Espelho Cinemático
Daniela Graça
Se Esta Rua Falasse (2018)
- Partilhar 04/04/2021
O realizador Barry
Jenkins alcançou furor internacional com o
filme
Moonlight
(2016), uma história que tem início nos anos
80 e segue as vivências de um jovem
afro-americano gay e a discriminação de que
foi alvo até se tornar adulto.
Moonlight
valeu a Jenkins várias nomeações de prémios
incluindo os prestigiados Óscares para
Melhor Realizador, Melhor Argumento Adaptado
e Melhor Filme. Jenkins levou para casa as
estatuetas de ouro das últimas duas
categorias.
Não é um exagero
afirmar que
Moonlight é um
dos filmes que mais marcou a década de 2010.
Barry Jenkins sucedeu
Moonlight
com o filme Se
Esta Rua Falasse
(título original:
If Beale Street Could
Talk) que
estreou em 2018.
Se Esta Rua Falasse
é a terceira longa-metragem de Jenkins e
trata-se da adaptação do “romance-manifesto”
homónimo do romancista, poeta, dramaturgo,
crítico social e ativista James Baldwin.
Baldwin foi uma das vozes mais fortes na
defesa dos direitos dos afro-americanos e
homossexuais, tendo dedicado a sua vida e
obra à luta contra a discriminação social.
Se Esta Rua Falasse
conta a história de um casal que é
tragicamente separado devido a um sistema
preconceituoso. Tish (Kiki Layne) e Fonny
(Stephan James) conhecem-se desde crianças,
crescem juntos, aproximam-se e, por fim,
apaixonam-se, acontece de forma natural,
quase despercebida, como se simplesmente
estivesse predestinado. Planeiam um futuro
juntos com uma casa só deles e repleta com
as obras de Fonny, que sonha em ser
escultor. Mas este futuro é lhes roubado
quando Fonny é preso injustamente devido a
uma acusação de violação. Quando Tish
descobre que está grávida decide que tem de
encontrar um meio de provar a inocência de
Fonny e garantir a sua liberdade para que
ele possa ver o filho crescer, para que
possam ser uma família juntos. As famílias
do jovem casal embarcam então numa difícil e
extenuante jornada para provar a inocência
de Fonny, uma tarefa que, em última
instância, acaba por se provar impossível.
Fonny continua injustamente preso e é
engolido pelo sistema prisional e judicial
como tantos outros.
A história destes
jovens acontece na década de 70 em Beale
Street em New York, mas tanto poderia ter
acontecido em New Orleans, Louisiana ou em
Jackson, Mississippi. “Todos os negros da
América nasceram em Beale Street” é a
afirmação que inicia o filme. Intitular
Se Esta Rua
Falasse como
um “romance-manifesto” é a descrição que faz
mais justiça à história. É uma história de
amor entre dois jovens sonhadores, mas é
também um retrato fiel do preconceito que
existe desde do nascimento dos Estados
Unidos da América para com a comunidade
afro-americana. Preconceito este de tal
forma cravado nas fundações do país que para
além das ramificações vivenciadas
diariamente se traduz ainda num sistema
judicial injusto, discriminatório,
incompetente e violento.
Filmes que relatam
e atacam a temática do preconceito social
têm sido favoritos nos circuitos de
festivais nas últimas décadas como, por
exemplo, 12
Anos Escravo
(2013) ou
Green Book – Um Guia Para a Vida
(2018). Porém, as longa-metragens de Jenkins
diferenciam-se de filmes como os
referenciados anteriormente. Para além do
cunho de autor único de Jenkins, alcançado
através da construção de um estilo visual
distinguível e caracterizado pela ênfase em
cores ricas e quentes, a pouca profundidade
de campo e o posicionamento das faces dos
atores a centímetros da câmara que criam
planos profundamente íntimos, acresce ainda
a mestria do realizador na criação de
narrativas incrivelmente sensíveis,
ternurentas e vulneráveis. É esta ternura
que distingue os filmes de Barry Jenkins, é
a naturalidade e intimidade dos momentos
simples e felizes que em contraste com o
preconceito perpetuado incessantemente
tornam as histórias tão comoventes. Jenkins
dota os seus filmes de uma sensibilidade
única e tem, desta forma, vindo a
estabelecer-se como um dos cineastas
norte-americanos mais talentosos da sua
geração.
Se Esta Rua Falasse
esteve nomeado para três Óscares, mas venceu
apenas na categoria de Melhor Atriz
Secundária com a atriz Regina King no papel
de mãe de Tish. Para além da mestria
demonstrada por Jenkins no seu ofício é
importante ressaltar a qualidade dos
desempenhos do elenco principal e o
contributo essencial do compositor Nicholas
Britell, com quem Jenkins colaborou
previamente em
Moonlight
(2016), para o
sucesso do filme.
Se Esta Rua Falasse
é como uma canção de
blues,
é doce e amarga; é sensual, sensível e
violenta; é sobre a alegria do amor e a
tristeza, pautada por momentos fervorosos de
raiva, que um sistema impiedoso e cruel
inflige; é sobre escolher ter esperança
quando tudo o resto falha.
Se Esta Rua Falasse
continua a ser tão relevante hoje como foi
em 1974 quando James Baldwin escreveu a
história. Os tempos mudam, o sistema evoluí,
o preconceito assume novas formas e o mal
existente na sociedade continua a afetar
várias comunidades em diversas formas. São
histórias que são necessárias recordar e
discutir.
Se Esta Rua Falasse encontra-se disponível
para visualização no catálogo da Netflix até
dia 20 de abril.
Classificação: ★★★★★
- n.23 • abril 2021