Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

Uma Obra fora do seu tempo

«O Desterrado» é a obra da vida do seu autor, António Soares dos Reis — a sua obra-prima! É, também, um marco no panorama da escultura portuguesa da segunda metade do século XIX, elevando o academismo da época a um nível superior. A obra foi começada em Itália em 1872 (para onde Soares dos Reis havia ido estudar como bolseiro e onde teve oportunidade de desenvolver e cimentar a sua formação académica clássica) e terminada no Porto.
Uma das suas fontes de inspiração, terá sido «O desespero» de Joseph Perraud, de 1861 (Museu d’Orsay), exposta no Salon de 1869 com grande sucesso e que impressionou a sociedade da época pela sua força e delicadeza.
A obra de António Soares dos Reis, «O Desterrado», é uma estátua, em tamanho natural, de um jovem nu, sentado num penhasco de rocha que o mar vem beijar (visível no detalhe da espuma que se esvai contra a rocha e das pequenas conchas na base do rochedo).
O corpo e o rosto do jovem homem são de uma perfeição clássica, idealizada, e trabalhada com mestria pelo escultor que neles evidenciou todo o seu virtuosismo. A modelação anatómica é de um primoroso realismo técnico que acentua cada músculo, cada tendão, cada ruga, cada textura. No entanto, contrastando com o vigor físico que a juventude e as formas harmoniosas lhe conferem, tudo o mais, neste jovem, transmite abandono, desalento, tristeza e solidão...
A beleza física acentua o abatimento psicológico em que o jovem se encontra mergulhado. No corpo nu sentado, os ombros, meio arqueados, inclinam o tronco ligeiramente para a frente; a cabeça cai-lhe sobre o ombro esquerdo como se incapaz de suportar o próprio peso; o rosto olha sem ver, alheio a tudo o que é exterior e apenas atento à realidade interior. Os braços, num movimento contrário ao da cabeça, unem-se sobre o joelho direito levemente erguido, entrecruzando os dedos num gesto maquinal; a perna esquerda pende com todo o seu peso ao longo da rocha. A postura de desalento é reforçada pelo retraimento em relação ao mundo exterior, o que sobressai do rosto alheado, do olhar vazio, das mãos enoveladas, dos ombros encurvados, das pernas cruzadas...
Colocando o "seu" Desterrado numa postura estática, Soares dos Reis orientou, contudo, a composição por duas linhas diagonais, contrárias e divergentes: uma, a dominante, vai do ombro direito à ponta do pé esquerdo; a outra, mais pequena, une a cabeça às mãos entrecruzadas. Se, todavia, estas linhas não acrescentam movimento à estátua, servem, isso sim, para acentuar a tensão interior-exterior, físico-espírito. Enriquecem-na, também, plasticamente, aumentando o jogo de cheios e vazios e os contrastes de luz/sombra que as suas múltiplas "vistas" proporcionam.
Obra de síntese em relação ao seu tempo, «O Desterrado» harmoniza em si valores realistas (evidenciados na pormenorização do seu virtuosismo técnico), valores idealistas (na forma canónica do nu e na sua beleza idealizada) e valores românticos (na expressividade nostálgica e sofrida), que fazem dela o símbolo do seu século. Interpretada, muitas vezes, como uma espécie de auto-retrato idealizado do seu autor (na altura afastado do país e, por temperamento, um melancólico e neurasténico), a obra «O Desterrado» exprime, com invulgar sensibilidade, a solitária e introspectiva inquietação de toda uma geração de intelectuais que observaram, impotentes, a estagnação e a decadência do país.
Podemos reconhecer também, nesta obra, o desalento que muitos sentem pelo desprezo a que são votados na comunidade que os viu nascer. É uma obra notável de um artista oriundo de uma terra pequenina, cheia de invejosos, mesquinhez e fervorosos adeptos do bota-abaixo.
O grande obstáculo à afirmação da obra de Soares dos Reis na arte do século XIX, mais que a incompreensão dos seus patrícios, foi a sua obra se situar num período de grandes transformações económicas e sociais. O academismo clássico estava a ser contestado nos grandes centros de produção artística, tendo por essa altura emergido novas correntes e movimentos, donde sobressaíam nomes como Auguste Rodin, Édouard Manet, Claude Monet que iniciaram novos caminhos na criação artística, pondo de lado os anteriores valores clássicos do academismo predominante.
Em 1881 a obra foi premiada na Exposição Geral de Belas Artes de Madrid, tendo Soares dos Reis sido acusado posteriormente, num artigo de um jornal de Lisboa, de não ser o verdadeiro autor da peça. O escândalo e a polémica provocaram grande consternação no artista. Nos anos seguintes, revelou algumas perturbações cerebrais e de irritabilidade que o levaram frequentemente ao isolamento.
Sentindo-se incompreendido pelos que o rodeavam, Soares dos Reis decidiu pôr termo à vida. A 16 de Fevereiro de 1889 suicidou-se no seu atelier com dois tiros de revólver. Tinha 42 anos.
Só após a sua morte, a obra de Soares dos Reis assumiu a grandeza que merecia perante os críticos e o público.