Breves Notas
Aníbal de Sousa
Tenho medo | No Pulo do Lobo | Alguns aforismos... | Fazeria alguma defrença? | A Catástrofe | Uma leve e ligeira Aliteração aliterante | Um Novo Auto das Barcas | Devaneio em dia de São Valentim | Breviário Bento e Resignado | A Máquina de Chilrear | Atalaia, Círios e Caramelos | O Padre Pedro e a Professora Sara | Cem Haikus portugueses | Parragil-Gilvrasino um exercício toponímico | Breves Notas sobre o Zéjel |
Devaneio em dia de São Valentim
- Partilhar 29/01/2023
“– Prestemos atenção às
coisas sérias!”
–
dizia a minha tia…“– Mas
sem perder
jamais de vista
a poesia!”
–
falava em tom de artista
O meu tio,
Enquanto tateava sob a cama
Procurando
O bacio.
“– Torradas
com manteiga
e algum cio, é que é para
mim
a pura poesia!”
E,
ripando de um lenço lavajado,
Solene, ela
cuspia,
Enquanto o velho ria,
Sem,
contudo, parar a vil micção.
“–
Olha o que fazes, cão!”
E, um pouco atrapalhado,
Então o
velho via
Que mijara …o porão…
E
assim se interrompia
O devaneio e a
discussão…
E a poesia, enfim, se
resumia
Àquela porcaria
Ali no chão!
*In É tempo de salvar o que nos resta, inéd.
Breviário Bento e Resignado
I
Deus abençoe os apresentadores e jornalistas
que não se cansam de entoar a Antífona 760
760 do Primeiro Livro de Cresus. Eles vieram
de Conservatórios e Universidades, trazem
licenciaturas, mestrados e doutoramentos e
muitos têm Carteira Profissional. Pela fé e
pela piedade que demonstram merecem bem a
salvação eterna por entre os esplendores da
Luz Perpétua.
II
Que
Deus tenha piedade dos autores morais e
materiais das telenovelas que lideram as
audiências em Portugal. É certo que muitos
dos que aparecem nos écrans não são atores;
são gente miúda recrutada em escolas e em
pequenas vilas e cidades da província, em
função das audiências que podem carrear. Mas
há também por ali atores com nome feito e
responsabilidades. A esses só a luta pela
subsistência pode justificar o nível dos
textos e dos guiões que aceitam. Por todos
eles, rezemos para que lhes seja reservado
um local tranquilo no Purgatório.
III
Oremos pelos
enviados especiais que as estações de
televisão portuguesas destacam para os
grandes palcos do mundo inteiro, como foi o
caso de uma conhecida e venerada portuguesa,
por ocasião da investidura de mais um
Cardeal português, no Vaticano. Ela trepou
aos telhados romanos tentando imitar As
Sandálias do Pescador. Infelizmente ficou-se
por modestas alpergatas, talvez por razões
orçamentais. Devemos rezar por ela e por
todos esses enviados especiais que vão aos
confins do mundo para nos darem opiniões
pessoais e dizerem banalidades, que nem se
justificariam na Penha de França ou no Alto
do Pina. Para todos eles pedimos um cantinho
ameno no Purgatório. E vão com muita sorte;
se Dante os apanhasse metia-os a todos, pelo
menos, na Segunda Zona do Quarto Círculo do
Inferno.
IV
Um
dia, a caminho de Jericó, seguia eu com um
velho mestre essénio que me disse: “-Sabes?
Os jornalistas têm o seu Estatuto, o seu
Código Deontológico, têm a Lei de Imprensa e
têm o lied, as pirâmides e outras normas e
princípios, mas nada disso é dogmático;
qualquer um o pode ignorar desde que seja um
génio.”
V
Epístola de São Paulo aos Tessalonicenses:
“-Vós, Tessalonicenses, não quereis pagar a
vossa dívida aos honestos cambistas do
Templo. Argumentais vós que eles vos
emprestaram 100 moedas para que vós lhes
comprásseis por 150 moedas, cabras que
valiam 50 moedas. Ora argumentais vós muito
bem! Tendes o meu inteiro apoio. Eu vos
prometo que, como Jesus, também expulsarei
esses cambistas do Templo.”
VI
Naquele tempo ia Jesus com
seus discípulos a caminho de Cafarnaum,
disse Pedro ao Senhor: “-Mestre, eles
colocam os blocos publicitários todos ao
mesmo tempo em todos os canais.”
“-Deixa lá, Pedro! Isso, para
eles, parece não configurar ilícito de
concertação de modos entre concorrentes. E,
de resto, eles apenas fazem isso em 99% dos
casos.”
VII
Esta
sexta-feira houve um porblema com os
porlongamentos dos porjetos dos ilcópteros.
Esta quinta-feira choveu. E a próxima
quinta-feira também chove. Arranca hoje a
primavera improvável e o inverno já era. E
aquilo que foi e aquilo que era. E também
faz parte. No porgrama o principal
personagem é uma bebé. (Telejornais do ano
inteiro de todos os canais)
Perante isto, São Judas Tadeu
declarou: “-Em verdade vos digo que é mais
chique arremeter contra o Acordo Ortográfico
do que contra o Asneirês.”
VIII
Os Procuradores das
Províncias foram ao Rei Sargão I reclamar da
política dos sátrapas. Segundo eles, parecia
que estava a ser prosseguida uma política
que visava empobrecer cada vez mais o povo.
“-É verdade! – disse o Rei! – O contrário é
que seria muito mau. Pois quanto mais o povo
enriquece, mais come; quanto mais come, mais
engorda; quanto mais engorda, mais dorme;
quanto mais dorme, menos trabalha; quanto
menos trabalha, menos ganha; quanto menos
ganha, mais empobrece. Logo, se virem bem,
quanto mais o povo enriquece, mais, na
verdade, ele empobrece. Assim, ao promover o
empobrecimento do povo, estaremos, na
realidade, a conduzi-lo à riqueza. Louvemos
o Senhor!”
IX
Neste tempo de Quaresma, Páscoa,
Pentecostes, Advento e Epifania, oremos ao
Senhor para que tenha compaixão e salve os
nossos inimigos e adversários, os nossos
concorrentes, os nossos governantes, e os
árbitros que prejudicam as nossas equipas. E
oremos ainda, com particular devoção, por
todos aqueles que se divertem e gozam à
grande.
X
“-Senhor!” – disse Pedro a Jesus – “está ali
uma alminha que quer à força entrar. Diz que
ia todos os dias à missa e que, uma vez, deu
umas roupinhas usadas a um peditório da Cruz
Vermelha. Mas na sua ficha vejo que despediu
professores, médicos, funcionários públicos,
e que cortou as pensões aos reformados. Isto
para não falar de umas trapalhadas com uns
cursos da CEE e outras malfeitorias.”
“-Se assim é, não poderá entrar.”
“-Mas
Senhor, é um sujeito teimoso. Tentou
subornar-me com ações do BES, e diz que quer
ajudar-me a ‘passar-Te a perna’ e tomar o
Teu lugar.”
“-Mas sendo assim, como quer
ele que o deixemos entrar?”
“-É que,
Mestre, ele apresenta um cartão dourado; diz
que é um Golden Visa.”
“-Ah! Já sei de
quem se trata! Olha, Pedro: manda-o entrar e
passa-o pela porta dos fundos a Satanás, com
um cartãozinho meu dizendo que se trata de
um presente. Quando Satã se aperceber que se
trata de um presente envenenado, já será
tarde; então é que ele verá o que é um
Inferno a sério.”
XI
De sorte que todas as gerações desde Eliadoc
a Sadiud, são catorze gerações; de Sadiud
até ao desterro de Babilónia, catorze
gerações; e desde o desterro de Babilónia
até Ananeu, catorze gerações.
E Eliadoc foi um
escravo de Abraão; Sadiud foi um servo de
David; e Ananeu foi o criado que varreu a
sala depois da Última Ceia.
Evangelho,
segundo o criado de São Mateus.
XII
“-Senhor!” – disse o
Camarlengo ao Papa Francisco – “estão ali
uns fulanos loiros, que falam como se
tivessem a boca cheia de favas, e que
insistem em fazer negócios connosco. Já lhes
disse que aqui não se fazem negócios, mas
eles insistem, insistem; falam em grandes
comissões, luvas e dinheiro que nunca mais
acaba, e sei lá que mais.”
“-Mas que querem eles,
afinal?”
“-Imagine Vossa Santidade – Deus
me perdoe - que eles querem que os nossos
padres, nas missas, depois do ‘ite missa
est’, digam “…E lavem os dentes com pasta
Cola Gato!”
“-Ó meu Pai!” – disse o Santo
Padre pondo as mãos e erguendo os olhos para
o alto – “No que este mundo se tornou! Só me
apetecia era tomar o lugar de Cristo na
cruz!”
“-Pois é, Iminência! Nem isso lhes
ecapa. Eles querem substituir a expressão
‘INRI’ que consta no alto dos crucifixos,
por ‘VW’”.
XIII
Senhor, na Vossa infinita bondade, fazei com
que eu supere os meus opositores, os meus
inimigos, os meus concorrentes. Para Vossa
glória e louvor!
Das minhas mãos, Senhor, nascerão templos
magníficos e deslumbrantes, que o povo
admirará com enlevo e temor de Vós! Fazei,
Senhor, com que o meu saber prevaleça e
aplainai as veredas do meu destino. Para
Vosso gáudio e triunfo, é claro!
XIV
No caminho para a
Galileia, Cristo e os seus discípulos,
passaram por um viandante que se arrastava
penosamente com manifestos sinais de
desnutrição e esgotamento.
“-Para onde
vais, meu irmão?” – perguntou o Salvador.
“-Ó, meu Senhor! Nem sei bem para onde vou.
Fui despedido e disseram-me que emigrasse.
Não tenho dinheiro, nem trabalho, nem sorte.
Ando à procura de um lugar para viver.”
“-E de onde vens tu, meu irmão?”
“-Da
Lusitânia, Senhor! As coisas não vão nada
bem por lá.”
“-Mas olha, meu irmão: por
aqui também não vais por bons caminhos. Não
tarda nada que tudo isto fique repleto de
colonatos e de barreiras de arame farpado. O
melhor que poderás fazer será mesmo rumar à
Terra Brasilis, pois parece que as coisas
por lá vão melhorar muito.”
XV
Naquele tempo disse Pedro a
Jesus: “-Mestre! Eles não querem que os
americanos reduzam o pessoal lá da base das
Lajes e, no entanto, despedem milhares e
milhares de professores e funcionários
públicos.”
Jesus, que
escutara atentamente, coçou as têmporas e
disse: “-Olha, Pedro: teremos de reformar o
Código de Avaliação das Almas e da
Atribuição de Penas. Trata disso assim que
possas. Pede ajuda ao Dante que é entendido
nessas coisas. O mundo está a tornar-se
muito complicado.”
XVI
Senhor - disse Pedro a Jesus, – ele acusa os
que descobriram a marosca, ele culpa a
Administração Fiscal e, no fim, ainda diz
que os seus crimes já prescreveram. Senhor,
se a moda da prescrição das penas faz
jurisprudência lá em baixo, vamos ter
problemas, pois logo virão reclamar o mesmo
aqui. Achas que os pecados também poderão
prescrever?
-Não, Pedro. Aqui não há nem
haverá prescrição de pecados. Pecado é e
será sempre pecado. Não será por passar um
minuto, um ano, ou um século, que um pecado
deixará de o ser. Essa coisa da prescrição
das penas é a maior e mais infame das
diabruras.
-Senhor, mas então, e o
Purgatório?
-O Papa Bento XVI decretou o
fim do Purgatório. Isso poderia, de facto,
resolver alguns problemas. Mas não quisemos,
nem queremos, contrariar o nosso
representante na Terra. No entanto,
poderemos conceder algumas indulgências a
certos pecadores que reponham integralmente
o que roubaram e que manifestem um sincero e
genuíno arrependimento pelo mal que fizeram.
Agora, prescrição, jamais!
E Cristo
acrescentou ainda:
-Já agora, Pedro, não
te esqueças de falar ao Dante nesta questão,
para que isso fique bem claro no Código de
Avaliação das Almas e da Atribuição de
Penas; não vá aparecer por aí algum advogado
esperto que nos venha a causar problemas.
XVII
Santa Valburga
viu os infinitos programas de culinária, de
petiscos, de temperos, de chefes, de
tasqueiros e de banquetes, de cozinhas, de
fogões, de tachos fumegantes, de pratos
simples, ou complicados, coloridos,
sofisticados, de grelhados, gratinados, no
fogão, na caçarola, na frigideira, e
considerando as não menos infinitas legiões
de famintos que a invocam, ergueu as mãos ao
Céu e proclamou: “-Deus se compadeça deles!”
XVIII
São
Bernardino de Sena viu os anúncios e não
gostou; São Francisco de Sales viu os
jornais e os noticiários das Tv’s e não
gostou; São João Bosco viu os filmes, as
séries e as novelas e não gostou; São
Gelásio viu os palhaços e não gostou; Santa
Valburga viu os programas de culinária e não
gostou. No fim, reuniram e emitiram um
comunicado: “-Verificado que foi o actual
estado de coisas, recomendamos aos jornais e
televisões e demais espaços de comunicação,
que encerrem e reabram mais tarde depois de
profunda reflexão.”
XIX
Quando Santa Valburga soube que as esmolas
iam ser taxadas e sujeitas a IRS e
escrituração apropriada, tal como as
moedinhas dos arrumadores e as dádivas para
os ceguinhos e para o cancro e que os
mendigos tinham de se colectar para poder
exercer, foi falar com ele. Depois, reuniu
os pobrezinhos e disse-lhes:
“-Olhem: ele foi muito
educado comigo e prometeu fazer tudo o que
estivesse ao seu alcance para resolver o
problema. Além disso, ele prometeu
solenemente voltar a por tudo como estava se
votarem nele outra vez.”
XX
São Francisco de Sales fez uma análise
exaustiva da situação e depois concluiu no
relatório que apresentou a São Gabriel
Arcanjo:“-Eles, quando deveriam dar notícias
ou fazer reportagens, dão opiniões e tentam
produzir literatura, poesia; mas quando
pretendem dar opiniões ou fazer literatura,
poesia, não fazem outra coisa senão contar
histórias, relatar factos.”
XXI
São José, que tinha vindo
com a incumbência de ver o que se estava a
passar, ouviu o outro dizer do chefe:
“-Nunca tivemos em Portugal um
Primeiro-Ministro tão honesto, tão bondoso,
tão caridoso, tão escrupuloso, tão
cumpridor, tão exemplar, tão piedoso, tão
generoso, tão íntegro, tão virtuoso, tão
probo, tão honrado, tão imaculado, tão
isento, tão altruísta, tão abnegado, tão
justo, tão clemente, tão pio, tão bento, tão
franciscano.”
São José ouviu ainda o
outro dizer baixinho: “- O Salazar não conta
para isto, pois não era Primeiro-Ministro,
mas Presidente do Conselho.”
“-Ah, bom!”
– disse para consigo São José – “Assim já
fico mais descansado.”
XXII
Naquele tempo, o homem ainda novo, sujo,
magro e trôpego, desenrolou um papel
ensebado e disse:
“- Sou portador do vírus da Sida,
HIV; dêem-me qualquer coisinha, por favor!”
A multidão acorreu alegremente e deu-lhe
leite e mel, taças repletas, donzelas e
mansões.
São Mateus registou isso nos
seus apontamentos.
XXIII
Naquele dia, comi, bebi, amei, e ri
abundantemente.
Então, Satanás veio e disse:
“- Ah!
Também gostas! E, no entanto, falas,
falas...”
“- Não me levarás contigo,
Satã! Bem sabes que não sou tão mau quanto
tu precisas...Mas também não me atrairás às
armadilhas da santidade.
XXIV
Carta de Antioquia:
“- Pequemos! ...Para que disso
nos possamos arrepender e pedir perdão ao
Senhor!”
XXV
Como
Gandhi, somos herdeiros dos desertos e dos
bairros da lata, dos analfabetos, dos
paralíticos e dos leprosos;
-Somos herdeiros, também, das
bostas das vacas sagradas de Calcutá.
-Somos herdeiros dos subnutridos, dos
órfãos, das prostitutas, dos despedidos sem
justa causa, dos toxicómanos, dos
cantoneiros, dos varredores das ruas, dos
cauteleiros, das criadas de servir, dos
contínuos das repartições públicas, dos
mendigos e dos presos de delito comum;
-Somos herdeiros, também, das bostas das
vacas sagradas de Calcutá.
XXVI
Sermão de Santo António aos
Papagaios:
“-Quando
são os justos que vencem, os vencidos ficam
alegres e felizes. -Bem-aventurados os
surdos e os cegos, pois a eles pertencerá a
mais melodiosa e colorida das eternidades.”
XXVII
Naquele tempo,
disse Jesus a São Pedro:
“-Pedro! Afinal parece que sempre
existe a tal lista das alminhas que podem
pecar à vontade sem que isso conte para o
Juízo Final!”
“-Pois é, Senhor. Mas isso
ainda vem do tempo do Caifás, do Antigo
Testamento. Eu já despedi três levitas e um
publicano. Pode ser que eles se calem.”
“-Vê lá, Pedro! Resolve isso depressa! Caso
contrário ainda terei de colocar o Paulo no
teu lugar. Olha que ele anda a cobiçar o teu
cargo!”
XXVIII
Os
Banu Annadir:
No
dia em que o homem possa ver diante de si
tudo o que as suas mãos foram capazes de
fazer, exclamará incrédulo: - Oxalá fosse
pó!
Nesse dia, ai dos impostores!
Bebei e descansai um pouco, infiéis, porque
a ira do Clemente não tarda a cair impiedosa
sobre vós!
XXIX
Noé:
“-Em verdade
vos digo que, se vos revelar toda a minha
imensa sabedoria, vocês me viram as costas.
Sou um náufrago perdido e receio que me
encontrem e salvem.
Fecho, finalmente, os
olhos e acordo. Mais tarde recitarei este
salmo.”
XXX
Santa
Clara veio a São Gabriel Arcanjo e
disse-lhe:
“-As
televisões de todo o mundo estão um
verdadeiro lamaçal. Não sei o que fazer por
elas. Não me ouvem, nem me ligam. Ó Gabriel,
por favor, muda-me para outra devoção.
Faz-me padroeira de outra coisa qualquer.”
“-Acalma-te, Clara! As coisas hão-de
melhorar.”
“-Não melhoram, Gabriel!
Pioram de dia para dia! Agora fazem tudo com
grandes planos; dizem que sai mais barato e
pensam que produz maiores impactos. E nos
desastres e calamidades? Em lugar de
fornecerem dados concretos sobre os
acontecimentos, só mostram destroços e
vítimas ensanguentadas e gente chorosa.”
“-Não estarás a exagerar, Clara?”
“-Não
estou, não, Gabriel! Olha: num terço das
emissões passam publicidade, noutro terço
passam autopromoções, e no resto repetem
tudo mil vezes. E os filmes e as séries? Só
violência, sangue, tiros, explosões. E tudo
passado aceleradamente e com músicas de
fundo enlouquecedoras. E as novelas não têm
argumento algum, nem beleza, nem piada, nem
conteúdo: são bandos de gente fina a dizer o
que lhes vem à cabeça, como se aquela fosse
a sua vida de todos os dias.”
“-Mas,
achas que não se aproveita mesmo nada?”
“-É possível que um ou outro programa tenha
algum interesse e alguma qualidade. Mas
serão grãos de areia no deserto.”
“Estás,
então, bem segura do que me contas?”
“-Estou sim, Gabriel. Eles já perderam o
respeito pela ética e pela deontologia.
Passam imagens de arquivo como se fossem
diretas e não dizem nada; criam
acontecimentos falsos para darem
oportunidade aos políticos para responderem
uns aos outros; usam e abusam do “-Veja já a
seguir.”; entrevistam uma pessoa e põem uma
voz em ‘off’ a repetir o que ela disse. E
fazem isto em todo o mundo. Copiam uns pelos
outros. Perderam a vergonha, Gabriel! É
preciso fazer alguma coisa por essa gente.”
“-Lamento muito, Clara: mas não poderei
fazer grande coisa por isso. Nem posso
mudar-te de padroado.”
“-Mas, então, que
hei-de fazer?”
“-Olha, Clara: aconselha
os teus devotos a desligarem as televisões.
Podem aproveitar para ler, para passear e
para conversar com a família e com os
amigos. Eles verão que isso lhes fará bem.”
– e São Gabriel Arcanjo prosseguiu – “-E
quanto a esses palermas das televisões,
deixa-os da mão. Eles cansar-se-ão, ou
cairão de podres.”
XXXI
Do relatório de Santa Clara a São Gabriel
Arcanjo:
“-Programação para o dia 26-3-2015, segundo
a revista ‘Correio da Manhã TV’, suplemento
da edição nº 13062 do ‘Correio da Manhã’.
Para o canal ‘AXN’ – 09,00 Mentes
Criminosas; 10,36 Chicago Fire; 12,24
Investigação Criminal; 13,52 Arrow; 15,30
Mentes Criminosas; 17,10 Investigação
Criminal; 18,50 Arrow; 20,30 Chicago Fire;
22,15 Como Defender um Assassino; 01,00
Investigação Criminal; 01,44 Arrow; 03,10
Mentes Criminosas; 14,15 Como Defender um
Assassino.
Para o canal ‘AXN WHITE’ –
09,38 Traição; 10,25 Pequenas Mentirosas;
11,59 Criadas e Malvadas; 12,46 Pequenas
Mentirosas; 18,36 Traição; 21,00 Infiéis;
00,53 Infiéis; 01,40 Pequenas Mentirosas;
04,01 Pequenas Mentirosas.
Para o canal
‘MOV’ – 08,10 Dead Zone; 10,25 Dead Like Me;
01,10 Teen Wolf; 12,40 Dead Like Me; 14,55
Teen Wolf; 15,40 Dead Zone;19,30 As Cinzas
do Tempo Redux; 21,00 Dead Zone; 21,45
Defiance; 22,30 True Blood; 23,20 As Portas
do Cemitério; 01,40 True Blood; 02,30
Libertem o Inferno; 04,55 Juventude
Perdida.”
XXXII
Via espagíria:
“-Verterás o sal e a água pôntica no aludel
à sétima hora do sétimo dia de Julho;
juntarás orvalho colhido em Março, em noite
de Lua Nova, e pó de projeção.
- Eis o
Sol e eis a Lua: - Esta é verdadeiramente a
Grande Obra.
Porém, nunca gritarás o que
pensas na rua!”
XXXIII
“-Santidade!” -disse o camarlengo ao Papa
Francisco - “ela afirmou que eles têm os
cofres cheios e depois o chefe confirmou
isso com todas as letras!”
“-Hum…” – disse o Papa –“E o que
diz São Lourenço disso?”
“-Santidade, São
Lourenço diz que não se entende com aquela
contabilidade criativa.”
“-Mas a que
propósito me vens tu falar disso agora?”
“-É que, Santidade, há aquela contazinha
antiga, do tempo do Vosso antecessor Lúcio
II; as tais 4 onçazinhas de oiro do tal
Afonso Henriques, que era um bocadinho
intempestivo.”
XXXIV
Zacarias:
“-Já
vejo o fio de medidor e o grande livro
sagrado; vejo quatro cornos e cavalos
vermelhos, brancos e malhados. A bênção do
Senhor dos exércitos cairá sobre vós e a
nova cidade não terá muralhas nem publicanos
e a multidão mover-se-á em paz e alegria.
Oh, tristes, não tendes já escravidão que
vos baste? Não vos dirige e guarda o vosso
amado Senhor?
Por que pecais sonhando com
Terras Prometidas, banquetes, dádivas e
cálices repletos?
O lugar onde estiverdes
é a vossa Terra Prometida, e aí havereis de
suar e padecer alegremente, pelo maior
tempo.
Não vos basta a escravidão?
Sede submissos, ó tristes, e amai o vosso
Senhor, que vos dirige e guarda!”
XXXV
Epístola dos
Tessalonicenses a S. Paulo
Nós, os Tessalonicenses, te desejamos graças
e paz.
Tu, Paulo, escreveste-nos em
tempos umas epístolas que muito nos
conformaram. Com elas aprendemos, de entre
muitas outras coisas, o valor da concórdia e
do trabalho. Neste particular, chegaste
mesmo a dizer que ‘quem não quiser trabalhar
não tem direito a comer.’ É claro que
percebemos que não te referes a crianças,
doentes e velhos.
Mas, Paulo, estamos
agora a haver-nos com uns senhores
Naodizemosdondenses, que querem que nós
trabalhemos sem comer, para que possam eles
comer sem trabalhar.
Poderias tu, Paulo,
ter a piedade apostólica de escrever umas
epistolazinhas também a esses
Naodizemosdondenses?
XXXVI
Nietzsche:
“-Livrai-me, Senhor, de
remexer nos contentores do lixo e de catar
no chão abandonadas pontas de cigarro;
Livrai-me, Senhor, da Luz da Revelação
Absoluta e do limbo, da espera eterna e do
supremo entendimento;
Livrai-me, Senhor,
da paciência infinita, do resplendor
perpétuo e das Assistentes Sociais dos
bairros degradados;
Livrai-me, Senhor,
dos designers, dos copywriters, dos
public-relations, dos animadores culturais e
dos porteiros dos cabarés;
Livrai-me,
Senhor, de agradecer com vénia e chapéu na
mão, aos domingos, à saída da missa, uma
esmolazinha;
Livrai-me, Senhor, de ter
mau hálito e salivar falando, de ser feio,
sujo e cheirar mal, e de cair de bêbado nos
passeios e causar pena a toda a gente;
...E, sobretudo, Senhor, livrai-me das
ideias subversivas e dos desejos de revolta
e de vingança.”
XXXVII
Melquisedeque:
“-No meu retrato nada temo
e nada me dói; no espelho, porém, eu estou
no lado errado.”
XXXVIII
Estavam eles em Bruxelas a falar e a
aplaudir-se mutuamente, quando chegou o
Eclesiastes e disse:
“-Vocês são pó! Pó e vaidade! E
não há nada de novo debaixo do sol que tenha
saído das vossas mãos!”
O Presidente
ainda tentou interromper o Eclesiastes, mas
ele continuou resoluto e confiante:
“-Pó
e vaidade! Eis o que vocês são. E se pensam
que trazem alguma coisa de novo ao mundo,
estão enganados! Já na Suméria-Acádia havia
bancos, prestamistas e usurários; mesmo
antes disso, já no Cro-Magnom os poderosos
tomavam à força as grutas dos mais fracos e
faziam-nos escravos; já os Caldeus tinham
notários, tribunais, juízes e magistrados; e
os Hititas e os Jebuseus já elegiam os seus
sátrapas e os seus edis; e os Amorreus e os
Amalecitas compravam, vendiam, hipotecavam,
tinham escolas, hospitais, termas, teatros,
bibliotecas e prisões.”
A Assembleia
estava suspensa nas palavras do Eclesiastes,
e ele prosseguiu:
“-Vocês governam o
mundo há cem mil anos. E que herança
deixaram na terra? Não mais que
fortificações, templos e palácios! Mais
nada! Vocês são pó! Pó e vaidade! E não há
nada de novo debaixo do sol que tenha saído
das vossas mãos!”
XXXIX
Do segundo relatório de Santa Clara a São
Gabriel Arcanjo.
“-Gabriel: identifiquei 3 causas
principais para o estado actual da
televisão: 1 – ausência de crítica; 2 – o
álibi das receitas; 3 – a globalização.
-A ausência de crítica conduziu à
irresponsabilização total e ao ascenso da
mediocridade;
-O álibi das receitas
conduziu à exagerada redução de meios e à
pauperização dos resultados, com abuso das
autopromoções, dos grandes planos, das
repetições, dos interlocutores anónimos e
não qualificados, das vozes ‘off’, dos
eventos simulados, da publicidade
disfarçada;
-A globalização conduziu ao
nivelamento, por baixo, das produções
universais, sendo que tudo se tornou igual
em todo o mundo - produções, formatos,
conteúdos e, sobretudo, defeitos, palermices
e imbecilidades.”
XL
Complemento do Breviário VII
Bem-aventurados os
‘improváveis’, os que ‘já eram’, os que
‘arrancam’, os que ‘agarram’, os que
‘porjetam’ , ‘porlongam’ e ‘porclamam’ ;
Bem-aventurados os ‘ilcópteros’, ‘as bebés’
e os ‘faz parte’ os ‘à séria’, os ‘deu de
caras com’ e ‘aquilo que foi’ e ‘aquilo que
é’.
São Martinho de Porres reclinou-se
no seu nicho e, interrogando-se, disse:
“-Mas se eles falam assim, por que razão se
manifestam contra o Novo Acordo Ortográfico?
A Máquina de Chilrear
- Partilhar 01/12/2022
Completa-se em
2022 um século sobre a conceção de um dos
mais fascinantes quadros de toda a História
da Arte: A Máquina de Chilrear. Seria
necessário recorrer à mais refinada e
erudita écfrase para dar uma ideia razoável
sobre esta maravilha da pintura universal. O
quadro pode ser visto no Museu de Arte
Moderna de Nova Iorque (Mrs. John D.
Rockefeller Jr. Purchase Fund.), mas com um
bocado de sorte podem ver-se reproduções
mais ou menos aceitáveis em manuais avulsos
da especialidade.
Trata-se de uma
engrenagem de elementos finos dotados de uma
manivela, com um arame helicoidal sobre o
qual poisam pássaros, ou só os bicos deles,
numa postura que nos permite quase ouvi-los
chilrear. A manivela está projetada numa
reta que parece prender-se na parede e se
apoia num suporte vertical. Na base uma mesa
baixa, transparente, irradia uma claridade
rosa que contrasta com o fundo azul
deslumbrado e manso, só perturbado, no topo,
por outra explosão de rosa de um lado e
escura do outro. Tudo bordejado por uma
moldura de um verde denso, amistoso e doce.
Podia talvez atribui-se ao quadro uma
matriz infantilista, ou primitivista, se não
fosse a profunda emoção, a musicalidade, a
poesia, que dele brota. Também se lhe podia
atribuir um estilo mecanicista, industrial,
mas é tal a ternura e a ingenuidade que
irradia, que isso não faria sentido algum.
O seu autor, Paul Klee, nasceu em 18 de
Dezembro de 1879, em Munchenburchsee, na
Suiça, mas recebeu a nacionalidade alemã por
parte de seu pai. Sua mãe era suiça e ele
sempre desejou adquirir essa nacionalidade.
Faleceu em 29 de Junho de 1940, em
Locarno-Muralto, sofrendo de uma terrível
doença da pele, quando estava prestes a
conseguir esse objetivo.
O quadro foi
gerado quando o artista era também professor
na celebrada escola vanguardista de arte e
arquitetura, Bauhaus, ainda em Weimer, antes
dessa prodigiosa instituição ser transferida
para Dessau e Berlin, para ser extinta em
1933 pelos nazis.
Klee conheceu e
privou com todas as escolas, tendências e
movimentações artísticas do seu tempo, mas
não aderiu formalmente a nenhuma. Esteve
presente na primeira exposição oficial
surrealista, organizada em Novembro de 1925,
na galeria Pierre (Loeb), na rue des
Beaux-Arts, em Paris, com Arp, De Chirico,
Ernst, Masson, Miró, Picasso, Man Ray e
Pierre Roy[i]
. Conheceu e participou no movimento Blaue
Reiter, com Kubin, Macke, Kandinsky,
relacionou-se com Dada e tinha grande
admiração por Van Gogh.
Mas Klee
sempre prosseguiu a sua linha autónoma, de
pintor, poeta e músico, só por si reflexo da
História da Arte da primeira metade do
século XX.
Havia uma tradição musical
na sua família e ele mesmo recebeu uma
sólida formação, tendo sido um notável
violinista. Talvez por isso os seus quadros
parecem irradiar melodias: doces cantatas,
árias e fugas de Bach.
Em 1912
completa a ilustração do romance Cândido
ou o Otimismo de Voltaire.[ii]
Em 1916, Paul Klee é incorporado no
exército alemão. Nesse mesmo ano realiza-se
na galeria Der Sturm, em Berlin, uma
exposição onde, pela primeira vez, ele
assume ter vendido bem os seus trabalhos.
Tinha realizado, em 1914, uma proveitosa
viagem à Tunísia, onde conheceu as glórias
da luz daquela terra, o que o levou a
profundas experiências e estudos sobre a
cor. “ (…) eu e a cor somos uma só coisa.
Agora sou pintor.” – disse ele na altura.[iii]
Em 1937 recebe a visita de Kandinsky e
Picasso em Berna. Nesse ano, em 19 de Julho,
realizou-se na Hofgarten, em Munique, a
degradante e tristemente célebre exposição
da Arte Degenerada, onde se exibiram
17 quadros seus, num total de 650
confiscados de 23 museus alemães. Hitler
expropriou trabalhos de impressionistas,
cubistas, fauvistas, expressionistas,
surrealistas, dadaistas e de outros
modernistas que considerava degenerados e
decadentes, para mostrar aos arianos
nazis a glória da arte oficial do Terceiro
Reich, neoclássica e naturalista. Por esse
tempo faziam-se fogueiras nas ruas onde se
queimavam os livros proibidos.
Em 15
de Setembro de 1906, Paul Klee casa com Lily
Stumpf, uma pianista que conheceu meia dúzia
de anos antes num serão musical. Casam em
Berna, mas mudam-se depois para um bairro
periférico de Munique. Vivem num pequeno
apartamento de três divisões. Lily dá aulas
de piano e Paul faz a lida da casa e trata
do filho.
Numa vida de 60 anos, Klee,
músico, poeta e pintor, teórico da pintura,
sempre presente na crista dos movimentos
intelectuais e artísticos do seu tempo,
nunca parou de criar. Contam-se no seu
catálogo mais de 9.000 títulos.
[iv]
[i]
ABCedário do Surrealismo,
Edição Portuguesa
da Reborn, 2001 Flamarion, Paris,
p.20.
[ii]
Génios da Pintura, nº 42,
Klee, 1963, Abril Cultural SA, São
Paulo, Brasil, p.56
[iii]
Idem, p.59.
[iv]
Partsch, Susana, Paul Klee
– 1879-1940, Taschen – Público.
2004 TASCHEN GmbH
O Padre Pedro e a Professora Sara
- Partilhar 03/10/2022
Na primeira vez que me confessei,
senti que iria realizar uma experiência
iniciática, que me transformaria e me
colocaria a par de toda a gente que enchia a
igreja, conhecedor, também, daquele
mistério. Estava nervoso, mas decidido.
Quando me ajoelhei e encostei a cabeça à
grade do confessionário, ouvi uma voz, que
eu sabia ser a do padre Pedro, mas que me
parecia vir do Além inatingível. Era uma voz
segredada, bíblica, que me comandava e à
qual eu me entregava sem reservas. Repeti o
Ato de Contrição e logo me senti esmagado
pelo peso dos enormes pecados de que, só
naquele momento, tomava consciência plena de
ter cometido. «-Confessa os pecados que
cometeste por pensamentos, palavras e ações!»
E confessei que tinha chegado a casa depois
da hora que me fora estabelecida; que, sem
querer, partira a asa de uma terrina, e não
me tinha acusado; que durante a missa não
tirava os olhos de uma menina, a Gracinha,
que me fascinava; que tinha copiado uma
conta numa prova, na escola; que uma vez em
que me baixei para apanhar um lápis do chão,
vi as pernas e as cuequinhas azuis da
professora D. Sara; que mentira ao Jesuíno
Rochinha, dizendo-lhe que tinha no Algarve
uns avós muito ricos; que tinha achado o
abafador perdido pelo Costinha e não lho
devolvera; que tinha chamado nomes ao Luís
Henrique; que tinha roubado uns damascos do
quintal do Salvador Matias.
E talvez
não me tivesse calado nunca mais, se a voz
surdinada do confessionário não me tivesse
interrompido para me admoestar com
severidade e para me impor a penitência de
seis ave-marias e seis pai-nossos. Que me
arrependesse e não voltasse a pecar.
Quando saí da igreja, com a penitência
cumprida, senti-me leve, puro, bom. No dia
seguinte, rapazes e raparigas fariam a
primeira comunhão. Nós, com laços alvíssimos
no braço; elas, todas de branco e com
grandes véus de tule presos na cabeça com
singelas coroas de flores.
Foi outro
momento de grande exaltação, aquele em que
recebi solenemente a Hóstia Consagrada.
Senti um frémito purificante que me deixou
pronto para franquear as portas do Paraíso.
Durante algum tempo essas sensações
místicas foram-se mantendo e mesmo
aprofundando, por exemplo, quando por vezes
me era pedido que fizesse a leitura da
Epístola. Nessas alturas sentia-me instruído
por celestiais anélitos.
Mas o
contacto mais próximo com as cerimónias
religiosas e com os objetos do culto -
cálice, patena, sacrário, píxide, custódia,
turíbulo - e com estolas, casulas, alvas e
amictos, e com o ambiente da sacristia, foi
pouco a pouco embaciando aos meus olhos o
brilho luminoso das encenações litúrgicas. E
também a vida, que corria célere, todos os
dias me confrontava com novas dúvidas e
interrogações. E, com o andar dos tempos,
passei a sentir um grande desconforto com as
missas, a sacristia, as procissões. E passei
mesmo a chegar tarde e a faltar às
eucaristias dominicais, e deixei de me
ajoelhar no confessionário, onde havia já
muita matéria que eu omitia, por não
acreditar que pudesse ser pecaminosa.
In Cerro Alto, inéd.
Breve arrolamento toponímico acerca de
PARRAGIL - GILVRASINO
Destaque para a hipótese, que há quem
levante, de Parragil se situar na rota da
exploração fenícia de sal gema no Algarve.
Acresce ainda o
facto de se encontrar uma estranha e
considerável disseminação do patronímico
Parragil nos EUA (Arizona, Califórnia, Novo
México) e no México (Sonora), tanto quanto
pude apurar. Esta pista merece ser estudada
por quem saiba e o possa fazer.
De
notar que o topónimo Parragil não aparece
mencionado na relação dos "Montes" no Rol
dos Confessados da Freguesia de São Clemente
de Loulé de 1835.
O que poderemos
considerar como o centro do Parragil, à
volta de um antiquíssimo poço - que nunca
secava e abastecia gente de léguas em redor,
atualmente fora de uso, - tem uma
localização digna de nota: sobe-se de sul
para norte e de norte para sul e desce-se de
leste para oeste e de oeste para leste.
Bordejando os limites do topónimo
Parragil, fica a capelinha de Nossa Senhora
da Boa Hora, que Francisco Lameira localiza
nos princípios do Séc. XVIII. Ora, uma
notável figura local, José Debrúzias, em
Junho de 1970, reclama a criação da
Freguesia de Boa Hora, para aquela região,
com o propósito de concitar o apoio das
gentes de outros lugares periféricos.
Esta é uma matéria fascinante que
justifica a participação, além dos
especialistas em
Toponímia, também de os
de outras disciplinas como a História e a
Genealogia.
Breves Notas sobre o Zéjel
- Partilhar 28/06/2022
A
sua invenção é atribuída a Muqaddam ibn
Muafá al Qabri (847-912), sendo mais tarde
tratado e reformulado por Ibne Gusmão
(1078-1160).
Trata-se de uma poética
apoiada em canto e dança, constituída por um
estribilho que alterna, no formato de al
Qabri, com uma infinidade de estrofes de
quatro versos, sendo que o último rima com
esse mesmo estribilho que, por sua vez, era
entoado por um coro. A celebração do Zéjel
aconteceria em festas populares ao ar livre.
No tempo de Ibne Gusmão já o Zéjel tinha
sido admitido nas cortes senhoriais e
naturalmente ganhou uma forma mais abreviada
e mais erudita.
Apresento a seguir
quatro exemplos de Zéjel, sendo que o
referido a Loulé mostra o modelo mais
elaborado do séc. XII, enquanto os que se
referem a Palmela, São Brás e ao mar são
construídos segundo a tradição dos séculos
IX, X.
São apenas ensaios com o que
pretendi recriar o espírito arábico-andaluz
que deixou tantas raízes entre nós.
Nasce o sol,
abro a janela;
Bendita sejas, Palmela!
Como um lírio, uma
açucena,
Na serra verde, verbena,
Flutuas doce e serena,
E ris-te, casta donzela;
Nasce o
sol, abro a janela;
Bendita sejas,
Palmela!
Enche-se o ar de frescura,
De uma azulada ternura
E a alma respira, pura,
Mais quem respira com ela;
Nasce
o sol, abro a janela;
Bendita sejas,
Palmela!
Na manhã santa, rezada,
Rosada espreitas, pintada,
Tão carmim, tão anilada,
Foi Deus que te quis tão bela;
Nasce o sol, abro a janela;
Bendita
sejas, Palmela!
* * *
Três mourinhas de
Loulé
Três mourinhas de
Loulé,
Cássima, Tula, Salé.
Três mourinhas me prenderam,
de Loulé,
Cássima, Tula, Salé.
Três mourinhas tão trigueiras,
Tão garridas, tão brejeiras,
Belas mouras feiticeiras
de Loulé,
Cássima, Tula, Salé.
Quem sois vós, jovens senhoras,
Tão belas, tão sedutoras?
–
Somos cristãs, fomos
mouras,
de Loulé,
Cássima, Tula, Salé.
São três mourinhas cristãs,
Colhendo figos, romãs,
Três langorosas irmãs
de Loulé,
Cássima, Tula, Salé.
* * *
Nas colinas de
São Brás
Nas colinas de
São Brás
Encontro, serena, a paz.
Cansado
de guerra e morte,
De ser cruel e ser forte,
Procuro agora outra sorte,
Que a vida é breve e fugaz,
Nas
colinas de São Brás
Encontro, serena, a
paz.
Cansado de fome e dor,
De atrocidades, de horror,
Procuro agora o amor,
Oh, meu amor, onde estás?
Nas
colinas de São Brás
Encontro, serena, a
paz.
Cansado de fome e frio,
Procuro o sol algarvio,
Oh, meu amor, quem te viu?
Quem novas, de ti, me traz?
Nas
colinas de São Brás
Encontro, serena, a
paz.
* * *
Três princesas
coloridas
À beira do mar
floridas
Três princesas coloridas.
Oh! Que
princesas tão belas,
Que jovens lindas aquelas,
Tão atraentes donzelas,
Sobre a areia aparecidas.
À beira
do mar floridas
Três princesas coloridas.
Três
princesas a bailar,
Deslumbrantes ao luar,
Mas que belezas sem par;
Danças venais, proibidas.
À
beira do mar floridas
Três princesas
coloridas.
Que alegres, que langorosas,
Que danças pecaminosas;
Três feiticeiras formosas,
Do alto dos céus descidas.
À
beira do mar floridas
Três princesas
coloridas.
Três bailarinas lascivas,
Nas suas danças furtivas;
Três andaluzas, três divas,
Na praia ardente perdidas.
À
beira do mar floridas
Três princesas
coloridas.