
Espelho Cinemático
Daniela Graça
Spencer (2021)
- Partilhar 03/12/2021

O filme
biográfico sobre a Princesa de Gales, Diana
Spencer, da autoria do realizador chileno
Pablo Larraín, não é um filme biográfico
convencional, mas sim um drama psicológico
que se desenrola como uma história de
fantasmas. O aviso que antecede o início da
ação, “Uma fábula baseada numa tragédia
real”, encapsula a sensação de conto de
fadas distorcido que permeia Spencer.
Spencer é o segundo filme
biográfico da autoria de Pablo Larraín. Em
2016, Larraín realizou Jackie sobre
Jacqueline Kennedy, esposa do Presidente JFK
e Primeira-Dama dos E.U.A de 1961 a 1963.
Após a receção positiva de Jackie nos
circuitos de festivais de cinema, Larraín
une-se agora ao argumentista Steven Knight,
à diretora de fotografia Claire Mathon e ao
compositor Jonny Greenwood para a produção
de Spencer, protagonizado pela atriz
Kristen Stewart.
A Princesa Diana é
um ícone da cultura popular que perdura na
memória global mesmo quase 25 anos após o
seu trágico falecimento em Paris. Mas
Spencer não tem como objetivo explorar
uma cronologia que se desenvolve ao longo de
vários anos nem os detalhes da sua morte
prematura. Spencer foca-se somente no
fim-de-semana de celebração de Natal de
1991, um total de três dias, quando a
família real se reúne em Sandringham House
tal como dita a tradição. Durante este
fim-de-semana Diana batalha as repercussões
da rigidez, alienação e escrutinação do
sistema monárquico britânico e decide
terminar o casamento com o Príncipe Charles,
herdeiro ao trono.
Spencer é,
acima de tudo, um estudo psicológico e
emocional da personagem Diana durante estes
três dias. O realizador Pablo Larraín e o
argumentista Steven Knight basearam-se em
relatos do staff da família real, mas
adotaram várias liberdades artísticas para
esta biografia ficcionalizada. Os problemas
matrimoniais e casos extraconjugais do casal
real; o conflito e tensão dentro da família
e o desgaste mental, bulimia e automutilação
de Diana são factos publicamente conhecidos.
O filme parte destes factos e
constrói uma narrativa que se assemelha a um
pesadelo: os corredores e quartos de
Sandringham House tornam-se as trincheiras
da batalha interior de Diana, que deambula
pelo espaço como um fantasma, atormentada
por visões da rainha Anne Boleyn
(sentenciada à morte pelo marido, Rei Henry
VIII) e delírios com o colar de pérolas
oferecido a Diana por Charles que, por lapso
de memória, é idêntico ao colar que ofereceu
à amante, tornando o colar o símbolo físico
da traição cometida.
O frenesim
emocional sentido por Diana é amplificado
pelo sentimento de impotência, claustrofobia
e aprisionamento consequente da rigidez do
sistema tradicional real. A abordagem
narrativa de Spencer lembra desta
forma dramas psicológicos como Black Swan
(2010) de Darren Aronofsky ou Vertigo
(1958) de Alfred Hitchcock e afasta-se
formalmente dos típicos filmes biográficos.
A tensão e miséria são palpáveis em
Spencer, mas, no entanto, o filme não se
reduz a esse fatalismo. Após três dias de
inquietação e desespero, Diana liberta-se da
sua jaula impulsionada pelo debate interno
entre as forças do passado, presente e
futuro; pelo conforto encontrado na empatia
de alguns dos membros do staff; e
principalmente, pela felicidade de ser a mãe
de duas crianças incríveis.
Spencer é, no fundo, um conto de fadas
invertido uma vez que a felicidade é
encontrada quando a princesa rejeita o
príncipe, o título e o sistema e, por fim,
reclama o seu apelido, liberdade e vida.
Para além do brilhantismo da narrativa
ficcional que explora psicologicamente como
a fascinante Diana poderá ter feito uma das
decisões mais importantes da sua vida,
Spencer é um filme que em termos formais
e técnicos é inequivocamente formidável. É
de salientar, em especial, a contribuição do
compositor Jonny Greenwood (membro da banda
Radiohead e compositor regular dos filmes do
realizador Paul Thomas Anderson) que criou
uma banda sonora eclética e frenética que
mistura o género musical jazz e o género
clássico barroco, demonstrando o confronto
entre o espírito livre da Diana e a
austeridade do sistema monárquico,
resultando na criação de uma verdadeira
paisagem sonora que conta e caracteriza a
história musicalmente.
Em termos
visuais, Spencer tem uma tonalidade e
estética notavelmente meticulosa e onírica,
algo que reconhecemos visualmente como
antigo, mas não longínquo. Esta dimensão foi
alcançada através do uso de película de 16mm
para as filmagens e do olhar da diretora de
fotografia Claire Mathon (Portrait of a
Lady on Fire, Petite Maman).
Outra formalidade técnica que tem
obrigatoriamente de ser referida quando se
aborda Spencer é o desempenho da
atriz Kristen Stewart. Stewart adotou e
incorporou os maneirismos da Princesa de
Gales enquanto simultaneamente procurou não
ser uma imitação da pessoa, o que se provou
ser uma escolha adequada e humanizadora
tendo em conta o teor psicológico e
alucinogénio presente nesta fábula. Stewart
graciosamente encarna Diana e,
consequentemente, perde-se nela.
Spencer é, sem sombra de dúvidas, um dos
melhores filmes de 2021. É um filme
orgulhosamente diferente, característica
esta partilhada igualmente pela Diana
Spencer. Spencer estreou a 6 de
setembro no Festival de Veneza e chegou às
salas de cinema portuguesas a 4 de novembro.
E, certamente, terá uma receção positiva nos
circuitos de festivais e premiações que se
aproximam nos próximos meses.
Classificação: ★★★★★
- n.31 • dezembro 2021