Myriam Jubilot de Carvalho

Por Ondas do Mar de Vigo

Myriam Jubilot de Carvalho

Do Anti-Judaísmo ao Anti-Semitismo, Sionismo e anti-Sionismo

Os jornais noticiaram que Annie Ernaux, a Nobel da Literatura de 2022, foi criticada por Israel por ter integrado uma manifestação a favor da causa da Palestiniana – Anni Ernaux foi acusada de “anti-semitismo”.
Este meu apontamento tem por fim recordar o que têm sido Anti-Judaísmo e Anti-Semitismo, expressões da rivalidade entre Cristãos e Judeus ao longo da História. Por seu lado, o Anti-Sionismo é outra coisa.

O Judaísmo é mais que um povo. É uma religião. Desde que alguém queira converter-se, poderá tornar-se Judeu – desde que, evidentemente, se queira inteirar e adoptar, a Religião e Tradições, e mesmo a Língua.
No entanto, o Judeu reconhece-se pela via materna. O Judeu tradicional identifica-se pela linhagem materna, pois “a mãe, sabe-se sempre quem é, embora o pai... pode saber-se ou não se saber... Sobretudo em épocas muito mais beligerantes, em que havia rusgas, pogroms, guerras... violações...”
Quanto ao racismo contra os Judeus, tem assumido sucessivamente, no decorrer dos séculos, as formas de Anti-Judaismo e Anti-Semitismo.

I – Para compreender o racismo anti-judaico

O Cristianismo sempre hostilizou os Judeus. Este posicionamento deriva das afirmações, feitas nos Evangelhos, de que os Judeus crucificaram Jesus Cristo.

Primeiramente, a oposição cristã aos Judeus manifestou-se sob a forma de Anti-Judaismo. No mundo cristão, os Judeus eram tão rejeitados que não lhes era permitida a integração no seio da população dominante. Por outro lado, eles próprios se mantinham à margem das sociedades onde se instalavam – mantinham vestuário próprio, mantinham a sua religião, e o que porventura mais estranheza levantaria, além da prática da circuncisão, mantinham liturgias religiosas próprias nos seus templos – as sinagogas.
Este pormenor foi-me explicado por dois Amigos que conheci em Joanesburgo, Judeus, grandes conhecedores da História Judaica:
– Já viste o que seria, nas povoações ignorantes da Idade Média, fanatizadas num Cristianismo inculto e supersticioso, observarem permanentemente aquelas pessoas vestidas de modos diferentes? Já viste o que seria a curiosidade, certamente insatisfeita, quanto ao que se passaria nos templos dessas populações marginalizadas? Facilmente acreditariam que essas populações estranhas estariam possuídas pelo Diabo, praticando feitiçarias...
No interior do mundo cristão, acontecia outro paradoxo. Negócios, empréstimos em numerário, especulação pecuniária – eram vistos como “actividades impuras” – Fora com as 30 moedas que Judas vendera Jesus Cristo...
Mas alguém teria que desempenhar essas funções, tão necessárias à vida económica... Os negócios e a especulação foram, assim, deixados nas mãos dos Judeus. Ou seja, para essa população “impura”, ficavam os negócios “impuros”. Entretanto, com isso, muitos Judeus prosperavam, criando maiores ou menores fortunas. E esse facto tornou-se mais um argumento contra eles, gerando certamente, muitas invejas...
Um dos meus Amigos era oriundo da Lituânia. Como exemplo da situação das populações judaicas na Europa Oriental, ele contava-me como, na Lituânia, sob o poder dos Czares, os seus antepassados tinham sido discriminados... Mal uma família começasse a apresentar algum progresso e bem-estar, surgiria um argumento para que se visse perseguida e expropriada... Membros da sua família, desde o século XVI – tanto quanto a memória pôde investigar –, foram emigrando para onde se lhes proporcionasse. Actualmente, há núcleos de descendentes desses emigrantes em todos os continentes. Eu conheci este meu Amigo na República da África do Sul, onde também se encontravam inúmeros familiares seus.
Mas este primitivo anti-Judaismo não era apenas de carácter religioso.
Baseava-se também no antigo conceito de que “a qualidade” da família se transmitia através do sangue. O estatuto de “nobre” ou de “vilão” era transmitido pelo sangue, pela linhagem. Conceito de grande peso na vida social, que se prolongou desde a Idade Média até ao século XIX...

II – Anti-Judaismo

O anti-judaismo medieval tem pois base nos conceitos de hereditariedade, tem “base no sangue”. Baseava-se no conceito de “sangue impuro”, uma vez que maculado pelo crime colectivo da morte de Jesus Cristo.
Por diferentes razões, o sentimento adverso aos Judeus já se manifestava no mundo romano. Os Judeus tinham oposto grande resistência à conquista de Roma. Mais, não querendo submeter-se, muitos fugiram da Palestina. Foi a segunda “grande diáspora”, que ocorreu no século I dC, na sequência da conquista da Palestina pelo general romano Tito, no ano 70 (da era cristã).
Assim, verificou-se grande fluxo migratório, e muita gente procurou refúgio em ambas as margens do Mediterrâneo, da Ásia Menor ao Norte de África ou ao Sul da Europa. Foi a denominada Segunda Diáspora (1).
A esta fase da dispersão do povo Judeu, pertenciam os Judeus que na Alta Idade Média chegaram à Península Ibérica, à qual chamaram SEFARAD e que a si próprios se denominavam de SEFARDITAS. Aqui, foram objecto de leis rigorosamente discriminatórias, segregacionistas, por parte dos Visigodos cristianizados. Viveram relativamente melhor nos territórios de domínio muçulmano do que nos territórios de domínio cristão. Nos territórios de domínio muçulmano, as populações peninsulares que aí permaneceram, Judeus ou Cristãos, desde que pagassem os seus impostos e respeitassem as leis e a ordem pública, eram livres de praticarem a sua religião, língua e costumes. Os Judeus peninsulares da Idade Média viveram o seu auge cultural, no mundo muçulmano peninsular, no século XII. Tiveram então grandes poetas, filósofos, místicos, “cientistas”.
No século XVI, com a unificação da Espanha pelos Reis Católicos, os Judeus, como se sabe, foram alvo da grande expulsão, tendo sido acolhidos em Portugal. Mas depressa a pressão da Espanha se fez sentir, e os reis portugueses exigiram-lhes a conversão ao Cristianismo. Exigência que levou imensas famílias a fugirem da Inquisição peninsular e a procurarem refúgio quer na Europa do norte – onde se tornou notável a colónia de Amesterdão – quer na Europa mediterrânica e pelo Norte de África, até ao Império Otomano. Criaram assim grandes núcleos em vários países de então. Dos muitos que fugiram para Itália, quando a Inquisição aí começou a intensificar-se e a criar malhas mais apertadas, procuraram refúgio na Grécia e regiões vizinhas, até ao Império Otomano (actual Turquia).
Os Judeus levaram consigo, e conservaram, a Língua que falavam, os costumes, o vestuário da sua tradição, a sua música. Ficaram conhecidos como “os Ladinos” – sendo este termo a derivação fonética do termo “Latino”, pois na verdade eles falavam tanto o Português como o Castelhano, línguas “latinas”.

III – Os Asquenazes

Vejamos agora os Judeus do norte da Europa, conhecidos como ASQUENAZIM, ou ASQUENAZES – nome derivado do termo com que na Língua Hebraica da Idade Média se designava a Alemanha.
Há uma lenda que diz que vários povos se encontravam em guerra. O rei dos KHAZARES, um povo turcomano, não-semita, interrogou-se por que razão um dos seus oponentes ganhava todas as batalhas... Então, chegou à conclusão de que esses vencedores eram Judeus... Daí, ter optado pela conversão em massa do seu povo ao Judaísmo.
Mas essa lenda perdeu fundamento quando foram feitos testes genéticos. Estes indicaram que os Judeus Asquenazes teriam origem no Sudoeste Europeu mediterrânico e no Próximo Oriente. Ter-se-iam fixado no norte da Europa, em regiões que hoje são a Polónia, a Hungria e a Ucrânia, na altura em que Carlos Magno reinava no ocidente. (2)
Também estas populações eram alvo de discriminação. Entre as características culturais que os distinguiam, estava a sua língua, o YIDDISH, uma fusão de elementos da língua alemã arcaica, do hebraico e do aramaico, que primitivamente até se escrevia com caracteres hebraicos.
Uma Amiga que conheci durante a minha permanência em Joanesburgo, deu-me um exemplo de como acontecia a discriminação. Por alturas do século XVI ou XVII, na Polónia, um crime tinha acontecido numa povoação. Não se descobrindo quem teria sido o criminoso, dois aldeões, Judeus, foram acusados do assassinato e condenados à morte.
Por se tratar de uma acusação arbitrária que condenava dois inocentes, dois rabinos, um deles antepassado dessa minha Amiga, ofereceram-se para subir ao cadafalso e serem sentenciados em vez dos inocentes, pais de família... Acontece que, no fim da sua vida, o criminoso confessou... Os dois rabinos foram considerados “santos”. Durante alguns séculos as suas sepulturas foram objecto de culto, até que foram profanadas durante a Segunda Guerra Mundial...
Podemos ter uma ideia do que eram e como viviam as populações Asquenazes, pelo filme que fez época no início dos anos ’70 do século XX, “Um violino no telhado”.
Um legado importante destas populações é a sua Música. Os músicos populares, os músicos ambulantes, eram chamados para festas familiares, nas celebrações de circuncisões ou de casamentos ou outras. Esses músicos deslocavam-se de terra em terra. Nas estalagens, cruzavam-se com músicos Ciganos. Do convívio entre todos eles, nascia um tipo de música muito peculiar, simultaneamente alegre e nostálgica – a Música Klezmer.

IV – Anti-Semitismo

Em meados do século XIX, com o desenvolvimento dos estudos de Linguística, surgiu a ideia de que os Judeus são Semitas. Assim, chegou-se à conclusão de que a sua Língua original é uma língua semita.
Foi no século XIX que o Anti-Judaismo – baseado como vimos, na linhagem – se transformou em Anti-Semitismo.
Enquanto o Anti-Judaismo, antiquíssimo de muitos séculos, assentava numa discriminação não só de linhagem mas também de religião, o Anti-Semitismo vai assentar numa discriminação linguística.
Mas não só linguística. Continuou a ser importante saber a origem genética das populações que se dizem “judaicas”. Passou a ser importante a origem das famílias, e a “pureza de sangue”... O “sangue puro” seria o sangue ariano... Outras etnias, como Judeus e Ciganos teriam “sangue impuro”...
É nesta definição que se fundamenta a perseguição aos Judeus, no Terceiro Reich, dando assim lugar ao drama abominável do Holocausto.

V – O Sionismo e a Palestina. O estado de Israel

Como sabemos, o século XIX foi uma época de grandes “nacionalismos”. Foi no século XIX que se definiram – de forma definitiva, ou quase definitiva – as fronteiras dos países europeus.
Foi nesse ambiente de definição de nações, países e fronteiras, que começou a teoria Sionista, que considerava e defendia que os Judeus, para se precaverem de novas desgraças e novas hecatombes, precisavam e deviam regressar à Palestina, terra dos seus antepassados. Essa aspiração a um “estado próprio” foi reforçada pela repercussão do “caso Dreyfus”, ocorrido em 1894.
O “caso Dreyfus” foi tanto mais chocante quanto a França já tinha reconhecido, desde 1791, o estatuto de igualdade cívica aos Judeus.
É assim que, em 1896, Theodor Herzl publica “Der Judenstaaf” (L’État des Juifs”) obra que terá grande impacto, pois aí se apela à criação de um estado judaico.
“Sionismo” deriva do nome de “Sião”, o nome do monte onde outrora se erguia o Templo de Jerusalém.
Com o Sionismo, o Judaísmo mudou de tom. Deixou de ser uma afirmação, ou definição religiosa, e passou a ser um movimento político: considerou-se que outros povos tinham ocupado a antiga terra de Israel, ou seja, a Palestina.
O Estado de Israel surgiu após a II Guerra Mundial.

V- Conclusão

A verdade é que entre a Segunda Diáspora e o final da Segunda Guerra Mundial, decorreram 2.000 anos. As populações que não fugiram aos Romanos, permanecendo nas suas terras ancestrais, ficaram sujeitas às inúmeras mudanças políticas e religiosas ocorridas ao longo destes vinte últimos séculos – nomeadamente a criação do Império Otomano. Com o decorrer dos séculos, essas populações assimilaram Língua e Religião diferentes. Mas – geneticamente – Palestinianos ou Judeus – são o mesmo “povo”.
Na sequência da segunda Guerra Mundial, deu-se a imigração dos Judeus Europeus para a Palestina, com a bênção dos países da Europa Ocidental e dos Estados Unidos... A criação do Estado de Israel pressupôs a usurpação dos territórios da Palestina aos seus habitantes de sempre. O mundo assistiu calmamente a uma invasão e uma ocupação perpetradas de forma arbitrária e cruel.

O Anti-Sionismo

O Anti-Sionismo distingue-se do Anti-Judaismo e do Anti-Semitismo. Os dois últimos foram movimentos racistas baseados nas diferenças religiosas e de costumes.
O Anti-Sionismo não é um “racismo”. O Anti-Sionismo é um movimento político.
O Anti-Sionismo opõe-se à ocupação arbitrária da Palestina. Pois assistimos, impotentes, a ver serem cruel e arbitrariamente expulsos pela força, da faixa ocupada pelo estado de Israel e de todo o seu território ancestral, os Palestinianos, os habitantes tradicionais dos territórios da Palestina.
Os noticiários e as televisões informam-nos sobre a Resistência Palestiniana como se de actos ilegítimos de puro terrorismo se tratasse.
Devemos precaver-nos da propaganda que ignora os motivos do Anti-Sionismo, insistindo em que todo o mundo é Anti-Judaico. Nem mesmo a historiadora Annette Wieviorka, no seu excelente artigo na revista L’Histoire Nº493, de Março de 2022, dedicada à análise dos fenómenos racistas, perde palavras a mencionar o Sionismo nem esclarece o porquê da oposição internacional anti-sionista de figuras notáveis que denunciam esta ocupação. Conclui apenas que “temáticas antigas se misturam às novas.”
Recordo com veneração o Professor Freitas do Amaral, que, quando entrevistado por um canal de TV sobre as revoltas na Palestina, afirmou – e cito de memória:
“Quando um povo tem que enviar os seus jovens para este tipo de atentados, é porque o seu desespero é muito grande.”
Assim, a acusação de Anti-Semitismo, formulada contra Annie Ernaux, obedece a uma inverdade. Annie Ernaux não se manifesta como Anti-Judaica ou Anti-Semita. Annie Ernaux não está a tomar parte numa manifestação racista:
Annie Ernaux está a tomar parte numa manifestação política, de oposição ao Estado de Israel que instalou, ele sim, um estado racista pela usurpação de territórios de um povo do qual – cúmulo dos paradoxos – até é geneticamente aparentado.
No entanto, Annie Ernaux não é uma voz isolada. Também o teólogo e escritor Leonardo Boff diz que a grande contradição de Israel é ter sido vítima do nazismo no passado e hoje, no presente, utilizar os mesmos métodos contra os Palestinianos.

Israel/Palestina: Papa pede fim de «espiral de morte»

Também o Papa Francisco se tem manifestado contra a violência que se abate sobre o povo da Palestina.
“Perante milhares de peregrinos reunidos na Praça de São Pedro, Francisco dirigiu-se diretamente “aos dois governos e à comunidade internacional para que se encontrem, já e sem demora, outros caminhos que incluam o diálogo e a busca sincera da paz”. (3)

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(1) O exílio em Babilónia, na Antiguidade, foi considerado a Primeira Diáspora.

(2) Sobre a origem dos Khazares, há duas obras interessantes.
“A Décima Terceira Tribo”, de Arthur Koestler, publicada em 1976.
“O Vento dos Khazares”, de Marek Halter, romance, ficção de inspiração histórica, publicado em 2003. “Na época em que Carlos Magno é coroado imperador do Ocidente, em que o Império Cristão de Bizâncio alarga as suas conquistas até à Rússia, em que o Grande Califa de Bagdade propaga a fé em Alá, algures entre as montanhas do Cáucaso e a embocadura do Volga, um reino converte-se ao judaísmo: é o princípio da aventura extraordinária dos Khazares” – conforme se diz na contra-capa da tradução portuguesa. Além da reconstituição possível do que teria sido esse Passado semi-esquecido, este romance entrelaça muito bem esse Passado remoto e os interesses do Presente nas riquezas do subsolo em gás-natural, petróleo, etc, que estão na origem de tanta perturbação política actual, com recurso à guerra.

(3) Jan 29, 2023 :
https://agencia.ecclesia.pt/portal/israel-palestina-papa-pede-fim-de-espiral-de-morte/