Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Não sei de quem saiba pintar a Luz



Caminhar de forma sagrada,
É fazer da vida uma arte.
Viver cada momento como se fosse o último,
Dar cada passo como se fosse o primeiro.


Palavras atribuídas ao Chefe Alce Negro (*)
(1863 - 1966)

Actualmente, vejo com frequência, invocar “a Luz Branca de Deus”. Ora, é bom lembrar que há conceitos, na Cultura Ocidental, que têm sido corrompidos por séculos de preconceitos que fundem numa amálgama conceitos sociais, conceitos religiosos e conceitos culturais e étnicos... Regra geral, considera-se que a cor e a luz brancas simbolizam ideais de Bem e de Pureza. Subentendendo-se que opostamente, a cor preta simbolizará o Mal e a Perversão. Quem não se lembra que um castigo infligido às crianças, ainda nos princípios do século XX, era o encerramento no “quarto escuro”?

A Luz, em si, não tem cor. Quem consegue fixar o Sol? A luz solar é esbraseante, esfuziante, queima os olhos se tentarmos fixá-la. Não é “branca”. E não há alternativa – também não é amarela.

Enquanto falantes – enquanto seres humanos que precisamos de comunicar – servimo-nos de metáforas. Na tentativa de comunicar certos conceitos, no decurso do tempo histórico, algumas metáforas se tornaram passíveis de ser usadas com perversidade. Figura nesse caso o adjectivo que menciona a cor “branca” enquanto aplicável a uma definição de um qualitativo de Deus; lembremos mesmo que na linguagem pictórica, servimo-nos das tintas branca ou amarela para exprimir essa mesma abstracção...

Isto parece um problema de lana caprina, conversa pueril, ou inútil. Mas muito pelo contrário, é a imensa base de uma confusão secular que tem sido responsável pela marginalização, inferiorização e martírio de gerações de seres humanos.

As palavras que usamos estão carregadas de História, como sabemos. Uma História que está mais colada a nós do que a roupa com que nos vestimos. E no entanto, pensamos com mais atenção na escolha do vestuário, do que nas palavras com que comunicamos...

...Pois quando usamos palavras com as quais corremos o risco de condenar os nossos semelhantes ao sofrimento ou à morte, não estamos a comunicar, mas sim a assumir, unilateralmente, um direito ao qual ninguém tem direito algum. Refiro-me à “nossa cultura ocidental” porque é a única que conheço, porque vivida por dentro...

Não estou a discutir o conceito de “deus”, quem é, se existe, ou se não existe. O tema desta crónica não é religioso; apenas se situa no âmbito da Linguística e da História das Mentalidades, e incide apenas sobre a palavra em si:
A palavra “deus” deriva muito remotamente da palavra indo-europeia que significava “luz”. Todos sabemos que os povos primitivos adoravam o Sol – o “pai”, fonte de energia e de vida, tal como adoravam a Terra, a “máter”, a “mãe” donde nascem os alimentos, donde brota a própria água. A palavra foi evoluindo ao passar para as antigas línguas da Europa. Parece que a palavra “Zeus”, designação do poderoso deus da cultura da Grécia antiga, ainda seria aparentada com a palavra original.

O que interessa, nesta crónica, é apenas uma questão de vocabulário – alia-se a ideia da divindade à cor branca, e numa sequência de oposição lógica, a ideia do “mal” será associável à cor preta. Este conceito foi imposto aos povos não-europeus pela colonização – o “deus dos brancos” seria “branco”... logo, seria “bom”... e o mais que não fosse “branco”... “bom” não seria... Esta dicotomia tem impregnado inaceitáveis comportamentos que têm manchado a História da Humanidade.  

Os povos antigos tinham respeito pelo poder mágico das palavras, acreditando que elas têm o poder de veicular energias positivas ou negativas.

Não posso afirmar que as palavras tenham poderes mágicos. Mas posso afirmar que sendo o meio de comunicação mais comum a todos os seres humanos, à medida que os meios de comunicação são cada vez mais universais, elas deverão ser usadas com o maior conhecimento quanto ao seu valor semântico. A história das palavras dá-lhes um peso que se torna por vezes insustentável. Sempre que ao longo de séculos se afirmou que a “luz divina” é “branca”, contribuiu-se para condenar impunemente aos maiores sofrimentos, todos os seres humanos dotados de pele não-branca...

Hoje, em véspera de passagem de ano, véspera da entrada num Ano Novo, expresso o meu voto de que todos nós usemos as palavras com a devida reverência e respeito, cientes do poder que elas contêm – e que, para que esse poder seja sempre benéfico, o seu significado seja ponderado com o coração.

* Sobre o Chefe Alce Negro, breve biografia: [wikipedia]
* “La historia de San Alce Negro, un mito de la cultura hippy” [web]