
Os novos medievais
Margarida Vale
Santos Populares
- Partilhar 27/05/2022

Junho tem um sabor especial pois é o mês dos
Santos Populares com festas e arraiais por
todo o país nas noites de Santo António, de
São João e de São Pedro, o que significa
libertação de rotinas e vida ao ar livre com
convívio até às tantas. Não que os santos
façam parte dos comes e bebes, mas por serem
o mote de tempo mais quente e alegria.
Em Lisboa, de 12 para 13 de Junho, dia
de Santo António é a noite mais forte, onde
tudo pode acontecer e as disputas entre os
bairros, os ditos populares, são feitas
através de um desfile na Avenida da
Liberdade que toma o nome de Marchas
Populares. Cada bairro faz o seu trabalho e
os preparativos são levados ao pormenor. Não
é à toa que se caçam padrinhos e madrinhas,
as ditas figuras públicas, para os
representar.
Esta artéria fica cheia
de gentes que querem apoiar os seus amigos e
vizinhos e, como tal, defendem as suas cores
e bairros. A cor é dominante e a música faz
parte do espectáculo que se quer
inesquecível. No final há a marcha que é
escolhida como a mais representativa e vai
dar glória ao bairro que a ganhou. Alfama,
Graça, Bica, Mouraria, Madragoa e tantos
outros, são nomes que vão ficando escritos
com o suor dos seus moradores.
A vida
mora nos bairros, com as conversas de janela
e de portas. Nos largos e vielas medievais,
come-se caldo verde e sardinha assada,
canta-se e dança-se pela noite dentro.
Qualquer tema serve para repartir e
festejar. A genética está impressa nestes
locais. A fé chega com a procissão de Santo
António que sai da sua igreja, no local onde
o santo nasceu, em 1193.
Santo
António tinha fama de casamenteiro e, neste
contexto, os Casamentos de Santo António,
uma forma simpática de haver uma festa para
os casais menos bafejados pelo dinheiro e
patrocinados pela Câmara Municipal, são
outro acontecimento alto desta data. O
desfile dos carros e o copo de água tem
transmissão pela televisão e a festa é para
ser levada muito a sério.
O Porto não
lhe fica atrás e, na noite de 23 para 24 de
Junho, quando se celebra o S. João, a festa
é inesquecível. São festas muito animadas,
em que a população vem para a rua comer,
beber e divertir-se pelas ruas dos bairros
populares, decoradas com arcos, balões
coloridos e manjericos. Como só acontece uma
vez por ano, anseia-se com ardor e paixão
sendo que a energia libertada é potente. É a
noite maior do Porto.
Não lhe falta
cor nem alegria nos bairros mais
tradicionais, como Miragaia, Fontainhas,
Ribeira, Massarelos e outros. Aqui, zona
mais a norte do país, os festejos assumem
outra dimensão e as tradições são outras.
Certos usos e costumes sofrem modernizações
e se, antigamente os foliões batiam com o
alho-porro na cabeça dos companheiros, hoje
usam martelinhos de plástico que, depois de
batidos nas cabeças, ninguém se zanga nem
leva a mal.
Alho porro que
simbolizava o membro masculino, o fálico,
exibido sem qualquer tipo de pudor. Também
havia os ramos de cidreira que as raparigas
passavam na cara dos moços casadoiros ou nem
por isso. Estes seriam símbolos dos pêlos
púbicos femininos e era uma oferta
irrecusável. Fernão Lopes refere-se a esta
festa com alegria. Uma colheita das boas.
Para culminar a festa há um exuberante
fogo-de-artifício, que é lançado à
meia-noite em pleno rio Douro. Os tempos
trazem novidades e também se lançam balões
de ar quente multicores, numa das mais
bonitas celebrações destes festejos
populares. A noite acaba para muitos junto à
praia, para ver nascer o sol ou para um
banho matinal, como manda a tradição.
Esta data é esperada com grande
expectativa não só pelos comerciantes como
também pelos muitos populares que se
orgulham dos seus bairros e fazem questão de
mostrar como cuidam deles com zelo e
carinho. É uma grande noite, de libertação e
o S. João, que é do povo que tanto o
apaparica e cuida, dá sempre o ar da sua
graça. Tristezas não pagam dívidas.
A
29 de Junho é a vez do
São Pedro, outro
santo popular que é celebrado em várias
localidades do país, como Sintra ou
Évora,
cidades Património Mundial. Évora, aliás,
tem a particularidade de celebrar dois
santos populares, pois realiza desde o séc.
XVI a feira de S. João, uma das maiores da
região sul de Portugal, comemorando também o
dia de S. Pedro como feriado municipal.
As zonas ribeirinhas nutrem pelo S.
Pedro um amor tão forte que se perde na
imensidão dos tempos. Os barcos seguem em
procissão e pede-se ao santo que a vida lhes
seja facilitada ou agradece-se todas as
benesses recebidas.O interessante é que a
procissão, no rio, é nocturna e não faltam
fiéis para nela participarem. O religioso e
o profano sempre de mãos dadas e em perfeito
entendimento.
S. Pedro era pescador e
foi o primeiro papa. Foi crucificado em
Roma, de cabeça para baixo, em 64. Negou
conhecer Jesus Cristo, três vezes, como ele
havia afirmado, mas deixou um legado que
ainda hoje é venerado. Não que seja
importante o papado mas por ter sido um
homem do povo, de trabalho e labuta.
Nestas festas resistem, com garra, algumas
práticas ancestrais como saltar a fogueira,
prova dos destemidos e oferecer à namorada
ou namorado, pequenos vasos com manjericos,
acompanhados de quadras escritas, que muitas
vezes falam de amor. Todas estas
festividades têm a sua origem no solstício
de Verão e ainda em antigos rituais de
fertilidade.
Depois de dois anos de
restrições, onde as ditas foram suspensas,
este ano será rijo em todos os sentidos. O
povo precisa de escape para o dia a dia, de
libertar as energias que foram sendo
recalcadas e enxovalhadas, Beber uns copos
de vinho ou de cerveja, com os amigos, é
sinal de alegria e comer umas sandes de
couratos e torresmos ainda dá mais pica para
continuar.
Quanto à sardinha, o peixe
que era rejeitado e apenas comido pelos
pobres, aburguesou-se e ficou tão fino que
nem todos lhe podem chegar. A sardinha
passou a senhora dona e o pilim para a pagar
ficou tão elevado que parece que se trata de
gente fina que gosta de ir ver os
pobrezinhos a brincar.
- n.37 • junho 2022