Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Quaresmas

Tempo de reflexão e de abstinência para os católicos, a Quaresma, que deriva do termo latino quadragesima, representa os quarenta dias de jejum de Jesus Cristo no deserto.Tal atitude ficou a dever-se ao cansaço que sentia e à necessita de repouso físico e espiritual, antes de partir para a sua luta apostólica.

Com início na quarta feira de Cinzas, o encerramento dos festejos do Carnaval, termina no Sábado Santo, que antecede o dia da Ressurreição de Cristo, o chamado domingo de Páscoa, festa da igreja cristã, solenizada desde os primórdios do cristianismo.

Este é o dia de triunfo e da vitória de Cristo sobre a morte, a recompensa dos esforços e dos sacrifícios em prol da eternidade. Cristo deixa de morrer e celebra-se, com alegria redobrada, a sua volta. Aleluia! Palavra repetida por quem sente Cristo como seu.

O que muitos não sabem é que afinal não são quarenta dias pois os domingos não contam uma vez que estão excluídos da penitência. O dogma perpetuado leva a que milhões de seguidores aceitem as regras sem as contestar. O caminho é de luz e deve ser seguido com fé e disciplina.

A última semana de evento, a Semana Santa ou da Paixão, vai do domingo de Ramos, que simboliza a entrada de Cristo em Jerusalém para celebrar a Páscoa judaica, até ao Sábado Santo, que antecede o dia em que a verdade é revelada. Cristo afinal está vivo.

No que diz respeito à calendarização, que como se sabe é móvel, a Páscoa, a partir do século II, por determinação do papa Vítor, em documento do ano 190, era comemorada ao domingo. O Concílio de Niceia, em 325, decretou que o dia de Páscoa deveria ocorrer no domingo seguinte ao dia 14 do mês de Nissan, o nome do primeiro mês do calendário de Nipur, que correspondia aos meados de Março ou de Abril.

Com a moderna astronomia, pode prever-se a posição dos astros e a Páscoa teria como referência o Equinócio da Primavera e a primeira lua cheia, fixando-se no domingo seguinte, seja qual for o calendário. O Conselho Mundial das Igrejas tinha esperança de que a Páscoa ficasse com uma data fixa, o que implicava o consenso de todas as igrejas. Contudo, tal não foi possível.

Durante o período entre os Ramos e a Páscoa, o nosso país vive costumes e praxes que merecem ser referidas em detalhe. Uma delas menciona que não se devem comer couves na Quinta Feira Santa, uma vez que Nosso Senhor se escondeu num couval. Outro hábito, mais difundido, é não comer carne na Sexta feira Santa, por ser o dia da morte de Jesus Cristo e ter estado exposto numa cruz.

No Alentejo, mais concretamente em Castelo de Vide, tal forma de estar era tão respeitada que se queimavam as panelas, ritual que consista em colocar as panelas ao lume para fazer com que todo o resíduo de gordura, que houvesse, se fosse derretendo. Era esta a forma de purificação para as panelas que iriam ser usadas na quadra religiosa.

Quaresma implicava recolhimento e silêncio, luto e penitência. O mesmo se aplicava aos divertimentos e ao quotidiano. Assobiar ou cantar eram pecados que deviam ser evitados. Renunciava-se ao prazer de comer e havia apenas uma refeição por dia, composta de pão, legumes e água. A labuta no campo era acompanhada de cânticos religiosos.

Outra postura era a ausência de matrimónios e se os houvesse, não teriam a bênção desejada, que passaria para os tempos vindouros. Alguns homens usavam gravatas pretas e as mulheres vestiam de luto, se bem que mais leve. Contudo as cores garridas estavam banidas. Algumas mulheres, das mais devotas, mascavam folhas verdes das oliveiras, um castigo terrível.

Nas igrejas tapavam-se as janelas e os vitrais, as flores eram retiradas dos altares e os sinos não tinham ordem de toque até ao final do período pascal. Em sua substituição, existiam as matracas, que tocadas nas ruas, chamavam os fiéis para os actos litúrgicos. Estas matracas eram manobradas por jovens, escolhidos pelo padre, que levavam outros com eles.

As matracas eram feitas de madeira e de arame grosso, que emitia um som cavo e ritmado, com pancadas secas, a impor, de certa forma, um luto de rigor pela quadra, como obrigação dos crentes. Algumas vezes, a matraca era passada de mão em mão, pelos jovens, para dar mais ênfase ao ritual.

Março, marçagão, pela manhã rosto de cão, à tarde Verão.

No final da época tudo regressa ao habitual e a vida decorre sem limitações que possam ser apontadas. Será mesmo assim? Na verdade vive-se uma quaresma há anos, um tempo de contrição e de penitência onde o céu nem é invocado. O inferno reside na Terra e os homens de boa vontade têm outros interesses que a salvação da alma.

A ideia de uma entidade divina que a todos regula tem sido tema de reflexão de quem quer entender. O povo, essa amálgama de gentes que não se entende, discorda e acorda e volta a repetir o que disse e não disse. A quaresma evangeliza durante o tempo regulamentar. O que cada um sente não se enquadra em contextos.

Cada quaresma é única e mudam-se vontades consoante os tempos. Há quem se tenha remetido para uma quaresma contínua e dela não queira sair. Outras querem quebrar os votos e seguir até onde a luz possa indicar. Os velhos hábitos são difíceis de erradicar, tal como as arcaicas mentalidades que têm muito terreno para se fertilizar.

Os últimos tempos revolveram a terra e desenterraram mitos, receios, crenças, cismas e superstições que se querem aniquilar. Ganharam força e novos adeptos, cativaram os mais novos e voltaram à ribalta com os mais velhos. Um retrocesso até aos tempos mais escuros.

O senso comum ganha nova dianteira, assim como os dogmas que servem para muitos tapar. Agradece o poder que descobriu uma suave e delicada, sem qualquer tipo de esforço, maneira de a muitos manipular. Haja saúde que o resto é para continuar.