
Os novos medievais
Margarida Vale
Quaresmas
- Partilhar 26/03/2022
Tempo de reflexão e de abstinência para os
católicos, a Quaresma, que deriva do termo
latino quadragesima, representa os quarenta
dias de jejum de Jesus Cristo no deserto.Tal
atitude ficou a dever-se ao cansaço que
sentia e à necessita de repouso físico e
espiritual, antes de partir para a sua luta
apostólica.
Com início na quarta
feira de Cinzas, o encerramento dos festejos
do Carnaval, termina no Sábado Santo, que
antecede o dia da Ressurreição de Cristo, o
chamado domingo de Páscoa, festa da igreja
cristã, solenizada desde os primórdios do
cristianismo.
Este é o dia de triunfo
e da vitória de Cristo sobre a morte, a
recompensa dos esforços e dos sacrifícios em
prol da eternidade. Cristo deixa de morrer e
celebra-se, com alegria redobrada, a sua
volta. Aleluia! Palavra repetida por quem
sente Cristo como seu.
O que muitos
não sabem é que afinal não são quarenta dias
pois os domingos não contam uma vez que
estão excluídos da penitência. O dogma
perpetuado leva a que milhões de seguidores
aceitem as regras sem as contestar. O
caminho é de luz e deve ser seguido com fé e
disciplina.
A última semana de
evento, a Semana Santa ou da Paixão, vai do
domingo de Ramos, que simboliza a entrada de
Cristo em Jerusalém para celebrar a Páscoa
judaica, até ao Sábado Santo, que antecede o
dia em que a verdade é revelada. Cristo
afinal está vivo.
No que diz respeito
à calendarização, que como se sabe é móvel,
a Páscoa, a partir do século II, por
determinação do papa Vítor, em documento do
ano 190, era comemorada ao domingo. O
Concílio de Niceia, em 325, decretou que o
dia de Páscoa deveria ocorrer no domingo
seguinte ao dia 14 do mês de Nissan, o nome
do primeiro mês do calendário de Nipur, que
correspondia aos meados de Março ou de
Abril.
Com a moderna astronomia, pode
prever-se a posição dos astros e a Páscoa
teria como referência o Equinócio da
Primavera e a primeira lua cheia, fixando-se
no domingo seguinte, seja qual for o
calendário. O Conselho Mundial das Igrejas
tinha esperança de que a Páscoa ficasse com
uma data fixa, o que implicava o consenso de
todas as igrejas. Contudo, tal não foi
possível.
Durante o período entre os
Ramos e a Páscoa, o nosso país vive costumes
e praxes que merecem ser referidas em
detalhe. Uma delas menciona que não se devem
comer couves na Quinta Feira Santa, uma vez
que Nosso Senhor se escondeu num couval.
Outro hábito, mais difundido, é não comer
carne na Sexta feira Santa, por ser o dia da
morte de Jesus Cristo e ter estado exposto
numa cruz.
No Alentejo, mais
concretamente em Castelo de Vide, tal forma
de estar era tão respeitada que se queimavam
as panelas, ritual que consista em colocar
as panelas ao lume para fazer com que todo o
resíduo de gordura, que houvesse, se fosse
derretendo. Era esta a forma de purificação
para as panelas que iriam ser usadas na
quadra religiosa.
Quaresma implicava
recolhimento e silêncio, luto e penitência.
O mesmo se aplicava aos divertimentos e ao
quotidiano. Assobiar ou cantar eram pecados
que deviam ser evitados. Renunciava-se ao
prazer de comer e havia apenas uma refeição
por dia, composta de pão, legumes e água. A
labuta no campo era acompanhada de cânticos
religiosos.
Outra postura era a
ausência de matrimónios e se os houvesse,
não teriam a bênção desejada, que passaria
para os tempos vindouros. Alguns homens
usavam gravatas pretas e as mulheres vestiam
de luto, se bem que mais leve. Contudo as
cores garridas estavam banidas. Algumas
mulheres, das mais devotas, mascavam folhas
verdes das oliveiras, um castigo terrível.
Nas igrejas tapavam-se as janelas e os
vitrais, as flores eram retiradas dos
altares e os sinos não tinham ordem de toque
até ao final do período pascal. Em sua
substituição, existiam as matracas, que
tocadas nas ruas, chamavam os fiéis para os
actos litúrgicos. Estas matracas eram
manobradas por jovens, escolhidos pelo
padre, que levavam outros com eles.
As matracas eram feitas de madeira e de
arame grosso, que emitia um som cavo e
ritmado, com pancadas secas, a impor, de
certa forma, um luto de rigor pela quadra,
como obrigação dos crentes. Algumas vezes, a
matraca era passada de mão em mão, pelos
jovens, para dar mais ênfase ao ritual.
Março, marçagão, pela manhã rosto de
cão, à tarde Verão.
No final da época tudo
regressa ao habitual e a vida decorre sem
limitações que possam ser apontadas. Será
mesmo assim? Na verdade vive-se uma quaresma
há anos, um tempo de contrição e de
penitência onde o céu nem é invocado. O
inferno reside na Terra e os homens de boa
vontade têm outros interesses que a salvação
da alma.
A ideia de uma entidade
divina que a todos regula tem sido tema de
reflexão de quem quer entender. O povo, essa
amálgama de gentes que não se entende,
discorda e acorda e volta a repetir o que
disse e não disse. A quaresma evangeliza
durante o tempo regulamentar. O que cada um
sente não se enquadra em contextos.
Cada quaresma é única e mudam-se vontades
consoante os tempos. Há quem se tenha
remetido para uma quaresma contínua e dela
não queira sair. Outras querem quebrar os
votos e seguir até onde a luz possa indicar.
Os velhos hábitos são difíceis de erradicar,
tal como as arcaicas mentalidades que têm
muito terreno para se fertilizar.
Os
últimos tempos revolveram a terra e
desenterraram mitos, receios, crenças,
cismas e superstições que se querem
aniquilar. Ganharam força e novos adeptos,
cativaram os mais novos e voltaram à ribalta
com os mais velhos. Um retrocesso até aos
tempos mais escuros.
O senso comum
ganha nova dianteira, assim como os dogmas
que servem para muitos tapar. Agradece o
poder que descobriu uma suave e delicada,
sem qualquer tipo de esforço, maneira de a
muitos manipular. Haja saúde que o resto é
para continuar.

- n.35 • abril 2022