Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

O Caíque

Montanhas líquidas, negras, salgadas, pegajosas, sem cor, varriam o caíque. Víamo-las aproximar, víamo-las varrer o tombadilho. Mas o nosso caíque, como ave que deslizasse sobre o mundo líquido em revolução, continuava a aguentar-se sobre as ondas indomáveis.
Pregados ao convés, agarrados ao mastro de ré. Sabendo que enquanto nos protegêssemos mutuamente, conseguiríamos sobreviver.
Desta vez, porém, a tempestade era mais forte. O motor tinha parado. As ondas passavam por nós, na sua fúria. Mas a embarcação ia resistindo.
Olhámo-nos, a certificar-nos que estávamos juntos, que conseguiríamos sobreviver! Molhados atá aos ossos, encharcados de alto a baixo, cobertos de espuma salgada e viscosa, aflitiva. Mesmo assim, conseguíamos sorrir.
*
Muitas e muitas ondas passaram sobre nós.
*
…E chegou, para nos fundir nas espumas enfurecidas, um tenebroso pânico. E ele quis largar o mastro onde nos tínhamos refugiado, e correu para a proa.
Por entre aquele bramido infernal das ondas, consegui pensar, e gritar-lhe aquela profecia que nos prometia a salvação enquanto ficássemos juntos.
Mas o medo dele era mais desordenado que o desabar das vagas. Aproveitou um intervalo entre elas para me largar e ir agarrar-se ao outro mastro...
Chamei por ele, enquanto a esperança me deu forças. Mas ele estava de costas para mim, o rosto e o coração no sentido contrário, não me queria ouvir.
*
Vendo-nos separados, o mar tornou-se ainda mais ameaçador. O roncar das águas, o ruivo que arrancavam do âmago do oceano enchia a abóbada de chumbo do céu opaco e sem vida.
A profecia cumpria-se. Mas ao contrário. Um rombo apareceu. Já nem sei onde. A embarcação fendia-se, como se monstruosa serra eléctrica a estivesse abrindo ao meio.
Cada um de nós mais e mais se agarrou ao seu mastro. Tentei olhar para ele, mas já o mar tenebroso nos separava. Chamei-o, berrei desesperada. Mas já as ondas nos tinham afastado.
*
Mantive-me agarrada aos meus destroços. A tempestade amainou e um novo dia surpreendeu-me nas dunas acima da praia.
Na areia, sobre toalha de linho bordada a branco, frutos de todas as origens e sabores esperavam por mim. Conforme pude, aproximei-me. Matei a fome e a sede! E aninhei-me nas dunas, a descansar.
*
Uma vibração de passos foi-me transmitida pelo areal. Soergui-me, amedrontada, na expectativa de um mau encontro. Um vulto estranho surgia do nada, do fundo da floresta, do mundo desconhecido. Pensei que estava perdida! Mas o desconhecido pegou-me ao colo e encaminhou-me para a sua habitação, onde as suas mulheres me acolheram, trataram, lavaram as feridas, agasalharam, deram de comer.
Finalmente, acordei num mundo estranho, desconhecido. Novos companheiros ao meu lado velando o meu sono inquieto, sobressaltado, assustado, moribundo, sofrido. E eu era um ser novo, talhada na natureza virgem da terra, na sabedoria milenar dos antepassados, plena na minha ambivalência de ying e yang, una e contínua como um oroboro, meu fim e meu começo.
Por fim, refeita, avistei ao longe o vulto que me virara as costas. E por lá continua, à deriva, à procura na praia deserta, murmurando coisas que ninguém entende.

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