Margarida Vale

Os novos medievais

Margarida Vale

A ponte de Londres caiu

O dia 8 de Setembro de 2022 abana o mundo. Isabel, Lilibet, a rainha com o mais longo reinado de Inglaterra, largou o mundo dos vivos para se posicionar num outro patamar, bem mais confortável onde as perturbações são nulas, chegou à eternidade.

Elisabeth Alexandra Mary, abriu os olhos no dia 21 de Abril de 1926, uma bebé que assegurava a descendência dos Duques de Iorque. Uma vida simples que nada teria de vulgar mas que acabou por ser abalroada pelos acontecimentos mundiais. Tornou-se a mulher mais mediática do século XX e XXI. Uma aura que não se evapora.

Não estando na linha de sucessão ao trono nos lugares cimeiros, o seu futuro seria afastado das luzes da ribalta. Contudo a sua educação foi especial, em casa, com uma selecção rigorosa de docentes. Causas exógenas levam o seu pai ao trono e a sua precoce morte, coloca-a nos domínios reais, com apenas vinte e cinco anos.

Cerca de vinte milhões de pessoas assistiram à sua coroação, uma cerimónia comentada anos e anos, por quem assistiu. O seu vestido tinha bordado todos os símbolos que ela representava e estimava. Philip, o seu marido perde todo o protagonismo provando que o amor que os unia era sincero e muito sólido. Uma postura que chocou o protocolo, casar por amor.

Quinze primeiros ministros serviram durante os seus setenta anos de reinado, sendo que uns foram mais mediáticos que outros. Winston Churchill e Margaret Thatcher terão sido os que maior rasto deixaram por razões bem diferentes. A todos recebeu com a mesma classe e educação.

Privou com sete papas, em épocas diferentes e nunca perdeu o sentido de estado, em que foi exímia e exemplar. Ela era a que tinha nas mãos um rol de países e nunca vergou. O mundo girava e Isabel avançava segura na marcha. Enviou o seu primeiro e-mail em 1976, provando que estava com atenção para as novidades, as tecnologias.

Era a única pessoa que estava autorizada a conduzir sem a respectiva carta de condução, o que fazia quando conseguia escapar à fria rigidez do protocolo do palácio.Talvez sentisse alguma tristeza por ver a casa onde tinha nascido, em Mayfair, transformada num restaurante. As raízes nunca se esquecem.

Aos seis anos já tinha casa própria, a Little Cottage, um privilégio único. Nunca deixou de ser adepta do Arsenal e, contrariamente ao que se ventilava, Isabel admirava Diana, por quem tinha um enorme respeito. O seu estatuto não lhe permitia emoções vulgares. Talvez os ingleses não a tivessem perdoado por ser rainha e não mulher.

A coroa real pesa cinco quilos, um peso nada fácil de suportar, tal como o ano de 1992, o que apelidou de Annus Horribilis. Além do divórcio de três dos seus filhos, Ana, André e Carlos, um incêndio devasta o palácio de Windsor e, como se não bastasse todas estas terríveis ocorrências, uma grave crise económica assola o seu reino tomando a corajosa decisão de pagar impostos, de que toda a família estava isenta.

Por ser monarca foi presenteada com animais exóticos, um elefante, uma onça, tartarugas gigantes e ainda preguiças, que se encontram no jardim zoológico de Londres para que possam ser apreciados por todos. Os cavalos eram um dos seus escapes e montava com desenvoltura e elegância, gosto passado aos seus descendentes.

Durante a guerra, serviu como motorista e mecânica, o que levou ao título carinhoso de Princesa Mecânica de Automóveis. Sem medo, conduzia o que fosse preciso para levar a sua missão até ao final. Bombas podiam cair mas a determinação de uma mulher não vacila perante a necessidade de salvar vidas e de servir o seu país.

Confessou que se apaixonou por Philip com uns tenros treze anos, amor que levou até à sua partida física, com mais de oitenta anos e setenta e três de casamento. Um homem que não pôde dar o seu nome aos filhos e que ficou sempre na sombra. Isabel honrou-o com uma enorme dignidade na sua partida. A imagem que nos chegou foi de uma viúva desolada com a solidão.

Foi mãe de quatro filhos, avó de oito netos e bisavó de doze crianças. Números interessantes. Uma descendência mais do que assegurada e abençoada com os genes de uma mulher de grande garra e fibra, um ser de cariz único. Alguém que não nasceu para ser rainha mas que o foi de forma exemplar. Soube ter a lucidez para distinguir todas situações mas era afeiçoada a um certo tipo de sapatos que usou durante cinquenta anos.

A sua grande paixão eram os cães, sobretudo os corgi, uma raça curiosa. Tudo começou com Susan, a sua adorada cadela, oferecida aos dezoito anos e que a acompanhou na lua de mel. Todos os seus cães, que gozam de mordomias, são descendentes de Susan mas a linha terminou agora pois os últimos cães, por padecerem de tumores, foram esterilizados impossibilitando a reprodução. Os mais recentes patudos foram uma oferta do seu filho Andrew.

Senhora de uma postura irrepreensível, sabia estar em todas as situações. A mala, imagem de marca, nunca a abandonava assim como a cor, que tanto gostava. A sua última fotografia mostra a fragilidade de uma idosa mas com um extremo sentido do dever. Com um kilt, por estar na Escócia, acompanhado de um sorriso, de bâton, um bom parceiro, era a imagem perfeita da execução da sua função. Trabalhou até ao fim. Começa agora a Missão Unicórnio, por ter falecido na Escócia.

Portugal e Inglaterra têm laços muito fortes. O Tratado de Windsor, assinado a 9 de Maio de 1386, estabelece uma ligação política, comercial e pessoal, que perdura até aos nossos dias. É a aliança mais antiga do mundo. Uma das cláusulas menciona bacalhau e tecidos para serem trocados por vinho, cortiça, sal e azeite. O casamento de D. João I com Filipa de Lencastre, em 1387, no Porto, selou esse acordo.

Isabel foi uma verdadeira estadista. O dever estava em primeiro lugar e reinou, com pulso firme e cabeça erguida, cinquenta e três países que sempre lhe mostraram respeito e enorme sentido de honra. Os ingleses estão órfãos. E agora? Quem vai calçar os sapatos da rainha? O mundo nunca mais será o mesmo. Isabel foi A Rainha.

O mito nasce agora. Isabel, Elizabeth, Lilibet, seja qual for o nome atribuído, reinou durante setenta anos. Governar tem outro teor e ainda há quem se confunda com os termos e posições. Foi uma mulher de garra forte. Quebrou muitas convenções e alguns protocolos. Nunca deixou de ser mulher e por o ser, valorizou-as a todas, estando ciente de que existiam barreiras e limitações absurdas. As que a serviam eram remuneradas de forma generosa sendo que algumas se tornaram mais parceiras de negócios do que meras funcionárias.

O seu chá era especial, Earl Grey, começando assim o dia. Por ser rainha não tinha gostos extravagantes nem caprichosos. O bolo de bolacha,com cobertura de chocolate era o seu preferido, uma maneira de saborear o que a vida tem de simples. Gostava de torradas com "marmelade" e ovos mexidos mas estes teriam de ser de casca castanha por serem mais saborosos. Os seus gostos eram frugais, pois cresceu durante os austeros dias da II Guerra Mundial. Não dispensava os morangos de Balmoral nem os pêssegos de Windsor. Para finalizar o dia havia a sua taça de champanhe.

Gostava de conduzir, o que fazia amiúde para aflição dos guardas e afins e era senhora de um refinado sentido de humor. Multiplicam-se os ditos sobre a sua postura irrepreensível perante ignorantes e incultos. Sempre cheia de classe, nunca perdia a compostura nem a educação. Só mesmo americanos para não reconhecerem a Rainha de Inglaterra quando estão na sua presença e pedem para que a monarca faça uma fotografia a outros.

Oh dear, dito pela voz de sua majestade, com doçura e ironia, nunca deixará de ser um som inolvidável e perfeito. Como será a Inglaterra sem Isabel, a mulher que esteve no comando durante os últimos setenta anos? A rainha morreu. Viva a rainha!

O correcto seria afirmar: Viva o rei, mas Charles, o herdeiro do trono, terá uma árdua tarefa pela frente. Pouco amado e cheio de desaires na sua vida pessoal, apesar de tantos anos de preparação, pode parecer, aos olhos dos seus muitos súbditos, não estar à altura de tão digno cargo. Que o tempo mostre de que fibra é feito.