
Contemplações
Francisco Gil
Damien Hirst, em caixa de vidro
- Partilhar 02/12/2024
O
controverso pintor, escultor e artista
de instalações Damien Hirst é um dos
artistas contemporâneos de maior
sucesso comercial do mundo. Um dos
principais membros do grupo de arte
pós-modernista do Reino Unido,
conhecido como Young British Artists,
ganhou destaque na década de 1990 pela
sua série de animais mortos preservados
e a flutuar em formaldeído (formol).
Influenciado por Francis Bacon, as suas
obras mais famosas de arte vanguardista
incluem A Thousand Years (1989),
uma caixa de vidro com larvas e moscas
a alimentarem-se da cabeça de uma vaca
em decomposição; The Physical
Impossibility of Death in the Mind of
Someone Living (1991), um
tubarão-tigre num tanque de vidro com
formol e For The Love of God, um
molde em platina de um crânio humano do
século XVIII coberto com diamantes no
valor de 15 milhões de libras. As duas
últimas obras exemplificam o uso que
Hirst faz dos "objectos encontrados"
como arte. Também é conhecido pelas
suas "pinturas giratórias", feitas numa
superfície circular rotativa, e pelas
"pinturas pontuais", que consistem em
filas de pontos ou círculos de cores
aleatórias.
Nascido em Bristol
em 1965, Hirst cresceu em Leeds com a
mãe e o padrasto. Não sendo um
brilhante estudante, pois chumbou na maioria
dos exames. Frequentou o Leeds College
of Art and Design, embora tenha sido
rejeitado na sua primeira candidatura.
Depois mudou-se para Londres, onde
trabalhou durante dois anos em
estaleiros de construção antes de ser
aceite, na sua segunda candidatura em
1986, no Goldsmiths College of Art da
Universidade de Londres para um curso
em Belas Artes.
Enquanto
estudante, trabalhou numa casa
mortuária, o que terá influenciado o
seu interesse pelo tema da morte.
Começou também a desenvolver uma
reputação de ativista incansável na
promoção da sua arte. Em julho de 1988,
Hirst organizou "Freeze", uma exposição
de arte estudantil num bloco desativado
gerido pela London Docklands
Development Corporation (LDDC), que
também patrocinou a exposição. Entre os
visitantes de prestígio da exposição
encontrava-se o colecionador de arte
multimilionário Charles Saatchi. A
exposição de Hirst consistia num
conjunto de caixas de cartão decoradas
com tinta de uso doméstico.
Após
obter a licenciatura pela Goldsmiths
College of Art em 1989, Hirst começou
por participar numa série de exposições
de arte de menor importância. A sua
primeira grande participação ocorreu em
1990, quando (juntamente com Carl
Freedman e Billee Sellman) organizou
duas exposições "armazém", denominadas
"Modern Medicine" e "Gambler". O
milionário e colecionador de arte,
Charles Saatchi chegou à segunda
exposição no seu Rolls Royce e –
segundo o que consta – ficou muito
impressionado quando viu a instalação
de Hirst, A Thousand Years, uma
grande caixa de vidro na qual larvas e
moscas se alimentavam dos restos em
decomposição da cabeça de uma vaca.
Saatchi comprou imediatamente a peça,
dando assim início a uma longa e
frutuosa relação comercial entre
mecenas e artista.
Primeira exposição individual
Em 1991, Hirst realizou a sua
primeira exposição individual "Dial, In
and Out of Love", um evento que teve
lugar numa loja vazia de Londres e foi
organizado por Tamara Chodzko.
Seguiram-se outras exposições
individuais no Institute of
Contemporary Arts, em Londres, e na
Galeria Emmanuel Perrotin, em Paris.
Além disso, a Serpentine Gallery
acolheu "Broken English", uma exposição
coletiva que apresentava a nova geração
de artistas. Foi também durante este
período que Hirst conheceu o negociante
de belas-artes em ascensão Jay Jopling,
iniciando assim outra relação comercial
importante e duradoura.
A impossibilidade física da morte na mente de alguém vivo. Após a compra de A Thousand
Years, Saatchi ofereceu-se para
financiar qualquer obra de arte que
Hirst quisesse criar. O resultado foi
The Physical Impossibility of Death
in the Mind of Someone Living, um
tubarão-tigre
conservado em formol numa caixa de
vidro, que foi exibido em 1992 como
parte da primeira exposição Young
British Arts (YBA) na Galeria
Saatchi de arte contemporânea em
Londres. Hirst foi nomeado para o
Prémio Turner nesse ano.
Em
1993, Hirst recebeu a sua primeira
grande exposição internacional na
Bienal de Veneza com a sua obra
Mother and Child Divided, uma vaca
e o seu vitelo, cortados em secções e
expostos em caixas de vidro separadas.
Em 1994, a sua obra Flock, uma
ovelha a flutuar num tanque de
formaldeído, foi exposta na Serpentine
Gallery, em Londres. Um outro artista, Mark Bridger, entrou um dia
na galeria e deitou uma lata de tinta
preta no tanque, rebatizando a obra
como "Black Sheep". Mais tarde, foi
processado e a escultura foi
restaurada.
Em 1995, Hirst foi
finalmente galardoado com o Prémio
Turner, mantendo o foco, através das suas obras
em continuar
a chocar o público. A sua escultura
Two F--- and Two Watching,
uma vaca e um touro em decomposição,
foi proibida em Nova Iorque por receio
de "vómitos entre os visitantes".
Em 1997, participou na Exposição
Sensation na Royal Academy com
outros jovens artistas britânicos como
Tracey Emin e Marcus Harvey. A
Thousand Years e outras obras de
Hirst foram incluídas. A exposição
causou muita polémica, nomeadamente
quanto ao verdadeiro significado da
arte. No entanto, demonstrou que os
YBAs faziam oficialmente parte do
establishment.
Durante o
resto da década de 1990, a popularidade
das obras de Hirst continuou a crescer.
O tema da vida e da morte continuou a
permear a sua produção. À semelhança do
artista Andy Warhol (e não muito
diferente dos antigos mestres de
grande impacto artístico, como Miguel Ângelo,
Giovanni Bellini e Ticiano, e de
pintores barrocos como Peter Paul
Rubens), Hirst expandiu o seu estúdio e
contratou assistentes para o ajudarem a
produzir as suas obras, especialmente
as pinturas de arte. Este facto deu
origem a controvérsias sobre a
autenticidade de algumas das suas
obras. De facto, ele próprio admitiu
ter pintado apenas cinco das suas
pinturas "Spot" porque "não me apetecia
fazê-lo". Descreveu os seus próprios
esforços como "merda" e que uma das
suas assistentes, Rachel, era muito
melhor nisso. Afirmou que "o melhor
quadro pintado por mim é um pintado por
Rachel... a única diferença entre um
pintado por ela e um meu é o dinheiro".
Escusado será dizer que Hirst não é
visto por muitos críticos de arte como
um dos mais importantes pintores do
século XX!
Em setembro de 2000,
Larry Gagosian, um fã do artista neopop
americano Jeff Koons (n.1955),
organizou uma exposição individual para
Hirst em Nova Iorque intitulada:
"Damien Hirst: Models, Methods,
Approaches, Assumptions, Results and
Findings" (Modelos, Métodos,
Abordagens, Pressupostos, Resultados e
Conclusões). A exposição atraiu 100.000
pessoas durante 12 semanas e todas as
obras foram vendidas. Em abril de 2003,
a Saatchi Gallery, recentemente
transferida, apresentou uma exposição
que incluía uma retrospetiva de Hirst.
Após esse facto desencadearam-se
tensões na relação entre os dois
homens, sobre quem era mais responsável
por impulsionar o seu perfil conjunto.
Numa explosão, Hirst criticou Saatchi,
dizendo: "Ele só reconhece a arte com a
sua carteira... acredita que pode
afetar os valores da arte com o seu
poder de compra, e ainda acredita que o
pode fazer". As consequências terão
destruído as perspetivas de uma
Retrospetiva Hirst na Tate Modern. Além
disso, pouco tempo depois, Hirst voltou
a comprar 12 obras suas a Saatchi (um
terço da coleção das primeiras obras do
artista) que,
segundo consta, proporcionou
ao seu mecenas um lucro substancial,
mas preservou o valor de mercado da
obra de Hirst. Mais tarde, em 2003,
Hirst teve uma exposição intitulada
"Romance In the Age of Uncertainty" na
White Cube Gallery, em Londres, com
muito sucesso comercial, elevando o seu
património substancialmente.
Em 2007, For the
Love of God, um crânio humano
recriado por Hirst em platina e
adornado com mais de oito mil
diamantes, foi vendido a um consórcio
que incluía o artista e a The White
Cube Gallery por 50 milhões libras.
Em 2008, o artista deu o passo invulgar
de contornar as galerias estabelecidas,
vendendo obras diretamente ao público
através de um leilão na Sotheby's.
Os principais objetos de exposição
incluíam The Golden Calf, um
animal com chifres e cascos de ouro,
preservado em formaldeído, e The
Kingdom, outro tubarão-tigre
preservado. Para além disso, a venda
incluiu pinturas de manchas e
borboletas, muitas das quais com
diamantes e metais preciosos. Mais de
21 000 pessoas visitaram a pré-feira e
todos os 56 lotes foram vendidos por um
total de 111 milhões de libras
esterlinas. O leilão foi um sucesso
para além de qualquer expetativa e
estabeleceu um recorde para um leilão
de um único artista.
Artista polémico
A
controvérsia em torno de Hirst tem
origem em quatro questões: (1)
Diferenças de opinião relativamente ao
valor estético ou artístico intrínseco
das suas obras de arte. (2) A
utilização de materiais chocantes e
sensacionalistas nas suas obras. (3)
Alegações de manipulação de preços e
práticas comerciais questionáveis. (4)
O facto de ser extremamente rico, um
dos artistas pós-modernistas mais
bem-sucedidos, e sem dúvida objeto de
inveja por parte de muitos artistas e
críticos.
Damien Hirst foi
elogiado por muitos por ter agitado o
interesse pelas artes britânicas e por
ter ajudado a criar a imagem de uma
"Cool Britannia". Além disso, um grande
número de profissionais e peritos em
arte não hesitou em reconhecer a sua
capacidade de comercializar obras de
arte. Um título do Daily Mail
afirmava: "Há mil anos que a arte é uma
das nossas grandes forças
civilizacionais. Hoje, ovelhas em
conserva e camas sujas ameaçam fazer de
todos nós bárbaros". O artista Charles
Thomson, do The Stuckist Art Group,
escreveu sobre as obras de Hirst: "São
brilhantes e loucas – mas no final do
dia não há nada." E num documentário
televisivo de 2008, The Mona Lisa
Curse, o respeitado crítico de arte
moderna Robert Hughes atacou o trabalho
de Hirst como "foleiro" e "absurdo". No
entanto, apesar dos cépticos, Hirst
continua a ser um best-seller
e, apesar de uma rutura com o seu
antigo mecenas Charles Saatchi, este
último continua a ser um firme apoiante
do talento artístico de Hirst.
Uma outra questão diz respeito à
longevidade das suas obras e, por
conseguinte, à sua reputação como
artista, e – implicitamente – ao
significado da arte no século XXI. O
trabalho de Hirst pode ser visto como
um simples reflexo da sociedade atual,
que atribui uma importância primordial
ao "valor-notícia". À medida que os
valores mudam, é provável que a
importância da sua contribuição para a
arte visual diminuirá para o nível de
mera curiosidade. O seu nome poderá
perdurar por mais algum tempo, mas
pode-se duvidar que no futuro, poucas
pessoas se lembrarão das suas
esculturas e instalações, agora na
moda.
Quanto às suas capacidades
artísticas, provavelmente são muito
sobrevalorizadas pelos media.
Para além disso, a sua própria visão da
arte parece confusa. Por um lado,
parece apoiar a noção conceptualista de
que o verdadeiro ato criativo é a
ideia e não o produto acabado. Por
outro lado, muitas das suas obras têm
títulos absurdamente pretensiosos –
assinalando assim o seu significado
excecional – e algumas estão embutidas
ou decoradas com materiais extremamente
valiosos – o que não é condizente como
material da arte conceptual tradicional.
No entanto, a abordagem de Hirst à
arte moderna é inteiramente consistente
com um forte desejo de ganhar dinheiro
e alcançar fama mundial. Por isso, em
vez de discutirmos o seu nível de
capacidade criativa como escultor ou
pintor, elogiemo-lo pelas suas
extraordinárias capacidades
empresariais e pela sua contribuição
única para a cena artística britânica
contemporânea. As suas obras estão
expostas em várias galerias
contemporâneas e num ou dois dos
melhores museus de arte do mundo.
- Ano VI • 2024