Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Ser Português, uma arte milenar

Vivemos num país tão banhado pelo mar e pelo sol que até nos esquecemos de quem somos. E como nos esquecemos é preciso explicar, dizer quem é o português, aquela criatura que consegue dar sempre a volta por cima. Parece complicado mas não apresenta dificuldade de maior. Querem saber como? É um mero exercício visual e auditivo que não necessita de requisitos prévios.

Vejamos:
Alguém tem um acidente grave e fica praticamente danificado, tetraplégico, condenado a uma cadeira de rodas. O que é que se diz? Teve sorte, não morreu. A vida perde toda a qualidade mas está vivo. Pois, teve sorte. É à português.

Um estrangeiro dirige-se a um português e pede-lhe uma indicação. Este não percebe nada mas isso não tem importância nenhuma. Puxa do seu linguajar, portugualês e pronto, já está. Manda-o para um sítio qualquer mas ele percebeu. Desenrascou-se. É à português.

Joga a selecção nacional, de futebol, claro está! e todos são patriotas. Sabem qual é a bandeira nacional, qual é o hino e ficam todos orgulhosos. Defendem a pátria, o seu âmago, a alma lusitana. Se alguém deita o português "abaixo" ficam ofendidos, respondem à letra e incham o peito. É à português.

No Algarve, os naturais, olham para as inglesas, holandesas, estrangeiras em geral. Dão-lhes duas tretas, engatam-nas e ficam convencidos que foram grandes conquistas, pensam eles. São depois relatos de safaris sexuais, quais autênticas feras selvagens e indescritíveis, daquilo que nunca aconteceu. Mas não faz mal. Inventam. É à português.

Quando uma mulher vai ao volante, apesar de, regra geral, ser mais cautelosa e responsável, não se escapa das piadas típicas do macho latino. Mesmo que tenha conseguido contornar um buraco gigante, evitado um acidente grave e conseguido chegar à hora combinada, tem sempre de ser rebaixada porque as mulheres são um perigo ao volante. É à português.

Os meninos andam na escola. Não estudam, não se aplicam, não querem saber e os pais só se interessam com os resultados. Saber não é importante, é irrelevante. Mesmo não sabendo nada, não tendo tão pouco aberto os livros nem dado atenção nas aulas nem, muito menos respeitado os professores, acaba por passar. O menino é esperto. É à português.

Ainda não chega? É preciso dar mais exemplos? Não faltam casos curiosos para relatar onde o homem, macho, sempre macho, dá a volta por cima porque um latino é sempre superior a qualquer outro ser humano. Masculino ainda pode ter comparação mas feminino nunca. O homem é sempre superior à mulher. É à português.

O trabalho tem de ser feito, é necessário apressar, o tempo está a ficar apertado mas o responsável nem está para aí virado. Aperta com a equipa, tudo fica concluído a tempo mas sem qualidade nem nível. Não tem importância. Ficou feito, não foi? Está bom. É à português.

Se as coisas começam a ficar feias e complicadas no governo, a crise instala-se e o futuro é negro, o primeiro ministro pisga-se ou faz-se de coitadinho. Vai para um lugar seguro, confortável e com as costas quentes. Quem fica desculpa-se com os outros. Não assume nem o falhanço nem a incompetência. É de homem. É à português.

Curiosamente é este epíteto, esta palavra que acaba por justificar tantas e tantas incongruências da vida. Como é à português, está tudo bem, está esclarecido. É toda uma apologia do tanto faz ou está bem assim. Ser e fazer é totalmente diferente mas, neste caso, acaba por ser exactamente o mesmo. Ser português é o mesmo que fazer ou deixar de fazer. É à português.

Mas o português também sabe como ser solidário e amigo do seu vizinho ou até mesmo do desconhecido. Dá um raminho de salsa, empresta um pacote de açúcar, ensina como se faz um refogado, olha para a roupa da vizinha, empurra o carro de quem ficou sem gasolina, tira as medidas a quem passa na obra, assobia como se fosse um herói, arrota como um labrego, coça os tomates só por prazer ou ajusta as mamas para as realçar. É à português.

A alma lusa não se perde no dia a dia. Há toda uma panóplia de gerações que se foram formando no universo nacional e que mostram como se produz a força da união. O tempo das caravelas já lá vai mas o desenrascanço ainda está a funcionar. Há uma vizinha que fica viúva e a do lado faz-lhe a companhia de alívio para chorar. Um homem ficou só na vida e outro, que o conhece bem, leva-o a sair para se distrair. Os anos trazem ombros e braços que se enrolam para a caminhada ser mais leve. É à português.

O português é de lágrimas, de desgraças, de meter a colher onde não deve. Chora pela desgraça alheia e arranca cabelos pela sua, é o primeiro a parar para ver o acidente e dar a sua opinião abalizada e correcta, sabe tudo sobre a vida dos outros mas a sua deixa escapar. Os filhos são os mais lindos e os mais perfeitos mas os outros é que os desencaminham. Nunca os próprios. Elas são puras e atinadas e eles muito inteligentes. Na verdade não há quem tenha defeitos a não ser os outros. É à português.

E, para finalizar, uma breve análise ao Hino Nacional, aquilo que poucos sabem o que significa. Heróis do mar, ou seja, aqueles destemidos e corajosos homens que se lançaram à aventura, ao incerto, num mar, oceano manhoso, cheio de incertezas, numas casquinhas de noz, naqueles embarcações de brincar, nobre povo, quer dizer as gentes que se destacaram, os primeiros numa Europa que ainda estava em eterno conflito, nação valente, superar piratas, corsários, medos, superstições, tempestades, mitos, e imortal, conforme dizia o poeta, " se vai da lei da morte libertando ", fica para sempre.

Agora com mais força ainda, levantai hoje de novo, sim, levantar mas não é o seu lado mais caricato, mais mesquinho e mais facilista. Levantar a fibra e a garra dos que sem medos nem tontices, se lançaram a aventuras que sabiam poder ter um final menos simpático. Pensar dá trabalho, custa muito e até pode fazer mal aos neurónios. Pensar é uma atividade perigosa.

Se os nossos avós, os do hino, fossem vivos, ficavam muito desapontados e desiludidos com os seus descendentes. Não era esta a raça que eles queriam, que eles tinham em mente. Dos fortes não parece haver rasto e os fracos gostam de se afirmar. Na verdade ainda estamos nas brumas mas falta chegar ao esplendor de Portugal. Quando lá chegarmos, quando finalmente estiver atingido esse patamar, então sim, é à português!