Espelho Cinemático
Daniela Graça
Blonde (2022)
- Partilhar 06/10/2022
O realizador australiano Andrew Dominik,
conhecido pelo filme
biográfico O Assassinato de Jesse James
(2007), regressa ao oratório popular com
Blonde, o filme sobre Marilyn Monroe,
que veio estilhaçar a vénus loira de
Hollywood. Mas Blonde não é uma
biografia, trata-se sim de uma adaptação do
romance homólogo da escritora Joyce Carol
Oates publicado em 2001, uma história de
ficção baseada na vida de uma pessoa real
que se prolonga durante 700 páginas.
Andrew Dominik encontrou a sua Monroe na
atriz colombiana Ana de Armas, que graças à
magia da maquilhagem, guarda-roupa e ângulos
e lentes escolhidos a dedo assemelha-se
fisicamente à blonde bombshell
americana com toda a naturalidade.
Blonde, classificado para maiores de 18
anos, teve como palco de estreia o
Festival de Veneza e dias mais tarde, a 28
de setembro, chegou a casa de todos os
assinantes do serviço de streaming Netflix.
Com quase três horas de duração o
filme pouco ou nada nos diz sobre a
verdadeira Marilyn Monroe. Blonde
foca-se maioritariamente na Marilyn já
famosa. Inclui uma breve parte introdutória
focada na infância turbulenta de Norma Jeane
(o verdadeiro nome de Marilyn Monroe)
traumatizada pela violência da mãe
mentalmente instável e pela ausência do pai,
o qual nunca chegou a conhecer, e que
termina com Norma Jeane a ser levada para um
orfanato após o internamento da mãe num
hospício. O período de adolescência no
orfanato e o início da carreira como modelo
são menosprezados e substituídos por uma
sequência rápida composta pelas diferentes
capas de revistas para as quais a jovem
posou. E passamos então para a Marilyn
adulta, de caracóis loiros oxigenados, a
capturar a atenção predatória de todos os
homens que a rodeiam.
Dominik
durante cerca de 2 horas e 40 minutos
dedica-se a criar um inferno cíclico abusivo
para a sua Marilyn, desde violações por
homens que detêm poder e estatuto, a
casamentos miseráveis, passando por
violência doméstica, abortos induzidos
contra a sua vontade e um aborto espontâneo.
Os relacionamentos românticos são motivados
por psicologia freudiana, uma temática
martelada incessantemente ao longo de todo o
filme ao ponto de se tornar psicologia
barata, com Marylin a procurar uma figura
paternal em todos os homens que ama numa
tentativa desesperada de preencher o vazio
deixado pelo pai que nunca conheceu. Esta é
a origem incontornável de toda a dor de
Marilyn que Blonde nunca nos permite
esquecer. E, entretanto, começa a afogar a
dor em comprimidos e álcool e rapidamente se
torna toxicodependente. Por outro lado, das
poucas vezes que a atriz mais famosa da
América trabalha em Blonde, seja a
fazer audições, a filmar ou a ver a estreia
do seu filme, encontra-se completamente
miserável e odeia-se profundamente.
Blonde é um filme fatalista. Torna-se
aparente ao longo do filme que Marilyn
Monroe é para Dominik apenas uma figura
trágica pela qual o realizador tem uma
obsessão mórbida. Quando o realizador é
questionado, numa entrevista para a revista
Sight and Sound [1], sobre o porquê de
não abordar as vitórias de Marilyn (criar a
sua empresa de produções fílmicas, lutar
contra a discriminação racial, etc) este
responde: “O filme não é sobre isso. É sobre
uma pessoa que se vai matar.”. Dominik reduz
Marilyn a uma tragédia em Blonde.
Blonde é uma fantasia cruel,
redutora e simplista na qual Marilyn é
retratada como uma boneca de porcelana que
se desfaz em cacos vez após vez durante
quase três horas. E todos os pontos fortes
do filme: os truques visuais surreais,
poéticos e tecnicamente impressionantes; a
qualidade do departamento de guarda-roupa e
maquiagem; e a semelhança física e o
performance emocionalmente carregado de Ana
de Armas (se bem que o sotaque estrangeiro
atraiçoou a semelhança à voz de Marilyn) não
conseguem atenuar os pontos fracos do filme.
Devido ao teor temático de Blonde,
e ao facto de ser tão facilmente acessível
agora que está no catálogo da Netlix, o
filme amassou muita atenção e várias
críticas foram apontadas: a objetificação
sexual desnecessária (Ana de Armas passa uma
parte bastante considerável do filme nua), o
retrato explorativo e de mau gosto de abusos
sexuais (especialmente numa cena com o
Presidente John F. Kennedy); a falta de
empatia; a factualidade dos acontecimentos,
etc. Mas, para mim, a falha mais gritante do
filme é a falta de interesse do realizador
pelo seu sujeito. Dominik está apenas
interessado na fração miserável de Marilyn e
não no seu total, e, portanto, ignora tudo o
resto. Blonde pode não ser um filme
biográfico tradicional, mas continua a ser
um filme sobre Marilyn Monroe, uma pessoa
real. Em vez de procurar encontrar a mulher
por trás do mito de Hollywood este filme
cria o seu próprio mito e escolhe ativamente
ignorar toda uma carreira, conquistas,
amizades, e todo o espectro emocional fora
da dor.
Blonde é um filme
fracionado e emocionalmente raso, que não
explora a complexidade do seu sujeito, e em
vez disso, fabrica uma Marilyn diluída e
dizimada. Se Blonde tivesse dedicado
metade do esforço que foi necessário para
recriar até ao mínimo detalhe fotografias de
Marilyn no que toca à escrita de uma Marilyn
que se assemelhasse à verdadeira, ou pelo
menos fosse uma personagem redonda, teríamos
uma noção mais sólida e multifacetada da
atriz.
É difícil dizer para quem
exatamente este filme foi feito para além do
Andrew Dominik. Mas certamente não foi feito
para um público que aprecie complexidade e
nuance emocional. E muito certamente não foi
feito para aqueles que querem conhecer a
mulher por detrás de Os Homens Preferem
as Loiras (1953), Quanto Mais Quente
(1959) e Os Inadaptados (1961).
Classificação: ★★
-
[1] Entrevista na revista Sight and Sound: https://www.bfi.org.uk/sight-and-sound/interviews/im-not-interested-reality-im-interested-images-andrew-dominik-blonde
- n.41 • outubro 2022