Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Se eu tivesse alma
- Partilhar 01/03/2023
...E perguntaram-lhe,
assim de chofre, se tinha alma. Co’a breca,
pensou. Este gajo é um gozão. Quem se
preocupa com tal coisa nos tempos que
correm? Ironizou-lhes “Será que a Virgem
Maria tinha mesmo alma?”
As mulheres
não têm alma. Para quê? Têm corpo. Para
acamar os heróis. Depois das suas graves
investidas sem solução de continuidade
(muitas vezes) pelos mundos da caserna, da
política, da técnica. Da investigação. Dos
negócios. Das artes. As mulheres não têm
alma. Têm mãos. Para um bom bacalhau-à-Brás,
para um notório cozido-à-portuguesa... Ou
para o requinte de um tricot, à noite,
enquanto vêem a novela.
As mulheres
não têm alma. Têm olhos. Para perscrutar o
sarampo que desponta no rostozinho inocente
dos herdeiros. Ou para descobrir uma nódoa
de gordura na gravata de seda, no fato de
linho do marido, do companheiro. E têm
pernas para irem ao super-mercado ao
voltarem do emprego, à lavandaria, à
farmácia. Para levarem os putos ao
cabeleireiro, à ginástica, à Cambridge, à
Alliance, ao dentista, ao oculista, ao
oftalmologista. Ao ocultista! Ao pediatra, à
radiografia, às análises, à natação, à
escola, ao colégio. À festa de anos dos
amigos.
Têm olhos. Para fechar. Aos
apelos que venham lá de fora. Aos atropelos
do parceiro.
...Já com tanto com que
se entreter, para que haviam de ter alma?
Estava num grupo de amigos, naquela
mesa, no café, entre as bicas e os pasteis
de nata. Discutiam modernidade,
pós-modernidade, o caraças. “Gosto desta
ideia”, dizia um deles, “só o fragmento é
bom”.
Fragmentos, pensou. Tenho a
alma fragmentada. Nós. Nós, as mulheres, é
que somos feitas de fragmentos. Puzzles
desmantelados, já com peças de menos. Com
eles, passa-se absolutamente a mesma coisa –
mas eles têm alma, não dão por nada.
A Virgem Maria, segundo consta, era casada
com São José. Segundo se diz, foi a mãe de
Jesus... Mas querem que a gente acredite que
ficou sempre “virgem”... Quer dizer, ao fim
e ao cabo – negam-lhe a alma! ...Santo
Agostinho, o grande Doutor da Igreja –
segundo e conforme a minha sábia professora
de Religião e Moral nos idos anos da década
de ’50 – afirmava do alto da sua cátedra que
"A mulher é uma besta insegura e
instável"...
Enfim... Como todos
estes conceitos deixaram rasto... Em todos
os grandes quadros que conheço, a pobre
Senhora é sempre pintada com o olhar
orientado para baixo, num toque de grande
modéstia, como quem tem medo de existir...
como quem tem medo de aparecer... de se
pronunciar, ou de ser...
...Ao longo da
História da Pintura, em quadros com rostos
femininos, repete-se o mesmo olhar pudico,
aliás, a mesma ausência de olhar! – os olhos
das mulheres retratadas, sem excepção,
continuam a seguir o modelo da Mãe de Deus –
“mãe amantíssima” – que nunca se atreve a
erguer o olhar, nunca se atreve a olhar o
seu retratista de olhos nos olhos... De
igual para igual...
Sem dar pelo que
dizia, sentenciou “se vocês se assumissem,
em fragmentos ou segmentos – ou com ou sem
sedimentos, mas se vocês se assumissem.
Ficávamos todos mais próximos”.
Nenhum
deles podia descobrir o fio daquela meada.
Olharam para ela, num rictus subtil, entre o
sarcasmo e a condescendência. “Que é que
disseste?”
Levantou-se. Foi pagar a bica
e o pastel-de-nata ao balcão. De longe,
acenou-lhes “Tenho um fragmento quase a
voltar para casa. Chega sempre esfomeado”.
Pelo caminho, olhou os farrapos de nuvens
transparentes decorando a fatia de céu
apreensível entre os renques das casa, como
pequenas rosas num vaso vidrado, ao canto de
uma varanda. Se eu tivesse alma. Se eu
tivesse tempo para ter alma...
Arte:
(1)
Nascimento de Vénus, de Sandro Boticelli.
(2)
Madonna de la Humildad, de Fra Angelico.
(3)
Virgem (Teótoco) de Vladimir.
(4)
Madame Récamier, portrait par
François Pascal Simon, Baron Gérard,
1802
- n.46 • março 2023