
Os novos medievais
Margarida Vale
Joana, a Louca
- Partilhar 01/03/2023

Fernando de Aragão e Isabel de Castela
fizeram de Espanha uma potência destinada a
desempenhar um papel fundamental nos anos
vindouros. Pelo casamento, conforme costume
da época, realizaram a união de duas grandes
coroas ibéricas. Completaram a Reconquista
contra os muçulmanos, impuseram ao país um
catolicismo austero com uma feroz
perseguição aos judeus.
É nesta época
que a viagem de Cristovão Colombo se
realiza, já que Isabel o soube ouvir e
acreditar. Esta descoberta, de uma América
que se ansiava, será o prelúdio da
constituição de um novo Império, o hispânico
no Novo Mundo.
No reinado de Joana e
no de seu filho, Carlos V, durante três
décadas, os conquistadores espanhóis criaram
uma nova forma de viver. Providos de cavalos
e de armas de fogo, as tropas de Cortés e de
Pizarro vencem, sem qualquer dificuldade, a
resistência dos Incas, e dos Aztecas. São
desfeitos estes impérios, incluindo o Maia,
para dar lugar a uma sociedade colonial.
O ouro era o mote principal, extraído
das minas de Potosi e de Zacatecas, vem
trazer riqueza à metrópole, permitindo à
monarquia espanhola um poder nunca visto.
No Outono de 1509, Fernando, o Católico,
manda encerrar a sua filha Joana, herdeira
do trono do Castela, no castelo de
Tordesilhas. A pobre e infeliz rainha tem 30
anos e é cognominada la loca. Até à sua
morte, em 1555, todos os actos oficiais
levam o seu nome mas ele nunca sai da sua
prisão.
Segundo consta, pelos
documentos, foram razões de estado que
favoreceram este estatuto. Fernando e depois
Carlos V, filho de Joana, acomodam-se com a
sombra da rainha enclausurada cuja perda da
coroa protelam em declarar. A sua
"melancolia", termo usado para justificar o
terrível acto de encerramento, favorece as
intenções, bem pouco se lhe deseja a cura.
O isolamento agrava a loucura de Joana
que se recusa a lavar e até mesmo a se
lavar. Todavia a rainha conserva-se, aos
olhos do povo, como uma figura tutelar e,
perante os mais fantasistas, um recurso
possível contra o rude poder de Carlos V.
Na verdade nada predestinaria Joana a um
tão sombrio destino. Segunda filha dos reis
católicos, Fernando II de Aragão e Isabel de
Castela, nasce em 1479. A sua beleza tocante,
segundo algumas fontes, recorda a sua avó,
Joana de Portugal, uma vítima de
perturbações mentais. Contudo a infante
revela-se inteligente. Dedica-se à música e
aprende línguas facilmente. Contudo é um
pouco estranha e introvertida, pois é a
única, de entre os irmãos, que não deixa
qualquer tipo de correspondência.
Como qualquer infanta, o seu destino estava
traçado e seria um peão de cariz diplomático
de grande valor. O arquiduque Maximiliano da
Áustria pede-a em casamento para o seu
filho, Filipe, o Belo. Esta união, de enorme
importância na história moderna, prepara o
domínio dos Habsburgos em Espanha e que
perdura até 1715.
Casada por
procuração, em Valladolid, no Verão de 1496,
com dezassete anos vai ter que deixar a sua
família e embarcar para os Países Baixos, ao
encontro do seu esposo, que ainda não
conhece. Ao fim de uma tremenda viagem de
dois meses, Joana desembarca na Zelândia
onde causa grande impacto nos flamengos. A
sua entrada é um momento de glória. Bem
recebida, é aplaudida com entusiasmo.
A lenda conta que os dois esposos se
apaixonaram tão profundamente, um pelo
outro, que não largaram as mãos,
contrariando o protocolo da época. Ele.
Filipe, é um jovem amável, espiritual mas
também um obstinado político. Ela faz valer
os seus direitos de esposa à sucessão de
Espanha. Ora, a herdeira titular é a filha
mais velha, a rainha da Portugal. Fernando e
Isabel inquietam-se com tal atitude tanto
mais que Joana os ignora por completo. Tendo
sido uma solitária, nutre pelo marido uma
enorme paixão enciumada que vive de forma
extrema e dolorosa.
Os dois terão
seis filhos, entre os quais o Imperador
Carlos V e Fernando I. com o passar do
tempo, o comportamento de Joana apresenta
alguns sinais de debilidade mental, o que
inquieta todos os que a rodeiam. Um
emissário vindo de Sevilha observa-lhe uma
perturbação. O que se passa é que Joana se
sente humilhada pela desconfiança dos pais,
pelo comportamento do marido que a trai
desde o início do casamento e que delapida o
seu apanágio.
Desaprova as escolhas
políticas do marido, não vê com bons olhos
que ele, manobrado pelo ouro francês, aceite
em 1499 render homenagem ao novo rei de
França, Luís XII, pela Flandres e o Artois,
províncias que ela considera suas e se sente
lesada. Afinal a sua inteligência e a
capacidade de decisão está a ser colocada em
causa e ridicularizada. Joana sente-se
impotente.
Nesse mesmo ano
desaparece, com D. Manuel, o último herdeiro
em linha directa de Isabel e Fernando. Joana
é chamada a reinar em Castela, Aragão e nas
Índias recentemente descobertas. Os reis
católicos alarmam-se por ver comprometida a
sua obra nas mãos de Filipe, o Belo, a sua
obra de unificação. Este mostra-se
indiferente perante as propostas de França e
de Inglaterra, as vizinhas dos territórios.
O bispo de Toledo sugere que Joana é um mero
e reles instrumento nas mãos de Filipe, o
seu marido.
Joana tenta em vão reter
Filipe em Espanha, cuja austeridade abomina
pois a sua conduta era outra. Desconfiada
das infidelidades de seu marido, Joana vai
ao seu encontro. Outros diriam que não se
queria confinar em Sevilha. Quando se junta
ao marido é uma mulher possessiva, uns
ciúmes doentios e exige ser servida apenas
por criadas mouras.
A morte de Isabel,
a Católica, provoca uma reconciliação
provisória. No seu testamento a rainha pede
aos súbditos para considerarem Joana como a
sua rainha e proprietária dos domínios.
Apesar das reticências de Fernando, o casal
chega a Espanha para tomar posse da herança.
Pelas cortes de 1506, é proclamada rainha.
Uns meses mais tarde Filipe desaparece,
vítima de um resfriado. Joana afunda-se numa
escuridão estranha e muito profunda. Não
aceita a morte do marido e recusa-se a
abandonar o caixão tanto que manda
embalsamar o corpo. Deixa de tomar decisões
políticas, o que fica nas mãos do seu pai,
Fernando, que estava em Nápoles, regressa
para assegurar a regência, de modo triunfal.
É então que manda enclausurar Joana no
castelo de Tordesilhas, onde se instalara
perto da capela funerária do seu marido.
Contudo Joana é uma mulher apetecível pelo
seu património. Henrique VII de Inglaterra
pede-a em casamento e trocam-se
embaixadores. Os espanhóis assustam-se pois
entendem que a rainha está a ser alvo de
manipulação. Os opositores fazem recair nela
todas as esperanças e assim, dão corpo ao
mito que se cria.
Durante as
perturbações que se seguem à morte de
Fernando, os comuneros, que recusam o poder
de Carlos V, conseguem uma entrevista com
Joana, em 1520. Pedem-lhe para exercer as
prerrogativas reais. Contudo em 1521, os
rebeldes são destroçados e Joana não voltará
a sair da sua solidão. Com o passar dos
tempos acaba por perder a razão e fica
completamente perdida. O mito ficou e ela
morreu em 1555, esquecida por todos.
Certos amores são tão destruidores que
transformam quem os sente. Joana, a mulher
cheia de capacidades, ficará para a História
do mundo como alguém incapaz e que termina
os seus dias sem noção da realidade e
convencida de que estava num tempo que já
não existia.
- n.46 • março 2023