Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Elvis (2022) – “O Retorno do Rei”

Elvis Presley, o Rei do Rock ‘N’ Roll, volta a resplandecer no grande ecrã pela mão do realizador australiano Baz Luhrmann. Elvis foi apresentado pela primeira vez em maio no Festival de Cannes e estreou em Portugal a 23 de junho. O drama biográfico musical é tudo aquilo que se poderia esperar do realizador de Romeu + Julieta (1996), Moulin Rouge (2001) e O Grande Gatsby (2013): excêntrico, elétrico e efervescente. É um rodopio de cores e transições que nunca perde velocidade ou ritmo. O estilo maximalista impactante de Baz Luhrmann é o veículo ideal para contar a vida e obra do icónico Elvis Presley, interpretado pelo jovem ator Austin Butler.

A saga de Elvis, desde o nascimento e infância na pequena cidade de Tupelo até à sua morte 42 anos mais tarde, é contada a partir do ponto de vista do seu agente, o Coronel Tom Parker (Tom Hanks). Endividado e doente, o Coronel deambula pelos casinos de Las Vegas e recorda o seu relacionamento com o cantor, o diamante em bruto que transformou na sua galinha de ovos dourados pessoal ao ter se estabelecido como uma pessoa pela qual Elvis tinha confiança e carinho, quase como uma figura parental. Mas as mentiras e ganância de Parker rapidamente se tornam evidentes durante a narração que nos guia pela montanha-russa espetacular que foi a vida de Elvis Presley: os altos e baixos, as virtudes e falhas, o sucesso estratosférico e, por fim, a morte prematura.

Elvis foi um artista prolífico e uma das figuras mais importantes da cultura popular do século XX, uma pessoa cujo percurso de carreira reflete as mudanças sociais do próprio país. Conter quatro décadas da vida de um artista desta magnitude num filme é uma tarefa impossível, mas o realizador Baz Luhrmann constrói um caleidoscópio dos momentos definidores de Elvis e mapeia a sua ascensão a ícone musical e cultural: desde a infância; às primeiras músicas gravadas na Sun Records; os concertos do Hayride; o sucesso depois de estar sob a alçada (e controlo) do Coronel; as aparições na televisão; o furor que causava nos jovens e a indignação dos políticos conservadoristas; o tempo no exército onde conheceu a sua futura esposa Priscilla (Olivia DeJonge); o declínio da carreira após uma série fracassos de bilheteria em Hollywood; o renascer das cinzas com o especial de ‘68 e o êxito descomunal no International Hotel em Las Vegas, onde regressaria anualmente até à sua morte.

O filme dá nos um entender profundo de quem Elvis era e do que o tornava tão especial. É dada uma ênfase especial às inspirações que o moldaram enquanto artista e indivíduo: desde a infância passada num dos bairros mais pobres de Tupelo, onde passava o tempo a sonhar acordado e imaginar-se um super-herói das bandas desenhadas, e a absorver a cultura e música negra, os Rhythm and Blues e o Gospel da igreja; até à mudança para Memphis onde frequentava regularmente a Beale Street, conhecida como a “Home of the Blues”. A música Gospel, em especial, era uma fonte de consolo e força em momentos de crises pessoais e de carreira para Elvis. O que tornava Elvis tão único, e perigoso, é toda a influência de música negra à qual dava um toque de música Country branca, o que assustava os pais conservadoristas dos estados segregacionistas do Sul.

É verdade que Elvis nem sempre é factualmente correto. Motins aconteciam em alguns concertos de Elvis Presley, mas o concerto em Russwood Park em ‘56 não acabou em motim depois de uma só música, para além do mais, em ‘56 Elvis não conhecia a “Trouble” uma vez que a música só seria escrita em ‘58 para o filme que iria protagonizar, King Creole. A reunião inicial para o especial de ‘68 não aconteceu no letreiro danificado de Hollywood, mas sim num escritório. O especial de 68’ não foi feito às escondidas do Coronel e não foi uma surpresa para os produtores executivos, essa reviravolta seria tecnicamente impossível de fazer. Mas se pensarmos nestas incongruências factuais como as liberdades artísticas intencionadas que são e que mostram o contexto, motivações e consequências reais e, simultaneamente, movem a história no ritmo tão característico de Baz Luhrmann, rapidamente se torna evidente que não são falhas apontáveis, mas sim mecanismos melhorativos da narrativa. Enquanto autor, Baz Luhrmann, aborda as suas histórias como espetáculos visuais com um ritmo alucinante e inclui elementos que modernizem e choquem estilisticamente. Um desses elementos é a inclusão de música da atualidade, e Elvis não foi exceção, contando com remixes de músicas de Blues clássicas por artistas de Rap como Doja Cat e Denzel Curry.

Elvis Presley é um artista “larger-than-life” (expressão anglofóna que significa “maior do que a própria vida” e tão bem descreve o fenómeno que foi o cantor) com uma carreira tão longa que não consegue ser contida num filme de duas horas e meia. Mas Baz Luhrmann cria uma visão completa e multifacetada do Rei do Rock ‘N’ Roll: a dicotomia do jovem sulista extremamente bem-educado e do jovem artista rebelde perturbador do equilíbrio social; o filho dedicado que ficou perdido depois da morte da mãe; o artista explorado e aprisionado economicamente pelo Coronel Parker; os comprimidos prescritos que rapidamente passaram de conforto a vício debilitante; o sonho não concretizado de fazer um verdadeiro filme clássico; e o talento inato para estar em palco e conquistar tudo e todos à sua frente.

Mas o que torna Elvis tão formidável não é só aquilo que Baz Luhrmann mostra, mas, mais importante, como mostra e as sensações que cria ao longo de todo o filme, evocando com a sua direção artística o espírito de Elvis Presley e o efeito incendiário que o cantor provocava. Como, por exemplo, o êxtase eufórico e sensual da sequência do concerto de Hayride, composta por um frenesim elétrico de planos curtos e cortes rápidos, em que Elvis pisa pela primeira vez o palco e provoca uma exaltação nunca antes vista entre as adolescentes com música de Rhythm Blues e o abanar lascivo das ancas e pernas, transmitido visualmente como Elvis foi um fruto proibido para uma América reprimida e um precursor para a revolução sexual. Ou ainda a sequência final do filme, uma montagem do último concerto que passa suavemente do Elvis de Austin Butler para imagens de arquivo do verdadeiro Elvis, num adeus final solene no qual o cansaço físico não afeta o brilho inesquecível da sua voz, que permanece e ecoa eternamente mesmo depois da sua morte.

E se Baz Luhrmann evoca Elvis ao construir o filme, o ator Austin Butler encarna Elvis do início ao fim sem nunca se perder. Desde o sotaque (que muito facilmente poderia ter parecido uma caricatura) aos maneirismos e expressões mais subtis, desde o abanar do corpo enquanto é possuído pelo ritmo dos Blues até ao olhar sedutor que aliciou milhares. Até a voz do cantor o jovem ator conseguiu dominar, sendo que ele mesmo cantou várias das músicas de Elvis para o filme (entre as quais “Baby, Let’s Play House”, “Hound Dog”,Trouble” e “That’s Alright”). E não só cantou as músicas, como esteve à altura do talento de Elvis, o que por si só já é uma performance de uma perfeição completamente admirável.  O Elvis de Austin Butler parece-se tanto com o original que poderia ser uma cópia praticamente idêntica, mas descrever a interpretação de Austin Butler como uma mera cópia não faz justiça à profundida e sensibilidade emocional que o ator deu à personagem, fruto de uma dedicação profunda. Elvis é o primeiro grande projeto do ator e, certamente, irá consagrá-lo como uma estrela em Hollywood.

Depois dos sucessos comerciais em anos recentes de filmes sobre músicos do Rock ‘N’ Roll como Bohemian Rhapsody (2018) e Rocketman (2019), estava mais do que na altura do Rei do Rock ‘N’ Roll ter o seu momento no grande ecrã. E Elvis foi muito mais além do que os seus predecessores graças, em grande parte, à audácia de Baz Luhrmann e ao talento de Austin Butler. Luhrmann é um autor polarizante, o seu estilo maximalista tende a dividir o público, ou se adora ou se odeia, mas é exatamente esta exuberância estilística que se adequa a Elvis Presley, imortalizado no panteão da cultura popular americana com o seu legado musical, estilo icónico e ornamentação ostensiva.

Elvis é um caleidoscópio cinemático de cores vibrantes, flashes e movimentos rodopiantes de câmaras, tiras de bandas desenhadas animadas, justaposições de efeitos, títulos, cartazes, mapas e fotografias numa colagem visual glamorosa com uma quantidade excessiva de planos por sequência. Elvis é um filme que só poderia ter sido feito por Baz Luhrmann, um filme do mais puro e cru Rock ‘N’ Roll em que o seu Rei é apresentado visualmente como um super-herói lendário.

Classificação: ★★★★★