Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

A Arte da caligrafia como valor terapêutico

A palavra caligrafia tem origem no grego «kalligraphía» e que dizer escrita bela. Em Portugal, Giraldo Fernandes de Prado (c. 1530-1592) é conhecido como o primeiro autor de um tratado sobre o tema: Tratado da Letra Latina (1560-1561). Com a introdução da tipografia no século XV, os humanistas europeus, sobretudo italianos, desejaram ver impressas as suas obras com tipos desenhados com régua e compasso, numa harmonia assente em ‘proporções ideais’. Essas proporções ideais reflectiam de certa maneira, a magnanimidade do homem do Renascimento como forma de afastamento em relação aos preceitos medievais, onde as letras eram traçadas à medida do olho, seguindo os cânones da ortodoxia monástica.

A caligrafia é uma arte visual, muito associada ao desenho, consistindo no traçado regular e elegante de uma determinada forma de escrita. É a arte e o estudo da escrita à mão. Na história das civilizações percebemos que desde as placas de argila em escrita cuneiforme da Mesopotâmia (3200 a.C.), hieróglifos egípcios, ou caracteres chineses, todos eles desenvolvem uma forma de destreza motora que, idependentemente da sua função primordial: ser lida e compreendida, são antes de mais, verdadeiros desenhos esteticamente cuidados.

Se no passado a arte da caligrafia, fazia parte do currículo base da formação dos jovens aristocratas, hoje, na nossa sociedade tecnológica, a arte da caligrafia pode constituir um importante recurso para terapias baseadas na interação entre o sujeito criador, o trabalho artístico desenvolvido - a criação - e, em casos específicos, um terapeuta. O recurso à imaginação, simbolismo e metáforas enriquece os processos, desenvolvendo uma expressão emocional significativa e um maior autoconhecimento. O ato caligráfico exerce fantasia, imaginação, capacidade de abstração e capacidade de improvisação.

Por exemplo, na arte caligráfica islâmica, formada por um texto legível, sendo uma criação baseada no alfabeto árabe, é o meio utilizado para escrever o conteúdo do livro sagrado dos muçulmanos: o Alcorão. Portanto, é a arte da palavra sagrada, caracterizada pela perfeição, beleza, repetição e movimento.

Ibn Jaldún (1332-1406), historiador e teórico do pensamento filosófico islâmico diz que "a escrita são traços que desenham as palavras percebidas pelo ouvido e que expressam, por sua vez, um conteúdo da alma". A importância da arte caligráfica para os povos islâmicos é perceptível na sua máxima expressão nos diferentes edifícios sagrados e monumentos, na interiorização e busca pela felicidade e equilíbrio espiritual na relação dos crentes com Deus.

Na arte caligráfica islâmica podemos destacar valores como o toque de pena ou toque da caneta que deve ser suave para um desenho fluído e natural sem repressão, peso ou sofrimento dando liberdade ao movimento da caneta e da mão; o movimento da mão que deve ser moderado. A lentidão extrema produz um sinal deselegante, enquanto a pressa pode causar uma escrita irregular e muito desigual. Quanto maior o domínio, melhores e mais harmoniosos os movimentos. Quanto mais experiência e perfeição, mais liberdade e fantasia; a concentração também é muito importante, pois por meio dela o sujeito consegue afastar-se do mundo exterior e preparar um ambiente propício para imergir num espaço único, o dos seus sentimentos; a respiração deve ser bem controlada. O movimento traçado com a inspiração difere muito daquele feito com a expiração. A respiração influencia o traçado e caracteriza o movimento. Momentos de pausa são fundamentais para um adequado processo e resultado final.

Como terapia, a Arte Caligráfica pemite desenvolver o autocontrolo, segurança e autoconfiança, a capacidade de concentração e o desenvolvimento de uma boa respiração. Como refere a Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia, é através da mobilização das pulsões inerentes ao processo criativo próprio e ao fazer artístico que se propicia a sua satisfação e alterações interiores. A facilitação da tais transformações significativas e integradas em tomadas de consciência pode ser importante para promover a riqueza, a vitalidade e a qualidade da vida psíquica.  

ver mais: https://doi.org/10.1590/S1414-98932014000100011