Francisco Gil

Contemplações

Francisco Gil

O almoço sobre a relva (Le Déjeuner sur l'herbe)

Que grande escândalo. Uma mulher nua sentada na relva com dois pequenos burgueses vestidos a rigor. Um piquenique no parque que os membros sensíveis da academia francesa de belas-artes repudiaram como se fosse algo impróprio. Além do mais, pintado numa tela enorme (208 × 264,5 cm), daquelas apenas reservadas aos grandes temas históricos... Que descaramento!

Isto a propósito do bom tempo primaveril, que nos convida a uma ida ao campo ou ao parque, para um bom piquenique. Mas como é habitual, convém algum decoro. A tela de Manet pintada em atelier, é de um tempo em que os pintores começaram a sair das suas oficinas e a pintar outros motivos, que não apenas aqueles oficialmente aceites pelos conservadores dos valores clássicos da academia. Mudanças em todos os âmbitos numa Europa em profunda transformação no século XIX.

A tela, que Edouard Manet intitulou,
O almoço sobre a relva, foi recusada no salão oficial de Paris de 1863 – o que explica os rígidos conceitos da época em termos de decoro artístico. Após o veto da Academia em expor a obra, esta seguiu o caminho de outras obras excluídas: a exposição paralela criada para o efeito que se intitulou Salon des Refusés – o Salão dos Recusados. A tela com certas notas misteriosas, mostra uma cena ao ar livre com Eugène Manet, irmão do pintor, juntamente com o escultor Ferdinand Leenhoff e a sua modelo Victoria Meurent.

A novidade e o contraste são proporcionados pela nudez da modelo em frente das duas figuras masculinas, contraste que recorda a rejeição que Courbet já tinha suscitado alguns anos antes com L’Atelier du peintre de 1855. A composição, claramente inspirada nos modelos clássicos de Giorgione e Ticiano, é completada por uma jovem que se banha no riacho, num esquema triangular e que foi rejeitado pela ausência do pretexto mitológico para a nudez da mulher e pela colocação das figuras no quadro, uma nova concepção de perspectiva que rompeu com os modelos tradicionais e provocou uma inquietante sensação de suspensão das figuras, como se estas estivessem a ser encaixadas numa grande colagem.

A pintura que está exposta no Musée d'Orsay, em Paris, não é o único exemplar de Manet que foi objecto do escândalo em torno de uma figura de jovem nua. É o caso de Olympia, obra posterior, recusada em 1865, onde uma jovem modelo nua, olha despudoradamente para o espectador, pintura que seguia o modelo de Goya (em a Maja desnuda) a que Manet nunca foi alheio. Manet, um pintor que, embora integrado no movimento impressionista, deve ser sobretudo entendido como um continuador da tradição académica que ousou inovar nas composições e atitudes dos seus modelos.