Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Não sei de quem saiba pintar a Luz
- Partilhar 30/12/2021
Caminhar de forma
sagrada,
É fazer da vida uma arte.
Viver cada
momento como se fosse o último,
Dar cada passo
como se fosse o primeiro.
Palavras
atribuídas ao Chefe Alce Negro (*)
(1863 - 1966)
Actualmente, vejo com
frequência, invocar “a Luz Branca de Deus”. Ora, é
bom lembrar que há conceitos, na Cultura Ocidental,
que têm sido corrompidos por séculos de preconceitos
que fundem numa amálgama conceitos sociais,
conceitos religiosos e conceitos culturais e
étnicos... Regra geral, considera-se que a cor e a
luz brancas simbolizam ideais de Bem e de Pureza.
Subentendendo-se que opostamente, a cor preta
simbolizará o Mal e a Perversão. Quem não se lembra
que um castigo infligido às crianças, ainda nos
princípios do século XX, era o encerramento no
“quarto escuro”?
A Luz, em si, não tem cor.
Quem consegue fixar o Sol? A luz solar é
esbraseante, esfuziante, queima os olhos se
tentarmos fixá-la. Não é “branca”. E não há
alternativa – também não é amarela.
Enquanto
falantes – enquanto seres humanos que precisamos de
comunicar – servimo-nos de metáforas. Na tentativa
de comunicar certos conceitos, no decurso do tempo
histórico, algumas metáforas se tornaram passíveis
de ser usadas com perversidade. Figura nesse caso o
adjectivo que menciona a cor “branca” enquanto
aplicável a uma definição de um qualitativo de Deus;
lembremos mesmo que na linguagem pictórica,
servimo-nos das tintas branca ou amarela para
exprimir essa mesma abstracção...
Isto
parece um problema de lana caprina, conversa
pueril, ou inútil. Mas muito pelo contrário, é a
imensa base de uma confusão secular que tem sido
responsável pela marginalização, inferiorização e
martírio de gerações de seres humanos.
As
palavras que usamos estão carregadas de História,
como sabemos. Uma História que está mais colada a
nós do que a roupa com que nos vestimos. E no
entanto, pensamos com mais atenção na escolha do
vestuário, do que nas palavras com que
comunicamos...
...Pois quando usamos palavras
com as quais corremos o risco de condenar os nossos
semelhantes ao sofrimento ou à morte, não estamos a
comunicar, mas sim a assumir, unilateralmente, um
direito ao qual ninguém tem direito algum. Refiro-me
à “nossa cultura ocidental” porque é a única que
conheço, porque vivida por dentro...
Não
estou a discutir o conceito de “deus”, quem é, se
existe, ou se não existe. O tema desta crónica não é
religioso; apenas se situa no âmbito da Linguística
e da História das Mentalidades, e incide apenas
sobre a palavra em si:
A palavra “deus” deriva
muito remotamente da palavra indo-europeia que
significava “luz”. Todos sabemos que os povos
primitivos adoravam o Sol – o “pai”, fonte de
energia e de vida, tal como adoravam a Terra, a
“máter”, a “mãe” donde nascem os alimentos, donde
brota a própria água. A palavra foi evoluindo ao
passar para as antigas línguas da Europa. Parece que
a palavra “Zeus”, designação do poderoso deus da
cultura da Grécia antiga, ainda seria aparentada com
a palavra original.
O que interessa, nesta
crónica, é apenas uma questão de vocabulário –
alia-se a ideia da divindade à cor branca, e numa
sequência de oposição lógica, a ideia do “mal” será
associável à cor preta. Este conceito foi imposto
aos povos não-europeus pela colonização – o “deus
dos brancos” seria “branco”... logo, seria “bom”...
e o mais que não fosse “branco”... “bom” não
seria... Esta dicotomia tem impregnado inaceitáveis
comportamentos que têm manchado a História da
Humanidade.
Os povos antigos tinham
respeito pelo poder mágico das palavras, acreditando
que elas têm o poder de veicular energias positivas
ou negativas.
Não posso afirmar que as
palavras tenham poderes mágicos. Mas posso afirmar
que sendo o meio de comunicação mais comum a todos
os seres humanos, à medida que os meios de
comunicação são cada vez mais universais, elas
deverão ser usadas com o maior conhecimento quanto
ao seu valor semântico. A história das palavras
dá-lhes um peso que se torna por vezes
insustentável. Sempre que ao longo de séculos se
afirmou que a “luz divina” é “branca”, contribuiu-se
para condenar impunemente aos maiores sofrimentos,
todos os seres humanos dotados de pele não-branca...
Hoje, em véspera de passagem de ano, véspera
da entrada num Ano Novo, expresso o meu voto de que
todos nós usemos as palavras com a devida reverência
e respeito, cientes do poder que elas contêm – e
que, para que esse poder seja sempre benéfico, o seu
significado seja ponderado com o coração.
* Sobre o Chefe
Alce Negro, breve biografia: [wikipedia]
*
“La historia de San Alce
Negro, un mito de la cultura hippy” [web]
- n.32 • janeiro 2022