Daniela Graça

Espelho Cinemático

Daniela Graça

Blonde (2022)

O realizador australiano Andrew Dominik, conhecido pelo filme biográfico O Assassinato de Jesse James (2007), regressa ao oratório popular com Blonde, o filme sobre Marilyn Monroe, que veio estilhaçar a vénus loira de Hollywood. Mas Blonde não é uma biografia, trata-se sim de uma adaptação do romance homólogo da escritora Joyce Carol Oates publicado em 2001, uma história de ficção baseada na vida de uma pessoa real que se prolonga durante 700 páginas.

Andrew Dominik encontrou a sua Monroe na atriz colombiana Ana de Armas, que graças à magia da maquilhagem, guarda-roupa e ângulos e lentes escolhidos a dedo assemelha-se fisicamente à blonde bombshell americana com toda a naturalidade. Blonde, classificado para maiores de 18 anos, teve como palco de estreia o Festival de Veneza e dias mais tarde, a 28 de setembro, chegou a casa de todos os assinantes do serviço de streaming Netflix.

Com quase três horas de duração o filme pouco ou nada nos diz sobre a verdadeira Marilyn Monroe. Blonde foca-se maioritariamente na Marilyn já famosa. Inclui uma breve parte introdutória focada na infância turbulenta de Norma Jeane (o verdadeiro nome de Marilyn Monroe) traumatizada pela violência da mãe mentalmente instável e pela ausência do pai, o qual nunca chegou a conhecer, e que termina com Norma Jeane a ser levada para um orfanato após o internamento da mãe num hospício. O período de adolescência no orfanato e o início da carreira como modelo são menosprezados e substituídos por uma sequência rápida composta pelas diferentes capas de revistas para as quais a jovem posou. E passamos então para a Marilyn adulta, de caracóis loiros oxigenados, a capturar a atenção predatória de todos os homens que a rodeiam.

Dominik durante cerca de 2 horas e 40 minutos dedica-se a criar um inferno cíclico abusivo para a sua Marilyn, desde violações por homens que detêm poder e estatuto, a casamentos miseráveis, passando por violência doméstica, abortos induzidos contra a sua vontade e um aborto espontâneo. Os relacionamentos românticos são motivados por psicologia freudiana, uma temática martelada incessantemente ao longo de todo o filme ao ponto de se tornar psicologia barata, com Marylin a procurar uma figura paternal em todos os homens que ama numa tentativa desesperada de preencher o vazio deixado pelo pai que nunca conheceu. Esta é a origem incontornável de toda a dor de Marilyn que Blonde nunca nos permite esquecer. E, entretanto, começa a afogar a dor em comprimidos e álcool e rapidamente se torna toxicodependente. Por outro lado, das poucas vezes que a atriz mais famosa da América trabalha em Blonde, seja a fazer audições, a filmar ou a ver a estreia do seu filme, encontra-se completamente miserável e odeia-se profundamente.

Blonde é um filme fatalista. Torna-se aparente ao longo do filme que Marilyn Monroe é para Dominik apenas uma figura trágica pela qual o realizador tem uma obsessão mórbida. Quando o realizador é questionado, numa entrevista para a revista Sight and Sound [1], sobre o porquê de não abordar as vitórias de Marilyn (criar a sua empresa de produções fílmicas, lutar contra a discriminação racial, etc) este responde: “O filme não é sobre isso. É sobre uma pessoa que se vai matar.”. Dominik reduz Marilyn a uma tragédia em Blonde.

Blonde é uma fantasia cruel, redutora e simplista na qual Marilyn é retratada como uma boneca de porcelana que se desfaz em cacos vez após vez durante quase três horas. E todos os pontos fortes do filme: os truques visuais surreais, poéticos e tecnicamente impressionantes; a qualidade do departamento de guarda-roupa e maquiagem; e a semelhança física e o performance emocionalmente carregado de Ana de Armas (se bem que o sotaque estrangeiro atraiçoou a semelhança à voz de Marilyn) não conseguem atenuar os pontos fracos do filme.

Devido ao teor temático de Blonde, e ao facto de ser tão facilmente acessível agora que está no catálogo da Netlix, o filme amassou muita atenção e várias críticas foram apontadas: a objetificação sexual desnecessária (Ana de Armas passa uma parte bastante considerável do filme nua), o retrato explorativo e de mau gosto de abusos sexuais (especialmente numa cena com o Presidente John F. Kennedy); a falta de empatia; a factualidade dos acontecimentos, etc. Mas, para mim, a falha mais gritante do filme é a falta de interesse do realizador pelo seu sujeito. Dominik está apenas interessado na fração miserável de Marilyn e não no seu total, e, portanto, ignora tudo o resto. Blonde pode não ser um filme biográfico tradicional, mas continua a ser um filme sobre Marilyn Monroe, uma pessoa real. Em vez de procurar encontrar a mulher por trás do mito de Hollywood este filme cria o seu próprio mito e escolhe ativamente ignorar toda uma carreira, conquistas, amizades, e todo o espectro emocional fora da dor.

Blonde é um filme fracionado e emocionalmente raso, que não explora a complexidade do seu sujeito, e em vez disso, fabrica uma Marilyn diluída e dizimada. Se Blonde tivesse dedicado metade do esforço que foi necessário para recriar até ao mínimo detalhe fotografias de Marilyn no que toca à escrita de uma Marilyn que se assemelhasse à verdadeira, ou pelo menos fosse uma personagem redonda, teríamos uma noção mais sólida e multifacetada da atriz.

É difícil dizer para quem exatamente este filme foi feito para além do Andrew Dominik. Mas certamente não foi feito para um público que aprecie complexidade e nuance emocional. E muito certamente não foi feito para aqueles que querem conhecer a mulher por detrás de Os Homens Preferem as Loiras (1953), Quanto Mais Quente (1959) e Os Inadaptados (1961).

Classificação: ★★

-

[1] Entrevista na revista Sight and Sound: https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/interviews/im-not-interested-reality-im-interested-images-andrew-dominik-blonde