Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Fui ao jardim da Celeste...
- Partilhar 01/06/2022
Encontro
refúgio, recolhimento, silêncio, entre a
multidão, no pleno da esplanada borbulhante
das confidências murmuradas, dos ruídos
fumegantes dos carros, da avidez dos pombos
por migalhas.
Passam as mães com os bebés
pela mão, regressando das aulas. Como
actores de novela, beijam-se fornicantemente
alguns pares de jovens namorados. A carrinha
vermelha dos Correios parte depois de
recolhida toda a espécie de mensagens.
Velhotas passeiam-se de braço dado e
sentam-se nos bancos públicos sob as
avantajadas copas verdes dos plátanos do
Largo, chilreantes do recolher dos pardais.
Quem aqui faz falta é o Grande Rei...
Quando acampou junto a Atenas, Ciro ficou
fascinado com aquelas árvores que antes
nunca tinha visto! Mandou juntar todas as
joias de todas as concubinas, e com elas
ornamentou as copas que falavam com o
vento... Depois, sob elas mandou montar a
sua real tenda e aí se recolheu! Ao fim de
uma semana de inerte espera, os generais
começaram a ficar impacientes... E foram
instar o Grande Rei a considerar que não se
encontravam em digressão de férias, mas que
se tinham deslocado até ali, desde a
distante Pérsia... para fazerem a guerra...
Uma ambulância aflita irrompe Avenida acima
e passa vertiginosa, galgando os sinais
luminosos... Os Deuses te acompanhem!...
Acendem-se as luzes das montras, que o
quadrado de céu, visível daqui, parece uma
flor que se fecha ao anoitecer.
Encostados às costas dos bancos públicos,
velhotes trôpegos discutem as últimas
reivindicações dos sindicatos – enquanto na
mesa ao lado da minha, entre girafas de
cerveja, os calores da Justiça e da
Solidariedade são absorvidos pelo jornal
A Bola.
À minha frente, um fulano
meio grisalho e meio careca coça o cachaço
enquanto aprecia o traseiro da moça que
serve de mesa em mesa. Levanta-se,
cavalheiro, um cidadão Afro para
cumprimentar uma Amiga que passa, elegante,
com o lulu pela trela. Uma fulana reboluda
investe por entre o plástico branco das
mesas, para vir dar o beijinho-da-praxe a um
fulano de calças de ganga esburacadas nos
joelhos, à minha esquerda.
Que hei-de
beber que me mate a sede? O néctar de
pêssego será demasiado doce, a cerveja
cair-me-á na fraqueza, o café não me deixará
dormir, e já está demasiado frio para me
decidir por um gelado. Como está sujo o chão
da esplanada. Quanta beata, quanta
embalagem de açúcar vazia, quanto maço de
cigarros amarfanhado pelas mãos... Passa o
velho porteiro da empresa onde trabalho,
aquele que pediu a reforma antecipadamente,
esperando que sem os esforços que a
profissão implica, a dor que lhe rói o
fígado lhe dê um pouco de tréguas, e o deixe
durar mais algum tempo... E que os Deuses o
protejam!
Decido-me pelo néctar de
pêssego. As lojas vão fechando. Os
frequentadores da esplanada vão-se
retirando. São horas de jantar. Engulo o
néctar de pêssego de um trago, sem lhe
sentir o doce viscoso que no entanto,
noutras alturas, me tem deliciado.
Quem
pudesse estar ao teu lado. No meio da
balbúrdia, abro uma clareira de um silêncio
que só eu oiço, para o povoar com a tua
presença. Mas há dias em que me foges, e não
consigo ultrapassar a distância. Então, nem
o próprio trabalho me preenche e ao
regressar a casa, meto-me na cama, no quarto
obscurecido, até me doerem os rins.
Depois, volto a sair... Pode acontecer que
me cruze com alguma Amiga, ou Colega, com
quem trocar dois dedos de conversa. Penso em
ti como se o pensamento pudesse trazer-te
corporalmente para junto de mim, quero
sentir o teu corpo e meto-me no carro, em
direcção ao mar. Na praia, quase noite, já o
frio ameaçará congelar-me a garganta...
Definitivamente, hoje não consigo de modo
algum sentir-te ao meu lado. Nas minhas
costas, há pessoas que tossem enquanto
dissertam sobre os problemas das
Forças-da-Ordem...
Que se lixem todos.
Que se lixe todo este mundo, e os outros que
se lixem também. Que eu hoje estou sozinha.
E se consegui estabelecer a clareira que me
garante o silêncio, não consegui, no
entanto, preenchê-lo contigo...
As copas
dos plátanos baloiçam-se na aragem deste fim
de tarde... Onde quer que me encontre, o
chilrear ensurdecedor dos pardais a amalhar,
transporta-me ao jardim junto à Doca...
Faro... Tenho uns sete, oito anos... Muitas
mães, à tardinha, trazem as crianças para
brincarem. Sentam-se nos bancos... Sob as
copas frondosas dos plátanos do Jardim
Manuel Bívar, habitadas à tardinha pelo
chilrear alucinado, estonteante,
ensurdecedor, dos pardais que amalham, não
se cansam de conversar! Há uma menina mais
crescida, um pouco mais corpulenta, muito
mandona. Organiza as brincadeiras com
autoridade! Joga-se ao manecas,
fazem-se rodas para o trapinho queimado,
salta-se à corda! A minha mãe bem pode
sentenciar – Não é o jardim da Celeste,
é “Eu fui ao jardim celeste”! Mas ninguém
liga... E chega a vez do Mamã, dá
licença? Queres banana, ou ananás? e
acaba tudo a jogar aos 5 cantinhos, a
jogar ao coito!
Bem precisava
agora dos teus braços para me acoitar...
Myriam Jubilot
de Carvalho
Almada, esplanada do Café
Central
- n.37 • junho 2022