
Por Ondas do Mar de Vigo
Myriam Jubilot de Carvalho
Do Anti-Judaísmo ao Anti-Semitismo, Sionismo e anti-Sionismo
- Partilhar 06/02/2023

Os jornais noticiaram
que Annie Ernaux, a Nobel da Literatura de
2022, foi criticada por Israel por ter
integrado uma manifestação a favor da causa
da Palestiniana – Anni Ernaux foi acusada de
“anti-semitismo”.
Este meu apontamento
tem por fim recordar o que têm sido
Anti-Judaísmo e Anti-Semitismo, expressões
da rivalidade entre Cristãos e Judeus ao
longo da História. Por seu lado, o
Anti-Sionismo é outra coisa.
O
Judaísmo é mais que um povo. É uma religião.
Desde que alguém queira converter-se, poderá
tornar-se Judeu – desde que, evidentemente,
se queira inteirar e adoptar, a Religião e
Tradições, e mesmo a Língua.
No entanto,
o Judeu reconhece-se pela via materna. O
Judeu tradicional identifica-se pela
linhagem materna, pois “a mãe, sabe-se
sempre quem é, embora o pai... pode saber-se
ou não se saber... Sobretudo em épocas muito
mais beligerantes, em que havia rusgas,
pogroms, guerras... violações...”
Quanto
ao racismo contra os Judeus, tem assumido
sucessivamente, no decorrer dos séculos, as
formas de Anti-Judaismo e Anti-Semitismo.
I – Para compreender o racismo
anti-judaico
O Cristianismo sempre
hostilizou os Judeus. Este posicionamento
deriva das afirmações, feitas nos
Evangelhos, de que os Judeus crucificaram
Jesus Cristo.
Primeiramente, a
oposição cristã aos Judeus manifestou-se sob
a forma de Anti-Judaismo. No mundo cristão,
os Judeus eram tão rejeitados que não lhes
era permitida a integração no seio da
população dominante. Por outro lado, eles
próprios se mantinham à margem das
sociedades onde se instalavam – mantinham
vestuário próprio, mantinham a sua religião,
e o que porventura mais estranheza
levantaria, além da prática da circuncisão,
mantinham liturgias religiosas próprias nos
seus templos – as sinagogas.
Este
pormenor foi-me explicado por dois Amigos
que conheci em Joanesburgo, Judeus, grandes
conhecedores da História Judaica:
– Já
viste o que seria, nas povoações ignorantes
da Idade Média, fanatizadas num Cristianismo
inculto e supersticioso, observarem
permanentemente aquelas pessoas vestidas de
modos diferentes? Já viste o que seria a
curiosidade, certamente insatisfeita, quanto
ao que se passaria nos templos dessas
populações marginalizadas? Facilmente
acreditariam que essas populações estranhas
estariam possuídas pelo Diabo, praticando
feitiçarias...
No interior do mundo
cristão, acontecia outro paradoxo. Negócios,
empréstimos em numerário, especulação
pecuniária – eram vistos como “actividades
impuras” – Fora com as 30 moedas que Judas
vendera Jesus Cristo...
Mas alguém teria
que desempenhar essas funções, tão
necessárias à vida económica... Os negócios
e a especulação foram, assim, deixados nas
mãos dos Judeus. Ou seja, para essa
população “impura”, ficavam os negócios
“impuros”. Entretanto, com isso, muitos
Judeus prosperavam, criando maiores ou
menores fortunas. E esse facto tornou-se
mais um argumento contra eles, gerando
certamente, muitas invejas...
Um dos meus
Amigos era oriundo da Lituânia. Como exemplo
da situação das populações judaicas na
Europa Oriental, ele contava-me como, na
Lituânia, sob o poder dos Czares, os seus
antepassados tinham sido discriminados...
Mal uma família começasse a apresentar algum
progresso e bem-estar, surgiria um argumento
para que se visse perseguida e
expropriada... Membros da sua família, desde
o século XVI – tanto quanto a memória pôde
investigar –, foram emigrando para onde se
lhes proporcionasse. Actualmente, há núcleos
de descendentes desses emigrantes em todos
os continentes. Eu conheci este meu Amigo na
República da África do Sul, onde também se
encontravam inúmeros familiares seus.
Mas
este primitivo anti-Judaismo não era apenas
de carácter religioso.
Baseava-se também
no antigo conceito de que “a qualidade” da
família se transmitia através do sangue. O
estatuto de “nobre” ou de “vilão” era
transmitido pelo sangue, pela linhagem.
Conceito de grande peso na vida social, que
se prolongou desde a Idade Média até ao
século XIX...
II – Anti-Judaismo
O anti-judaismo medieval tem pois base
nos conceitos de hereditariedade, tem “base
no sangue”. Baseava-se no conceito de
“sangue impuro”, uma vez que maculado pelo
crime colectivo da morte de Jesus Cristo.
Por diferentes razões, o sentimento adverso
aos Judeus já se manifestava no mundo
romano. Os Judeus tinham oposto grande
resistência à conquista de Roma. Mais, não
querendo submeter-se, muitos fugiram da
Palestina. Foi a segunda “grande diáspora”,
que ocorreu no século I dC, na sequência da
conquista da Palestina pelo general romano
Tito, no ano 70 (da era cristã).
Assim,
verificou-se grande fluxo migratório, e
muita gente procurou refúgio em ambas as
margens do Mediterrâneo, da Ásia Menor ao
Norte de África ou ao Sul da Europa. Foi a
denominada Segunda Diáspora (1).
A esta
fase da dispersão do povo Judeu, pertenciam
os Judeus que na Alta Idade Média chegaram à
Península Ibérica, à qual chamaram SEFARAD e
que a si próprios se denominavam de
SEFARDITAS. Aqui, foram objecto de leis
rigorosamente discriminatórias,
segregacionistas, por parte dos Visigodos
cristianizados. Viveram relativamente melhor
nos territórios de domínio muçulmano do que
nos territórios de domínio cristão. Nos
territórios de domínio muçulmano, as
populações peninsulares que aí permaneceram,
Judeus ou Cristãos, desde que pagassem os
seus impostos e respeitassem as leis e a
ordem pública, eram livres de praticarem a
sua religião, língua e costumes. Os Judeus
peninsulares da Idade Média viveram o seu
auge cultural, no mundo muçulmano
peninsular, no século XII. Tiveram então
grandes poetas, filósofos, místicos,
“cientistas”.
No século XVI, com a
unificação da Espanha pelos Reis Católicos,
os Judeus, como se sabe, foram alvo da
grande expulsão, tendo sido acolhidos em
Portugal. Mas depressa a pressão da Espanha
se fez sentir, e os reis portugueses
exigiram-lhes a conversão ao Cristianismo.
Exigência que levou imensas famílias a
fugirem da Inquisição peninsular e a
procurarem refúgio quer na Europa do norte –
onde se tornou notável a colónia de
Amesterdão – quer na Europa mediterrânica e
pelo Norte de África, até ao Império
Otomano. Criaram assim grandes núcleos em
vários países de então. Dos muitos que
fugiram para Itália, quando a Inquisição aí
começou a intensificar-se e a criar malhas
mais apertadas, procuraram refúgio na Grécia
e regiões vizinhas, até ao Império Otomano
(actual Turquia).
Os Judeus levaram
consigo, e conservaram, a Língua que
falavam, os costumes, o vestuário da sua
tradição, a sua música. Ficaram conhecidos
como “os Ladinos” – sendo este termo a
derivação fonética do termo “Latino”, pois
na verdade eles falavam tanto o Português
como o Castelhano, línguas “latinas”.
III – Os Asquenazes
Vejamos
agora os Judeus do norte da Europa,
conhecidos como ASQUENAZIM, ou ASQUENAZES –
nome derivado do termo com que na Língua
Hebraica da Idade Média se designava a
Alemanha.
Há uma lenda que diz que vários
povos se encontravam em guerra. O rei dos
KHAZARES, um povo turcomano, não-semita,
interrogou-se por que razão um dos seus
oponentes ganhava todas as batalhas...
Então, chegou à conclusão de que esses
vencedores eram Judeus... Daí, ter optado
pela conversão em massa do seu povo ao
Judaísmo.
Mas essa lenda perdeu
fundamento quando foram feitos testes
genéticos. Estes indicaram que os Judeus
Asquenazes teriam origem no Sudoeste Europeu
mediterrânico e no Próximo Oriente.
Ter-se-iam fixado no norte da Europa, em
regiões que hoje são a Polónia, a Hungria e
a Ucrânia, na altura em que Carlos Magno
reinava no ocidente. (2)
Também estas
populações eram alvo de discriminação. Entre
as características culturais que os
distinguiam, estava a sua língua, o YIDDISH,
uma fusão de elementos da língua alemã
arcaica, do hebraico e do aramaico, que
primitivamente até se escrevia com
caracteres hebraicos.
Uma Amiga que
conheci durante a minha permanência em
Joanesburgo, deu-me um exemplo de como
acontecia a discriminação. Por alturas do
século XVI ou XVII, na Polónia, um crime
tinha acontecido numa povoação. Não se
descobrindo quem teria sido o criminoso,
dois aldeões, Judeus, foram acusados do
assassinato e condenados à morte.
Por se
tratar de uma acusação arbitrária que
condenava dois inocentes, dois rabinos, um
deles antepassado dessa minha Amiga,
ofereceram-se para subir ao cadafalso e
serem sentenciados em vez dos inocentes,
pais de família... Acontece que, no fim da
sua vida, o criminoso confessou... Os dois
rabinos foram considerados “santos”. Durante
alguns séculos as suas sepulturas foram
objecto de culto, até que foram profanadas
durante a Segunda Guerra Mundial...
Podemos ter uma ideia do que eram e como
viviam as populações Asquenazes, pelo filme
que fez época no início dos anos ’70 do
século XX, “Um violino no telhado”.
Um
legado importante destas populações é a sua
Música. Os músicos populares, os músicos
ambulantes, eram chamados para festas
familiares, nas celebrações de circuncisões
ou de casamentos ou outras. Esses músicos
deslocavam-se de terra em terra. Nas
estalagens, cruzavam-se com músicos Ciganos.
Do convívio entre todos eles, nascia um tipo
de música muito peculiar, simultaneamente
alegre e nostálgica – a Música Klezmer.
IV – Anti-Semitismo
Em meados do
século XIX, com o desenvolvimento dos
estudos de Linguística, surgiu a ideia de
que os Judeus são Semitas. Assim, chegou-se
à conclusão de que a sua Língua original é
uma língua semita.
Foi no século XIX que
o Anti-Judaismo – baseado como vimos, na
linhagem – se transformou em Anti-Semitismo.
Enquanto o Anti-Judaismo, antiquíssimo de
muitos séculos, assentava numa discriminação
não só de linhagem mas também de religião, o
Anti-Semitismo vai assentar numa
discriminação linguística.
Mas não só
linguística. Continuou a ser importante
saber a origem genética das populações que
se dizem “judaicas”. Passou a ser importante
a origem das famílias, e a “pureza de
sangue”... O “sangue puro” seria o sangue
ariano... Outras etnias, como Judeus e
Ciganos teriam “sangue impuro”...
É nesta
definição que se fundamenta a perseguição
aos Judeus, no Terceiro Reich, dando assim
lugar ao drama abominável do Holocausto.
V – O Sionismo e a Palestina. O
estado de Israel
Como sabemos, o
século XIX foi uma época de grandes
“nacionalismos”. Foi no século XIX que se
definiram – de forma definitiva, ou quase
definitiva – as fronteiras dos países
europeus.
Foi nesse ambiente de definição
de nações, países e fronteiras, que começou
a teoria Sionista, que considerava e
defendia que os Judeus, para se precaverem
de novas desgraças e novas hecatombes,
precisavam e deviam regressar à Palestina,
terra dos seus antepassados. Essa aspiração
a um “estado próprio” foi reforçada pela
repercussão do “caso Dreyfus”, ocorrido em
1894.
O “caso Dreyfus” foi tanto mais
chocante quanto a França já tinha
reconhecido, desde 1791, o estatuto de
igualdade cívica aos Judeus.
É assim que,
em 1896, Theodor Herzl publica “Der
Judenstaaf” (L’État des Juifs”) obra que
terá grande impacto, pois aí se apela à
criação de um estado judaico.
“Sionismo”
deriva do nome de “Sião”, o nome do monte
onde outrora se erguia o Templo de
Jerusalém.
Com o Sionismo, o Judaísmo
mudou de tom. Deixou de ser uma afirmação,
ou definição religiosa, e passou a ser um
movimento político: considerou-se que outros
povos tinham ocupado a antiga terra de
Israel, ou seja, a Palestina.
O Estado de
Israel surgiu após a II Guerra Mundial.
V- Conclusão
A verdade é que
entre a Segunda Diáspora e o final da
Segunda Guerra Mundial, decorreram 2.000
anos. As populações que não fugiram aos
Romanos, permanecendo nas suas terras
ancestrais, ficaram sujeitas às inúmeras
mudanças políticas e religiosas ocorridas ao
longo destes vinte últimos séculos –
nomeadamente a criação do Império Otomano.
Com o decorrer dos séculos, essas populações
assimilaram Língua e Religião diferentes.
Mas – geneticamente – Palestinianos ou
Judeus – são o mesmo “povo”.
Na
sequência da segunda Guerra Mundial, deu-se
a imigração dos Judeus Europeus para a
Palestina, com a bênção dos países da Europa
Ocidental e dos Estados Unidos... A criação
do Estado de Israel pressupôs a usurpação
dos territórios da Palestina aos seus
habitantes de sempre. O mundo assistiu
calmamente a uma invasão e uma ocupação
perpetradas de forma arbitrária e cruel.
O Anti-Sionismo
O
Anti-Sionismo distingue-se do Anti-Judaismo
e do Anti-Semitismo. Os dois últimos foram
movimentos racistas baseados nas diferenças
religiosas e de costumes.
O Anti-Sionismo
não é um “racismo”. O Anti-Sionismo é um
movimento político.
O Anti-Sionismo
opõe-se à ocupação arbitrária da Palestina.
Pois assistimos, impotentes, a ver serem
cruel e arbitrariamente expulsos pela força,
da faixa ocupada pelo estado de Israel e de
todo o seu território ancestral, os
Palestinianos, os habitantes tradicionais
dos territórios da Palestina.
Os
noticiários e as televisões informam-nos
sobre a Resistência Palestiniana como se de
actos ilegítimos de puro terrorismo se
tratasse.
Devemos precaver-nos da
propaganda que ignora os motivos do
Anti-Sionismo, insistindo em que todo o
mundo é Anti-Judaico. Nem mesmo a
historiadora Annette Wieviorka, no seu
excelente artigo na revista L’Histoire
Nº493, de Março de 2022, dedicada à análise
dos fenómenos racistas, perde palavras a
mencionar o Sionismo nem esclarece o porquê
da oposição internacional anti-sionista de
figuras notáveis que denunciam esta
ocupação. Conclui apenas que “temáticas
antigas se misturam às novas.”
Recordo
com veneração o Professor Freitas do Amaral,
que, quando entrevistado por um canal de TV
sobre as revoltas na Palestina, afirmou – e
cito de memória:
“Quando um povo tem que
enviar os seus jovens para este tipo de
atentados, é porque o seu desespero é muito
grande.”
Assim, a acusação de
Anti-Semitismo, formulada contra Annie
Ernaux, obedece a uma inverdade. Annie
Ernaux não se manifesta como Anti-Judaica ou
Anti-Semita. Annie Ernaux não está a tomar
parte numa manifestação racista:
Annie
Ernaux está a tomar parte numa manifestação
política, de oposição ao Estado de Israel
que instalou, ele sim, um estado racista
pela usurpação de territórios de um povo do
qual – cúmulo dos paradoxos – até é
geneticamente aparentado.
No entanto,
Annie Ernaux não é uma voz isolada. Também o
teólogo e escritor Leonardo Boff diz que a
grande contradição de Israel é ter sido
vítima do nazismo no passado e hoje, no
presente, utilizar os mesmos métodos contra
os Palestinianos.
Israel/Palestina:
Papa pede fim de «espiral de morte»
Também o Papa Francisco se tem manifestado
contra a violência que se abate sobre o povo
da Palestina.
“Perante milhares de
peregrinos reunidos na Praça de São Pedro,
Francisco dirigiu-se diretamente “aos dois
governos e à comunidade internacional para
que se encontrem, já e sem demora, outros
caminhos que incluam o diálogo e a busca
sincera da paz”. (3)
(1) O exílio em
Babilónia, na Antiguidade, foi considerado a
Primeira Diáspora.
(2) Sobre a origem
dos Khazares, há duas obras interessantes.
“A Décima Terceira Tribo”, de Arthur
Koestler, publicada em 1976.
“O Vento dos
Khazares”, de Marek Halter, romance, ficção
de inspiração histórica, publicado em 2003.
“Na época em que Carlos Magno é coroado
imperador do Ocidente, em que o Império
Cristão de Bizâncio alarga as suas
conquistas até à Rússia, em que o Grande
Califa de Bagdade propaga a fé em Alá,
algures entre as montanhas do Cáucaso e a
embocadura do Volga, um reino converte-se ao
judaísmo: é o princípio da aventura
extraordinária dos Khazares” – conforme se
diz na contra-capa da tradução portuguesa.
Além da reconstituição possível do que teria
sido esse Passado semi-esquecido, este
romance entrelaça muito bem esse Passado
remoto e os interesses do Presente nas
riquezas do subsolo em gás-natural,
petróleo, etc, que estão na origem de tanta
perturbação política actual, com recurso à
guerra.
(3) Jan 29, 2023 :
https://agencia.ecclesia.pt/portal/israel-palestina-papa-pede-fim-de-espiral-de-morte/
- n.45 • fevereiro 2023