Os novos medievais
Margarida Vale
Maio
- Partilhar 27/04/2022
As festividades de Maio ainda não se
perderam no mundo rural. São elas que
continuam a regular os ciclos de vida e que
mostram o retorno à luz, ao ciclo das chuvas
e do vento que espalha as sementes pela
terra e que ensina aos homens o que são as
boas colheitas. Tudo voltará a germinar e
brotar em flor. A espera permite as festas e
a antecipação do futuro, a esperança que
teima em não esmorecer. Os dias quentes são
agora chegados e o cheiro doce que paira no
ar, empresta alegria para todos os que se
vestem de vida.
O pólen vaga pelas
ruas, em procissão solitária e beija os
receptáculos que se oferecem por prazer. A
vida continua o seu ritmo natural, como se
nada mais tivesse valor. É a dança da
juventude que se repete e entoa.Os arranjos
de flores são a mostra das artes populares e
as giestas são símbolos do que se deseja.
Tudo renasce como se fosse a primeira vez. A
natureza transforma-se e a religião
acompanha-a com modos peculiares e seculares
de devoção.
Os rituais e cultos
agrários, celebrados pelos antepassados para
festejar o fim do Inverno, são o despertar
vegetal que há muito se pretende. A volta
que tudo leva, ensina que nada se perde e
que tudo se muda, tal como o poeta escrevia
com sabedoria. Mudam-se os tempos e mudam-se
as vontades mas o que importa, as qualidades
são o motor de continuidade. As Maias, nome
atribuído às giestas, colocam-se nas
janelas, portas, postigos, fechaduras e
ainda nos outros locais bem visíveis da
casa, de modo a perpetuar a fertilidade.
Também podem ser vistas nos estábulos,
cancelas, carros da lavoura e até mesmo nos
animais. Uma superstição que não se perde e
que justifica o dito: se não fossem postos
ramos de giestas juntos dos pintos, anhos e
bacorinhos, o Maio prejudicá-los-ia. Uma
luta pela sobrevivência, um trabalho que
nunca pára e vidas que ainda seguem
calendários que nunca mudam.
Com o
passar do tempo, as tradições tendem a
modernizar-se e são agora os automóveis que
levam a decoração. Outros locais acrescentam
algumas flores, como jarros e malmequeres ou
ainda rosas silvestres, ao ramalhete. Estas
coroas enfeitam portais e janelas e a ideia
é não deixar entrar o diabo em casa. Ainda
se acrescenta o afastar o mau olhado e a
fome. Há de tudo, que as gentes do campo são
da luta e sabem como dar valor às
necessidades.
A origem deste culto
perde-se no tempo mas pensa-se que terá tido
origem numa lenda. O nosso país, tão fértil
nestas histórias contadas de geração em
geração, busca sempre sentido para tudo.
Dizia a mesma que os judeus assinalaram a
casa onde Jesus pernoitava, servindo-se de
um ramo de giestas. Quando voltaram no dia
seguinte, para o prender, todas as portas
estavam iguais, com ramos de giestas, o que
não permitiu que fosse identificada aquela
onde Cristo se escondera. Na verdade
tornou-se tão bucólico que as pessoas
repetem o gesto mesmo que desconheçam a sua
origem.
Quanto colocadas, em
raminhos, nas pessoas, as giestas tinham uma
função muito específica, que era irradicar o
carrapato, ou seja, a doença. O diabo teria
dificuldade de penetrar na alma de cada um e
assim estava a salvo. Há locais onde se usa
o termo burro, que está ligado ao tempo da
guerra pois nem todos tinham a possibilidade
de ter um cavalo. Em Trás-os Montes, burro é
o nome por que é conhecida uma aranha, um
bicho que ataca os palheiros e os dizima.
Outras localidades chegam a fazer
encenações tão rigorosas que colocam, nas
entradas das casas ou em locais públicos, os
maios, os bonecos vestidos com cores
garridas, segurando numa das mãos um pau e
na outra uma garrafa e um copo com vinho.
Podem existir algumas variantes mas a ideia
mantém-se, o afastar dos maus espíritos que
podem resultar em tragédias para muitos se
as colheitas não forem boas.
Maio
continua a ser a esperança de bem viver, o
querer continuar a jornada e a esperar que o
sol doure todas as searas. As colheitas são
o futuro mas esse constrói-se todos os dias.
As sementes são lançadas à terra com ardor
para que o seu crescimento se faça com
valor. Cada terra pode ter o seu uso mas
todas entendem que devem germinar.
Maio está mesmo a bater à porta e é para ser
vivido em pleno, sem máscaras que tapam os
sorrisos e as feições, sem restrições de
abraços nem quaisquer demonstrações de
afectos. Ser genuíno ainda é complexo e
duro. Tanta é a hipocrisia que circula que,
quem se mostra como é, facilmente será alvo
de quezílias e de apedrejamento.
As
tradições são gestos de cultura popular que
se eterniza. Os mais velhos são os guardiões
dos templos e cabe a eles serem os
divulgadores de tantos e tão proveitosos
saberes. Claro que os mais novos têm uma
palavra a dizer e esses, o sangue que vai
pulsar com mais intensidade, são a chama que
vai mais alto brilhar.
Maio também
nos remete para os casamentos e as noivas,
para o iniciar de uma nova caminhada, uma
casa que se vai fazendo, com dores e
carinhos, um ninho que tem sempre frutos
saborosos e apetecíveis. Para se dançar é
preciso um par e os noivos, são parte
integrante do baile que está prestes a
começar. Tudo leva o seu tempo e aqui também
há sementes que se vão abençoar.
Maio, maduro Maio, Maio que dá tanta vontade
de o abraçar. Um simples mês onde são
depositadas as cartas de futuro, escritas
com sangue de querer, os desejos mais
profundos, os sonhos que se eternizam e
ainda os segredos que, mesmo que não sejam
para se revelar, são todos para se contar.
- n.36 • maio 2022