
Os novos medievais
Margarida Vale
A preto e branco
- Partilhar 28/07/2022
Houve um tempo em que ainda se atiravam
ameixas e que podiam deixar nódoas sem que
as vozes dos que nada têm a dizer se
alterassem. Vamos envelhecendo e pouco
amadurecendo, ficamos mais desatentos e
cometemos mais erros. Pensar continua a ser
uma actividade subversiva e reservada apenas
a alguns. Os que muito apregoam, com tons
elevados e revoltados, são os primeiros que
apontam o dedo sem apresentar qualquer tipo
de solução.
Todos são amigos dos
desfavorecidos desde que eles não fiquem à
sua porta nem lhes tapem as vistas. Tudo bem
longe que, quem está em frente a um
computador, é um grande herói. Misturas só
para os gelados ou para o gin, que é coisa
de gente refinada e com educação e estatuto
social.
Portugal é um país racista ou
os portugueses são racistas?
Existe
uma cultura de base dum país e, quer
queiramos ou não, somos influenciados por
ela. É como a nossa família. Os hábitos
adquirem-se e são difíceis de perder.
Entendo que não se queira ser parecido com o
tio Manuel porque é gago e bisbilhoteiro mas
isso corrige-se. Agora ter herdado a
genética e os péssimos genes que nos fazem
parecer a tia Leonilde, com um bigode ainda
mais farto do que o do avô, é péssimo.
Assim funciona um país. Somos católicos.
Dizem. Quem vai à igreja? Quem conhece a
doutrina? Há uma enorme diferença. Amar o
próximo pode ser encarado de dois modos
diferentes: só se deve amar a quem partilha
a mesma ideologia ou a qualquer um? Começa
logo aqui a discriminação. Parece que se
trata de clubes onde a regra "menina não
entra" continua a vigorar.
Uma mulher
se tiver um determinado comportamento, que
não seja recatada, é vista como uma
perversa, uma doida e uma oferecida. Não
pode ser dona do seu destino nem do seu
corpo sem que venham as vozes danadas dar
opinião. Um homem é muito macho se tiver
muitas mulheres, muitos casos e enganar a
legítima com regularidade. Ainda há quem
pense assim.
Em tempos idos, as
mulheres podiam ser julgadas por ter
praticado um aborto. Um homem nunca. Dava
ideia que, em Portugal, as mulheres
engravidavam sozinhas. Mas quem é o Estado
para dar ordens sobre o corpo de uma pessoa?
Levantavam-se os velhos do Restelo e batiam
nelas. Mas as suas mulheres, as de lei,
praticavam abortos em clínicas e ninguém
sabia. As mulheres pobres ainda são mais
discriminadas do que as ricas.
A
eterna dicotomia branco-preto nunca se vai
esbater. Por muitos avanços que existam, por
muitas conquistas que se façam, a palavra
preto continuará a servir para insultar as
pessoas e a palavra branco torna-se neutra.
Criou-se o mito de que os homens pretos eram
máquinas sexuais e que as mulheres pretas
eram muito atraentes. Não se conseguem
entender os critérios de avaliação.
Os ciganos serão sempre olhados de lado. Mas
os ciganos são uma imensidão de pessoas
diferentes, de origens díspares e de raízes
culturais diversas. Emir Kusturica
mostra-nos vários modos de olhar para eles,
sobretudo na sua miséria física e na
psicológica. Na verdade ninguém gosta de
ciganos. Criaram-se ditados que deixam
marcas indeléveis sobre eles.
Ir às
compras onde os ciganos vendem tem o seu
charme. A feira de Carcavelos tornou-se um
must, um certo luxo que servia para mostrar
que quem lhes comprava as pechinchas, era
muito democrático e estava a prestar-lhes
uma grande ajuda. Mais falsidade. No fundo
estavam todos a enganar-se.
Podem-se
escrever tantas e tantas coisas sobre os
ciganos como se podem escrever sobre os que
não o são. Os ciganos são os malandros, que
só querem receber e não pagam. Quem são os
que devem à segurança social e ao estado?
Quem são os que não pagam os condomínios e
os colégios dos filhos? Quem são os que são
capazes de qualquer coisa para chegar ao
topo da empresa, mesmo atropelando todos os
outros? Estou a dar um pequeno exemplo.
Afinal quem é o cigano?
A verdade é
que não há quem queira ter ciganos e pretos
como vizinhos. Defendem-se dizendo que não
têm nada contra eles mas a sua presença, em
bairros sociais ou não, acaba por
desvalorizar as suas propriedades que foram
compradas e não emprestadas pelo Estado. Do
outro lado estão os outros, aqueles que
defendem que todos devem ser integrados e
não podem ser discriminados.
Mas
algum destes senhores ou senhoras já desceu
à Terra? Sabem do que estão a falar? Como
vivem nas suas torres de marfim, protegidos
e bem tratados, não sabem o que é a
realidade social a não ser num qualquer
manual ou num estudo. E se nos seus
condomínios vivem pretos serão todos com
estudos superiores e a ocupar cargos de
topo. Mas a sociedade não sobrevive com
esses, mas sim com todos, sobretudo os que
estão na sua base.
Portugal é um país
racista?
Pretos e brancos - check.
Mulheres e homens - check.
Ciganos -
check.

- n.39 • agosto 2022