e frustração de ver os sonhos a desmoronarem-se, e subsequente, é desencadeado transformações internas e a aceitação da realidade. No entanto, o que realmente importa não é ganhar, mas sim tentar e continuar em frente, encontrar felicidade mantendo-nos fiéis a nós próprios independentemente das expectativas da sociedade. Estas ideias são expostas no clímax do filme em que todos os membros da família apoiam Olive, que está a ser ridicularizada no concurso por não se enquadrar no “padrão” e por ser ela própria, ao juntarem-se todos no palco a dançar gerando caos no evento. Olive não ganha o concurso, mas termina a experiência feliz e com o apoio da sua família.

Esta é uma história de uma família que fortifica os seus laços outrora quase quebrados numa viagem tumultuosa, entendendo-se agora mutuamente e a si mesmos. A velha carrinha Volkswagen amarela que tem vários problemas mecânicos e só pega se for empurrada por todos os membros é uma analogia para o funcionamento da família, encontramos catarse ao vê-los a trabalhar em conjunto e seguir caminho apesar dos sofrimentos pessoais.

É um filme energético, engraçado e melancólico, é uma amálgama de sentimentos que resulta num dos filmes de “roadtrips” mais memoráveis de sempre. “Little Miss Sunshine” é agridoce, mas reconfortante.

(2019-10-28)


“A vida é curta”: Ikiru (1952)
Daniela Graça

Ikiru é um filme japonês de 1952 de Akira Kurosawa - um dos grandes mestres do cinema - e é uma das suas obras mais aclamadas.
O filme tem uma premissa simples, porém pesada: o Sr. Kanji Watanabe é diagnosticado com cancro no estômago e é forçado a questionar o significado da sua existência nos últimos dias que lhe restam.
Esta é a história de um homem ordinário que durante a maior parte da sua vida existiu como um defunto. É a certeza iminente da morte que abre os olhos a Watanabe e à insignificância e dormência que ditou a sua vida.  Foi engolido pela máquina burocrática, onde durante 30 anos se dedicou ao seu trabalho e, no entanto, ao olhar para trás, apercebe-se agora que não alcançou coisa nenhuma. As suas relações pessoais são quase inexistentes, não tem amigos e o seu próprio filho é quase como um estranho.
Watanabe, atormentado por medo, desespero e confusão, embarca numa viagem com tempo limite em que questiona o seu propósito. As interações com um escritor desconhecido e uma colega de trabalho peculiar mostram-lhe facetas da vida que durante anos desconheceu. Watanabe quer sentir-se vivo antes de morrer, e num momento de clareza, decide que tem de fazer algo verdadeiramente útil no seu trabalho. Domado por persistência e vontade, dedica o resto do seu pouco tempo a construir um parque infantil na sua comunidade.
O guião co-escrito por Akira Kurosawa, Shinobu Hashimoto e Hideo Onugi é minuciosamente ponderado e origina um dos estudos de carácter humano mais hipnotizantes e cortantes presentes na Sétima Arte. A inevitabilidade da sua morte dentro de um período de meses desperta uma introspeção angustiante, crua e nua, da sua vida, que por sua vez origina uma metamorfose necessária para alcançar expiação e paz. Watanabe aceita a sua morte em paz, cantando a sua canção favorita “A vida é curta/ Apaixonem-se, donzelas”, no baloiço do parque que construiu enquanto neva. A noite é fria, mas o seu coração está quente e cheio, porque encontrou o seu propósito e levou-o ao fim, finalmente sentiu-se vivo.
É um filme inesquecível pela sua narrativa e pelo desempenho de Takashi Shimura, que interpretou a transformação do velho moribundo. Shimura desempenhou um papel cheio de nuances, explorando o conflito interno e construiu detalhadamente a personagem desde os maneirismos à postura, mas foram os olhos de Watanabe que mais marcaram, falaram mais alto que palavras. A cinematografia a preto e branco reflete a velocidade de Tóquio em crescimento e simultaneamente a melancolia do protagonista.
Ikiru é uma critica à burocracia, um retrato de Tóquio no pós-guerra, e é acima de tudo, um filme sobre a condição humana. Watanabe é uma das personagens mais empáticas e inspiradoras do cinema. Independentemente da idade ou da nacionalidade do espectador é uma obra comovente porque é um filme humanista. O mundo está cheio de Watanabes por despertar e este filme levanta uma grande questão “Estás mesmo a viver? O que é que te vai acordar para a vida?”. O filme obriga-nos a refletir a nossa existência.
Ikiru significa Viver e é incrivelmente triste, e incrivelmente belo, este é um sobre filme o espírito humano.

(2019-09-28)


"Variações"
Daniela Graça

“Variações” foi o filme português mais esperado do ano e finalmente estreou a 22 de agosto. O filme biográfico sobre António Variações é realizado por João Maia e protagonizado por Sérgio Praia.

O filme segue a vida do cantor (nascido António Ribeiro) desde a infância até à sua morte em 1984, devido a complicações resultantes de SIDA. A cronologia não é linear e a narrativa não incide muito sobre os anos de sucesso de Variações, optando por se focar no caminho do cantor até ao sucesso e o final da sua curta carreira.

É um olhar intimista sobre a vida de António que evoca com sucesso a paixão que o cantor tinha pela música e o êxtase, angústia e solidão que esse sonho lhe trazia. Dá-nos a conhecer as suas origens, a sua aldeia, como era apaixonado por música desde criança, a sua vida em Lisboa e na Holanda, as suas relações pessoais e as suas inspirações. Mostra o seu processo criativo e o caminho penoso, mas necessário, que teve de percorrer para melhorar a sua arte e alcançar o sucesso. O filme mostra os vários obstáculos que o artista teve de superar: ele tinha a voz e a paixão, mas faltava-lhe a técnica, as mudanças de bandas e as diferenças com a editora. O filme transmite a ânsia e vontade de vingar de Variações que foi capaz de ultrapassar todas as barreiras pois a música era a sua vida.

António brilhava enquanto cantor, barbeiro, pessoa e persona.  Tinha em si uma enorme sensibilidade, ternura e tristeza que transbordavam nas músicas que escrevia. O filme demonstra e explora eficazmente como a sua infância e aldeia, a sua mãe, e o seu relacionamento complicado, porém cheio de carinho, com o seu amante marcaram o cantor. 

Sérgio Praia encarna na perfeição António Variações, a sua atuação é a jóia deste filme. Conseguiu dar vida à personalidade tão peculiar, única, extravagante e intoxicante que foi Variações e fazer-lhe justiça.

Para além dos cenários e do guarda-roupa que recriam os anos 70 e 80, a cinematografia é um dos melhores aspectos do filme, que captura com sucesso e vivacidade a vida noturna dos anos 80, a energia dos ensaios, a ânsia e melancolia de Variações, a calma e beleza idílicas da terra natal do cantor que ele tanto amava, e os momentos de ternura entre Variações e Ataíde, o seu amante.

O filme destaca-se nos momentos em que António canta para o público. A qualidade da representação de Sérgio Praia aliada ao trabalho de câmara criam momentos de verdadeira emoção que transborda do ecrã para o público. O filme cria momentos inesquecíveis em que não só compreendemos, como também sentimos como a música pode tocar as pessoas

“Variações” não é um filme excelente e tem as suas falhas: as personagens secundárias têm pouca profundidade, a narrativa tem um ritmo desequilibrado, não aborda muito a homofobia existente num país extremamente tradicional.

Não é excelente, mas é um filme bom, sensível e respeitoso, que homenageia um dos artistas mais importantes e irreverentes do nosso país. É uma homenagem a todos os loucos que ousam sonhar e que persistem mesmo face à dor que advém de perseguir esses sonhos, tal como Variações.

António Variações é inesquecível e inigualável, e este filme é imperdível pelo seu valor cultural e artístico.

(2019-08-28)


O círculo vicioso do ódio em “La Haine”
Daniela Graça

“La Haine” (1995), em português “O Ódio”, é um filme francês do realizador Mathieu Kassovitz. É um filme sobre vingança que é poderoso e reflexivo. É uma crítica social e um triunfo artístico, têm estilo e substância. O enredo passa-se em 24 horas e segue a vida de três jovens nos subúrbios urbanos de Paris: o judeu Vinz, o africano Hubert e o árabe Said.

A discriminação racial e a polícia abusiva governam nos subúrbios e a raiva ferve, e o Vinz é quem melhor "encapsula" esse sentimento. Ele encontrou a arma que um polícia perdeu no confronto do dia anterior, e sedento por retribuição e cego com raiva, jura matar um polícia se o seu amigo Abdel morrer devido aos ferimentos que sofreu ao ser espancado pela polícia.

Vinz ferve em pouca água, odeia a sociedade e principalmente a polícia, ele quer provar que é forte, que é capaz de puxar o gatilho da arma. Quem o contesta e tenta mostrar-lhe a razão é o Hubert, que lhe diz “ódio gera ódio”. O Hubert é pugilista e mais maduro que os outros dois rapazes. O Said é o meio-termo entre o Vinz e o Hubert, sendo por vezes impulsivo como o Vinz ou mais maduro como o Hubert.

“La Haine” é um retrato da juventude imigrante oprimida e rebaixada, de todas as frustrações que rodopiam na selva de cimento que são os subúrbios de Paris, e do caos, violência e falta de rumo que marcam estes jovens. O filme mostra sem rodeios o abuso do poder dos polícias e a falta de confiança que os imigrantes têm nos mesmos, quando um polícia diz a Hubert que “os polícias estavam só a fazer o seu trabalho, a proteger” o jovem responde-lhe com “e quem nos protege de vocês?”.

Tanto em conteúdo como em forma “La Haine” é uma obra de arte. O filme é inteiramente a preto e branco, com uma estrutura cuidadosamente calculada, um argumento cativante que é encarnado por um elenco talentoso, e uma cinematografia harmoniosa e bela, que faz o melhor uso possível da luz e da paisagem citadina de Paris. A câmara move-se com suavidade e precisão elevando a narrativa, o que resulta em cenas formidáveis, como a notável cena em que o Vinz, à frente do espelho, reencena o famoso monólogo do Robert De Niro em “Taxi Driver”(1976), que reflete a personalidade sonhadora e raivosa de Vinz, ou a cena em que sobrevoamos sobre o bairro onde os jovens moram enquanto um DJ toca o seu “set”, cena que caracteriza o movimento artístico de uma geração e demonstra a situação social.

“La Haine” é um espelho da nova França multiétnica. É um filme emotivo e marcante, que evoca reflexão sobre a sociedade e o círculo vicioso do ódio. Haverá maneira de contornar este círculo ou até mesmo quebrá-lo? Ou estaremos condenados a permanecer neste círculo odioso? O final de “La Haine” é inesquecível, as palavras de Vinz ecoam no escuro depois dos tiros: «É uma história sobre uma sociedade que cai, mas que se vai dizendo, para se tranquilizar: “Até aqui tudo bem, até aqui tudo bem, até aqui tudo bem. O importante não é a queda. É como se aterra”». Ódio é um sentimento definidor e destruidor da humanidade.

Passaram 24 anos desde a estreia de “La Haine” e continua a ser uma história relevante na nossa atualidade, é uma história sobre a condição social, a renúncia da autoridade e ódio que se aplica ao passado, ao presente e ao futuro.

(2019-07-29)


“Persépolis” e a importância da essência
Daniela Graça

“Persépolis” é um filme francês de animação de 2007, e é baseado na banda desenhada autobiográfica com o mesmo título da autoria de Marjane Satrapi, que juntamente com Vincent Parannoud realizou o filme.

O filme segue a história da pequena Marjane até se tornar numa adulta. É um filme de pequena duração, com pouco mais de 1 hora e meia, mas que encapsula uma grande história, não só a de Marjane como a da sua família e país. É uma obra cativante pela sua forma e conteúdo, pela sua personagem principal cheia de vivacidade e personagens secundárias caricatas e intrigantes.

“Persépolis” é contado através dos olhos da jovem, como ela perceciona os acontecimentos e as opiniões dos seus familiares, e inicia-se com a Revolução Iraniana de 1979 e com a queda do regime do Xá. Marjane cresce e o mundo muda, um regime opressor e violento instala-se e uma guerra, que irá ceifar milhares e milhares de vidas, desenrola-se. Ela continua a crescer, a questionar-se a si mesma e ao mundo, muda-se para Viena onde se sente isolada no frívolo e frio Ocidente. Volta para casa no Irão onde se sente desconexa.

Crescer é uma tarefa árdua e confusa por si só e Marjane cresceu em circunstâncias assustadoras, perdeu parte da sua família nas mãos de um regime tirânico, experienciou a guerra, foi oprimida e controlada por uma ditadura sexista e religiosa. A jovem passou por momentos em que se perdeu, se isolou e até negou a sua identidade, momentos em que parou de lutar. “Persépolis” é sobre Marjene e as suas convicções, gostos, crises de identidade, falhanços amorosos, depressão, raiva e alienação tanto no estrangeiro como na sua terra natal, e é também sobre o mundo que a rodeia, o país em ruína, guerra, imigrantes, família, raízes e ideais. É um filme provocativo com uma animação que transborda de estilo e criatividade.

A animação é maioritariamente a preto e branco, exceto as poucas cenas passadas no presente que são coloridas. A animação no estilo de banda desenhada demonstra eficazmente tanto o mundo fantasioso de uma criança como a sanguínea realidade da guerra, joga com a luz e escuridão, enquadra e contrasta criativamente, e faz uso de silhuetas, sombras e reflexos, assemelhando-se por vezes a um teatro de sombras. A animação exalta a história convoluta e o diálogo inteligente, tocante e humoroso.

“Persépolis” é tremendamente multifacetado, desenvolve os mais variados assuntos, mensagens e valores. É um filme pessoal e honesto, o que o torna tão marcante e emotivo, e com muito por onde refletir. É uma homenagem sobre a nossa essência, as nossas origens, aquilo em que acreditamos e aqueles que viveram e morreram pelos ideais justos. É um manifesto sobre ter orgulho de quem somos e nunca esquecer de onde viemos, tal como a avó de Marjene lhe disse “permanece sempre digna e integra perante ti mesma”. Nunca devemos perder a essência de quem somos, mesmo nos momentos em que nos falta esperança e força. Devemos seguir em frente, sempre, tal como Marjene.
(2019-06-29)

 

Como “Os Filhos do Homem” (2006) se distingue no género de ficção-científica
Daniela Graça

“Os Filhos do Homem” (2006) do realizador Alfonso Cuarón é um filme de ficção-científica que engloba drama, suspense, ação, política e guerra.
O enredo do filme é simples: é 2027 e o mundo caiu no caos porque a humanidade é infértil. A Grã-Bretanha tem uma política extrema de anti-refugiados. E Theo, um ex-ativista, concorda em ajudar a jovem imigrante Kee, que milagrosamente está grávida, e levá-la até um santuário fora da Grã-Bretanha onde ela e a criança estarão protegidas.
A premissa simples de “Os Filhos do Homem” é o que o distingue do típico filme de ficção-científica, não existe um mundo fantasioso com uma história e mitologia complexa, criaturas sobrenaturais ou tecnologia avançada. O filme apresenta-nos uma distopia duma realidade familiar à nossa passada no futuro muito próximo. É devido a essa mesma proximidade ao que conhecemos que o filme se torna arrepiante.
A história é elevada através das personagens, todas elas extremamente bem desenvolvidas refletindo a humanidade no seu pior e melhor, e os respetivos atores que as encarnam talentosamente. Tanto os atores principais Clive Owen (Theo) e Clare-Hope Ashitey (Kee), como o elenco secundário Michael Caine (Jasper), Julianne Moore (Julian) e Chiwetel Ejiofor (Luke) têm performances magníficos, demonstrado a intrínseca complexidade da natureza humana face ao desastre e as suas diversas reações.
Cuarón cria um mundo sem futuro e assombrado pelo passado, um mundo com escolas e parques vazios, sem risos de crianças. A humanidade está estagnada, sem esperança e sem rumo. Em Londres vemos pessoas esgotadas, ruas sujas, e bombas explodem. Instalou-se uma severa política que discrimina e persegue refugiados, são criados campos de concentração onde são retidos. As forças militares são violentas e xenófobas. Grupos radicais extremistas surgem para combater a desigualdade com violência. Neste ambiente nocivo o bebé milagre de Kee seria usado como peão político, e como tal, eles têm de escapar da Grã-Bretanha.
O filme alterna fluidamente entre momentos de reflexão, demonstrado o desânimo inerte, e os momentos de fuga e de luta pela vida, em que a camara segue as personagens tremendo e é atingida por sangue, como num documentário de guerra, magnificando o perigo em que se encontram. A cinematografia tem como palete de cores tons frios, sombrios e esbatidos evocando o sentimento de decadência. A trilha sonora exalta o caos, um exemplo marcante foi “In the Court of the Crimson King” de King Crimson, uma canção mística e fúnebre, que ecoa sobre planos da precariedade de Londres, uma cena tão assombrosa que me causou arrepios.
Cuarón demonstra eficazmente em “Os Filhos do Homem” como a humanidade engolida por medo e desespero se prejudica ainda mais, caindo em violência e caos, perseguindo e magoando-se uns aos outros. Mas no meio de toda essa angústia quando a esperança finalmente surge, como um ténue raio de luz, consegue mover o coração humano mesmo nas situações mais adversas.
O filme tem uma grande carga emocional e o espetador fica investido devido às personagens. É ficção-científica, mas os temas são reais e importantes na nossa atualidade, faz nos questionar a situação e a moralidade de políticas de refugiados e guerra, faz nos refletir sobre o Homem e as suas atitudes, sobre o nosso futuro, ou melhor, a falta de existência do mesmo.
“Os Filhos do Homem” é revigorante, é um dos filmes de ficção-científica mais distintos e refletivos do nosso século. É sentimental sem cair em dramas supérfluos, é filosófico sem se tornar elitista ou massacrante. É acima de tudo refletivo, honesto e humano.
(2019-06-08)


O sonho de Wadjda
Daniela Graça

“O sonho de Wadjda” (2012) é um filme de drama e comédia realizado por Haifaa Al-Mansour. É a primeira longa-metragem realizada por uma mulher na Arábia Saudita. A história segue a vida da jovem rapariga Wadjda que sonha em comprar uma bicicleta e andar nela livremente.

No entanto a Wadjda vive numa sociedade machista e patriarcal que a restringe em vários aspectos, sendo um deles, o simples acto de andar de bicicleta. Este sonho é desaprovado pelos seus pais, professores e sociedade porque “não é uma coisa de meninas”. Só o vizinho e amigo dela, o Abdullah, a apoia. É uma premissa simples, mas contada com muito coração.

A Wadjda é um espírito-livre e não desiste, engendra vários planos para poupar dinheiro como vender cassetes, pulseiras e implorar à sua mãe (o que não resulta). Quando estes falham ela entra no concurso de leitura do Corão cujo prémio monetário é o suficiente para comprar a bicicleta.

Um dos aspectos que mais gostei foi a direção de fotografia que proporcionou uma composição de fotografia harmoniosa, agradável e colorida, o que reflete imenso a Wadjda e toda a sua juventude, humor, rebeldia e força de vontade.

O filme mostra uma realidade que muitas mulheres vivenciam, mostra como se têm de tapar para não serem vistas por homens, como não podem cantar para não serem ouvidas por homens, como não podem conduzir, enfim, como são restringidas em tantas coisas. Mas mostra também a beleza da juventude, das amizades e da relação mãe-filha. E mais importante, mostra como os sonhos, os nossos objetivos e aspirações, são uma parte fundamental de quem somos e que por mais que tudo esteja contra nós, devemos persistir e continuar a lutar.