Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Fui ao jardim da Celeste...

Encontro refúgio, recolhimento, silêncio, entre a multidão, no pleno da esplanada borbulhante das confidências murmuradas, dos ruídos fumegantes dos carros, da avidez dos pombos por migalhas.
Passam as mães com os bebés pela mão, regressando das aulas. Como actores de novela, beijam-se fornicantemente alguns pares de jovens namorados. A carrinha vermelha dos Correios parte depois de recolhida toda a espécie de mensagens. Velhotas passeiam-se de braço dado e sentam-se nos bancos públicos sob as avantajadas copas verdes dos plátanos do Largo, chilreantes do recolher dos pardais. Quem aqui faz falta é o Grande Rei...  Quando acampou junto a Atenas, Ciro ficou fascinado com aquelas árvores que antes nunca tinha visto! Mandou juntar todas as joias de todas as concubinas, e com elas ornamentou as copas que falavam com o vento... Depois, sob elas mandou montar a sua real tenda e aí se recolheu! Ao fim de uma semana de inerte espera, os generais começaram a ficar impacientes... E foram instar o Grande Rei a considerar que não se encontravam em digressão de férias, mas que se tinham deslocado até ali, desde a distante Pérsia... para fazerem a guerra...
Uma ambulância aflita irrompe Avenida acima e passa vertiginosa, galgando os sinais luminosos... Os Deuses te acompanhem!...
Acendem-se as luzes das montras, que o quadrado de céu, visível daqui, parece uma flor que se fecha ao anoitecer.
Encostados às costas dos bancos públicos, velhotes trôpegos discutem as últimas reivindicações dos sindicatos – enquanto na mesa ao lado da minha, entre girafas de cerveja, os calores da Justiça e da Solidariedade são absorvidos pelo jornal A Bola.
À minha frente, um fulano meio grisalho e meio careca coça o cachaço enquanto aprecia o traseiro da moça que serve de mesa em mesa. Levanta-se, cavalheiro, um cidadão Afro para cumprimentar uma Amiga que passa, elegante, com o lulu pela trela. Uma fulana reboluda investe por entre o plástico branco das mesas, para vir dar o beijinho-da-praxe a um fulano de calças de ganga esburacadas nos joelhos, à minha esquerda.
Que hei-de beber que me mate a sede? O néctar de pêssego será demasiado doce, a cerveja cair-me-á na fraqueza, o café não me deixará dormir, e já está demasiado frio para me decidir por um gelado. Como está sujo o chão da esplanada. Quanta beata, quanta embalagem de açúcar vazia, quanto maço de cigarros amarfanhado pelas mãos... Passa o velho porteiro da empresa onde trabalho, aquele que pediu a reforma antecipadamente, esperando que sem os esforços que a profissão implica, a dor que lhe rói o fígado lhe dê um pouco de tréguas, e o deixe durar mais algum tempo... E que os Deuses o protejam!
Decido-me pelo néctar de pêssego. As lojas vão fechando. Os frequentadores da esplanada vão-se retirando. São horas de jantar. Engulo o néctar de pêssego de um trago, sem lhe sentir o doce viscoso que no entanto, noutras alturas, me tem deliciado.
Quem pudesse estar ao teu lado. No meio da balbúrdia, abro uma clareira de um silêncio que só eu oiço, para o povoar com a tua presença. Mas há dias em que me foges, e não consigo ultrapassar a distância. Então, nem o próprio trabalho me preenche e ao regressar a casa, meto-me na cama, no quarto obscurecido, até me doerem os rins.
Depois, volto a sair... Pode acontecer que me cruze com alguma Amiga, ou Colega, com quem trocar dois dedos de conversa. Penso em ti como se o pensamento pudesse trazer-te corporalmente para junto de mim, quero sentir o teu corpo e meto-me no carro, em direcção ao mar. Na praia, quase noite, já o frio ameaçará congelar-me a garganta...
Definitivamente, hoje não consigo de modo algum sentir-te ao meu lado. Nas minhas costas, há pessoas que tossem enquanto dissertam sobre os problemas das Forças-da-Ordem...
Que se lixem todos. Que se lixe todo este mundo, e os outros que se lixem também. Que eu hoje estou sozinha. E se consegui estabelecer a clareira que me garante o silêncio, não consegui, no entanto, preenchê-lo contigo...
As copas dos plátanos baloiçam-se na aragem deste fim de tarde... Onde quer que me encontre, o chilrear ensurdecedor dos pardais a amalhar, transporta-me ao jardim junto à Doca... Faro... Tenho uns sete, oito anos... Muitas mães, à tardinha, trazem as crianças para brincarem. Sentam-se nos bancos... Sob as copas frondosas dos plátanos do Jardim Manuel Bívar, habitadas à tardinha pelo chilrear alucinado, estonteante, ensurdecedor, dos pardais que amalham, não se cansam de conversar! Há uma menina mais crescida, um pouco mais corpulenta, muito mandona. Organiza as brincadeiras com autoridade! Joga-se ao manecas, fazem-se rodas para o trapinho queimado, salta-se à corda! A minha mãe bem pode sentenciar – Não é o jardim da Celeste, é “Eu fui ao jardim celeste”! Mas ninguém liga... E chega a vez do Mamã, dá licença? Queres banana, ou ananás? e acaba tudo a jogar aos 5 cantinhos, a jogar ao coito!
Bem precisava agora dos teus braços para me acoitar...

Myriam Jubilot de Carvalho
Almada, esplanada do Café Central