Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

Lucrécia Bórgia

O nome Bórgia está ligado a Roma, de onde a família é originária e à história da igreja, à qual forneceu dois papas: Alonso Bórgia, eleito sob o nome de Calisto III e Rodrigo Lançol e Bórgia, ou seja, Alexandre VI e ainda um santo, Francisco de Bórgia.

Com dois filhos bastardos de Alexandre, César e Lucrécia, os Bórgias, um nome inconfundível, participaram activamente na vida política e religiosa da península, envolvida nos tormento das guerras da Itália e da Reforma Luterana. Francisco, foi vice-rei da Catalunha antes de ingressar na ordem jesuíta e se tornar o seu geral, serviu Carlos V e militou na Contra-Reforma católica.

Alexandre VI, Bórgia de nascimento, é o exemplo de uma grande senhor libertino tornado papa por mera promoção familiar. Sobrinho de Calisto III, é eleito para o mais alto cargo da igreja sem nada mudar mo seu modo de vida e, mais em particular, sem romper a ligação profunda que tinha com a sua amante Vanozza Catanei. Enquanto pontífice, mostra-se um hábil homem de estado, mas nunca um pastor.

Depois dele, Júlio II e Leão X, levam vidas menos dissolutas. Contudo a sua acção mais política e o seu papel de mecenas faustosos, como a construção de S. Pedro, o embelezamento do Vaticano e as muitas colecções, fazem-nos parecer, de novo, mais como soberanos temporais do que modelos de fé.

Durante todo o dia 4 de Fevereiro de 1501, os canhões do Castelo de Sant' Ângelo, em Roma, não pararam de troar. A filha natural do papa Alexandre VI, um Bórgia, acabara de desposar o herdeiro do ducado de Ferrara, tendo, assim, ingressado, por meio de um dote muito generoso, numa das mais importantes famílias de Itália. Tem 21 anos e Afonso é o seu terceiro marido.

O primeiro foi afastado por seu pai, o segundo assassinado pelo seu irmão. Se ela teve algum papel nestes desfechos, a verdade é que nunca se saberá mas a fama , a reputação explosiva, será uma autêntica perseguição.

Alexandre VI é ainda o cardeal Rodrigo Bórgia quando, em 1480, a sua favorita, Vanozza Catanei traz Lucrécia ao mundo. Eclesiástico muito sensual, já tem filhos de outras ligações e Vanozza ainda lhe dará três rapazes, César, João e Jofre. Antes da Contra-Reforma, e este terá sido um dos motivos para o clamor dos descontentes, os prelados levavam uma vida de grandes senhores, sem nada de humildade, sendo que a situação de Rodrigo muito comum. Raro é o facto de continuar a procriar e ter uma verdadeira paixão pela sua progenitura.

Doze anos após o nascimento de Lucrécia, em 1492, Rodrigo torna-se Papa sob o nome de Alexandre VI. Instala a família num palácio contíguo ao do Vaticano, Santa Maria in Portico. Além de Lucrécia e de Vanozza, vivem ainda no aplácio a sumptuosa Júlia Farnésio, a sua nova comcubina e a mãe desta, Adriana de Milão. Lucrécia vive feliz com estes três mulheres que a cuidam com amor e carinho,

Os mais altos dignatários, cardeais ou embaixadores, vêm submeter as suas petições às mulheres do Papa, mesmo que todos façam olhos de não querer saber ou ver. A expressão foi citada por Savanarola, o que clama, de forma violenta, em Florença, contra os muitos pecados do chefe da igreja.

Alexandre ama a filha e preocupa-se em lhe arranjar um bom casamento. Tem apenas treze anos mas é um bom partido, sobretudo por ser uma rapariga bem atraente. A sua beleza tornar-se-á célebre pois as pinturas retratam-na com um corpo esguio, longos cabelos que tem a ousadia de soltar ao vento, o que vai contra todas as convenções e olhos de um azul sombrio.

Como se tal não bastasse, o seu dote, muito generoso, ainda inclui dinheiro e benefícios eclesiásticos, o que parece ter sido o maior chamariz de todos. Ser da família do Papa é um privilégio que poucos podem conseguir,

O marido escolhido é João, conde de Pesaro, um membro de uma poderosa casa dos Sforza, senhora do Ducado de Milão. O papa, em breve, entende ter sido uma má escolha, já que o conde não tem qualquer hipótese de vir, algum dia, a herdar o Ducado. Além disso novas circunstâncias políticas tornam esta união complicada.

As guerras de Itália começaram, o rei de França, aliado dos Sforza, parte em conquista do reino de Nápoles, dependência de Aragão. O Papa não pode, de forma alguma, aceitar que os territórios que controla, no centro de Itália, fiquem entalados entre potências aliadas entre si, defende os Aragoneses. Os Sforza, conscientes da situação, fazem correr o boato de que o Papa está disposto a assassinar Pesaro, com a conivência de Lucrécia.

É assim, com este episódio que Lucrécia vai ganhando fama de envenenadora, de mulher de mau carácter, de assassina sem pinga de emoção. Alexandre, para libertar a filha, tem um meio mais simples do que o veneno, a dissolução do casamento.

Intimado a reconhecer que não consumou a união, João Sforza deixa entender que o Papa quer a filha de volta para ser bel prazer, um incesto depravado. É a ternura do pai pela filha que está em causa e corre toda a Itália. Um boato que cresceu de forma descontrolada e carregado de ódio de repúdio.

Estas horríveis calúnias, que teriam como missão denegrir e rebaixar a imagem de Lucrécia, não impedem o aparecimento de inúmeros pretendentes que aspiram à mão da jovem, para assim obterem favores do Papa. César Bórgia, irmão de Lucrécia e o braço temporal do pai, comanda os seus exércitos e aspira a uma união com o reino de Nápoles.

A ideia será uma união com Afonso de Biscèglie, filho bastardo do soberano. As bodas são celebradas em 1497. Contudo é o próprio César que, em 1500, após outras tomadas de decisão, assassina friamente o jovem marido. Lucrécia nada tem a ver com assunto mas toda a Itália a aponta como culpada. A jovem, a quem ninguém pede opinião, volta a casar um ano depois.

O novo eleito é o Duque de Ferrara. Como Lucrécia já não é uma menina, o pai decide confiar-lhe responsabilidades. Aos 19 anos nomeia-a governadora de Spoleto, alto cargo até essa altura, reservado aos prelados. Lucrécia sabe como governar e organiza um corpo de polícia ou ainda tem a capacidade de impor tréguas à cidade vizinha.

Em 1501, durante algumas semanas, é encarregada de dirigir a igreja enquanto o Papa visita os seus territórios. Instaladas nos aposentos pontifícios, trata de assuntos correntes e abre o correio oficial. Contudo é no papel de Duquesa de Ferrara, um principado muito próspero às portas e Veneza, que Lucrécia atinge a sua verdadeira dimensão.

Acolhida inicialmente com alguma suspeição, em breve irá conquistar todos os seus súbditos pela constância que coloca na governação. Leva para o ducado poetas, como Pietro Aretino e outros que possam divulgar a sua poesia e assim enaltecer a cultura da época. Faz do ducado um local de conhecimento,

À morte do Papa, em 1503, retoma o grande sonho dos Bórgias de constituir um Estado territorial na Itália central e converter-se em auxiliar do seu irmão César, recrutando tropas para ele. O novo Papa, Júlio II, odiando os Bórgias, desencadeia inúmeras hostilidades contra o Duque de Ferrara, em 1509, que, contra ela, permanece fiel ao rei de França.

Como outrora, Lucrécia, na ausência do marido retido pela guerra, toma em mãos os assuntos de Estado e prossegue a resistência até à morte de Júlio II, em 1513. É provável que houvesse aqui uma conotação religiosa pois em 1519, no ano da sua morte, a Duquesa, a filha do chefe da igreja católica, converte-se à Reforma, proclamada apenas dois anos antes pelo ex-monge Lutero.

Esta mulher, que conhece como ninguém os costumes da Igreja romana, vai pelo campo dos que a querem transformar. Na verdade é uma atitude lógica e consistente pois estava ciente de que os princípios não eram cumpridos. No entanto a historiografia católica não lho perdoará: os horrores que lhe são atribuídos pelos contemporâneos, serão repetidos ao longo dos tempos por gerações de autores.

Uma mulher não tinha o direito de ser inteligente nem independente. Caso o fosse e demonstrasse, como foi o caso de Lucrécia, caíam sobre elas, os maiores insultos e calúnias. Todas as humilhações que sofreu, não tendo sido poucas, não a demoveram dos seus intentos nem de provar a sua garra única.