Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Se eu tivesse alma

...E perguntaram-lhe, assim de chofre, se tinha alma. Co’a breca, pensou. Este gajo é um gozão. Quem se preocupa com tal coisa nos tempos que correm? Ironizou-lhes “Será que a Virgem Maria tinha mesmo alma?”
As mulheres não têm alma. Para quê? Têm corpo. Para acamar os heróis. Depois das suas graves investidas sem solução de continuidade (muitas vezes) pelos mundos da caserna, da política, da técnica. Da investigação. Dos negócios. Das artes. As mulheres não têm alma. Têm mãos. Para um bom bacalhau-à-Brás, para um notório cozido-à-portuguesa... Ou para o requinte de um tricot, à noite, enquanto vêem a novela.
As mulheres não têm alma. Têm olhos. Para perscrutar o sarampo que desponta no rostozinho inocente dos herdeiros. Ou para descobrir uma nódoa de gordura na gravata de seda, no fato de linho do marido, do companheiro. E têm pernas para irem ao super-mercado ao voltarem do emprego, à lavandaria, à farmácia. Para levarem os putos ao cabeleireiro, à ginástica, à Cambridge, à Alliance, ao dentista, ao oculista, ao oftalmologista. Ao ocultista! Ao pediatra, à radiografia, às análises, à natação, à escola, ao colégio. À festa de anos dos amigos.
Têm olhos. Para fechar. Aos apelos que venham lá de fora. Aos atropelos do parceiro.
...Já com tanto com que se entreter, para que haviam de ter alma?
Estava num grupo de amigos, naquela mesa, no café, entre as bicas e os pasteis de nata. Discutiam modernidade, pós-modernidade, o caraças. “Gosto desta ideia”, dizia um deles, “só o fragmento é bom”.
Fragmentos, pensou. Tenho a alma fragmentada. Nós. Nós, as mulheres, é que somos feitas de fragmentos. Puzzles desmantelados, já com peças de menos. Com eles, passa-se absolutamente a mesma coisa – mas eles têm alma, não dão por nada.
A Virgem Maria, segundo consta, era casada com São José. Segundo se diz, foi a mãe de Jesus... Mas querem que a gente acredite que ficou sempre “virgem”... Quer dizer, ao fim e ao cabo – negam-lhe a alma! ...Santo Agostinho, o grande Doutor da Igreja – segundo e conforme a minha sábia professora de Religião e Moral nos idos anos da década de ’50 – afirmava do alto da sua cátedra que "A mulher é uma besta insegura e instável"...
Enfim... Como todos estes conceitos deixaram rasto... Em todos os grandes quadros que conheço, a pobre Senhora é sempre pintada com o olhar orientado para baixo, num toque de grande modéstia, como quem tem medo de existir... como quem tem medo de aparecer... de se pronunciar, ou de ser...

...Ao longo da História da Pintura, em quadros com rostos femininos, repete-se o mesmo olhar pudico, aliás, a mesma ausência de olhar! – os olhos das mulheres retratadas, sem excepção, continuam a seguir o modelo da Mãe de Deus – “mãe amantíssima” – que nunca se atreve a erguer o olhar, nunca se atreve a olhar o seu retratista de olhos nos olhos... De igual para igual...
Sem dar pelo que dizia, sentenciou “se vocês se assumissem, em fragmentos ou segmentos – ou com ou sem sedimentos, mas se vocês se assumissem. Ficávamos todos mais próximos”.
Nenhum deles podia descobrir o fio daquela meada. Olharam para ela, num rictus subtil, entre o sarcasmo e a condescendência. “Que é que disseste?”
Levantou-se. Foi pagar a bica e o pastel-de-nata ao balcão. De longe, acenou-lhes “Tenho um fragmento quase a voltar para casa. Chega sempre esfomeado”.
Pelo caminho, olhou os farrapos de nuvens transparentes decorando a fatia de céu apreensível entre os renques das casa, como pequenas rosas num vaso vidrado, ao canto de uma varanda. Se eu tivesse alma. Se eu tivesse tempo para ter alma... 

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Arte:
(1) Nascimento de Vénus, de Sandro Boticelli.
(2) Madonna de la Humildad, de Fra Angelico.
(3) Virgem (Teótoco) de Vladimir.
(4) Madame Récamier, portrait par François Pascal Simon, Baron Gérard, 1802