
Espelho Cinemático
Daniela Graça
Os Espíritos de Inisherin (2022)
- Partilhar 09/02/2023

O
realizador e argumentista Martin McDonagh
regressa ao grande ecrã com uma nova
tragicomédia e, desta vez, transporta-nos
até uma ilha remota na costa da Irlanda
durante a guerra civil dos anos 20. O filme
estreou nas salas de cinema portuguesas a 2
de fevereiro.
Os Espíritos de
Inisherin (título original: The
Banshees of Inisherin) é protagonizado
por Collin Farrell e Brendan Gleeson, a
mesma dupla de atores que protagonizou Em
Bruges (2008), também da autoria de
McDonagh. Os Espíritos de Inisherin
recebeu 9 nomeações para a 95ª edição dos
Óscares que decorrerá a 13 de março,
incluindo Melhor Filme, Melhor Realização,
Melhor Argumento Original; sendo que Collin
Farrell foi nomeado a Melhor Ator Principal;
Brendan Gleeson e Barry Keoghan foram ambos
nomeados a Melhor Ator Secundário e Kerry
Condon foi nomeada a Melhor Atriz
Secundária.
Inisherin é uma ilha
pacata onde álcool, música, catolicismo e
bisbilhotice são os únicos passatempos para
entreter os poucos habitantes que lá vivem.
Apesar dos sons dos canhões serem
transportados através da água, os habitantes
de Inisherin pouco ou nada se interessam
pela guerra civil. Tanto lhes faz qual lado
ganhe porque, afinal de contas, nem sabem
que lado é que começou a guerra ou porque
lutam sequer já. É apenas som de fundo para
a sua vida simples e calma. Mas, de repente
e sem qualquer aviso, um conflito surge em
Inisherin quando o velho músico Colm
(Brendan Gleeson) termina a amizade com o
simplório pastor Pádraic (Collin Farrell)
sem qualquer razão aparente, justificando-se
apenas com “simplesmente já não gosto de
ti”. Esta desavença é um conflito que os
habitantes de Inisherin não conseguem
ignorar e a notícia rapidamente corre todos
os cantos da pequena ilha.
Tal como o
taberneiro do único pub da ilha
aponta: a amizade de Colm e Pádraic nunca
fez muito sentido uma vez que são o completo
oposto um do outro. Pádraic é um homem
simples e feliz, que ama os seus pequenos
animais e consegue passar horas a fio a
falar sobre assuntos sem qualquer
substância. Colm, por sua vez, é reservado,
cínico e um intelectual preocupado com
pautas de música e com o legado que irá
deixar depois de morrer. Pádraic fica
destroçado com a decisão abrupta de Colm e
não entende o porquê. Mesmo depois de Colm
explicar que considera Pádraic um homem
aborrecido e que conversar com ele é um
desperdício de tempo, Pádraic continua a não
aceitar o fim da amizade. Colm responde a
esta persistência com um ultimato e promete
que se Pádraic voltar a falar com ele mais
uma vez, cortará um dos seus próprios dedos.
Entretanto, Pádraic ampara-se nas
conversas com a irmã Sióbhan (Kerry Condon),
uma leitora ávida, inteligente e empática; e
com o pacóvio inocente da aldeia, o jovem
Dominic (Barry Keoghan), que é regularmente
agredido pelo pai (o único polícia em toda a
ilha); enquanto continua a tentar resolver o
dilema com Colm e reanimar a amizade. Porém,
a situação escala até ao ponto de se tornar
irreparável.
Colm usar automutilação
como ameaça é uma medida extremista e
completamente absurda que só um homem
profundamente corroído pelo desespero seria
capaz de levar a cabo. E é também uma medida
tipicamente à Martin McDonagh. O mestre
moderno da comédia negra tem um toque
sublime para criar violência absurda que
nasce do vazio existencial, crises de
espírito e medo do esquecimento das
personagens. Espíritos de Inisherin é
um filme terrivelmente engraçado com o
diálogo cortante e inconfundível de Martin
McDonagh que explora a solidão, a depressão
e a mortalidade.
Mas toda esta
negatividade existente no filme não funciona
por si só, é em contratempo com a beleza da
ilha e com a bondade de personagens como
Shióban, que escolhem não serem levadas pela
corrente de ódio, que a história se eleva e
solidifica. Os Espíritos de Inisherin
mostra como a amargura só gera mais rancor e
como até a pessoa mais simpática, ou mais
simples, pode ser corroída pela dor. É uma
história que nos leva a questionar o porquê
de o legado ser tão importante e o porquê
dos simples prazeres da vida serem tão
desvalorizados face à nossa mortalidade,
quando o completo oposto é que deveria
acontecer. Cada personagem tem o seu próprio
mundo interior complexo que influencia como
existem no mundo exterior e todos os atores
do elenco principal desempenham performances
formidáveis, demonstrando um tato sensível e
pendor melancólico, que os tornam
inesquecíveis.
Os Espíritos de
Inisherin é quase como uma folk tale
irlandesa com paisagens verdes
pitorescas, povoadas por variados animais
domesticados, capturadas idilicamente pelo
diretor de fotografia Ben Davis. A música
folk, a presença constante de símbolos
católicos, o simbolismo tirado
de velhas lendas (uma das personagens
assemelha-se ao ceifador, a personificação
da morte, por exemplo) e as
idiossincrasias culturais de um pequeno
povoado rural irlandês só reforçam essa
mesma qualidade de folk tale. Por
outro lado, a alegoria à guerra civil
através do conflito de Colm e Pádraic é
clara, mas não se torna o objetivo do filme,
uma vez que foco mantém-se naturalmente na
inimizade entre os dois.
Com Os
Espíritos de Inisherin, Martin
McDonagh volta a comprovar que é um dos
grandes autores modernos. Atualmente, não há
falta de realizadores talentosos, mas
argumentistas excelentes são muito mais
raros. E é esta a qualidade de Martin
McDonagh que torna os seus filmes tão
especiais e únicos.
Classificação: ★★★★★
- n.45 • fevereiro 2023