Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
O Caíque
- Partilhar 02/05/2023
Montanhas líquidas,
negras, salgadas, pegajosas, sem cor,
varriam o caíque. Víamo-las aproximar,
víamo-las varrer o tombadilho. Mas o nosso
caíque, como ave que deslizasse sobre o
mundo líquido em revolução, continuava a
aguentar-se sobre as ondas indomáveis.
Pregados ao convés, agarrados ao mastro de
ré. Sabendo que enquanto nos protegêssemos
mutuamente, conseguiríamos sobreviver.
Desta vez, porém, a tempestade era mais
forte. O motor tinha parado. As ondas
passavam por nós, na sua fúria. Mas a
embarcação ia resistindo.
Olhámo-nos, a
certificar-nos que estávamos juntos, que
conseguiríamos sobreviver! Molhados atá aos
ossos, encharcados de alto a baixo, cobertos
de espuma salgada e viscosa, aflitiva. Mesmo
assim, conseguíamos sorrir.
*
Muitas e
muitas ondas passaram sobre nós.
*
…E
chegou, para nos fundir nas espumas
enfurecidas, um tenebroso pânico. E ele quis
largar o mastro onde nos tínhamos refugiado,
e correu para a proa.
Por entre aquele
bramido infernal das ondas, consegui pensar,
e gritar-lhe aquela profecia que nos
prometia a salvação enquanto ficássemos
juntos.
Mas o medo dele era mais
desordenado que o desabar das vagas.
Aproveitou um intervalo entre elas para me
largar e ir agarrar-se ao outro mastro...
Chamei por ele, enquanto a esperança me
deu forças. Mas ele estava de costas para
mim, o rosto e o coração no sentido
contrário, não me queria ouvir.
*
Vendo-nos separados, o mar tornou-se ainda
mais ameaçador. O roncar das águas, o ruivo
que arrancavam do âmago do oceano enchia a
abóbada de chumbo do céu opaco e sem vida.
A profecia cumpria-se. Mas ao contrário. Um
rombo apareceu. Já nem sei onde. A
embarcação fendia-se, como se monstruosa
serra eléctrica a estivesse abrindo ao meio.
Cada um de nós mais e mais se agarrou ao seu
mastro. Tentei olhar para ele, mas já o mar
tenebroso nos separava. Chamei-o, berrei
desesperada. Mas já as ondas nos tinham
afastado.
*
Mantive-me agarrada aos
meus destroços. A tempestade amainou e um
novo dia surpreendeu-me nas dunas acima da
praia.
Na areia, sobre toalha de linho
bordada a branco, frutos de todas as origens
e sabores esperavam por mim. Conforme pude,
aproximei-me. Matei a fome e a sede! E
aninhei-me nas dunas, a descansar.
*
Uma vibração de passos foi-me transmitida
pelo areal. Soergui-me, amedrontada, na
expectativa de um mau encontro. Um vulto
estranho surgia do nada, do fundo da
floresta, do mundo desconhecido. Pensei que
estava perdida! Mas o desconhecido pegou-me
ao colo e encaminhou-me para a sua
habitação, onde as suas mulheres me
acolheram, trataram, lavaram as feridas,
agasalharam, deram de comer.
Finalmente,
acordei num mundo estranho, desconhecido.
Novos companheiros ao meu lado velando o meu
sono inquieto, sobressaltado, assustado,
moribundo, sofrido. E eu era um ser novo,
talhada na natureza virgem da terra, na
sabedoria milenar dos antepassados, plena na
minha ambivalência de ying e yang, una e
contínua como um oroboro, meu fim e meu
começo.
Por fim, refeita, avistei ao
longe o vulto que me virara as costas. E por
lá continua, à deriva, à procura na praia
deserta, murmurando coisas que ninguém
entende.
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- n.48 • maio 2023