
Os novos medievais
Margarida Vale
Os Caretos
- Partilhar 24/02/2022
Quando se fala em Carnaval, associam-se as
máscaras e a liberdade de se viverem uns
dias em que tudo é permitido. Das
variadíssimas manifestações que o nosso país
possui, merece particular importância a
festa que se realiza em Podence, cujos
figurantes estão, simbolicamente, ligados ao
espírito do mal. Para tal, os trajes
coloridos e as máscaras, faziam com que
todos se assustassem e levassem a sério as
superstições, que passavam de geração em
geração.
Aqui, a encenação meramente
pagã, levada a sério, está ligada às antigas
festas dos Romanos, as Lupercais, efectuadas
no dia 15 de Fevereiro, segundo uns, em
louvor a Pã, o deus dos rebanhos, dos
pastores e dos cabaneiros. Havia ainda quem
falasse em fertilidade que, nas terras frias
de Trás os Montes, era desejada como pão
para a boca. Outro aludiam a Luperco, deus
pastoril dos rebanhos e a protecção seria
contra os lobos.
O importante, na
Roma Antiga, seria o desfile pelas ruas,
onde grupos de homens semi nus, fustigavam
com peles de cabra, as mulheres que se
cruzavam no seu caminho, num ritual
punitivo, pretendendo mostrar que ficariam
fecundadas. Roma Antiga e Podence podem ser
muito afastadas, em tempo e geografia, mas
as ideias são semelhantes e a mensagem
passou.
O ritual perpetua-se de
domingo a terça feira de Carnaval graças à
actuação dos caretos que, percorrendo as
ruas, vestidos de forma colorida e tapados
para não serem reconhecidos, circulam pelas
ruas atrás das raparigas e das mulheres,
para as abraçar. Aqui o gesto toma o nome de
chocalhar pois é feito lateralmente e com
movimentos rápidos de semi rotação da
cintura. Como carregam chocalhos na cinta,
batem-lhes nas nádegas que acabam por
funcionar como verdadeiros chicotes.
Algumas moças, solteiras e casadoiras, ficam
de tal forma marcadas, que as nódoas negras
são indícios da sua procura e prestígio. Os
risos não faltam nem os gritos que se ouvem
na suposta perseguição. É uma festa que
mostra a pureza de sentimentos e a vontade
de se fazer a corte à moda ancestral. Os
papéis estão bem estudados e a alegria é
geral. Na manhã de domingo e na de terça
feira, era vê-los à solta em plena
perseguição. Depois passou para a parte da
tarde e prolonga-se pela tarde toda.
Os caretos são as figuras principais da
festa, os seres quase fantásticos destes
rituais lúdicos e pagãos, que passam de pais
para filhos e que se tornam uma forma de
união entre todos. Associados à ideia de um
espírito do mal, um mistério que fazia todos
tremerem, a forças sobrenaturais e ocultas,
a curandeiros e bruxos ou qualquer poder
diabólico, encarnam o próprio diabo,
Satanás, mas auferem de total imunidade
durante estes dias.
Tempos houve em
que eram a representação da justiça pois
faziam-na pelas suas próprias mãos, o que
deixa de acontecer durante o período do
Carnaval em que se transmutam e passam a ser
temidos e assustadores, situados num patamar
superior ao dos simples mortais. Os seus
comportamentos atrevidos e até mesmo
provocatórios, são agora olhados com
bonomia, o que não aconteceu durante épocas
anteriores.
Num escrito antigo é
mencionado que o careto podia levantar as
saias às raparigas, sendo que estas se
defendiam como podiam e não tinham o direito
de se considerarem ofendidas, mesmo que não
estivessem de acordo com aquele tipo de
brincadeira. Ainda assim, não podiam pedir
satisfações e, por isso, teriam que seguir
em frente sem saber quem as estava a
assediar. Antes, elas preferiam ficar em
casa mas, com o passar dos tempos,
afoitam-se e até são elas que os provocam.
Os Mafarricos trepam terraços e muros,
sobem a telhados, saltam portões, entram
pelas portas e janelas, podendo até mesmo as
arrombar, sem pedir qualquer tipo de licença
a ninguém. O que querem é chegar às moças
para que elas fiquem chocalhadas. Onde quer
que estejam, há algazarra pois só sabem
comunicar aos gritos, numa linguagem que só
eles conhecem. Podem até mesmo roubar peças
de vestuário ou de adornos e ainda apalpar
as moças, uma vez que gozam de imunidade.
As vestes usadas compõem-se de calças,
casacos com gorros e capuz, que são
confeccionados com lã ou linho, cobertos com
franjas de várias cores e com um rabo
comprido. Como adornos têm um cinto de
chocalhos, a chamada bandoleira, que são
duas grandes campaínhas sobre o peito e
ainda um pau ou uma bengala. A máscara de
latão ou de folha da flandres, é vermelha ou
negra e tem ainda um nariz a três aberturas,
que são para os olhos e a boca.
Carnaval é tempo de libertação, de soltar
demónios e de tudo permitir. A tão badalada
expressão " É Carnaval, ninguém leva a mal
", aplica-se em toda a sua forma. Podence é
apenas um exemplo do que se pode encontrar
pelo nosso país, um manancial de costumes e
alegrias que são património de todos e deve
ser partilhado. Apesar de ser um país
pequeno, as diferenças que se encontram são
enormes e fazem todo o sentido, pois a
geografia acaba por ser uma condicionante.
Torres Vedras pode ser a terra do
Carnaval por excelência mas tem um outro
aspecto a ser considerado. Por aqui são as
Matrafonas, os homens que tiram estes dias
para se fazerem passar por mulheres mas
mantendo todas as suas características
originais, o que lhes imprime uma maior
riqueza. Claro que o resultado é de
espalhafato e de muita alegria, aquilo que
verdadeiramente se pretende. A crítica
social está implícita e não há inocentes e
muito menos santos. Todos são visados.
A sociedade moderna tende a apagar estas
tão brilhantes marcas populares. É
lamentável que assim seja. Este é o nosso
passado, os passos que os antigos deram e
legaram às gerações vindouras. Podence fica
longe da capital, numa terra fria e cheia de
montanhas. O calor que une os seus
habitantes é que não se perde. Se cada um
fizer a sua parte, conseguir manter viva a
memória do que vale a pena, certamente que
nada se perderá e a riqueza do que fica é um
tesouro que todos vão querer guardar.

- n.34 • março 2022