Espelho Cinemático
Daniela Graça
Farta de Mim Mesma (2022)
- Partilhar 07/06/2023
A comédia negra norueguesa Farta de Mim
Mesma (título original: Syk Pike)
foi apresentada na secção Un Certain
Regard do Festival de Cannes no ano
passado e, mais recentemente, passou também
pelo Festival IndieLisboa. Desde o dia 1 de
junho, Farta de Mim Mesma passou a
fazer parte do catálogo da plataforma de
streaming Filmin em oferta exclusiva.
Farta de Mim Mesma, da autoria de
Kristoffer Borgli, segue a espiral
autodestrutiva de Signe (Kristine Kujath
Thor), uma empregada de mesa narcisista em
busca de fama, que se sente ameaçada pelo
sucesso súbito do namorado e artista Thomas
(Eirik Sæther).
A trama inicia-se
com Signe a vangloriar-se pelo heroísmo de
ter ajudado uma senhora que tinha sido
mordida por um cão. Durante várias semanas
repete a mesma história vezes sem conta —
como um disco riscado — para grande
aborrecimento dos amigos. Entretanto, Thomas
vai expor a sua “arte” — cadeiras que rouba
de lojas para fazer peças artísticas — numa
galeria e Signe ressente-o por ter mais
atenção do que ela. O relacionamento de
Signe e Thomas é complicado, competitivo e
corrosivo: ambos são egocêntricos que não
suportam não ser o centro da atenção e que
constantemente menosprezam os feitos do
outro à frente dos amigos. E para piorar a
situação, Signe é uma mentirosa compulsiva
que enlaça tudo e todos numa teia convoluta
de fabricações.
No entanto, as
mentiras que Signe inventa no momento (como
ser alérgica a frutos secos e,
consequentemente, desmaiar no jantar de
celebração da exposição de Thomas) não
saciam o seu ego. Ela começa a fantasiar, e
planificar em detalhe, como ser a vítima
perfeita que todos irão adorar. Depois de
uma primeira tentativa falhada de instigar
um cão a mordê-la, Signe opta por ingerir
comprimidos russos que causam erupções
cutâneas gravíssimas se consumidos em
demasia. O seu desejo torna-se realidade e
ela acaba no hospital com a cara
completamente desfigurada, onde se recusa a
ser testada pelos médicos de forma a
encobrir a verdadeira causa da doença.
Signe levou o corpo até ao limite e,
mesmo assim, continua a não estar satisfeita
com a quantidade de atenção que recebeu dos
amigos. Ela sonha acordada em estar em
programas de televisão, capas de jornais e
sessões fotográficas — até com o próprio
funeral, em que todos lamentam chorosamente
a sua morte, ela sonha — porque se crê
merecedora de toda essa atenção. A pergunta
que Farta de Mim Mesma coloca é
até que ponto está Signe disposta a ir
por fama? Será que tudo vale a pena desde
que obtenha o resultado esperado?
Farta de Mim Mesma foi realizado,
escrito e editado por Kristoffer Borgli que
provou ser um autor com aptidão para
explorar e ridicularizar a hediondez de
personalidades narcisistas. Por sua vez, a
composição harmoniosa e elegante da
cinematografia de Benjamin Loeb — cujos
créditos anteriores incluem Mandy
(2018), Pieces of a Woman (2020) e
After Yang (2021) — contrasta
visualmente com a fealdade narrativa dos
acontecimentos de uma forma peculiarmente
intrigante.
Farta de Mim Mesma
é uma sátira desconfortante que examina a
toxicidade de personalidades egocêntricas na
era da fama instantânea (e pouco duradoura)
das redes sociais e meios de comunicação. É
um filme que aborda a falta de escrúpulos em
nome da fama, a futilidade da inclusividade
em marketing e a vaidade individual. Tanto
Thomas quanto Signe são pessoas medíocres
desprovidas de talento, mas isso não os
impede de se considerarem merecedores de
reconhecimento, apesar de não terem nada de
valor a oferecer e terem, desta forma, de
recorrer ao choque para terem atenção. O
humor e o horror do filme recaem nos
exageros e caprichos frutos da megalomania
das personagens.
O filme deixa claro
que Signe já era uma pessoa doente muito
antes de ter ficado fisicamente deformada
por vontade própria. O ego exacerbado de
Signe é como um buraco negro que consome
tudo em seu redor sem pudor. Signe é uma
personagem fictícia exagerada para
propósitos satíricos, mas a obsessão
destrutiva por atenção é real e está
presente em diferentes graus na nossa
sociedade. Farta de Mim Mesma é uma
excelente sátira a não perder.
Classificação: ★★★★ (4/5)
- n.49 • junho 2023