Contemplações
Francisco Gil
Antoine-Jean Gros: o artista por detrás da imagem de Napoleão
O Antoine-Jean Gros nasceu em
1771 e viria a tornar-se um dos
artistas mais importantes da era
napoleónica. Foi Gros, acima de todos
os outros, que captou Le petit
caporal, – alcunha atribuída a
Napoleão pelos seus soldados – tanto na
sua ascensão ao poder como na sua
pompa.
Após a derrota final de
Napoleão, Gros alcançou uma excelência
ainda maior sob a monarquia restaurada
dos Bourbon. No entanto, continua a ser
um artista algo subvalorizado e, embora
as suas enormes pinturas sobre a
aventura napoleónica estejam expostas
no Louvre e em Versalhes, são
habitualmente considerados como obras
de propaganda.
O pintor e o
futuro imperador conheceram-se em
Milão, em 1796. Gros, que estudou com
Jacques-Louis David, o principal
artista francês e o grande criador das
imagens da Revolução, não tinha
conseguido ganhar o Prix de Rome
– a bolsa de estudos para pintores
estudarem em Itália – mas viajou para
lá mesmo assim. Gros, viajou
ostensivamente para ver as grandes
obras de arte italiana, mas também
porque se tinha tornado uma pessoa de
interesse para os revolucionários e
porque seria prudente manter uma certa
distância entre si e a França.
Inicialmente, trabalhou como retratista
independente entre a comunidade
francesa expatriada e, nessa qualidade,
foi apresentado a Joséphine de
Beauharnais, então na fase
inicial do seu romance com Napoleão.
Esta contratou o pintor e levou-o na
sua carruagem para Milão e para o seu
encontro com Napoleão, que estava então
ocupado a conquistar o norte de Itália
como comandante-chefe do exército
francês.
Nessa altura, tinha
acabado de obter uma vitória célebre
sobre os austríacos em Spezia, Itália,
durante a qual, numa
demonstração imprudente de bravura, se
colocou à frente das suas tropas e as
conduziu vitoriosamente no que ficou
conhecido como a batalha da ponte de
Arcole.
O incidente era
demasiado bom para Gros deixar passar e
pintou o retrato do homem que se
aproximava, com Napoleão a fervilhar de
energia nervosa, de tal modo que a
única forma de o convencer a manter-se
quieto foi Joséphine pegando nele ao
colo e acariciando-o até ficar quieto.
O retrato resultante, feito a partir de
esboços rápidos, estabeleceu o nome de
Gros e acrescentou um glamour extra ao
de Napoleão. Além disso, juntou os dois
homens na consciência pública.
Em 1804, as coisas eram diferentes.
Napoleão já não era um general
arrojado, mas o governante de uma
França em expansão e prestes a
coroar-se imperador. Como provinciano,
precisava de consolidar a sua posição e
uma forma de o fazer era através de
pinturas que exaltassem as suas
proezas.
Para o Salão desse ano,
Gros produziu uma tela monumental que
mostra Napoleão a visitar soldados
franceses feridos durante a campanha do
Egipto. Napoleão visitando a Casa da
Peste em Jaffa, como ficou
conhecida a pintura, mostra Napoleão a
tocar o bubão – Tumefacção
inflamatória dos gânglios linfáticos –
na axila de um dos doentes, um gesto
que não só recordava o “toque do
rei” – a magia da realeza através da
qual se dizia que os monarcas ungidos
curavam a escrófula – como mostrava a
coragem e o cuidado de Napoleão para
com os seus homens.
Só que na
realidade, após a visita, Napoleão
tinha também ordenado aos seus médicos
que dessem aos soldados mais afetados
uma overdose de láudano, para que não
atrasassem os seus movimentos nem
infetassem outras tropas. Felizmente, a
dose teve um efeito curativo inesperado
em muitos dos homens, mas o sangue-frio
de Napoleão parece ter ficado
inconscientemente na mente de Gros e,
quando pintou os homens doentes, tornou
alguns deles tão monumentais que
pertencem a uma raça de gigantes. A sua
simpatia era para com os que sofriam.
Este aspeto da pintura não foi
visto na altura e foi um triunfo no
Salão, que se repetiu com outro
exercício supostamente propagandista,
Napoleão no campo de batalha de Eylau,
1808. Nesta tela, o Imperador observa a
carnificina após a batalha, na qual
50.000 homens morreram ou ficaram
feridos, e é mostrado a declarar que se
os governantes do mundo pudessem ver
tal cena, ficariam menos ávidos por
batalhas. Mais uma vez, porém, embora
Napoleão esteja no centro da
composição, são as vítimas que o
rodeiam que são o verdadeiro tema de
Gros e o seu sofrimento – enlouquecido
pela dor ou congelado na morte – torna
a piedade do Imperador maligna.
É pouco provável que Gros tenha
compreendido que estava a subverter a
mensagem ostensiva, mas a ambivalência
reflete a sua personalidade
conflituosa. Teve um colapso no túmulo
de um colega pintor, Girodet, quando se
acusou a si próprio de dar um mau
exemplo à escola francesa ao abandonar
o Classicismo de David pelo Romantismo
mais vistoso.
E apesar dos
Bourbons lhe terem concedido o título
de barão, continua a ser suscetível às
intimidações de David – então exilado
em Bruxelas – e incapaz de adaptar os
seus dons de cor e movimento ao exemplo
do seu mestre.
Sem Napoleão como
tema da sua arte – independentemente
dos seus verdadeiros sentimentos em
relação a ele – a sua pintura tornou-se
de menor importância, e ele sabia-o.
Tudo se tornou insuportável; e enquanto
Napoleão terminou os seus dias num
pedaço de rocha no Atlântico, o fim de
Gros foi ainda mais banal.
Em
junho de 1835, afogou-se em
Meudon-sur-Seine, num riacho ao largo
do rio. No local, terá sido encontrada
uma nota de suicídio na sua bandolete.
Dizia: “Cansado da vida e abandonado
pelas coisas que a tornavam suportável,
resolvi separar-me dela.”
A
mensagem, trágica o suficiente, apenas
sugere a extensão do seu desespero: a
água em que ele se matou tinha apenas
um metro de profundidade, pouco mais do
que uma poça. No entanto, estava tão
determinado a morrer que forçou a
cabeça para baixo e manteve-a lá.
Adaptado a partir de um texto de Michael Prodger
- n.48 • maio 2023