Os novos medievais
Margarida Vale
Ser Português, uma arte milenar
- Partilhar 28/01/2022
Vivemos num país tão banhado pelo mar e pelo
sol que até nos esquecemos de quem somos. E
como nos esquecemos é preciso explicar,
dizer quem é o português, aquela criatura
que consegue dar sempre a volta por cima.
Parece complicado mas não apresenta
dificuldade de maior. Querem saber como? É
um mero exercício visual e auditivo que não
necessita de requisitos prévios.
Vejamos:
Alguém tem um acidente grave e
fica praticamente danificado, tetraplégico,
condenado a uma cadeira de rodas. O que é
que se diz? Teve sorte, não morreu. A vida
perde toda a qualidade mas está vivo. Pois,
teve sorte. É à português.
Um estrangeiro dirige-se a um português
e pede-lhe uma indicação. Este não percebe
nada mas isso não tem importância nenhuma.
Puxa do seu linguajar, portugualês e pronto,
já está. Manda-o para um sítio qualquer mas
ele percebeu. Desenrascou-se. É à português.
Joga a selecção nacional, de futebol,
claro está! e todos são patriotas. Sabem
qual é a bandeira nacional, qual é o hino e
ficam todos orgulhosos. Defendem a pátria, o
seu âmago, a alma lusitana. Se alguém deita
o português "abaixo" ficam ofendidos,
respondem à letra e incham o peito. É à
português.
No Algarve, os naturais,
olham para as inglesas, holandesas,
estrangeiras em geral. Dão-lhes duas tretas,
engatam-nas e ficam convencidos que foram
grandes conquistas, pensam eles. São depois
relatos de safaris sexuais, quais autênticas
feras selvagens e indescritíveis, daquilo
que nunca aconteceu. Mas não faz mal.
Inventam. É à português.
Quando uma
mulher vai ao volante, apesar de, regra
geral, ser mais cautelosa e responsável, não
se escapa das piadas típicas do macho
latino. Mesmo que tenha conseguido contornar
um buraco gigante, evitado um acidente grave
e conseguido chegar à hora combinada, tem
sempre de ser rebaixada porque as mulheres
são um perigo ao volante. É à português.
Os meninos andam na escola. Não estudam,
não se aplicam, não querem saber e os pais
só se interessam com os resultados. Saber
não é importante, é irrelevante. Mesmo não
sabendo nada, não tendo tão pouco aberto os
livros nem dado atenção nas aulas nem, muito
menos respeitado os professores, acaba por
passar. O menino é esperto. É à português.
Ainda não chega? É preciso dar mais
exemplos? Não faltam casos curiosos para
relatar onde o homem, macho, sempre macho,
dá a volta por cima porque um latino é
sempre superior a qualquer outro ser humano.
Masculino ainda pode ter comparação mas
feminino nunca. O homem é sempre superior à
mulher. É à português.
O trabalho tem
de ser feito, é necessário apressar, o tempo
está a ficar apertado mas o responsável nem
está para aí virado. Aperta com a equipa,
tudo fica concluído a tempo mas sem
qualidade nem nível. Não tem importância.
Ficou feito, não foi? Está bom. É à
português.
Se as coisas começam a
ficar feias e complicadas no governo, a
crise instala-se e o futuro é negro, o
primeiro ministro pisga-se ou faz-se de
coitadinho. Vai para um lugar seguro,
confortável e com as costas quentes. Quem
fica desculpa-se com os outros. Não assume
nem o falhanço nem a incompetência. É de
homem. É à português.
Curiosamente é
este epíteto, esta palavra que acaba por
justificar tantas e tantas incongruências da
vida. Como é à português, está tudo bem,
está esclarecido. É toda uma apologia do
tanto faz ou está bem assim. Ser e fazer é
totalmente diferente mas, neste caso, acaba
por ser exactamente o mesmo. Ser português é
o mesmo que fazer ou deixar de fazer. É à
português.
Mas o português também
sabe como ser solidário e amigo do seu
vizinho ou até mesmo do desconhecido. Dá um
raminho de salsa, empresta um pacote de
açúcar, ensina como se faz um refogado, olha
para a roupa da vizinha, empurra o carro de
quem ficou sem gasolina, tira as medidas a
quem passa na obra, assobia como se fosse um
herói, arrota como um labrego, coça os
tomates só por prazer ou ajusta as mamas
para as realçar. É à português.
A
alma lusa não se perde no dia a dia. Há toda
uma panóplia de gerações que se foram
formando no universo nacional e que mostram
como se produz a força da união. O tempo das
caravelas já lá vai mas o desenrascanço
ainda está a funcionar. Há uma vizinha que
fica viúva e a do lado faz-lhe a companhia
de alívio para chorar. Um homem ficou só na
vida e outro, que o conhece bem, leva-o a
sair para se distrair. Os anos trazem ombros
e braços que se enrolam para a caminhada ser
mais leve. É à português.
O português
é de lágrimas, de desgraças, de meter a
colher onde não deve. Chora pela desgraça
alheia e arranca cabelos pela sua, é o
primeiro a parar para ver o acidente e dar a
sua opinião abalizada e correcta, sabe tudo
sobre a vida dos outros mas a sua deixa
escapar. Os filhos são os mais lindos e os
mais perfeitos mas os outros é que os
desencaminham. Nunca os próprios. Elas são
puras e atinadas e eles muito inteligentes.
Na verdade não há quem tenha defeitos a não
ser os outros. É à português.
E, para
finalizar, uma breve análise ao Hino
Nacional, aquilo que poucos sabem o que
significa. Heróis do mar, ou seja, aqueles
destemidos e corajosos homens que se
lançaram à aventura, ao incerto, num mar,
oceano manhoso, cheio de incertezas, numas
casquinhas de noz, naqueles embarcações de
brincar, nobre povo, quer dizer as gentes
que se destacaram, os primeiros numa Europa
que ainda estava em eterno conflito, nação
valente, superar piratas, corsários, medos,
superstições, tempestades, mitos, e imortal,
conforme dizia o poeta, " se vai da lei da
morte libertando ", fica para sempre.
Agora com mais força ainda, levantai
hoje de novo, sim, levantar mas não é o seu
lado mais caricato, mais mesquinho e mais
facilista. Levantar a fibra e a garra dos
que sem medos nem tontices, se lançaram a
aventuras que sabiam poder ter um final
menos simpático. Pensar dá trabalho, custa
muito e até pode fazer mal aos neurónios.
Pensar é uma atividade perigosa.
Se
os nossos avós, os do hino, fossem vivos,
ficavam muito desapontados e desiludidos com
os seus descendentes. Não era esta a raça
que eles queriam, que eles tinham em mente.
Dos fortes não parece haver rasto e os
fracos gostam de se afirmar. Na verdade
ainda estamos nas brumas mas falta chegar ao
esplendor de Portugal. Quando lá chegarmos,
quando finalmente estiver atingido esse
patamar, então sim, é à português!
- n.33 • fevereiro 2022