Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

A preto e branco

Houve um tempo em que ainda se atiravam ameixas e que podiam deixar nódoas sem que as vozes dos que nada têm a dizer se alterassem. Vamos envelhecendo e pouco amadurecendo, ficamos mais desatentos e cometemos mais erros. Pensar continua a ser uma actividade subversiva e reservada apenas a alguns. Os que muito apregoam, com tons elevados e revoltados, são os primeiros que apontam o dedo sem apresentar qualquer tipo de solução.

Todos são amigos dos desfavorecidos desde que eles não fiquem à sua porta nem lhes tapem as vistas. Tudo bem longe que, quem está em frente a um computador, é um grande herói. Misturas só para os gelados ou para o gin, que é coisa de gente refinada e com educação e estatuto social.

Portugal é um país racista ou os portugueses são racistas?

Existe uma cultura de base dum país e, quer queiramos ou não, somos influenciados por ela. É como a nossa família. Os hábitos adquirem-se e são difíceis de perder. Entendo que não se queira ser parecido com o tio Manuel porque é gago e bisbilhoteiro mas isso corrige-se. Agora ter herdado a genética e os péssimos genes que nos fazem parecer a tia Leonilde, com um bigode ainda mais farto do que o do avô, é péssimo.

Assim funciona um país. Somos católicos. Dizem. Quem vai à igreja? Quem conhece a doutrina? Há uma enorme diferença. Amar o próximo pode ser encarado de dois modos diferentes: só se deve amar a quem partilha a mesma ideologia ou a qualquer um? Começa logo aqui a discriminação. Parece que se trata de clubes onde a regra "menina não entra" continua a vigorar.

Uma mulher se tiver um determinado comportamento, que não seja recatada, é vista como uma perversa, uma doida e uma oferecida. Não pode ser dona do seu destino nem do seu corpo sem que venham as vozes danadas dar opinião. Um homem é muito macho se tiver muitas mulheres, muitos casos e enganar a legítima com regularidade. Ainda há quem pense assim.

Em tempos idos, as mulheres podiam ser julgadas por ter praticado um aborto. Um homem nunca. Dava ideia que, em Portugal, as mulheres engravidavam sozinhas. Mas quem é o Estado para dar ordens sobre o corpo de uma pessoa? Levantavam-se os velhos do Restelo e batiam nelas. Mas as suas mulheres, as de lei, praticavam abortos em clínicas e ninguém sabia. As mulheres pobres ainda são mais discriminadas do que as ricas.

A eterna dicotomia branco-preto nunca se vai esbater. Por muitos avanços que existam, por muitas conquistas que se façam, a palavra preto continuará a servir para insultar as pessoas e a palavra branco torna-se neutra. Criou-se o mito de que os homens pretos eram máquinas sexuais e que as mulheres pretas eram muito atraentes. Não se conseguem entender os critérios de avaliação.

Os ciganos serão sempre olhados de lado. Mas os ciganos são uma imensidão de pessoas diferentes, de origens díspares e de raízes culturais diversas. Emir Kusturica mostra-nos vários modos de olhar para eles, sobretudo na sua miséria física e na psicológica. Na verdade ninguém gosta de ciganos. Criaram-se ditados que deixam marcas indeléveis sobre eles.

Ir às compras onde os ciganos vendem tem o seu charme. A feira de Carcavelos tornou-se um must, um certo luxo que servia para mostrar que quem lhes comprava as pechinchas, era muito democrático e estava a prestar-lhes uma grande ajuda. Mais falsidade. No fundo estavam todos a enganar-se.

Podem-se escrever tantas e tantas coisas sobre os ciganos como se podem escrever sobre os que não o são. Os ciganos são os malandros, que só querem receber e não pagam. Quem são os que devem à segurança social e ao estado? Quem são os que não pagam os condomínios e os colégios dos filhos? Quem são os que são capazes de qualquer coisa para chegar ao topo da empresa, mesmo atropelando todos os outros? Estou a dar um pequeno exemplo. Afinal quem é o cigano?

A verdade é que não há quem queira ter ciganos e pretos como vizinhos. Defendem-se dizendo que não têm nada contra eles mas a sua presença, em bairros sociais ou não, acaba por desvalorizar as suas propriedades que foram compradas e não emprestadas pelo Estado. Do outro lado estão os outros, aqueles que defendem que todos devem ser integrados e não podem ser discriminados.

Mas algum destes senhores ou senhoras já desceu à Terra? Sabem do que estão a falar? Como vivem nas suas torres de marfim, protegidos e bem tratados, não sabem o que é a realidade social a não ser num qualquer manual ou num estudo. E se nos seus condomínios vivem pretos serão todos com estudos superiores e a ocupar cargos de topo. Mas a sociedade não sobrevive com esses, mas sim com todos, sobretudo os que estão na sua base.

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