Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Guilherme, o conquistador

Em 1066, o exército de Guilherme, duque da Normandia, um bastardo cheio de raiva, lança-se na sua última invasão em Inglaterra. A guerra não é entre os dois povos, os Normandos contra os Anglo Saxões, já que a situação é mais poderosa pois o que está em causa é o trono. O dito da altura refere que opõe três vikings, mais concretamente o partido normando de Guilherme, o partido anglo-dinamarquês de Haroldo e ainda os noruegueses que foram atraídos pelo irmão de Haroldo, Tostig, aliado de Guilherme umas vezes e agindo por conta própria nas outras.

A região designada por Normandia, terra dos homens do norte, surgiu em 911, através do tratado entre o rei da Frância Ocidental, Carlos III, o Simples e Rollon, o chefe viking. Os termos acordados explicam que é atribuído domínio aos vikings mediante o compromisso de não voltarem a fazer raides contra o território de Carlos. Para selar o acordo, a filha de Carlos é dada em casamento a Rollon que acaba por se converter ao cristianismo, O principado, que passa a ducado, vai sendo acrescentado com os seus legatários, duques Guilherme Espada Longa e Ricardo que afirmam o seu poder sem dar qualquer satisfação ao soberano. O herdeiro, Guilherme, o Bastardo, ultrapassa esses limites e entra num outro patamar de ascensão da linhagem, tornando-se, mais tarde, senhor da Inglaterra.

Nascido por volta de 1027, Guilherme é filho natural do duque Roberto, o Diabo. De figura um pouco caricata, gordo, calvo e dotado de uma força extraordinária, dominava com alguma clareza, há 31 anos, a Normandia mesmo que usasse o braço de ferro quando necessário. É neste contexto que parte para a conquista de Inglaterra. Dotado de uma limpa diplomacia, mantém boas relações com o rei de Frância e com o Papa, vendo nele um excelente aliado. É um estandarte enviado pelo papa que Guilherme fará flutuar em Hastings.

A decisão de intervir é tomada em virtude da crise da sucessão em Inglaterra. Conquistada no século V por germânicos, anglos e saxões e, mais tarde, cristianizada, entre os séculos VI e VIII, a ilha permanece, no século IX, um território retalhado e muito cobiçado. O rei da Dinamarca, Canuto,o Grande, dominou-o entre 1017 e 1035 mas a independência é retomada em 1045 para Eduardo, o Confessor, um anglo-saxão. A sua morte, sem filho varão, dá início à guerra com dois candidatos, Haroldo, o seu cunhado, do partido saxão e Guilherme, duque da Normandia e primo do falecido.

O duque afirma os seus pergaminhos hereditários, sendo ele descendente de Ricardo e que o soberano o terá designado como sucessor, em 1051, tendo, em 1064, Haroldo reconhecido esta decisão. É este dito, ou tese, que servirá de mote para apresentar a invasão como um acto de defesa dos seus direitos legítimos. Certamente que os nobres se encontravam em desacordo mas a luta era promissória e as armas estavam em riste para o que pudesse vir a favor dos que se consideravam em direito pleno.

A operação é uma das grandes empresas de pirataria normanda. A amplitude e a logística foram excepcionais para a época. Guerreiros bretões, franceses, do Mans, do sul da Itália, envolvem-se na luta reforçando o grupo. Esta parceria não era desinteressada pois visava algum lucro e o estabelecimento nesse tão desejado território. Assim, reúnem-se cerca de 7000 homens, sendo uns 2000 cavaleiros, mas ainda faltam os barcos para os transportar, o que não foi complicado ao ducado pois fortuna não lhe faltava.

A frota é reunida no estuário do Drives mas a falta de vento não os impele até à ilha de Wight onde estava previsto o desembarque. Dirigem-se para o estuário do Soma. Na noite de 28 de Setembro de 1066, pôde ser aparelhada e, no dia seguinte, o desembarque é feito em Pevensey, ficando nas proximidades de Hastings. A floresta serve de camuflagem e dá segurança. Entre ditos e outras desavenças, a 25, após uma marcha forçada, esmaga os invasores, perto de York.

A 14 de Outubro, Haroldo escolhe o terreno e coloca a sua infantaria, armada com machados, na colina.Os archeiros têm dificuldade em atravessar esta dura muralha humana mas, depois de simularem uma fuga, que acaba por gerar o pânico, a contenda acende-se. No meio da refrega e da confusão, a flecha de um archeiro de Guilherme atinge o olho de Haroldo que sucumbe, ferido de morte. Sem o chefe e qualquer orientação, os saxões abandonam o campo de batalha sem conseguirem evitar um banho de sangue.

Guilherme perdeu o seu rival e submete Dover e Cantuária, ladeando Londres. No dia 25 de Dezembro de 1066, em Westminster, faz-se sagrar rei. O que se seguiu não foi fácil e controlar dois estados, à falta de um vice-rei, será um enorme desafio que leva a revoltas e reviravoltas para conquistar o norte, até à Escócia, em 1074. Os normandos ocupam todos os cargos relegando os saxões para planos inferiores. Passa a usar-se o latim na administração e o francês na corte. O regime senhorial foi poderoso e opressivo, um feudalismo que deixou marcas profundas e pouco simpáticas.

A história inglesa começa no século V com a instalação, na Bretanha insular, de um povo germânico, os Anglo-Saxões. Assimilam os antigos ocupantes, colonizam o país e mudam-lhe o nome, England, terra dos Anglos. Organizam-se em sete reinos rivais que se foram cristianizando. Cerca de 795 começam as primeiras intrusões escandinavas, que se transformam, nos séculos IX e XI, em vagas de conquista, que alteram todo o conteúdo e equilíbrio demográfico, cultural e político. Canuto, o Grande, consegue a unificação que se vai fundir numa única dinastia dinamarquesa. Esta terá um fim caótico, o que permitiu a Guilherme tomar as rédeas da luta.

Com um passado tão turbulento e cheio de imprevistos e contendas entre as famílias, não é de admirar que a questão mais recente, o Brexit, tenha sido um arremeçar de pedras para atingir alvos que nem se sabe quais são. Gente que mostrou dureza e luta mas, em simultâneo, muita indecisão. O falado espírito britânico mais moderno, fleumático, pode ser o resultado de tantas bulhas e contendas e que, no final, ficou tudo na mesma.