Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

A voragem violenta das ondas

Estamos a atravessar um tempo estranho. Ou talvez não. O nosso tempo de vida é extremamente curto em relação ao tempo do universo, ou mesmo em relação ao tempo de existência do planeta Terra - cerca de 4,5 mil milhões de anos. Se imaginarmos que o Big Bang ocorreu há uns 13 mil milhões de anos, numa linha do tempo com a dimensão de 365 dias, a existência de humanos, resume-se aos últimos segundos do ano. Como referido em Génesis 3:19, somos pó e em pó nos tornaremos.

Isto a propósito das incertezas quanto ao futuro dos negócios, dos projetos, da vida que tanto gostamos de ter devidamente programada e assegurada. Em tempos de crise, são os mais aptos os primeiros a tomarem a dianteira para se adaptarem às mudanças. Grandes ou pequenos, fortes ou fracos é na capacidade de adaptação que está a sobrevivência.

Os gritos de insatisfação perante as incertezas, ou ondas de indignação que agora se levantam devido à pandemia, fazem parte da natureza humana. Ainda bem que assim é. Quer dizer que não é fácil navegar em pequenas cascas de noz que à primeira vaga se viram e à segunda se afundam. Ter alguém que nos diga por onde ir e o que fazer, requer um menor gasto de energia, mas por outro lado retira-nos boa parte da liberdade e limita-nos as escolhas. A importância de ser dono e responsável pelas nossas decisões, coloca-nos diante das incertezas e vulneráveis perante o dinamismo dos contextos onde nos situamos.

Na atividade artística o que mais prevalece são as decisões individuais e a aptidão especial para quebrar regras. Os artistas, pela sua irreverência, estão situados nas margens da normalidade social e em tempos de constantes confinamentos e receios nos contactos físicos, a atividade cultural e artística é das que mais se tem retraído. Os mares por onde navegamos, são tortuosos para todos, mas nas pequenas cascas de noz há grande dificuldade em nos mantermos à tona. Há que se reinventar e encontrar novas estratégias para sobreviver. São tempos estranhos mas também de novas oportunidades.

Mais que exigir soluções à medida dos nossos pequenos umbigos, há que repensar estratégias e adaptarmo-nos aos novos contextos de uma forma mais abrangente, onde haja lugar para todos. Claro que o mundo é injusto. Pena que essa perceção de injustiça só venha à tona quando nos toca diretamente na pele. Porventura é por isso que as injustiças continuem a prevalecer. Enquanto estivermos apenas preocupados com a nossa pequena casca de noz, até no mar pacífico dificilmente encontraremos uma brisa de vento que nos permita chegar a um bom porto.

* «O elemento humano, insignificante e perdido, encontra-se irremediavelmente submetido à voragem violenta das ondas.», Naufrágio de um Cargueiro, 1810 [ Joseph Mallord William Turner ] - Museu Calouste Gulbenkian, Lisboa, Portugal