
Os novos medievais
Margarida Vale
Lucrécia Bórgia
- Partilhar 31/01/2023

O nome Bórgia está ligado a Roma, de onde a
família é originária e à história da igreja,
à qual forneceu dois papas: Alonso Bórgia,
eleito sob o nome de Calisto III e Rodrigo
Lançol e Bórgia, ou seja, Alexandre VI e
ainda um santo, Francisco de Bórgia.
Com dois filhos bastardos de Alexandre,
César e Lucrécia, os Bórgias, um nome
inconfundível, participaram activamente na
vida política e religiosa da península,
envolvida nos tormento das guerras da Itália
e da Reforma Luterana. Francisco, foi
vice-rei da Catalunha antes de ingressar na
ordem jesuíta e se tornar o seu geral,
serviu Carlos V e militou na Contra-Reforma
católica.
Alexandre VI, Bórgia de
nascimento, é o exemplo de uma grande senhor
libertino tornado papa por mera promoção
familiar. Sobrinho de Calisto III, é eleito
para o mais alto cargo da igreja sem nada
mudar mo seu modo de vida e, mais em
particular, sem romper a ligação profunda
que tinha com a sua amante Vanozza Catanei.
Enquanto pontífice, mostra-se um hábil homem
de estado, mas nunca um pastor.
Depois dele, Júlio II e Leão X, levam vidas
menos dissolutas. Contudo a sua acção mais
política e o seu papel de mecenas faustosos,
como a construção de S. Pedro, o
embelezamento do Vaticano e as muitas
colecções, fazem-nos parecer, de novo, mais
como soberanos temporais do que modelos de
fé.
Durante todo o dia 4 de Fevereiro
de 1501, os canhões do Castelo de Sant'
Ângelo, em Roma, não pararam de troar. A
filha natural do papa Alexandre VI, um
Bórgia, acabara de desposar o herdeiro do
ducado de Ferrara, tendo, assim, ingressado,
por meio de um dote muito generoso, numa das
mais importantes famílias de Itália. Tem 21
anos e Afonso é o seu terceiro marido.
O primeiro foi afastado por seu pai, o
segundo assassinado pelo seu irmão. Se ela
teve algum papel nestes desfechos, a verdade
é que nunca se saberá mas a fama , a
reputação explosiva, será uma autêntica
perseguição.
Alexandre VI é ainda o
cardeal Rodrigo Bórgia quando, em 1480, a
sua favorita, Vanozza Catanei traz Lucrécia
ao mundo. Eclesiástico muito sensual, já tem
filhos de outras ligações e Vanozza ainda
lhe dará três rapazes, César, João e Jofre.
Antes da Contra-Reforma, e este terá sido um
dos motivos para o clamor dos descontentes,
os prelados levavam uma vida de grandes
senhores, sem nada de humildade, sendo que a
situação de Rodrigo muito comum. Raro é o
facto de continuar a procriar e ter uma
verdadeira paixão pela sua progenitura.
Doze anos após o nascimento de Lucrécia,
em 1492, Rodrigo torna-se Papa sob o nome de
Alexandre VI. Instala a família num palácio
contíguo ao do Vaticano, Santa Maria in
Portico. Além de Lucrécia e de Vanozza,
vivem ainda no aplácio a sumptuosa Júlia
Farnésio, a sua nova comcubina e a mãe
desta, Adriana de Milão. Lucrécia vive feliz
com estes três mulheres que a cuidam com
amor e carinho,
Os mais altos
dignatários, cardeais ou embaixadores, vêm
submeter as suas petições às mulheres do
Papa, mesmo que todos façam olhos de não
querer saber ou ver. A expressão foi citada
por Savanarola, o que clama, de forma
violenta, em Florença, contra os muitos
pecados do chefe da igreja.
Alexandre
ama a filha e preocupa-se em lhe arranjar um
bom casamento. Tem apenas treze anos mas é
um bom partido, sobretudo por ser uma
rapariga bem atraente. A sua beleza
tornar-se-á célebre pois as pinturas
retratam-na com um corpo esguio, longos
cabelos que tem a ousadia de soltar ao
vento, o que vai contra todas as convenções
e olhos de um azul sombrio.
Como se
tal não bastasse, o seu dote, muito
generoso, ainda inclui dinheiro e benefícios
eclesiásticos, o que parece ter sido o maior
chamariz de todos. Ser da família do Papa é
um privilégio que poucos podem conseguir,
O marido escolhido é João, conde de
Pesaro, um membro de uma poderosa casa dos
Sforza, senhora do Ducado de Milão. O papa,
em breve, entende ter sido uma má escolha,
já que o conde não tem qualquer hipótese de
vir, algum dia, a herdar o Ducado. Além
disso novas circunstâncias políticas tornam
esta união complicada.
As guerras de
Itália começaram, o rei de França, aliado
dos Sforza, parte em conquista do reino de
Nápoles, dependência de Aragão. O Papa não
pode, de forma alguma, aceitar que os
territórios que controla, no centro de
Itália, fiquem entalados entre potências
aliadas entre si, defende os Aragoneses. Os
Sforza, conscientes da situação, fazem
correr o boato de que o Papa está disposto a
assassinar Pesaro, com a conivência de
Lucrécia.
É assim, com este episódio
que Lucrécia vai ganhando fama de
envenenadora, de mulher de mau carácter, de
assassina sem pinga de emoção. Alexandre,
para libertar a filha, tem um meio mais
simples do que o veneno, a dissolução do
casamento.
Intimado a reconhecer que
não consumou a união, João Sforza deixa
entender que o Papa quer a filha de volta
para ser bel prazer, um incesto depravado. É
a ternura do pai pela filha que está em
causa e corre toda a Itália. Um boato que
cresceu de forma descontrolada e carregado
de ódio de repúdio.
Estas horríveis
calúnias, que teriam como missão denegrir e
rebaixar a imagem de Lucrécia, não impedem o
aparecimento de inúmeros pretendentes que
aspiram à mão da jovem, para assim obterem
favores do Papa. César Bórgia, irmão de
Lucrécia e o braço temporal do pai, comanda
os seus exércitos e aspira a uma união com o
reino de Nápoles.
A ideia será uma
união com Afonso de Biscèglie, filho
bastardo do soberano. As bodas são
celebradas em 1497. Contudo é o próprio
César que, em 1500, após outras tomadas de
decisão, assassina friamente o jovem marido.
Lucrécia nada tem a ver com assunto mas toda
a Itália a aponta como culpada. A jovem, a
quem ninguém pede opinião, volta a casar um
ano depois.
O novo eleito é o Duque
de Ferrara. Como Lucrécia já não é uma
menina, o pai decide confiar-lhe
responsabilidades. Aos 19 anos nomeia-a
governadora de Spoleto, alto cargo até essa
altura, reservado aos prelados. Lucrécia
sabe como governar e organiza um corpo de
polícia ou ainda tem a capacidade de impor
tréguas à cidade vizinha.
Em 1501,
durante algumas semanas, é encarregada de
dirigir a igreja enquanto o Papa visita os
seus territórios. Instaladas nos aposentos
pontifícios, trata de assuntos correntes e
abre o correio oficial. Contudo é no papel
de Duquesa de Ferrara, um principado muito
próspero às portas e Veneza, que Lucrécia
atinge a sua verdadeira dimensão.
Acolhida inicialmente com alguma suspeição,
em breve irá conquistar todos os seus
súbditos pela constância que coloca na
governação. Leva para o ducado poetas, como
Pietro Aretino e outros que possam divulgar
a sua poesia e assim enaltecer a cultura da
época. Faz do ducado um local de
conhecimento,
À morte do Papa, em
1503, retoma o grande sonho dos Bórgias de
constituir um Estado territorial na Itália
central e converter-se em auxiliar do seu
irmão César, recrutando tropas para ele. O
novo Papa, Júlio II, odiando os Bórgias,
desencadeia inúmeras hostilidades contra o
Duque de Ferrara, em 1509, que, contra ela,
permanece fiel ao rei de França.
Como
outrora, Lucrécia, na ausência do marido
retido pela guerra, toma em mãos os assuntos
de Estado e prossegue a resistência até à
morte de Júlio II, em 1513. É provável que
houvesse aqui uma conotação religiosa pois
em 1519, no ano da sua morte, a Duquesa, a
filha do chefe da igreja católica,
converte-se à Reforma, proclamada apenas
dois anos antes pelo ex-monge Lutero.
Esta mulher, que conhece como ninguém os
costumes da Igreja romana, vai pelo campo
dos que a querem transformar. Na verdade é
uma atitude lógica e consistente pois estava
ciente de que os princípios não eram
cumpridos. No entanto a historiografia
católica não lho perdoará: os horrores que
lhe são atribuídos pelos contemporâneos,
serão repetidos ao longo dos tempos por
gerações de autores.
Uma mulher não
tinha o direito de ser inteligente nem
independente. Caso o fosse e demonstrasse,
como foi o caso de Lucrécia, caíam sobre
elas, os maiores insultos e calúnias. Todas
as humilhações que sofreu, não tendo sido
poucas, não a demoveram dos seus intentos
nem de provar a sua garra única.
- n.45 • fevereiro 2023