
Os novos medievais
Margarida Vale
A vida sabe como se reinventar
- Partilhar 28/12/2021

É comum que se pense nos desejos para o novo
ano que se avizinha. Cada volta ao sol, os
conhecidos 365 dias, são sempre desafios que
não páram de pregar rasteiras e espalhar
lamas escorregadias. Os planos, aquilo que o
ser humano tem por hábito delinear, podem
não ser concretizados e, como tal, há que
fazer um reforço para que os mesmos cheguem
a bom porto.
Para o ano que se finda,
o terrível 2021, certamente que a saúde terá
sido o tema mais badalado, a palavra que se
usou de forma quase gratuita e sem qualquer
sentido válido. É que em nome dessa mesma
saúde, a real e a tal, a verdadeira, foi
relegada para um segundo plano. Milhares de
consultas foram adiadas e, arrisco a
escrever, milhões de exames médicos não
chegaram a ser realizados, colocando em
risco a vida de quem deles precisava.
Pode parecer um paradoxo mas é mais uma
forma aligeirada de se olhar para o caos que
se instalou por todo o lado. Certamente que
estão recordados das medidas que foram
exaradas para contenção de uma suposta
pandemia que teve o condão de alterar a vida
de muitos para pior. Quantos perderam os
seus empregos, o ganha pão, o sustento da
vida, para que a saúde colectiva fosse
preservada? Esses não importam? Os que tudo
continuaram a ter, de forma bem tranquila,
não fazem ideia da luta pela sobrevivência
que se agigantou.
É assim a nossa
sociedade, uns são filhos e outros enteados
e gostam muito de dizer coisas sem saberem.
Certas e determinadas medidas chegaram a
tocar o dantesco mas o povo é sereno e não
se importa de ser enganado. Basta relembrar
que há um ano fazer compras vulgares, uma
simples ida ao supermercado, era quase uma
aventura. Horários reduzidos, gentes bem
acumuladas e exaustão de funcionários,
aqueles que nunca pararam e de quem as
autoridades nem se lembraram. Tudo em nome
da contemção da pandemia.
O ensino
foi uma verdadeira palhaçada com idas e
vindas, com computadores e professores que
se esforçaram para chegar aos alunos e
outros que apenas se remeteram ao conforto
do lar e se esqueceram das suas obrigações.
Não havendo qualquer penalização, o melhor
era mesmo deixar andar que nem se notava.
Alguns alunos agradeceram muito, outros
viram a sua vida parada já que a
aprendizagem ficou para segundo plano. A
função não se cumpriu e o mal continua sem
cura à vista.
Os transportes foram
reduzidos em horários e espaço mas quem
trabalha e deles precisa, não foi visto como
alguém que corria riscos pois a
terciarização da sociedade permite que se
fale sem saber, que se queixe sem motivo e
que se chore sem lágrimas verdadeiras. O
essencial continuou como de costume mas
esses continuam a ser invisíveis pois o pão
chega à mesa de quem o pode comprar, sem
fazer a menor ideia do percurso até ao
repasto.
Os centros de saúde ganharam
estatuto mais elevado, de casas vazias,
votadas os abandono pois o medo, essa coisa
estranha, cheias de pernas, feia e com
dentes de fora, entranhou-se em tantos que
se esqueceram de viver. Foram esses medos,
receios e outras palavras que permitiram que
os seus velhos morressem sem o último
abraço, sem a palavra de conforto e sem
saberem que eram amados. Que curiosa forma
de demonstrar que se gosta de alguém.
Encerraram-se as pessoas numa prisão
dourada, cheia de coisinhas boas e foi ver
os corpos a ganharem formas mais distintas e
roliças, com rabos que se colavam a sofás
fofos e convidativos, para assistirem a
séries onde os heróis são capazes de tudo
mas os que as viam, se ouvirem um tom de voz
mais elevado, soltam as lágrimas, dizem que
têm sentimentos e fecham-se em cascas de noz
para não verem a luz do dia. Enfraquecem-se
as pessoas e não sabem como resolver
situações básicas.
Quem fez aconteceu
não se podia dar ao luxo de confinamento.
Imaginemos que quem varre as ruas ficava em
teletrabalho. Como seria? Quem fazia o pão
pegava no computador, dava as instruções e
voilá! pimbas! estava feito? As prateleiras
dos supermercados não se arrumaram sozinhas
nem os campos fizeram brotar os produtos sem
as mãos sábias das pessoas que os cuidam. É
fácil falar quando não se sabe como é.
Aliás, até é caso para ser aplaudido pois os
que são iguais precisam de dirigentes que
sejam a sua luz.
Podemos falar de
tantas crianças que perdem a noção das
expressões, não sabem o que as mesmas
significam por as caras estarem tapadas com
máscaras que escondem os sentimentos e as
emoções. Que vida é esta? É isto que desejam
para os filhos? Não saber interpretar o que
o outro pretende transmitir? Ficar espoliado
de sentir é hediondo e não há forma de
recuperação.
Como se ensinam os mais
novos, aqueles que entram no primeiro ciclo
se não for em regime presencial? Quem lhes
pega nas mãos e encaminha o lápis para que
as letras fiquem direitas? Como se pode
mostrar o exercício de contar quando há uma
máquina que os afasta? Onde reside a
sensibilidade se não se toca em cada um,
para mostrar que se importa e se gosta?
Que dizer dos que ficaram com a vida
arruinada, os que perderam os seus postos de
trabalho e que dificilmente os irão
recuperar? A cultura ficou em segundo plano
mas essa não se vê a não ser que algumas
vozes liguem os interruptores da revolta.
Fecham-se salas de espectáculos e
prometem-se ajudas que nunca aconteceram.
Quando não se valoriza o que é nosso, a raiz
de sermos como somos, então a identidade
perde-se e não mais encontra o caminho
certo.
Afinal qual é a ideia que está
por trás de tantas restrições e falta de
liberdade? Um enorme dogma, que é aceite de
cabeça baixa e sem contestar. Há quem bata
palmas de tanta verborreia e disparates,
escudando-se da vida como se fosse algo
pernicioso. Viver é um risco assumido e sem
a aventura de acordar todos os dias, o
interesse e o desafio seriam minimizados,
pelo facto de se ser um autómato que apenas
responde aos comandos recebidos.
E a
saga continua com variantes que apenas mudam
de nome. Quem se chega à frente para
trabalhar, esses malandros da sociedade,
ficam com as pernas cortadas e não se fala
mais do assunto. O dinheiro não brota do céu
nem da terra, apesar de muitos terem essa
sensação de facilidade distributiva. Tem o
nome de ignorância mas há quem goste de
assim viver mesmo que lhes seja explicado
como funciona o sistema.
A nova
estrela amarela sofreu um refreshment e
passou a ser electrónica. Há que se provar
que se é dos escolhidos ou dos que seguem a
doutrina sem contestar. Exibe-se a falta de
tanto e ainda mais com orgulho. Limita-se a
vida de quem não se quer ligar a
radicalismos mas vê-se forçado a ter que
seguir os carreiros que empurram para
formigueiros estranhos.
Surge a poção
mágica, aquela que vai dar a força
descomunal e que irá permitir que se
derrotem os inimigos, ou apenas um inimigo,
cantando vitória de cabeça erguida. Há filas
para que a toma seja eficaz e benéfica. Uns
atropelam-se e querem ser os primeiros e
outros nem querem saber do assunto. Há de
tudo neste mundo que é de todos o que o
habitam.
Estragam-se as reuniões
familiares e arruinam-se as festas
particulares em nome de quê? Perde-se o
contacto com a realidade e a loucura toma
conta de quem ainda acredita que o Pai Natal
desce pela chaminé e vai entregar os
presentes a quem se portou bem durante o
ano. Afastam-se gentes de quem se gostava e
os afectos passam a ser perniciosos e
maléficos. Gasta-se a humanidade que ainda
restava em cada um.
A questão que se
coloca agora é bem pertinente: Valeu a pena?
Deixaram os avós morrer sem amor, encafuaram
as pessoas em espaços minúsculos e
apertados, cancelaram situações essenciais,
reduziram-se as mentes que estão a crescer e
insiste-se que é para um bem comum. Que ano
tão estranho.
É este o futuro que se
deseja, um medo abissal que engole todos
como se fosse um vacúolo louco? Onde fica a
vida, a aventura constante, o desafio que
tem que ser superado? E os amores, que lhes
fazer? A linha entre o amor e o ódio é
ténue, mas a que fica entre a sanidade
mental e a loucura é ainda mais fina.
Feliz ano de 2022. Viva a vida!
- n.32 • janeiro 2022