Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Spencer (2021)

O filme biográfico sobre a Princesa de Gales, Diana Spencer, da autoria do realizador chileno Pablo Larraín, não é um filme biográfico convencional, mas sim um drama psicológico que se desenrola como uma história de fantasmas. O aviso que antecede o início da ação, “Uma fábula baseada numa tragédia real”, encapsula a sensação de conto de fadas distorcido que permeia Spencer.

Spencer é o segundo filme biográfico da autoria de Pablo Larraín. Em 2016, Larraín realizou Jackie sobre Jacqueline Kennedy, esposa do Presidente JFK e Primeira-Dama dos E.U.A de 1961 a 1963. Após a receção positiva de Jackie nos circuitos de festivais de cinema, Larraín une-se agora ao argumentista Steven Knight, à diretora de fotografia Claire Mathon e ao compositor Jonny Greenwood para a produção de Spencer, protagonizado pela atriz Kristen Stewart.

A Princesa Diana é um ícone da cultura popular que perdura na memória global mesmo quase 25 anos após o seu trágico falecimento em Paris. Mas Spencer não tem como objetivo explorar uma cronologia que se desenvolve ao longo de vários anos nem os detalhes da sua morte prematura. Spencer foca-se somente no fim-de-semana de celebração de Natal de 1991, um total de três dias, quando a família real se reúne em Sandringham House tal como dita a tradição. Durante este fim-de-semana Diana batalha as repercussões da rigidez, alienação e escrutinação do sistema monárquico britânico e decide terminar o casamento com o Príncipe Charles, herdeiro ao trono.

Spencer é, acima de tudo, um estudo psicológico e emocional da personagem Diana durante estes três dias. O realizador Pablo Larraín e o argumentista Steven Knight basearam-se em relatos do staff da família real, mas adotaram várias liberdades artísticas para esta biografia ficcionalizada. Os problemas matrimoniais e casos extraconjugais do casal real; o conflito e tensão dentro da família e o desgaste mental, bulimia e automutilação de Diana são factos publicamente conhecidos.

O filme parte destes factos e constrói uma narrativa que se assemelha a um pesadelo: os corredores e quartos de Sandringham House tornam-se as trincheiras da batalha interior de Diana, que deambula pelo espaço como um fantasma, atormentada por visões da rainha Anne Boleyn (sentenciada à morte pelo marido, Rei Henry VIII) e delírios com o colar de pérolas oferecido a Diana por Charles que, por lapso de memória, é idêntico ao colar que ofereceu à amante, tornando o colar o símbolo físico da traição cometida.

O frenesim emocional sentido por Diana é amplificado pelo sentimento de impotência, claustrofobia e aprisionamento consequente da rigidez do sistema tradicional real. A abordagem narrativa de Spencer lembra desta forma dramas psicológicos como Black Swan (2010) de Darren Aronofsky ou Vertigo (1958) de Alfred Hitchcock e afasta-se formalmente dos típicos filmes biográficos.

A tensão e miséria são palpáveis em Spencer, mas, no entanto, o filme não se reduz a esse fatalismo. Após três dias de inquietação e desespero, Diana liberta-se da sua jaula impulsionada pelo debate interno entre as forças do passado, presente e futuro; pelo conforto encontrado na empatia de alguns dos membros do staff; e principalmente, pela felicidade de ser a mãe de duas crianças incríveis.

Spencer é, no fundo, um conto de fadas invertido uma vez que a felicidade é encontrada quando a princesa rejeita o príncipe, o título e o sistema e, por fim, reclama o seu apelido, liberdade e vida.

Para além do brilhantismo da narrativa ficcional que explora psicologicamente como a fascinante Diana poderá ter feito uma das decisões mais importantes da sua vida, Spencer é um filme que em termos formais e técnicos é inequivocamente formidável. É de salientar, em especial, a contribuição do compositor Jonny Greenwood (membro da banda Radiohead e compositor regular dos filmes do realizador Paul Thomas Anderson) que criou uma banda sonora eclética e frenética que mistura o género musical jazz e o género clássico barroco, demonstrando o confronto entre o espírito livre da Diana e a austeridade do sistema monárquico, resultando na criação de uma verdadeira paisagem sonora que conta e caracteriza a história musicalmente.

Em termos visuais, Spencer tem uma tonalidade e estética notavelmente meticulosa e onírica, algo que reconhecemos visualmente como antigo, mas não longínquo. Esta dimensão foi alcançada através do uso de película de 16mm para as filmagens e do olhar da diretora de fotografia Claire Mathon (Portrait of a Lady on Fire, Petite Maman).

Outra formalidade técnica que tem obrigatoriamente de ser referida quando se aborda Spencer é o desempenho da atriz Kristen Stewart. Stewart adotou e incorporou os maneirismos da Princesa de Gales enquanto simultaneamente procurou não ser uma imitação da pessoa, o que se provou ser uma escolha adequada e humanizadora tendo em conta o teor psicológico e alucinogénio presente nesta fábula. Stewart graciosamente encarna Diana e, consequentemente, perde-se nela.

Spencer é, sem sombra de dúvidas, um dos melhores filmes de 2021. É um filme orgulhosamente diferente, característica esta partilhada igualmente pela Diana Spencer.  Spencer estreou a 6 de setembro no Festival de Veneza e chegou às salas de cinema portuguesas a 4 de novembro. E, certamente, terá uma receção positiva nos circuitos de festivais e premiações que se aproximam nos próximos meses.

Classificação: ★★★★★