
Os novos medievais
Margarida Vale
Conhecer a Arte
- Partilhar 29/06/2022

O tema da Arte ainda suscita muitas reacções
diferentes. É bom. É isso que se pretende. É
salutar. Uns gostam e outros não. É
inevitável. Agradar a Gregos e a Troianos é,
de todo, impossível. Mas o que podemos
considerar como arte? O belo, o agradável, o
atractivo, o que apela à emoção, ao
sentimento, o que nos consegue tocar e
despertar algo interior, será isto? É a
transmutação da realidade, o modo como o
artista sente, como pretende imortalizar um
momento ou um acontecimento, a forma pessoal
de sentir. É inato ao homem. Na sua longa
caminhada, desde o aparecimento neste
planeta, o terceiro a contar do Sol, aqui
mesmo, onde estamos, o ser que habita este
local, desde o fim da última glaciação, a de
Wurm, tem mostrado os seus dotes, evoluído e
entrado em mundos paralelos que deliciam
milhões e suscitam pólos opostos de
opiniões.
A descoberta de um osso
gravado, em 1834, na gruta de Chaffaud, vai
dar início a uma nova forma de analisar, não
só a História, como também a arte. O homem
pré-histórico tinha gosto pela arte, nutria
já um conceito de beleza ou simplesmente
obedecia a rituais religiosos e assistia a
cerimónias mágicas? Começam as teorias. Em
Lascaux, o "Caçador Ferido" dá o mote para
um debate que se mantém até aos dias de
hoje. O Paleolítico Superior é o maior
período da história da humanidade que durou
entre 8000 a 400000 anos. É de pensar que se
deram muitas ocorrências. Os registos estão
nas rochas, nas grutas, em locais
escondidos. Eram diários de luta, de fé, de
necessidades. É curioso que o apuro permite
verificar várias raças diferentes de
cavalos, tal é a perfeição. As cores são
fornecidas pela natureza, os ocres roxos e
amarelos, que são pintados com os dedos ou
com pincéis rudimentares, de pêlos de
animais e misturados com sangue e água.
A religião sempre ocupou um lugar de
destaque na vida do Homem. Na época cristã,
no início deste nova e revolucionária
religião, as catacumbas eram locais de
culto, de refúgio e, também, de manifestação
da arte. As paredes são cobertas de frescos
recriando as mensagens bíblicas de Noé, a
arca, Daniel e os leões, bem como Lázaro
saindo vivo do seu sepulcro. As referências
à cruz, símbolo novo, são dissimuladas e
subtis. O ícone maior será a Virgem, mãe de
Jesus Cristo, que representa a pureza, a
perfeição, a ausência de mácula e de pecado.
A alma é feminina sendo uma mulher de braços
entendidos, quando terrena e uma ave, quando
se trata do céu, local de recompensa para
quem pratica boas acções e cumpre os
preceitos estabelecidos.
A Arte
Gótica, que eclode na Idade Média, vai
renovar a visão recolhida e clandestina da
fé. As igrejas Românicas eram pequenas,
grossas, pouco elegantes, escuras e frias.
As góticas enaltecem o amor ao Criador,
tentam tocar o céu, chamar-lhe a atenção.
São dotadas de verticalidade, plenas de luz,
usando novas técnicas, como o arco quebrado,
a abóbada de cruzamento de ogivas, que
suporta um peso muito maior mas mantendo a
leveza da linhas, os arcobotantes,
auxiliares preciosos e as gárgulas, o
aspecto caricato e brincalhão. São pequenos
diabinhos provocadores, que olham os crentes
e os alertam para os perigos. Na verdade
incitam mais do que penalizam, mas este não
era o modo como se pensava na altura. Tinham
um enorme valor documental e pedagógico,
pois era a leitura dos analfabetos, que se
encolhiam com receio dos castigos futuros,
como o inferno.
O Barroco é uma arte
plenamente teatral, que busca o infinito e o
fantástico, cheio de pompa e esplendor. É de
uma ostentação tal que aquilo que não
aparece coberto, o despojado, pode parecer
pecado. O contraste de luz e sombra é
desenvolvido através da emoção, da
afectividade e do misticismo. É a arte dos
sentidos, visual, auditivo e olfactivo. O
efeito da talha dourada, a exuberância, é de
tal forma faustoso, que leva a crer que a
religiosidade e a vida mundana estão no
mesmo patamar, próximas uma da outra e não
num cenário fictício da realidade,
completamente teatral.
O Romantismo
vai mudar tudo. Cria uma ligação entre a
arte, a história e a literatura. Tem o
condão de ser uma corrente muito culta, bem
elaborada, que desenvolve temas como as
questões históricas e literárias, a
mitologia, o retrato, o sonho, as tradições
populares, a vida rural e a paisagem. Dá-se
a exaltação do rural, onde são encontradas
as raízes de um povo, na Idade Média, na
valorização do passado. A arte é inspiração
e criação, interioridade, isolamento da
alma. A luz produz efeitos que permitem a
sugestão, o deambular por aquilo que não é
mostrado mas que, quem vê, percepciona no
seu íntimo.
No início do século XX
surgem as vanguardas. Todas inovadoras,
cheias de energia, revolucionárias, com o
intuito de agitar mentes e uma sociedade que
dormia tranquila e sossegadamente. O
Fauvismo, agressividade e exaltação de cor,
o cubismo, escandalizando tudo e todos,
desmaterializando o clássico e dando uma
visão geometrizante, o abstraccionismo, que
rejeita a realidade concreta, o
expressionismo, pura emoção e subjectivismo,
o futurismo, combatendo a estética do
passado e dando primazia às tecnologias, à
máquina e o surrealismo, a projecção do
inconsciente que se liberta, após a
descoberta da psicanálise, por Freud.
Mas afinal o que é a Arte? A imitação do
real? A expressão do sentimento e de
emoções? A transfiguração da realidade? O
símbolo de algo ou a Arte é uma forma pura?
Durante muito tempo considerou-se que a Arte
consistia na habilidade e perícia na
produção de um determinado objecto. Mais
tarde, distingue-se entre artes liberais e
artes mecânicas. O Renascimento altera
mentalidades e enaltece o papel puro do
artista enquanto produtor de beleza e de bem
estar.
O artista é o génio, o que
está acima de todos. Para Kant existe uma
distinção entre "artes agradáveis" e
"belas-artes". As primeiras têm como
finalidade o gozo e as segundas são mais que
um prazer sensorial porque são um modo de
conhecimento. Posteriormente, as belas-artes
foram catalogadas em pintura, escultura,
música, literatura, dança, arquitectura e
eloquência que acabou por ser destituída
pela arte cinematográfica, a chamada sétima
arte.
A experiência estética só é
possível se houver uma relação
desinteressada pois não é uma atitude nem
prática e muito menos utilitária. O que se
retira do que se vê, é pessoal e não pode
implicar princípios morais nem políticos. Há
que haver um distanciamento psíquico pois o
sentir prazer, ou a sua ausência, pertence a
um outro campo. A arte como imitação do real
é limitante e cinge-se a uma mera cópia. O
artista não representa as coisas que vê, mas
o modo como as vê e imagina.
Cada
obra de arte leva a mundos imaginários ou
fictícios. Esta será uma modalidade
específica de vivência do mundo e da
organização humana. O que o artista cria é
uma transfiguração do real, uma recriação
podendo até parecer que seja impossível. As
portas da imaginação são vastas e largas,
podendo reflectir experiência pessoais, com
interpretações sensíveis e peculiares. Há
todo um enriquecimento que valoriza o que
quer libertar e partilhar. Na verdade é um
símbolo de sentimentos que tendem a elevar o
espírito humano.
Será que todos
entendemos a arte com a mesma sensibilidade
e o mesmo toque? Para uns será suave e doce
mas para outros ainda será rude e dolorosa.
Algumas obras são marcas de tempo, de
acontecimentos que não podem ser apagados e
registam comportamentos e modos de ser que
são antecessores dos actuais. É uma
existência humana crítica que dá a mão a
quem a segue. O escape à rotina pode ser
pacificador.
A experiência estética
exige uma atitude de distanciamento
psíquico. É um exercício bem simples: o
sujeito coloca-se perante o objecto que o
fascina, a sua contemplação como se a sua
personalidade tivesse sido filtrada e ficado
isenta de qualquer preocupação prática. Ser
belo ou feio prende-se com o prazer que se
sente na observação e sentir é o mais
subjetivo que pode existir.
Esfregar
manteiga numa lixa poderá ser uma tarefa
árdua mas escorregar numa casca de banana
continua a ser usual. A forma como cada um
percepciona o que ouve ou vê, é pessoal e
intransmissível, tal com a interpretação do
que lhe é dado ler. Sentir? Sinta quem
quiser.
- n.38 • julho 2022