Contemplações
Francisco Gil
Uma Obra fora do seu tempo
- Partilhar 09/03/2023
«O Desterrado» é a obra da
vida do seu autor, António Soares dos
Reis — a sua obra-prima!
É, também, um marco no
panorama da escultura portuguesa da
segunda metade do século XIX, elevando
o academismo da época a um nível
superior. A obra foi começada em
Itália em 1872 (para onde Soares dos Reis havia
ido estudar como bolseiro e onde teve oportunidade de
desenvolver e cimentar a sua formação
académica clássica) e terminada no
Porto.
Uma das suas fontes de
inspiração, terá sido
«O desespero» de
Joseph Perraud, de 1861 (Museu
d’Orsay), exposta no Salon de 1869 com
grande sucesso e que impressionou a
sociedade da época pela sua força e
delicadeza.
A obra de António
Soares dos Reis, «O Desterrado», é uma estátua, em tamanho
natural, de um jovem nu, sentado num
penhasco de rocha que o mar vem beijar
(visível no
detalhe da espuma que se
esvai contra a rocha e das pequenas
conchas na base do rochedo).
O corpo e
o rosto do jovem homem são de uma
perfeição clássica, idealizada, e
trabalhada com mestria pelo escultor
que neles evidenciou todo o seu
virtuosismo. A modelação anatómica é de
um primoroso realismo técnico que
acentua cada músculo, cada tendão, cada
ruga, cada textura. No entanto,
contrastando com o vigor físico que a
juventude e as formas harmoniosas lhe
conferem, tudo o mais, neste jovem,
transmite abandono, desalento, tristeza
e solidão...
A beleza física acentua o
abatimento psicológico em que o jovem
se encontra mergulhado. No corpo nu
sentado, os ombros, meio arqueados,
inclinam o tronco ligeiramente para a
frente; a cabeça cai-lhe sobre o ombro
esquerdo como se incapaz de suportar o
próprio peso; o rosto olha sem ver,
alheio a tudo o que é exterior e apenas
atento à realidade interior. Os braços,
num movimento contrário ao da cabeça,
unem-se sobre o joelho direito
levemente erguido, entrecruzando os
dedos num gesto maquinal; a perna
esquerda pende com todo o seu peso ao
longo da rocha. A postura de desalento
é reforçada pelo retraimento em relação
ao mundo exterior, o que sobressai do
rosto alheado, do olhar vazio, das mãos
enoveladas, dos ombros encurvados, das
pernas cruzadas...
Colocando o "seu"
Desterrado numa postura estática,
Soares dos Reis orientou, contudo, a
composição por duas linhas diagonais,
contrárias e divergentes: uma, a
dominante, vai do ombro direito à ponta
do pé esquerdo; a outra, mais pequena,
une a cabeça às mãos entrecruzadas. Se,
todavia, estas linhas não acrescentam
movimento à estátua, servem, isso sim,
para acentuar a tensão
interior-exterior, físico-espírito.
Enriquecem-na, também, plasticamente,
aumentando o jogo de cheios e vazios e
os contrastes de luz/sombra que as suas
múltiplas "vistas" proporcionam.
Obra
de síntese em relação ao seu tempo, «O
Desterrado» harmoniza em si valores
realistas (evidenciados na
pormenorização do seu virtuosismo
técnico), valores idealistas (na forma
canónica do nu e na sua beleza
idealizada) e valores românticos (na
expressividade nostálgica e sofrida),
que fazem dela o símbolo do seu século.
Interpretada, muitas vezes, como uma
espécie de auto-retrato idealizado do
seu autor (na altura afastado do país
e, por temperamento, um melancólico e
neurasténico), a obra «O Desterrado»
exprime, com invulgar sensibilidade, a
solitária e introspectiva inquietação
de toda uma geração de intelectuais que
observaram, impotentes, a estagnação e
a decadência do país.
Podemos
reconhecer também, nesta obra, o desalento que
muitos sentem pelo desprezo a que são
votados na comunidade que os viu
nascer. É uma obra notável de um
artista oriundo de uma terra pequenina,
cheia de invejosos, mesquinhez e
fervorosos adeptos do bota-abaixo.
O
grande obstáculo à afirmação da obra de
Soares dos Reis na arte do século XIX,
mais que a incompreensão dos seus
patrícios, foi a sua obra se situar num
período de grandes transformações
económicas e sociais. O academismo
clássico estava a ser contestado nos
grandes centros de produção artística,
tendo por essa altura emergido novas
correntes e movimentos, donde sobressaíam
nomes como Auguste Rodin, Édouard Manet, Claude Monet
que iniciaram novos caminhos na criação
artística, pondo de lado os anteriores
valores clássicos do academismo
predominante.
Em 1881 a obra foi premiada
na Exposição Geral de Belas Artes de
Madrid, tendo Soares dos Reis sido acusado
posteriormente, num artigo de um jornal de Lisboa,
de não ser o verdadeiro autor da peça.
O escândalo e a polémica provocaram
grande consternação no artista. Nos
anos seguintes, revelou algumas
perturbações cerebrais e de
irritabilidade que o levaram
frequentemente ao isolamento.
Sentindo-se incompreendido pelos que o
rodeavam, Soares dos Reis decidiu pôr
termo à vida. A 16 de Fevereiro de 1889
suicidou-se no seu atelier com dois
tiros de revólver. Tinha 42 anos.
Só
após a sua morte, a obra de Soares dos
Reis assumiu a grandeza que merecia
perante os críticos e o público.
- n.46 • março 2023