Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Os Espíritos de Inisherin (2022)

O realizador e argumentista Martin McDonagh regressa ao grande ecrã com uma nova tragicomédia e, desta vez, transporta-nos até uma ilha remota na costa da Irlanda durante a guerra civil dos anos 20. O filme estreou nas salas de cinema portuguesas a 2 de fevereiro.

Os Espíritos de Inisherin (título original: The Banshees of Inisherin) é protagonizado por Collin Farrell e Brendan Gleeson, a mesma dupla de atores que protagonizou Em Bruges (2008), também da autoria de McDonagh.  Os Espíritos de Inisherin recebeu 9 nomeações para a 95ª edição dos Óscares que decorrerá a 13 de março, incluindo Melhor Filme, Melhor Realização, Melhor Argumento Original; sendo que Collin Farrell foi nomeado a Melhor Ator Principal; Brendan Gleeson e Barry Keoghan foram ambos nomeados a Melhor Ator Secundário e Kerry Condon foi nomeada a Melhor Atriz Secundária.

Inisherin é uma ilha pacata onde álcool, música, catolicismo e bisbilhotice são os únicos passatempos para entreter os poucos habitantes que lá vivem. Apesar dos sons dos canhões serem transportados através da água, os habitantes de Inisherin pouco ou nada se interessam pela guerra civil. Tanto lhes faz qual lado ganhe porque, afinal de contas, nem sabem que lado é que começou a guerra ou porque lutam sequer já. É apenas som de fundo para a sua vida simples e calma. Mas, de repente e sem qualquer aviso, um conflito surge em Inisherin quando o velho músico Colm (Brendan Gleeson) termina a amizade com o simplório pastor Pádraic (Collin Farrell) sem qualquer razão aparente, justificando-se apenas com “simplesmente já não gosto de ti”. Esta desavença é um conflito que os habitantes de Inisherin não conseguem ignorar e a notícia rapidamente corre todos os cantos da pequena ilha.

Tal como o taberneiro do único pub da ilha aponta: a amizade de Colm e Pádraic nunca fez muito sentido uma vez que são o completo oposto um do outro. Pádraic é um homem simples e feliz, que ama os seus pequenos animais e consegue passar horas a fio a falar sobre assuntos sem qualquer substância. Colm, por sua vez, é reservado, cínico e um intelectual preocupado com pautas de música e com o legado que irá deixar depois de morrer. Pádraic fica destroçado com a decisão abrupta de Colm e não entende o porquê. Mesmo depois de Colm explicar que considera Pádraic um homem aborrecido e que conversar com ele é um desperdício de tempo, Pádraic continua a não aceitar o fim da amizade. Colm responde a esta persistência com um ultimato e promete que se Pádraic voltar a falar com ele mais uma vez, cortará um dos seus próprios dedos.

Entretanto, Pádraic ampara-se nas conversas com a irmã Sióbhan (Kerry Condon), uma leitora ávida, inteligente e empática; e com o pacóvio inocente da aldeia, o jovem Dominic (Barry Keoghan), que é regularmente agredido pelo pai (o único polícia em toda a ilha); enquanto continua a tentar resolver o dilema com Colm e reanimar a amizade. Porém, a situação escala até ao ponto de se tornar irreparável.

Colm usar automutilação como ameaça é uma medida extremista e completamente absurda que só um homem profundamente corroído pelo desespero seria capaz de levar a cabo. E é também uma medida tipicamente à Martin McDonagh. O mestre moderno da comédia negra tem um toque sublime para criar violência absurda que nasce do vazio existencial, crises de espírito e medo do esquecimento das personagens. Espíritos de Inisherin é um filme terrivelmente engraçado com o diálogo cortante e inconfundível de Martin McDonagh que explora a solidão, a depressão e a mortalidade.

Mas toda esta negatividade existente no filme não funciona por si só, é em contratempo com a beleza da ilha e com a bondade de personagens como Shióban, que escolhem não serem levadas pela corrente de ódio, que a história se eleva e solidifica. Os Espíritos de Inisherin mostra como a amargura só gera mais rancor e como até a pessoa mais simpática, ou mais simples, pode ser corroída pela dor. É uma história que nos leva a questionar o porquê de o legado ser tão importante e o porquê dos simples prazeres da vida serem tão desvalorizados face à nossa mortalidade, quando o completo oposto é que deveria acontecer. Cada personagem tem o seu próprio mundo interior complexo que influencia como existem no mundo exterior e todos os atores do elenco principal desempenham performances formidáveis, demonstrando um tato sensível e pendor melancólico, que os tornam inesquecíveis.

Os Espíritos de Inisherin é quase como uma folk tale irlandesa com paisagens verdes pitorescas, povoadas por variados animais domesticados, capturadas idilicamente pelo diretor de fotografia Ben Davis. A música folk, a presença constante de símbolos católicos, o simbolismo tirado de velhas lendas (uma das personagens assemelha-se ao ceifador, a personificação da morte, por exemplo) e as idiossincrasias culturais de um pequeno povoado rural irlandês só reforçam essa mesma qualidade de folk tale. Por outro lado, a alegoria à guerra civil através do conflito de Colm e Pádraic é clara, mas não se torna o objetivo do filme, uma vez que foco mantém-se naturalmente na inimizade entre os dois.

Com Os Espíritos de Inisherin, Martin McDonagh volta a comprovar que é um dos grandes autores modernos. Atualmente, não há falta de realizadores talentosos, mas argumentistas excelentes são muito mais raros. E é esta a qualidade de Martin McDonagh que torna os seus filmes tão especiais e únicos.

Classificação: ★★★★★