Espelho Cinemático
Daniela Graça
Elvis (2022) – “O Retorno do Rei”
- Partilhar 09/07/2022
Elvis Presley, o Rei do Rock ‘N’ Roll, volta
a resplandecer no grande ecrã pela mão do
realizador australiano Baz Luhrmann.
Elvis foi apresentado pela primeira vez
em maio no Festival de Cannes e estreou em
Portugal a 23 de junho. O drama biográfico
musical é tudo aquilo que se poderia esperar
do realizador de Romeu + Julieta
(1996), Moulin Rouge (2001) e O
Grande Gatsby (2013): excêntrico,
elétrico e efervescente. É um rodopio de
cores e transições que nunca perde
velocidade ou ritmo. O estilo maximalista
impactante de Baz Luhrmann é o veículo ideal
para contar a vida e obra do icónico Elvis
Presley, interpretado pelo jovem ator Austin
Butler.
A saga de Elvis, desde o
nascimento e infância na pequena cidade de
Tupelo até à sua morte 42 anos mais tarde, é
contada a partir do ponto de vista do seu
agente, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks).
Endividado e doente, o Coronel deambula
pelos casinos de Las Vegas e recorda o seu
relacionamento com o cantor, o diamante em
bruto que transformou na sua galinha de ovos
dourados pessoal ao ter se estabelecido como
uma pessoa pela qual Elvis tinha confiança e
carinho, quase como uma figura parental. Mas
as mentiras e ganância de Parker rapidamente
se tornam evidentes durante a narração que
nos guia pela montanha-russa espetacular que
foi a vida de Elvis Presley: os altos e
baixos, as virtudes e falhas, o sucesso
estratosférico e, por fim, a morte
prematura.
Elvis foi um artista
prolífico e uma das figuras mais importantes
da cultura popular do século XX, uma pessoa
cujo percurso de carreira reflete as
mudanças sociais do próprio país. Conter
quatro décadas da vida de um artista desta
magnitude num filme é uma tarefa impossível,
mas o realizador Baz Luhrmann constrói um
caleidoscópio dos momentos definidores de
Elvis e mapeia a sua ascensão a ícone
musical e cultural: desde a infância; às
primeiras músicas gravadas na Sun Records;
os concertos do Hayride; o sucesso depois de
estar sob a alçada (e controlo) do Coronel;
as aparições na televisão; o furor que
causava nos jovens e a indignação dos
políticos conservadoristas; o tempo no
exército onde conheceu a sua futura esposa
Priscilla (Olivia DeJonge); o declínio da
carreira após uma série fracassos de
bilheteria em Hollywood; o renascer das
cinzas com o especial de ‘68 e o êxito
descomunal no International Hotel em Las
Vegas, onde regressaria anualmente até à sua
morte.
O filme dá nos um entender
profundo de quem Elvis era e do que o
tornava tão especial. É dada uma ênfase
especial às inspirações que o moldaram
enquanto artista e indivíduo: desde a
infância passada num dos bairros mais pobres
de Tupelo, onde passava o tempo a sonhar
acordado e imaginar-se um super-herói das
bandas desenhadas, e a absorver a cultura e
música negra, os Rhythm and Blues e o Gospel
da igreja; até à mudança para Memphis onde
frequentava regularmente a Beale Street,
conhecida como a “Home of the Blues”.
A música Gospel, em especial, era uma fonte
de consolo e força em momentos de crises
pessoais e de carreira para Elvis. O que
tornava Elvis tão único, e perigoso, é toda
a influência de música negra à qual dava um
toque de música Country branca, o que
assustava os pais conservadoristas dos
estados segregacionistas do Sul.
É
verdade que Elvis nem sempre é
factualmente correto. Motins aconteciam em
alguns concertos de Elvis Presley, mas o
concerto em Russwood Park em ‘56 não acabou
em motim depois de uma só música, para além
do mais, em ‘56 Elvis não conhecia a “Trouble”
uma vez que a música só seria escrita
em ‘58 para o filme que iria protagonizar,
King Creole. A reunião inicial para
o especial de ‘68 não aconteceu no letreiro
danificado de Hollywood, mas sim num
escritório. O especial de 68’ não foi feito
às escondidas do Coronel e não foi uma
surpresa para os produtores executivos, essa
reviravolta seria tecnicamente impossível de
fazer. Mas se pensarmos nestas
incongruências factuais como as liberdades
artísticas intencionadas que são e que
mostram o contexto, motivações e
consequências reais e, simultaneamente,
movem a história no ritmo tão característico
de Baz Luhrmann, rapidamente se torna
evidente que não são falhas apontáveis, mas
sim mecanismos melhorativos da narrativa.
Enquanto autor, Baz Luhrmann, aborda as suas
histórias como espetáculos visuais com um
ritmo alucinante e inclui elementos que
modernizem e choquem estilisticamente. Um
desses elementos é a inclusão de música da
atualidade, e Elvis não foi
exceção, contando com remixes de músicas de
Blues clássicas por artistas de Rap como
Doja Cat e Denzel Curry.
Elvis
Presley é um artista “larger-than-life”
(expressão anglofóna que significa
“maior do que a própria vida” e tão bem
descreve o fenómeno que foi o cantor) com
uma carreira tão longa que não consegue ser
contida num filme de duas horas e meia. Mas
Baz Luhrmann cria uma visão completa e
multifacetada do Rei do Rock ‘N’ Roll: a
dicotomia do jovem sulista extremamente
bem-educado e do jovem artista rebelde
perturbador do equilíbrio social; o filho
dedicado que ficou perdido depois da morte
da mãe; o artista explorado e aprisionado
economicamente pelo Coronel Parker; os
comprimidos prescritos que rapidamente
passaram de conforto a vício debilitante; o
sonho não concretizado de fazer um
verdadeiro filme clássico; e o talento inato
para estar em palco e conquistar tudo e
todos à sua frente.
Mas o que torna
Elvis tão formidável não é só
aquilo que Baz Luhrmann mostra, mas, mais
importante, como mostra e as sensações que
cria ao longo de todo o filme, evocando com
a sua direção artística o espírito de Elvis
Presley e o efeito incendiário que o cantor
provocava. Como, por exemplo, o êxtase
eufórico e sensual da sequência do concerto
de Hayride, composta por um frenesim
elétrico de planos curtos e cortes rápidos,
em que Elvis pisa pela primeira vez o palco
e provoca uma exaltação nunca antes vista
entre as adolescentes com música de Rhythm
Blues e o abanar lascivo das ancas e pernas,
transmitido visualmente como Elvis foi um
fruto proibido para uma América reprimida e
um precursor para a revolução sexual. Ou
ainda a sequência final do filme, uma
montagem do último concerto que passa
suavemente do Elvis de Austin Butler para
imagens de arquivo do verdadeiro Elvis, num
adeus final solene no qual o cansaço físico
não afeta o brilho inesquecível da sua voz,
que permanece e ecoa eternamente mesmo
depois da sua morte.
E se Baz
Luhrmann evoca Elvis ao construir o filme, o
ator Austin Butler encarna Elvis do início
ao fim sem nunca se perder. Desde o sotaque
(que muito facilmente poderia ter parecido
uma caricatura) aos maneirismos e expressões
mais subtis, desde o abanar do corpo
enquanto é possuído pelo ritmo dos Blues até
ao olhar sedutor que aliciou milhares. Até a
voz do cantor o jovem ator conseguiu
dominar, sendo que ele mesmo cantou várias
das músicas de Elvis para o filme (entre as
quais “Baby, Let’s Play House”, “Hound
Dog”, “Trouble” e “That’s
Alright”). E não só cantou as músicas,
como esteve à altura do talento de Elvis, o
que por si só já é uma performance de uma
perfeição completamente admirável. O Elvis
de Austin Butler parece-se tanto com o
original que poderia ser uma cópia
praticamente idêntica, mas descrever a
interpretação de Austin Butler como uma mera
cópia não faz justiça à profundida e
sensibilidade emocional que o ator deu à
personagem, fruto de uma dedicação profunda.
Elvis é o primeiro grande projeto
do ator e, certamente, irá consagrá-lo como
uma estrela em Hollywood.
Depois dos
sucessos comerciais em anos recentes de
filmes sobre músicos do Rock ‘N’ Roll como
Bohemian Rhapsody (2018) e
Rocketman (2019), estava mais do que na
altura do Rei do Rock ‘N’ Roll ter o seu
momento no grande ecrã. E Elvis foi
muito mais além do que os seus predecessores
graças, em grande parte, à audácia de Baz
Luhrmann e ao talento de Austin Butler.
Luhrmann é um autor polarizante, o seu
estilo maximalista tende a dividir o
público, ou se adora ou se odeia, mas é
exatamente esta exuberância estilística que
se adequa a Elvis Presley, imortalizado no
panteão da cultura popular americana com o
seu legado musical, estilo icónico e
ornamentação ostensiva.
Elvis
é um caleidoscópio cinemático de cores
vibrantes, flashes e movimentos rodopiantes
de câmaras, tiras de bandas desenhadas
animadas, justaposições de efeitos, títulos,
cartazes, mapas e fotografias numa colagem
visual glamorosa com uma quantidade
excessiva de planos por sequência. Elvis
é um filme que só poderia ter sido feito por
Baz Luhrmann, um filme do mais puro e cru
Rock ‘N’ Roll em que o seu Rei é apresentado
visualmente como um super-herói lendário.
Classificação: ★★★★★
- n.38 • julho 2022