Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Maio

As festividades de Maio ainda não se perderam no mundo rural. São elas que continuam a regular os ciclos de vida e que mostram o retorno à luz, ao ciclo das chuvas e do vento que espalha as sementes pela terra e que ensina aos homens o que são as boas colheitas. Tudo voltará a germinar e brotar em flor. A espera permite as festas e a antecipação do futuro, a esperança que teima em não esmorecer. Os dias quentes são agora chegados e o cheiro doce que paira no ar, empresta alegria para todos os que se vestem de vida.

O pólen vaga pelas ruas, em procissão solitária e beija os receptáculos que se oferecem por prazer. A vida continua o seu ritmo natural, como se nada mais tivesse valor. É a dança da juventude que se repete e entoa.Os arranjos de flores são a mostra das artes populares e as giestas são símbolos do que se deseja. Tudo renasce como se fosse a primeira vez. A natureza transforma-se e a religião acompanha-a com modos peculiares e seculares de devoção.

Os rituais e cultos agrários, celebrados pelos antepassados para festejar o fim do Inverno, são o despertar vegetal que há muito se pretende. A volta que tudo leva, ensina que nada se perde e que tudo se muda, tal como o poeta escrevia com sabedoria. Mudam-se os tempos e mudam-se as vontades mas o que importa, as qualidades são o motor de continuidade. As Maias, nome atribuído às giestas, colocam-se nas janelas, portas, postigos, fechaduras e ainda nos outros locais bem visíveis da casa, de modo a perpetuar a fertilidade.

Também podem ser vistas nos estábulos, cancelas, carros da lavoura e até mesmo nos animais. Uma superstição que não se perde e que justifica o dito: se não fossem postos ramos de giestas juntos dos pintos, anhos e bacorinhos, o Maio prejudicá-los-ia. Uma luta pela sobrevivência, um trabalho que nunca pára e vidas que ainda seguem calendários que nunca mudam.

Com o passar do tempo, as tradições tendem a modernizar-se e são agora os automóveis que levam a decoração. Outros locais acrescentam algumas flores, como jarros e malmequeres ou ainda rosas silvestres, ao ramalhete. Estas coroas enfeitam portais e janelas e a ideia é não deixar entrar o diabo em casa. Ainda se acrescenta o afastar o mau olhado e a fome. Há de tudo, que as gentes do campo são da luta e sabem como dar valor às necessidades.

A origem deste culto perde-se no tempo mas pensa-se que terá tido origem numa lenda. O nosso país, tão fértil nestas histórias contadas de geração em geração, busca sempre sentido para tudo. Dizia a mesma que os judeus assinalaram a casa onde Jesus pernoitava, servindo-se de um ramo de giestas. Quando voltaram no dia seguinte, para o prender, todas as portas estavam iguais, com ramos de giestas, o que não permitiu que fosse identificada aquela onde Cristo se escondera. Na verdade tornou-se tão bucólico que as pessoas repetem o gesto mesmo que desconheçam a sua origem.

Quanto colocadas, em raminhos, nas pessoas, as giestas tinham uma função muito específica, que era irradicar o carrapato, ou seja, a doença. O diabo teria dificuldade de penetrar na alma de cada um e assim estava a salvo. Há locais onde se usa o termo burro, que está ligado ao tempo da guerra pois nem todos tinham a possibilidade de ter um cavalo. Em Trás-os Montes, burro é o nome por que é conhecida uma aranha, um bicho que ataca os palheiros e os dizima.

Outras localidades chegam a fazer encenações tão rigorosas que colocam, nas entradas das casas ou em locais públicos, os maios, os bonecos vestidos com cores garridas, segurando numa das mãos um pau e na outra uma garrafa e um copo com vinho. Podem existir algumas variantes mas a ideia mantém-se, o afastar dos maus espíritos que podem resultar em tragédias para muitos se as colheitas não forem boas.

Maio continua a ser a esperança de bem viver, o querer continuar a jornada e a esperar que o sol doure todas as searas. As colheitas são o futuro mas esse constrói-se todos os dias. As sementes são lançadas à terra com ardor para que o seu crescimento se faça com valor. Cada terra pode ter o seu uso mas todas entendem que devem germinar.

Maio está mesmo a bater à porta e é para ser vivido em pleno, sem máscaras que tapam os sorrisos e as feições, sem restrições de abraços nem quaisquer demonstrações de afectos. Ser genuíno ainda é complexo e duro. Tanta é a hipocrisia que circula que, quem se mostra como é, facilmente será alvo de quezílias e de apedrejamento.

As tradições são gestos de cultura popular que se eterniza. Os mais velhos são os guardiões dos templos e cabe a eles serem os divulgadores de tantos e tão proveitosos saberes. Claro que os mais novos têm uma palavra a dizer e esses, o sangue que vai pulsar com mais intensidade, são a chama que vai mais alto brilhar.

Maio também nos remete para os casamentos e as noivas, para o iniciar de uma nova caminhada, uma casa que se vai fazendo, com dores e carinhos, um ninho que tem sempre frutos saborosos e apetecíveis. Para se dançar é preciso um par e os noivos, são parte integrante do baile que está prestes a começar. Tudo leva o seu tempo e aqui também há sementes que se vão abençoar.

Maio, maduro Maio, Maio que dá tanta vontade de o abraçar. Um simples mês onde são depositadas as cartas de futuro, escritas com sangue de querer, os desejos mais profundos, os sonhos que se eternizam e ainda os segredos que, mesmo que não sejam para se revelar, são todos para se contar.