Os novos medievais
Margarida Vale
As feiras de Champagne
- Partilhar 31/05/2023
A feira é um mercado medieval, sazonal e
que tem lugar fora da cidade. As trocas
comerciais, durante a Idade Média, não se
fazem necessariamente dentro da cidade. O
hábito ensina que o melhor mercado é fora
das muralhas onde se deslocam os que querem
comerciar. Os senhores apoiam esta
iniciativa que é mais uma forma de arrecadar
impostos.
O curioso é que o bispo
também podia ser o patrono e os benefícios
seriam dele. Assim, em Champagne e em certas
cidades, como Reims, o conde não possui o
direito de organização dos mercados. Esta
situação é uma herança dos tempos
carolíngios, em que os senhores concedem aos
bispos essa regalia, já que se estabelecem
laços mais estreitos.
O
desenvolvimento das feiras prende-se com a
restauração do poder público laico, o único
que garantia a segurança das trocas e dos
mercadores. No século XII, esta mudança
efetua-se no interior dos estados feudais,
como a Flandres, Provença, Champagne e
Catalunha. O século seguinte mostra a
afirmação das monarquias e desloca-se para
Paris, onde o rei é suserano.
O conde
Thibaud, o Grande, outorga, em 1137, um
grande privilégio à cidade de Provins. Fica
autorizada, desde então, a organizar duas
feiras anuais. Antes de 1164, Troyes, Lagny
e Bar-sur-Aube, receberão direitos análogos.
Champagne converte-se no centro do comércio
europeu. A partir de 1148, as suas feiras
são frequentadas pelos grandes comerciantes
de Paris.Os italianos são, ali, mencionados
pela primeira vez.
No início do
século XII, os condes de Campagne figuram
entre os mais poderosos do reino de França.
Rivalizam com os próprios reis, cujo
domínio, ainda frágil, ameaçam a leste. Em
1125 o novo conde de Chapagne é Thibaud, o
Grande, personagem ambígua que alguns
apresentam como um homem falso e orgulhoso e
outros, em particular os monges, como uma
pessoa generosa, sábia e valente. É
fabulosamente rico e faz do seu dever de
príncipe uma ideia muito elevada.
Para ele o essencial é assegurar a paz, isto
é, a protecção dos homens que se reclama
dele, contra qualquer acto que os pudesse
vir a prejudicar. Na primeira linha são os
comerciantes que mais recebem. Outorga-lhes
o seu conduto e, nas suas terras, toma-os
sob a sua protecção e estende-a para lá do
condado. Oferece garantias a todas as
pessoas que se dirijam ás feiras de
Champagne para comerciar.
Atacá-los,
provocá-los, roubar as mercadorias ou
danificar os seus bens, é como se o fizessem
a si próprio. Para tal, os inúmeros parentes
do conde, o seu prestígio e o seu dinheiro,
permitem tornar estas protecção eficaz. O
que daqui resulta, esta grande segurança,
está na origem da transformação de Lagny,
Provins, Troyes e Bar, em locais de comércio
internacional.
Por outro lado, o
conde assegura a regularidade das
transacções, a ordem das mercadorias e um
justo regulamento dos litígios. Por fim,
dota as feiras de Champagne de um
instrumento monetário de imenso valor, o
dernier de Provins. Em prata, pesado e muito
valioso, revela-se adaptado ás necessidades
dos comerciantes que o exportam e dele se
servem para fazer os pagamentos por toda a
Europa.
As quatro cidades com feira
não fazem concorrência entre si. Os
privilégios concedidos pelo conde e seguidos
pelo seu filho Henrique, o Liberal, criam
entre as cidades uma verdadeira rotação que
resulta em feiras que, quase em interrupção,
funcionam o ano inteiro. O conde faz-se
retribuir pois cobra uma taxa sobre o
montante total das transacções, bem baixa,
cerca de quatro por mil. O seu interesse tem
mais relação com o prestígio do que com o
dinheiro.
O que lhe importa é o poder
de carácter internacional que estas lhe dão
e a capacidade de fazer respeitar a ordem.
Por outro lado, estimulando estas feiras, as
cidades cresciam de ponto de vista económico
e os ganhos seriam maiores. As cobranças
entram para os cofres públicos e todos
lucram com esta movimentação.
os
comerciantes afluem de todos os lados. Os
flamengos chegam para vender os seus tecidos
a italianos que os levam para Génova ou Pisa
para aí serem tratados. Na década de 1150,
os derniers de Provins circulam em Itália,
antes de serem imitados nas principais
cidades. Esta é a origem. Quanto aos tecidos
são expedidos para o Médio Oriente. É o eixo
essencial. É em torno da troca entre a
Itália e a França que de desenvolve a
prosperidade das feiras.
Em tornos
dos comerciantes gravita uma constelação de
personagens que exercem os ofícios
indispensáveis às trocas, na primeira fila
dos quais se encontram os cambistas. Este é
um papel paralelo mas essencial. O aspecto
financeiro é brilhante e funcional.
A
partir dos finais do século XII, os
mercadores regularizam as suas dívidas, as
que foram contraídas nos outros locais, por
vezes bem afastados, elaborando técnicas de
compensação e de transferência de fundos
cada vez mais sólidos, sofisticados e
elaborados, mostrando como as técnicas
comerciais se foram desenvolvendo com
eficácia.
O desenvolvimento destas
feiras é um dos sinais da revolução
comercial dos séculos XI-XII. As trocas com
o Médio Oriente não cessaram desde o final
da Antiguidade. Os aristocratas são grandes
apreciadores de sedas e especiarias e estas
podem ser encontradas em Bizâncio e nos
países muçulmanos. O comércio incide sobre
pequenas quantidades de produtos de valor
imenso.
A partir do século XI, as
condições alteram-se. As grandes cidades
marítimas italianas, Génova, Pisa, Veneza e
Amalfi, exportam cada vez mais quantidades
maiores de produtos finos, como os tecidos
flamengos e importam as ditas mercadorias
preciosas que o ocidente carece.
Serão, posteriormente, substituídas e
abandonadas já no século XII, pelas cidades
do interior, Milão, Placência, Asti e
outras. As cidades francesas são as mais
concorridas com as feiras de Champagne no
século XII, papel que não tinham
anteriormente.
Na verdade a essência
destas mercados nunca se perdeu no tempo.
Agora, em tempos de outras facilidades e
onde a globalização impera, os mercados são
mais singelos e servem propósitos bem mais
simples. Na sociedade de usar e deitar fora,
o valor das peças deixou de ter interesse.
- n.49 • junho 2023