Memórias do Futuro
Fábio d'Abadia de Sousa
Precisamos falar mais sobre a morte
- Partilhar 10/02/2022
Para a ciência, a morte
encerra completamente a existência de um ser
humano. E não há mais o que se discutir
sobre o assunto! Mas, para o restante da
humanidade, desde as primeiras civilizações
que já existiram, a morte é apenas o começo
de uma outra ou várias outras existências! E
a internet, que tantas revoluções nos
trouxe, também começa a ampliar discussões
sobre a morte fora das orientações
convencionais das religiões e,
principalmente, longe da fria objetividade
da academia e da imparcialidade dos
cientistas.
Se, para a ciência,
ninguém voltou da morte para provar que há
algo depois da falência dos órgãos humanos
que possibilitam a vida, para alguns grupos
de pessoas espalhados pelos quatro quantos
do mundo e unidos pelas publicações em
páginas da internet, o retorno do mundo dos
mortos é algo talvez um tanto corriqueiro.
Estamos a falar das Experiências de Quase
Morte, conhecidas no Brasil pela sigla EQM
(Experiências de Quase Morte) e, no mundo de
língua inglesa, chamadas de NDE (Near Death
Experiences). Trata-se de relatos de pessoas
que afirmam que, enquanto desacordadas ou em
estado de coma, teriam morrido por alguns
instantes, horas, dias e até meses, mas que,
ao recobrarem a consciência, lembrariam de
experiências que supostamente teriam vivido
enquanto jaziam inconscientes.
Acho
impossível não se impressionar com alguns
desses relatos. Em um deles, uma paciente
terminal, vítima de um câncer que se
espalhou por todo o seu corpo, narra que,
enquanto a família era convocada ao hospital
para despedir-se dela pela última vez (acho
que não há redundância aqui), ela entrou em
estado de coma e, durante este período, ela
conta que foi levada a uma outra dimensão,
na qual teve acesso a entidades de luz que
fizeram com que ela refletisse sobre o que a
levou à doença que a matava. Um dos motivos,
segundo ela, foi a quase total falta de amor
próprio o que a arrastou para o seu fim
sofrido. Mas, ao conversar com entidades de
luz e alguns parentes já falecidos, ela
entendeu que poderia voltar à vida e fazer
tudo diferente. Então, ela acordou do coma e
o câncer que ceifava a sua existência passou
a regredir de maneira inexplicável e, em
poucas semanas, ela se recuperou
completamente. E, então, passou a viver uma
vida sem medo e com muito amor para si
própria e para as outras pessoas que a
cercavam. A questão do medo também foi muito
enfatizada por ela. Quem vive cheio de
temores, segundo ela, jamais conseguirá
usufruir plenamente da sua existência. Eu
optei por não colocar o nome de pessoas, mas
sugiro que alguém que tenha interesse em
conhecer mais sobre o assunto apenas vá ao
Google e digite as siglas aqui citadas. Os
nomes estão todos lá. A maioria dos relatos
está em língua inglesa, mas há alguns canais
sobre o assunto em língua portuguesa também.
Os relatos de experiências de quase
morte têm muito em comum. A maioria fala de
contatos com seres de muita luz ou com
parentes já falecidos, de conversas
telepáticas, de experimentações de toda a
existência vivida (espécie de filme da
vida), de cores e sons não existentes na
Terra, e de uma sensação de recebimento de
afeto, amor e acolhimento impossíveis de
serem na vida como a conhecemos. Sabemos
que, muitas vezes, as nossas emoções e
sensações são intensificadas em nossos
sonhos. Mas as pessoas que relatam situações
de quase morte não admitem que o que
experimentaram foram apenas sonhos, pois,
segundo elas, é algo “real, nítido e claro
demais” para ser algo simplesmente onírico.
Essas pessoas também falam que as EQMs
modificam completamente suas vidas quando
retornam para as suas rotinas. Algumas dizem
que ficam mais religiosas, outras se tornam
mais sensíveis ao sofrimento dos outros,
inclusive animais, e a maioria afirma perder
completamente o medo da morte, pois o que
parece macabro para a maioria da humanidade,
para os experimentadores de EQM, é motivo de
regozijo. Para eles, a ideia assustadora de
morte, como uma espécie aniquilamento total
da existência, desaparece. Eles afirmam que
ninguém morre e que apenas voltamos para
casa e para a nossa essência e que ela pode
ser plena e sem sofrimentos, desde que
aprendamos as lições que a vida terrena
proporciona. Quem não aprendeu, poderá ter
outra oportunidade ao reencarnar e voltar em
outro corpo diferente, mas com as mesmas e
novas lições a serem cumpridas.
Neste sentido, as EQMs parecem confirmar o
que a maioria das religiões apregoam sobre o
que seria o pós-vida, principalmente a
doutrina espírita. Então, será que as
religiões estariam certas? Só vamos saber
quando morrermos! Ou, para quem tiver o
privilégio, quando vivenciarmos uma
experiência de quase morte! Se vivenciarmos!
Eu não tive esta sorte ainda! E nem sei se
gostaria de ter! Mas sinto fortemente, do
fundo do meu ser, assim como a maioria da
humanidade, que parece haver uma continuação
após a morte! Os cientistas e acadêmicos
discordam! Eu não incluí aqui os
assumidamente ateus e agnósticos convictos,
porque, na minha opinião, são as pessoas
mais espiritualizadas que conheço! Para mim,
o que os cientistas pensam da morte pouco
importa! Há tantos fatos que a ciência não
sabe explicar! Estamos envoltos em tantos
mistérios! A própria vida, que é algo
palpável, a ciência não sabe explicar! Como
vai saber explicar a morte!
O melhor presente de Natal para a humanidade
- Partilhar 11/01/2022
Para Carl Sagan, astrônomo cujas palavras me fizeram um apaixonado pelas estrelas e de quem eu me lembrei muito enquanto o James Webb era lançado.
Um presente avaliado em
quase US$ 9 bilhões (7,9 mil milhões de
euros). Foi isso que a
humanidade ganhou no dia 25 de dezembro de
2021, com o lançamento do telescópio James
Webb rumo ao espaço. Foi um momento de
grande emoção para quem é aficionado pelas
descobertas relacionadas ao Universo e que
acompanhou, ao vivo, da base espacial na
Guiana Francesa - bem pertinho do Brasil - a
transmissão feita pela NASA, a Agência
Espacial Norte-Americana. Num momento em que
nós, seres humanos, sofremos com a pandemia
de corona vírus e em que o futuro parece
incerto, o James Web leva para sua órbita a
1.5 milhões de quilômetros da Terra (a ser
atingida em dois meses e meio) a esperança
de que o amanhã vai ser de descobertas
fascinantes e de superação de medos e
tragédias.
Na pior das hipóteses, o
James Webb já nos provoca a fazer
redescobertas fascinantes. A
mais importante delas é que, quando
trabalhamos em coletividade, temos mais
chances de obter sucesso.
Milhares de pessoas de dezenas de países e
línguas foram essenciais para que o mais
potente telescópio da história fosse lançado
ao espaço. Além de pessoas da
NASA, também estiveram envolvidos
cientistas, engenheiros da ESA (Agência
Espacial Europeia) e da CSA (Agência
Espacial Canadense), além de uma quantidade
imensa de trabalhadores de empresas
terceirizadas.
Logo no início da
transmissão, a âncora do programa, a
astrônoma da NASA Michelle Lynn Thaller,
ressaltou: “Today, humanity begins its next
bold adventure to extend ourselves out into
the Cosmos. This
is something we do as a whole planet, all of
us, together!”
(Hoje, a humanidade começa a sua próxima e
ousada aventura para nos alçarmos em direção
ao Cosmos. E isso é algo que nós fazemos em
união com todo o planeta, todos nós,
juntos!).
Enquanto chamava alguns
dos trabalhadores envolvidos na construção
do James Webb, para falarem de alguns dos
desafios superados para que o telescópio
pudesse ser lançado, a cientista da NASA
explicou: “Thousands of people from all
around the world have worked for years to
allow today’s launch.
(...) Without a doubt
this is the most complex spacecraft ever
built (...)”
(Milhares de pessoas de todo o mundo
trabalharam por anos, para possibilitarem o
lançamento de hoje. (...) Sem dúvidas esta é
mais a complexa nave espacial jamais
construída (...)).
As expectativas em
relação ao desempenho do James Webb são
enormes, uma vez que ele está dotado de
excepcional capacidade para registrar
imagens captadas em radiação infravermelha,
o que permitirá que ele “enxergue” bem mais
longe do que o telescópio Hubble,
atualmente, o mais potente “olho” da
humanidade rumo às estrelas. Através do seu
“ultra deep field” (ultra campo de visão
profunda), o Hubble conseguiu captar imagens
de milhares de galáxias a mais de 5 bilhões
de anos luz da terra. O
otimismo dos cientistas prevê que o James
Webb consiga “ver” as primeiras galáxias
criadas no Universo, há mais de treze
bilhões de anos. Os astrônomos sonham também
com outras façanhas incríveis, como captar
imagens nítidas do buraco negro no centro da
nossa galáxia-mãe: o Sagittarius A*
(pronuncia-se Sagittarius A-estrela).
Ao focar suas lentes rumo a
um passado tão distante através do Universo,
os cientistas pretendem que o James Webb, na
verdade, possa buscar mais repostas para o
futuro da humanidade que, certamente,
conforme apregoava o brilhante astrônomo
Carl Sagan (1934-1996) estão lá só nos
esperando no grande “oceano cósmico”. Tudo o
que temos que fazer é nos unirmos e, sempre
juntos, caminharmos rumo ao infinito das
estrelas, o enorme e ainda desconhecido
quintal da nossa casa!
Homofobia na política brasileira (Parte 1)
Bolsonaro prova do próprio veneno
- Partilhar 13/12/2021
Uma das características
mais marcantes do atual presidente do Brasil
é o seu preconceito contra homossexuais,
algo que ele sempre fez questão de ressaltar
e ostentar. Quando ainda era deputado
federal e o Congresso brasileiro discutia
uma lei para criminalizar a homofobia, em
1997, ele afirmou, conforme vídeo que
circula na internet: “Ninguém gosta de
homossexual, a gente suporta”. Em outro
vídeo, feito no mesmo ano, ele também
destilou o seu veneno contra a comunidade
LGBTQIA+: “Você contrataria um motorista gay
para levar seu filho à escola? Tá na cara
que não!” Bolsonaro, inclusive, quando
candidato à presidência da República, foi
condenado a pagar indenização por danos
coletivos, por ter dito anos antes, em
entrevista ao programa CQC, da Band, o que
faria se tivesse um filho gay: “Eu fui um
pai presente, então não corro esse risco”.
Em 2019, quando já ocupava o Palácio
do Planalto havia um ano e meio e o Supremo
Tribunal Federal (STF) tornou crime atos
preconceituosos contra homossexuais, o
presidente do Brasil afirmou à imprensa que
o STF estaria “transformando em insuportável
a nossa convivência no Brasil em virtude
dessas decisões”. Em 2020, quando
governadores e prefeitos passaram a defender
o isolamento social, por pausa da pandemia
de Covid-19 que se alastrava pelo país,
entre os vários absurdos que disse,
Bolsonaro ressaltou: “O Brasil tem que
deixar de ser um país de maricas”.
Quando se preparava para concorrer às
prévias do PSDB, partido aparentemente de
centro direita, no início do segundo
semestre de 2021, o atual governador do Rio
Grande do Sul, Eduardo Leite,
surpreendentemente, assumiu sua
homossexualidade em uma entrevista a um
talk-show da Rede Globo, o Conversa
com Bial. No outro dia, o assunto foi um
dos principais destaques no Jornal
Nacional, o telejornal de maior
audiência no País. “Nesse
Brasil, com pouca integridade nesse momento,
a gente precisa debater o que se é, para que
se fique claro e não se tenha nada a
esconder. Sou um governador gay”. Leite não
disse, mas nos bastidores da política,
sabe-se que a frase “Nesse Brasil, com pouca
integridade nesse momento” tem endereço
certo: Jair Bolsonaro e aliados. Leite sabe
que o atual ocupante da cadeira de
presidente do Brasil seria implacável com
ele, em virtude de sua orientação sexual. Ao
procurar a mídia e se assumir, Leite tomou
um antídoto contra o veneno de Bolsonaro
numa eventual disputa presidencial. A prova
de que esse veneno viria, foi a entrevista
coletiva de Bolsonaro no dia seguinte ao
outing (ato de sair do armário) de
Leite. Com uma risada de escárnio, desprezo
e frustração, o presidente da República do
Brasil ainda fez chacota em relação ao ato
de Leite de se assumir gay: “O cara ontem –
não vou falar aqui não, porque dá problema –
estava se achando o máximo, bateu no peito,
olha, eu assumi. É o cartão de visita para a
candidatura dele! Ninguém tem nada contra a
vida particular de ninguém, mas querem (sic)
impor o seu costume (sic), o seu
comportamento, para os outros, (isso) não!”
Três meses depois deste episódio, um
desses dois personagens citados acima
estaria sofrendo fortes ataques de homofobia
nas redes sociais. E não era Eduardo Leite!
Bolsonaro virou motivo de chacota de
adversários e de milhares de eleitores que
desaprovam o seu governo, por uma situação
que ele próprio provocou.
Inacreditavelmente, estava o presidente
brasileiro na Via Dutra, uma das rodovias
mais movimentados do país, em 28 de
novembro, em Resende, no interior do Rio de
Janeiro (Estado no qual o presidente fez
toda a sua carreira política), a acenar para
os motoristas que trafegavam pelo local. Uma
mulher passou e, de dentro do carro, gritou
para o presidente: “Noivinha do Aristides!”
(fato não confirmado
oficialmente). O assunto, até então incompreensível para a
maioria absoluta dos brasileiros, virou
manchete dos sites de notícias pelo
fato de que o presidente exigiu que o
aparato de Estado que o
acompanhava fosse atrás da mulher que o
ofendeu e a prendesse. Esta prisão abalou
para sempre a imagem de heterossexual
“imbroxável (sic)” e “macho puro
sangue” que o presidente faz
questão de ostentar com cansativa frequência
em seus discursos nada republicanos. A mídia
foi investigar e descobriu que o Aristides
foi um colega de farda do presidente antes
que Bolsonaro fosse expulso do exército. Se
a relação entre Aristides e Bolsonaro foi
além do coleguismo, ninguém conseguiu provar
ainda. O tal Aristide não foi encontrado,
por enquanto! Mas a confusão criada pelo
próprio Bolsonaro por causa do,
aparentemente ingênuo xingamento, levantou
muitas suspeitas. Por que ele se ofendeu
tanto com esse xingamento a ponto de exigir
a prisão da motorista?
De qualquer
forma, este episódio fez Bolsonaro provar o
gosto amargo do que é ser motivo de chacota
por causa da orientação sexual. Seja
Bolsonaro gay ou não, ele sentiu na própria
pele o que a maioria dos homossexuais
enfrenta no Brasil, o país que mais mata,
com requintes de violência, integrantes da
população LGBTQIA+ no mundo, conforme dados
das Nações Unidas.
O cinema é preciso
ao mostrar como a sociedade interfere e sabota as relações homoafetivas
- Partilhar 10/11/2021
Atenção: A partir do terceiro parágrafo, este texto contém spoilers de quatro filmes.
Geralmente, as relações amorosas
humanas, pelos mais diversos motivos, são
recheadas de conflitos. Mas as relações
homoafetivas têm maiores probabilidades de
serem mais conflituosas ainda. E o elemento
extra a infernizar a vida íntima de mulheres
e homens gays é a própria sociedade e suas
instituições ou cidadãos comuns em grupos ou
isolados, ou seja, o Estado, as religiões,
as escolas e universidades, a mídia em
geral, as polícias, os vizinhos, os
conhecidos, os estranhos, os altos, os
baixos, os velhos, os jovens, os visíveis e
invisíveis, enfim, quase todo mundo se sente
no direito de interferir nas vidas de duas
pessoas do mesmo sexo que se amam e que
querem apenas tentar usufruir de um pouco de
felicidade, se é que existe alguma
felicidade! E parece que esta interferência,
mesmo quando quer ser sutil, acaba sendo
cruelmente ostensiva, e termina por destruir
parcial ou completamente uma boa porcentagem
dos relacionamentos homossexuais.
Infelizmente, por enquanto, a sociedade
homofóbica está sendo muito bem-sucedida em
controlar os corpos daqueles que ousam
destoar da maioria heterossexual.
Apesar de uma parte considerável dos países
ocidentais terem passado a aceitar
legalmente, nos últimos anos, uniões
estáveis e casamentos civis entre pessoas do
mesmo sexo, os casais gays ainda levam para
a cama um terceiro elemento que fará um
enorme esforço para destruir suas relações.
Fomos buscar no cinema
mainstream (de tendência majoritária)
algumas histórias que acreditamos que podem
corroborar as afirmações que fazemos aqui.
São as obras: O segredo de
Brokeback Mountain (Ang Lee, 2006);
Carol (Todd Haynes,2015), Me chame
pelo seu nome (de Luca Guadagnino,
2018); Com amor, Simon (2018, de Greg
Berlanti). Todos estes filmes foram baseados
em obras literárias. E
acreditamos que, independentemente do
caráter ficcional, eles exemplificam o real
sofrimento que o preconceito da sociedade
causa nas relações homoafetivas.
O segredo de Brokeback Mountain - A
natureza selvagem e montanhosa do Estado do
Wyoming, no Noroeste dos Estados Unidos,
testemunha o nascimento do amor entre dois
homens contratados para cuidar de gado na
região durante os meses de inverno. Entre
uma laçada e outra, entre uma tarefa e
outra, os dois cowboys, Ennis e Jack (Heath
Ledger e Jake Gyllenhall) de aparência
rústica, se entregam às carícias um do
outro. Flagrados em momentos de intimidades
pelo homem que os contratou, os dois são
demitidos ao final da temporada de frio
intenso. Eles retornam para suas cidades, se
casam com mulheres, tornam-se pais, mas,
depois de algum tempo de afastamento, eles
se reencontram e decidem, pelo menos uma vez
por ano, se encontrarem em simuladas viagens
de pescaria aos pés da montanha Brokeback.
O tempo passa e o amor cresce entre
os dois, mas Ennis não admite nem discutir a
possibilidade de assumir uma relação com
Jack. A grandiosidade do amor entre os
cowboys só é percebida por Ennis depois que
um evento trágico acontece com Jack. Então,
quando já é tarde demais, Ennis constata que
sente tanta falta de Jack, “que mal consegue
suportar”. E o que sobra para Ennis é apenas
voltar para a sua vida medíocre, agora
insuportavelmente mais medíocre ainda!
Geralmente, muitos dos que assistem ao
filme ficam bravos com Ennis. Mas como
culpá-lo, se toda uma avalanche de
preconceito o impede de dar vazão aos seus
sentimentos por uma pessoa do mesmo sexo?
Como condená-lo se o preconceito da
sociedade já o julga e o sentencia a uma
pena de morte do seu verdadeiro ser? Como
mandá-lo para o corredor da morte se ele
mesmo se mata a cada dia de sua existência?
Só nos resta esperar que pelo menos a
sociedade que assassina tantos amores e
vidas, como as de Ennis e Jack, um dia se dê
conta disso.
Carol
– Se a sociedade é implacável com homens que
tentam viver a sua homossexualidade, ela é
mais cruel inda com as mulheres. É isso que
se observa no filme Carol, protagonizado
pelas atrizes Kate Blanchet (Carol) e Rooney
Mara (Therese). Nele, a
personagem de Blanchet, a Carol, é uma
mulher com aparência elegante e sofisticada
e, que mesmo casada, ostenta um ar de
independência e de que é dona do seu próprio
nariz. Mas a pose de Carol é derrubada de
forma covarde e implacável pelo seu marido,
assim que ele descobre que ela está tendo um
caso com Therese, a vendedora de uma loja de
departamentos, e que ela pretende
abandoná-lo para viver o seu romance
homossexual.
Mas o marido deixa bem
claro: Carol pode até abandoná-lo, mas ela
jamais verá a filha do casal novamente.
Chantageada e humilhada, Carol se sente
impotente para lutar pela sua relação
amorosa com Therese. O golpe baixo do marido
a faz aceitar resignadamente o casamento
infeliz, sem paixão e sem prazer sexual. O
destino de Carol, que se passa numa história
dos anos 1960, nos parece atemporal e nos
faz imaginar quantas mulheres vivem ou já
viveram dramas semelhantes ao longo dos
séculos. Carol pelo menos tenta lutar por
uma vida mais autêntica e feliz. Não é
incomum ouvirmos casos reais de mulheres
que, apenas na velhice, depois de viúvas,
partem para viver, com outras mulheres, o
amor que não puderam viver na juventude
seqüestrada e roubada pelos seus próprios
pais e maridos.
Me chame pelo seu
nome - O antropólogo norte-americano
Oliver chega a uma pequena cidade do
interior da Itália para fazer uma pesquisa.
Na casa do pesquisador que o acolhe,
ele se instala ao lado do quarto do seu
filho, o jovem estudante, Elio. Aos poucos,
uma paixão avassaladora se desenvolve entre
os dois. O forte amor entre eles dura até o
dia em Oliver termina sua pesquisa e retorna
para os Estados Unidos, para se casar com
sua namorada.
Em seu imenso abandono, só
resta a Elliot chorar, chorar muito!
Este seria apenas mais um típico
roteiro de romances gays que terminam em
amores irrealizáveis, exceto por um motivo,
os pais de Elio o apoiam incondicionalmente.
E cabe ao pai dizer a Elio que não há nada
de errado no amor que ele sente por outro
homem: “Eu posso ter chegado próximo, mas eu
nunca cheguei perto daquilo que vocês dois
têm”, diz o pai de Elio ao seu filho, ao
ressaltar que, no fundo, sente inveja da
intensidade do amor que o filho conheceu.
Elio não para de chorar, mas ele sabe
que tem um apoio fundamental para, talvez,
superar a ausência de seu grande amor que,
por pressão social, decidiu se casar com uma
mulher.
E é exatamente este final do
filme o que o faz diferente de outros com a
mesma temática. Ao invés de condenar o amor
do filho por outro homem, o pai deixa bem
claro que o apoia sem nenhuma restrição.
Elio pergunta se a sua mãe sabe o que
acontecendo. O pai diz que acha que não. Mas
ao longo do filme fica bem claro, em
diversos momentos, que a mãe apenas deixou a
interlocução sobre o assunto com o pai, mas
ele também demonstra toda sustentação ao
filho. E aqui quebra-se o ciclo perverso da
rejeição familiar que tanto faz sofrer os
homossexuais. O desprezo social continua,
mas ele é mais fácil de enfrentar quando se
tem o apoio da família.
Com amor,
Simon – Neste filme, em que o
adolescente Simon, filho de uma típica
família branca da classe média
norte-americana, o conflito gira em torno da
exposição de sua homossexualidade na escola
e em casa. Há no filme uma certa dose de
humor para tratar de um assunto tão sério,
por exemplo, na cena em que ele imagina como
seria se os filhos heterossexuais tivessem
que “sair dor do armário” e contar aos pais
sobre a orientação sexual deles. “Pai, eu
sou hétero!” O roteiro ressalta ainda o
quanto as coisas mais simples da vida de uma
pessoa “hétero” são incrivelmente dramáticas
para os gays. Até que possa levar em casa o
seu primeiro namorado ou namorada, um filho
ou filha homossexual terão que passar por
várias crises, constrangimentos e, às vezes,
brigas e rejeição. Sem contar o medo de ser
expulso de casa. A história do
filme, que se passa na contemporaneidade,
nos traz a esperança de que, a cada nova
geração que venha, o inferno de nascer gay
diminua um pouco.
O importante é frisar
que tanto o cinema quanto a literatura e
outras manifestações artísticas humana são
fundamentais para provocar reflexões sobre a
realidade social. Ao depararmos com o
espelho que as artes colocam na nossa face,
somos obrigados, como sociedade, a refletir
a respeito dos nossos preconceitos e
crueldades com aqueles que destoam do
comportamento da maioria.
A Síndrome Regina Duarte
- Partilhar 11/10/2021
Acredito que não seja necessário ser um
notório pesquisador das áreas da psicanálise
ou psicologia para perceber que, nos últimos
três anos, o Brasil foi varrido por uma
síndrome intrigante: a Síndrome Regina
Duarte. Utilizamos o nome desta atriz porque
ela é um dos maiores exemplos da tal
síndrome, cujos sintomas principais são o
abandono e o desprezo por toda uma carreira
profissional respeitada por décadas junto à
maioria da população brasileira, para
apoiar, seguir e defender (quase que
cegamente) o atual presidente da República
do Brasil, Jair Bolsonaro, político
considerado de extrema direita e que é a
favor, entre outros absurdos, da volta da
ditadura militar (1964-1985) e que recebe em
seu gabinete pessoas que integram o partido
nazista alemão. Regina, que chegou a ocupar
o cargo de secretária da Cultura do governo
Bolsonaro, era tão amada e respeitada pela
maioria dos brasileiros, que recebeu a
alcunha de “namoradinha do Brasil”, uma
homenagem por ter protagonizado as novelas
de maior audiência na Rede Globo nos anos 70
e 80 do século XX.
O Brasil rumo ao totalitarismo evangélico
- Partilhar 11/09/2021
Em
uma das muitas das entrevistas concedidas
aos programas da televisão norte-americana,
nos anos 1980, o cientista Carl Sagan fez
uma advertência que na época parecia
demasiadamente catastrofista, mas que hoje
já é assustadoramente real. De acordo com a
Sagan, a tecnologia nas mãos de pessoas sem
a devida formação intelectual tem um enorme
potencial destrutivo, capaz, inclusive, de
aniquilar a própria sociedade.
E
eu acho que é exatamente isso o que está
começando a acontecer em alguns países, a
partir de uma leitura do uso das redes
sociais para fins políticos.
A Língua Portuguesa nunca foi tão desrespeitada
- Partilhar 10/08/2021
No último dia 31 de julho de 2021, foi reinaugurado, em São Paulo, o Museu da Língua Portuguesa, que estava fechado para reformas desde o mês de março de 2015, quando sofreu um grande incêndio. Entre os presentes ao evento da reinauguração, estavam o presidente português, Marcelo Rebelo de Sousa, e o presidente de Cabo Verde, Jorge Carlos Fonseca, além do anfitrião do evento, o governador do Estado de São Paulo, Jorge Dória. Mas o que chamou a atenção mesmo foi a ausência do presidente de República do Brasil, Jair Bolsonaro, que no momento da reinauguração participava de um comício eleitoral (ilegal) ao lado de motociclistas na cidade de Presidente Prudente, a pouco mais de 100 quilômetros de São Paulo, onde fica a sede do museu. Como disse um repórter que cobriu o evento para um canal da televisão portuguesa “Bolsonaro não fez a menor falta”.
Mas o simbolismo da ausência do presidente brasileiro é impossível de não se notar. Quase todos os brasileiros já sabem do desprezo de Bolsonaro, um analfabeto funcional, pela educação e pelas relações internacionais, entre outros assuntos essenciais ao desenvolvimento de uma nação que se quer fazer respeitar no mundo e, principalmente, entre os seus próprios cidadãos. Mas ainda assim é chocante ver um político, mesmo que populista e que diz colocar o “Brasil acima de tudo”, manifestar tanto desdém em relação a uma coisa tão essencial à construção da ideia de uma nação coesa.
No entanto, se analisarmos uma das principais metas do governo Bolsonaro, que é dividir os brasileiros e se possível nos colocar numa guerra civil armada, como ele já apregoou algumas vezes, faz todo o sentido a ausência do presidente a um evento tão importante. Bolsonaro quer tudo, menos coesão entre os brasileiros. Aliás, como suas ações demonstram diariamente, ele governa apenas para a parcela da população que o apoia fanaticamente. Os outros não o interessam. E a língua Portuguesa, principalmente em seu caráter mais marginal e ofensivo, é o principal instrumento que ele usa para expressar o seu grande ódio àqueles que o contrariam e ameaçam a possibilidade de sua reeleição, o único tema ao qual se dedica 24 horas por dia. E tudo, é claro, ocorre com a conivência do Poder Legislativo, principalmente a Câmara dos Deputados (sob a presidência de Arthur Lira), o único órgão que poderia abrir um dos mais de 100 pedidos de impeachment.
Para um grupo de senadores que o investiga por negligência e suspeita de corrupção na condução dos esforços para combater a pandemia de covid-19, Bolsonaro diz apenas que está “cagando” para eles. O presidente da instância maior da justiça eleitoral brasileira, o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), Luís Roberto Barroso, que abriu inquérito para investigar os excessivos ataques de Bolsonaro à eleição feita por meio de urnas eletrônica, o presidente diz apenas que se trata de “aquele filho da puta”. Para os jornalistas, o ódio do presidente é maior ainda. Diante de perguntas que o constrange, Bolsonaro, além de mandar, grosseiramente, os profissionais da imprensa calarem a boca, ainda dá respostas com adjetivos humilhantes e ultrajantes: “você tem uma cara de homossexual terrível”; “a minha vontade é de encher a sua boca com uma porrada, seu safado”; “vai para a puta que pariu”.
Os adversários políticos, mesmo em eventos oficiais, como numa reunião ministerial realizada em 22 de abril, cuja gravação tornou-se pública, Bolsonaro vai lá nas profundezas da Língua Portuguesa buscar vocabulário escatológico para nominá-los: “aquele bosta”; “seu merda”.
O linguajar de Bolsonaro confirma o quanto ele é inadequado para ocupar a presidência de qualquer país que se diz civilizado. Se ele não respeita o seu próprio povo, como esperar que ele respeite a Língua Portuguesa? Ainda bem que ele não foi à reinauguração do Museu da Língua Portuguesa. A nossa língua-mãe ficaria ruborizada!
Fábio d'Abadia de Sousa
10.08.2021
O pesadelo que é viver no Brasil nos tempos atuais
- Partilhar 11/07/2021
A sensação de viver no Brasil, sob o governo atual, é parecida com a que acontece quando temos um pesadelo no meio da noite. A principal diferença é que o pesadelo acaba quando se acorda. Já o terror de viver no Brasil começa exatamente quando se desperta. Desde que assumiu a presidência do País, há dois anos e sete meses, o mandatário maior da nação provoca pelos menos uma situação de estarrecimento e revolta por dia, seja por falar absurdos indignos de saírem da boca de alguém com tamanha responsabilidade política seja por tomar atitudes que prejudicam a maioria do povo brasileiro. Nunca houve um único dia sequer de silêncio e paz! Nos sábados e domingos, que deveriam ser períodos de descanso, é exatamente quando a verborragia presidencial funciona com maior potência! É desesperador!
Mesmo que se tente ignorar os absurdos pronunciados e anunciados pelo presidente República, inevitavelmente eles acabam chegando aos nossos ouvidos em virtude da grande repercussão que eles sempre têm na mídia e, principalmente, porque eles afetam, inexoravelmente, os destinos do País e cada um de seus cidadãos! Não há como fugir! A não ser que mude para uma nação estrangeira! E isso eu não pretendo fazer!
Enquanto a maioria dos governantes do mundo se esforça para combater os efeitos da pandemia de corona vírus em seus cidadãos, o presidente da República do Brasil luta por potencializar a terrível doença, seja por negligenciar a compra de vacinas seja por tentar impor aos brasileiros remédios ineficazes ou sabotar práticas de distanciamento social e de uso de máscaras impostas por governadores e prefeitos! Um dos exemplos mais nefastos, ocorrido recentemente, foi quando o presidente em um comício eleitoral (sim, eles está em campanha para a reeleição desde que tomou posse, apesar de a legislação proibir) no Rio Grande do Norte, Estado na região Nordeste, ele, sem nenhuma proteção facial e a provocar aglomeração, pegou uma criança de mais ou menos cinco no colo e retirou a máscara dela! Sim, este é o nível do presidente brasileiro!
Mas quando se acha que não é possível descer mais, ele dá um jeito e abaixa mais ainda! Recentemente, em uma réplica a um questionamento feito por uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) criado pelo Senado Federal para investigar omissões e corrupções na gestão da pandemia de corona vírus no Brasil, o presidente foi à internet e disse o seguinte: “Minha resposta para a CPI é caguei”. O termo chulo e escatológico, tão típico do vocabulário do atual ocupante da presidência da República do Brasil, é a forma mais desdenhosa e vulgar de se dizer que não se importa com alguma coisa.
Dizem que cada povo tem o governo que merece! Eu acho que concordo com tal afirmação, mas também sofro muito por ouvi-la. A elite branca e racista do Brasil merece, sim, um governante como o atual, que reflete muito bem os seus valores egoístas e genocidas! Mas a grande maioria do povo sofrido e discriminado do Brasil não merece ser governada por gente tão desqualificada, despreparada, vulgar e preconceituosa! Enquanto isso, eu só fico a sonhar com que este pesadelo infinito acabe algum dia! Fora Bolsonaro! Fora para sempre!
Fábio d'Abadia de Sousa
11.07.2021
Memórias de um menino que vivia num bordel
As fotos que não quero devolver
- Partilhar 10/06/2021
Eu
fui fotografado em duas únicas ocasiões ao
longo de minha infância. As duas vezes
aconteceram durante o rápido período (talvez
pouco mais de um ano) em que fui adotado por
uma família de pequenos agricultores no
interior de Goiás, na região do município de
Silvânia. Só obtive acesso a essas imagens
quando já tinha uns 40 anos, e foi quando,
por acaso, tive um encontro com uma pessoa
que é parente da família que me adotou. Esta
pessoa também era criança, com eu, nos anos
de 1970,
e esporadicamente, eu mantinha algum contato
com ela quando tinha uns cinco anos de
idade, época em que fui “dado” para esta
família de agricultores. “Dar” era o termo
coloquial usado na época quando um pai ou
mãe simplesmente podia doar um filho para
qualquer pessoa que lhe conviesse, sem
passar pela supervisão da justiça. Esta
pessoa me repassou duas fotos nas quais eu
aparecia, desde que eu as devolvesse,
conforme condicionou. Eu ainda não devolvi,
isso porque não quis mais ver essa pessoa.
Ela não me fez nada de mal,
intencionalmente! Mas o fato de essa família
parente dela ter me adotado e, depois, ter
me devolvido para viver com minha mãe nos
bordéis da cidade de Anápolis (GO) é algo
que ainda me machuca. Se esta dor acabar
algum dia (eu duvido!), eu procuro esta
pessoa que me repassou as fotos e eu as
devolvo, mas ainda não consigo.
Eu já
entendi quase que perfeitamente que viver
perambulando com minha mãe pelos cabarés de
Anápolis foi o melhor destino para mim e
algo que, se eu pudesse escolher hoje, eu
optaria pelo mesmo caminho. Mas foi um
caminho mais tortuoso! No pouco tempo em que
vivi com a família de agricultores, a qual
passei a chamar de pai, mãe e irmãos (eles
tinham três meninas e um garotinho), eu
senti uma proteção que jamais experimentei
ao lado da minha mãe. Nos bordéis, junto com
minha mãe, era como se a cada dia fosse
acontecer uma tragédia. E geralmente
acontecia. Ao lado da família de
agricultores, apesar de a mulher me espancar
de vez em quando, eu me sentia parte de uma
rede de segurança que sempre me apoiaria sem
importar o que viesse acontecer.
Infelizmente, esta rede só existia na minha
mente.
E ela
se rompeu completamente no dia em que fui
devolvido. Hoje eu percebo que chorei de
tristeza por dias seguidos não por voltar a
viver errante com minha mãe, mas porque me
senti absolutamente traído pelas pessoas que
me adotaram. Uma traição, para mim, do
tamanho do mundo. Uma traição só porque eu
não era o filho ideal que eles almejavam!
Acho que é um milagre que ainda tenha
voltado a confiar em pessoas! Mas, se a
minha vida, na infância, teve muitas dores,
ela também teve muitos milagres. Aliás, cada
dia em que sobrevivia era um milagre! E
foram tantos milagres que eu não perdi a
confiança nas pessoas e que, além disso, eu
aprendi a confiar em anjos! Quando as
pessoas me abandonaram absolutamente, lá
vinham os anjos segurar a minha mão, anjos,
quase sempre na forma de pessoas, é claro!
É por
isso que perdoo as pessoas! E por isso,
principalmente, que perdoo a mim mesmo por
ser também, às vezes, tão falho quanto todos
os humanos que me cercam!
Ainda
não consigo devolver as fotografias, talvez
por me sentir o verdadeiro dono delas.
É a
minha vida que aparece nelas! Talvez também
por querer, deliberadamente, magoá-los! Acho
que eles me magoaram muito mais! Mas não é
por isso que não devolvo as fotos, elas são
uma prova de que vivi tudo isso que acho que
vivi, mesmo que as imagens me mostrem em
situações de exceção. Numa delas, ao fazer
parte de uma cerimônia de casamento, eu
apareço ricamente (eu acho isso) vestido em
um terno infantil, inclusive com gravata
borboleta.
Na
outra imagem, da qual eu me lembro com certa
clareza, era um domingo especial no qual
toda (e apenas) a minha (então) família
aparece, acho que ao redor de um bolo. Sim,
na minha infância, eu tive uma família
padrão como quase todo mundo, mesmo que por
pouco tempo!
Um
dia eu fui parte de uma rede de proteção!
Hoje,
eu acredito que o caminho que os desígnios
da existência estabelece para gente é
realmente aquele pelo qual devemos trilhar!
Será que teria tanto orgulho da jornada que
segui se tivesse ficado com a aquela família
de agricultores? Tenho quase certeza que
não! Mas sou imensamente grato a eles por
terem sido um oásis na jornada da minha
infância, quase sempre caminhada em
escaldantes dunas desérticas! Obrigado por
terem sido meu pai, minha mãe e meus
queridos irmãos! Ah, um dia eu devolvo as
fotos a vocês! Eu acho!
Ah, Eu estou bem! Maravilhosamente bem!
Memórias de um menino que vivia num bordel
O desmaio
- Partilhar 11/05/2021
Morar
com pessoas pagas pela minha mãe para cuidar
de mim e minha irmã frequentemente resultava
em agressões físicas e psicológicas contra
nós dois. Mas, às vezes, morar com minha mãe
significava mais maltratos ainda. As
pressões que ela sofria do mundo em que
tentava sobreviver eram enormes e,
frequentemente, a deixavam irritada e mal
humorada. Quem sofria as consequências, é
claro, éramos minha irmã e eu,
principalmente eu. Os tapas, empurrões,
chineladas, beliscões ou agressões com os
primeiros objetos que minha mãe via à sua
frente eram mais dirigidos a mim do que para
minha irmã. Isso porque eu, além de ser três
anos mais velho, eu era mais saudável. Minha
irmã sofria de uns desmaios nos quais ela
ficava tremendo e com o olho arregalado.
Periodicamente, lá estava minha irmã tendo
suas crises. Eu não sabia que doença era,
mas percebia que ela garantia à minha irmã o
direito de não ser agredida com muita
violência.
Um
dia, depois de levar uma forte surra eu fui
colocado de castigo sentado numa cadeira, da
qual não podia sair de forma alguma, sob a
ameaça de levar uma surra mais forte ainda.
“Você só apanhou de tapas e pescoções
(fortes empurrões), se sair da cadeira eu
piso no seu pescoço”, avisara minha mãe. Só
me restava ficar sentado. Então, depois um
longo período imóvel naquela cadeira, talvez
horas, eu não suportava mais! Foi quando me
veio à cabeça a ideia de fingir um desmaio
semelhante aos que minha irmã sofria. Eu me
joguei no chão e fiquei tremendo e com os
olhos arregalados.
A
minha mãe viu aquilo e entrou em pânico! Me
socorreu, me levou para a cama e chamou um
taxi para me levar para o hospital. “Fábio,
acorda, meu filho! O que aconteceu?” Eu
fiquei caladinho. Se ela sonhasse que era um
teatro para fugir do castigo, eu sabia que
ela pisaria no meu pescoço! Só no hospital,
quando o médico passou um remédio federento
no meu nariz, eu fingi acordar! Então, fomos
para o casa e castigo foi encerrado.
Este
desmaio valeu a pena! Ele fez com que minha
mãe se tornasse um pouco mais afetuosa e
menos violenta comigo. Sofro muito quando
lembro deste acontecimento. Uma forte dor
emocional toma conta de mim. Fico imaginado
o quanto as crianças são vulneráveis diante
da ira daqueles que deveriam protegê-las.
Ser espancado e sofrer castigos violentos
era a sina de uma boa parte das crianças
pobres que viveram naquela época. Não havia
uma legislação que as protegessem. As
pessoas de fora da família raramente
interferiam. Naquela época, era natural que
os pais espancassem os filhos. As agressões
de minha mãe não significavam que ela não
gostasse de mim! Para ela, educar era bater!
Ela também foi criada sendo espancada
violentamente pelos seus próprios pais. E
depois, sendo espancada com toda severidade
pela vida. Eu ainda não entendo bem, mas
acho que as agressões contra mim e minha
irmã eram uma forma de ela aliviar um pouco
a dor da sua própria existência.
De qualquer forma, as surras de minha mãe prepararam o meu couro para as agressões e castigos bem mais cruéis que veriam logo depois, quando eu fosse morar no internato! Lá, sim, as surras dadas pelos homens que tomavam conta das crianças me fizeram ver que as agressões da minha mãe não eram tão implacáveis assim! De qualquer, a todos que me agrediram física e psicologicamente, inclusive minha mãe, eu apenas tenho a dizer que eu os perdoo! A vida me deu muito mais amor do que surras e me deu muito mais carinho do que agressões! O ódio e a revolta que plantaram em mim não floresceram! E é isso o que importa!
Memórias de um menino que vivia num bordel
Uma vida de riquezas
- Partilhar 12/12/2020
Há
incontáveis motivos pelos quais escrevemos
sobre nós mesmos. Às vezes, para
compreendermos o que nos aconteceu e nos
libertarmos do peso do passado, às vezes,
apenas para relatar fatos interessantes e
incríveis que vivemos ao longo dos anos. No
início da empreitada de escrever sobre minha
infância, eu não sabia direito o motivo que
me arrastou para esta tarefa inconveniente
de cavar um passado que parecia tranquilo e
serenamente enterrado na lápide do tempo. À
medida em que a narrativa avançava, eu fui
percebendo que escrevi principalmente para
buscar conhecer melhor aqueles com quem
convivi nos meus primeiros anos de vida. E,
ao conhecê-los, eu ampliei o conhecimento
sobre mim mesmo.
Mas
eu encontrei mais do que autoconhecimento.
Durante muito tempo, por exemplo, eu achava
que minha mãe era a principal vilã da minha
história. Eu a culpava pela vida miserável
que tive que enfrentar assim que nasci lá no
bordel da Dona Tonica, em 1968, na cidade de
Anápolis, no interior de Goiás. Então,
enquanto escrevia, foi ficando muito mais
claro que minha mãe era, na verdade, a
heroína do filme da minha vida. Em relação
aos meus tios, por exemplo, que também
tiveram papel importante no roteiro da minha
existência, eu troquei o desprezo pela a
admiração.
Sim,
chorei muito enquanto construía cada
parágrafo! E ao final, chorei mais ainda!
Chorei porque, ao contrário do que
imaginava, eu nunca estive só! A minha
infância não foi pautada apenas pelos
abandonos que eu insistia em ver. Foi e tem
sido uma vida de pequenos e grandes
milagres! Se fui e ainda sou digno de
receber tantos milagres, então, é porque
tenho uma vida abençoada! E, na minha visão
hoje, isso fez e faz valer a pena todos os
obstáculos pelos quais passei e passo.
Hoje
percebo claramente que a maior solidão que
um ser humano pode enfrentar é a sua própria
incapacidade de enxergar os pequenos e
grandes milagres que o cerca em seu dia a
dia. E, uma vez que passamos a vê-los, a
vida deixa de ser apenas suportável e
insuportável e vira uma prolongada infância.
Quem disse que o deslumbramento diante do
mundo, próprio das crianças, não pode ser
resgatado na vida adulta? Será que tudo tem
que parecer pesado e dramático? Será que a
vida é apenas correr atrás de um salário
medíocre ao final do mês e pagar contas e
mais contas? Será que é só sonhar com uma
aposentadoria que talvez nunca chegue?
Então, construir esta narrativa me ajudou a
ficar mais atento a detalhes sutis da minha
existência, que o meu lado de homem adulto
de 50 anos nem sempre presta a devida
atenção.
O adulto resgatou o menino e o menino resgatou o adulto! Foi este o principal efeito desta escrita sobre mim. Presente, passado e futuro se fundiram nesta busca que é a maior fortuna que eu poderia almejar: ter uma existência em que eu perceba os pequenos e grandes milagres que me acontecem diariamente! Obrigado mãe! Obrigado Deus! Obrigado Universo! Eu, que na infância sonhava ser rico, conquistei uma vida de riquezas!
Memórias de um menino que vivia num bordel
O último Natal sem presentes
Era
época de Natal. Eu tinha uns seis ou sete
anos, não lembro a idade exata. Mas lembro
que eu sempre ficava meio ansioso. Era época
de sonhar com presentes. E eu sonhava muito.
Eu tinha sempre a esperança de que o novo
Natal seria diferente dos que eu vivi em
anos anteriores. Sim, desta vez, o Papai
Noel se lembraria de mim, e eu ganharia
muitos brinquedos! Eu mentalizava infinitos
tipos de presentes que eu gostaria de
ganhar: bolas de futebol, carrinhos, roupas
e sapatos novos, um par de patins (meu Deus,
como eu queria patinar pelas ruas!) ou, quem
sabe, uma bicicleta novinha!
Mas o
Natal passou e eu, novamente, fui esquecido
pelo Papai Noel! Eu via as outras crianças
se divertindo com os brinquedos ganhados no
dia 25 de dezembro. Eu ficava triste, é
claro! Mas não derramava nenhuma lágrima! Lá
no fundo eu já sabia que os presentes nunca
chegariam para mim! Com a cabeça baixa, eu
aceitava o descaso do papai Noel comigo com
certa resignação. “Deixa pra lá!”
Mas
aquele Natal não foi totalmente triste.
Eu
conheci a Dona Leontina, a senhora baixinha
que frequentava todas as missas na igreja em
frente à praça onde minha mãe e meus tios se
embriagavam. Eu não sabia, mas estava diante
de um anjo! Eu não tinha sido totalmente
ignorado pelo Papai Noel! Àquela altura,
Dona Leontina já tinha falado com o Padre
Lancísio para que me levasse para o orfanato
dele, em Silvânia, cidade nas proximidades
de Leopoldo de Bulhões, onde minha família
morava. Estava tudo já devidamente
arranjado. Eu poucos dias eu deixaria para
trás aquela vida de total miséria!
Os
sinos da igreja tocaram com mais insistência
naquele dia! A missa de Natal se encerrava!
Eu gostava de ouvir os sinos! Cada badalada
parecia falar comigo. E, de repente, alguém
realmente veio conversar comigo! Era Dona
Leontina! Ela disse que minha mãe tinha me
autorizado a almoçar em sua casa. Ela era
uma senhora baixinha e que andava meio
curvada e apoiada em uma bengala, como se
tivesse algum problema grave na coluna.
Então, lá fui para a casa de Dona Leontina.
Ao chegar lá, eu fui surpreendido com um
almoço farto e com comidas variadas e
gostosas.
Tinha
muitas carnes, arroz colorido com uvas
passas, doces variados e muito refrigerante!
Uma delícia! Era realmente uma fartura
inédita para mim! Mas o que mais me fascinou
naquela casa com quintal enorme e cheio de
árvores frutíferas foi o presépio. Meu Deus,
como era lindo! O menino Jesus e seus pais
eram cercados por dezenas de outras
pequenas esculturas de santos e animais!
Eu
passei muito tempo admirando aquilo tudo!
O
presépio me fascinou mais do que a comida
abundante!
Então, Dona Leontina perguntou: “Fábio, você
gostaria de morar no internato do Padre
Lancísio? Lá você vai estudar, vai ter
comida boa todo dia, vai ter amiguinhos,
roupa limpa, tudo”.
É
claro que eu disse sim, sem nem mesmo
pensar! Naquela época eu sonhava muito com
brinquedos, mas eu sonhava mais ainda em ir
para a escola. Como eu invejava as crianças
que passavam por mim a caminho do colégio,
com seus uniformes limpos, pastas escolares
nas costas e lancheiras coloridas. Meu Deus,
era tudo que eu queria! “Então, arruma suas
roupas que, no próximo domingo, você vai com
o Padre. Eu já falei com sua mãe, ela
autorizou. Está tudo arranjado! Vem comer
mais doce”, disse ela.
Hoje,
quando lembro desse dia, eu sinto a certeza
de que eu nunca fui esquecido pelo Papai
Noel! Naquele Natal eu fui agraciado com um
presente que compensou todos os outros
natais em que não ganhei nenhum brinquedo. O
meu presente foi algo mais fantástico do que
qualquer brinquedo! Eu ganhei um futuro,
algo que definitivamente eu não tinha ao
lado da minha família.
Hoje,
quando lembro daquele dia, eu sou invadido
por um imenso sentimento de gratidão e pela
sensação de que nunca estive realmente
sozinho, abandonado e desprezado, como já
cheguei a achar, muitas vezes, que estava!
Não maldigo a família que tive.
Como
já disse, se eu eu tivesse que renascer e
tivesse a opção de escolher a minha mãe, eu
escolheria a mesma Dona Irani e meus tios
heróis. Na minha jornada pela vida eu
conheci muita dor, mas conheci muitos anjos
também. Dona Leontina e o Padre Lancísio
foram alguns desses anjos, mas minha mãe e
meus tios também foram os melhores anjos que
eu poderia ter! Eu nunca estive abandonado!
Eu nunca estarei! Sempre que caio. E eu caio
muitas vezes! Lá vem os meus anjos a me
ajudar a levantar e a retomar a minha
jornada novamente! Eu nunca conseguirei
expressar toda a gratidão dentro de mim! Eu
não tenho o direito de não acreditar em
milagres!
No
domingo seguinte, eu arrumei a minha mala:
um saco de papel feito para embrulhar pão,
onde coloquei toda a roupa que tinha: uma
calça boca-de-sino azul, um shortinho e uma
camiseta. E lá fui eu esperar o padre
Lancísio. Minha mãe não compareceu. Foi a
última vez que vi a Dona Leontina e os meus
tios.
O
padre olhou para mim e perguntou: “Cadê a
sua mala? Eu mostrei o saquinho de pão.
“Entra, meu filho!” Minha vida nunca mais
seria a mesma.
Memórias de um menino que vivia num bordel
Meus três tios heróis
Dizem que toda família tem pelo menos um
indivíduo que destoa completamente, em
termos de personalidade e comportamento, dos
outros membros do clã. Esta pessoa, como
todos sabem, é chamada preconceituosamente
de “ovelha negra”, termo considerado
politicamente incorretíssimo no Brasil de
hoje. Perdoem-me, mas ainda recorro a ele
por falta de expressão que explique melhor o
que quero dizer. Pelo o que eu sei, minha
mãe teve seis outros irmãos, quatro rapazes
e duas garotas. Entre os sete irmãos não
havia uma “ovelha negra”, mas cinco delas. E
parece-me que quem liderava o rebanho dos
“desgarrados” era a minha mãe. Dois dos sete
irmãos dela se casaram e foram ter aquilo
que se chama de “vida normal”. Não os
mencionarei mais, pois tive pouquíssimo
contato com eles. Além disso, “vida normal”
não me interessa! Tenho que mencionar, é
claro, a quinta “ovelha negra” da família, a
irmã caçula da minha mãe, que não conheci e
cujo nome nunca soube (pois as pessoas se
referiam a ela apenas pelo apelido de
“Nenê”), e que faleceu em frente ao bordel
de Dona Tonica, em Anápolis (GO), atropelada
por um caminhão. A morte trágica e prematura
da irmã era apenas uma das grandes dores que
acompanhavam minha mãe. Empurrada pela
miséria, “Nenê” também se tornou prostituta
e seguiu os passos da irmã mais velha.
Quando se referia à irmã caçula, minha mãe,
além do pesar, quase sempre demonstrava
também um pouco de culpa pelo o que
aconteceu com a caçulinha adorada por ela.
A
solidão e a falta de apoio familiar de minha
mãe só eram amenizadas pelo grande carinho
de três dos seus irmãos: Manuel (Mané),
Sebastião (Bastião) e Valdomiro (Domiro).
Este trio, sempre que tinha uma folga no
trabalho árduo da lavoura, fazia questão de
visitar minha mãe. Juntos e com algumas
garrafas de cerveja e cachaça, eles formavam
uma família que tentava se divertir e ser
feliz, independentemente das críticas e dos
olhares de desprezo do restante do clã!
Constatar a forte ligação dos quatro é
importante para entender o que viria a
acontecer com Vicente. Para os três rapazes,
as surras aplicadas por Vicente contra a
minha mãe era algo inadmissível! Mesmo que
não tenham sido julgados e condenados pelo
assassinato de Vicente, os meus três tios
não saíram impunes. A vida não os deixou sem
nenhuma sentença condenatória! E nem àqueles
que conviviam com eles.
Depois do assassinato de Vicente, a
decadência da minha família se acelerou
consideravelmente. É fato que ninguém
conhecia a prosperidade na nossa família,
mas o nível de miséria cresceu tanto que
a falta de comida se tornou algo freqüente.
Dormir com fome quase virou regra, inclusive
para mim. Faltava tudo em casa, menos a
cachaça. Como eu nunca bebi cachaça, dormia
de barriga vazia mesmo! Minha mãe e seus
irmãos, que antes se embriagavam nos finais
de semana, passaram a ficar bêbados de
segunda a segunda. Meus tios nem se davam ao
trabalho de voltar para casa, um humilde
barraco abandonado, sem água encanada e sem
energia elétrica, que eles invadiram na
periferia da pequena cidade de Leopoldo de
Bulhões (GO). Eles passavam a maior parte do
tempo acampados na principal praça da
cidade, em frente à maior igreja local e, é
claro, em frente ao bares onde compravam o
veneno que os matavam em doses: a pinga.
Mas
nem sempre foi assim, os irmãos de minha mãe
eram lavradores recatados, dignos, honestos,
equilibrados e que sobreviviam capinando,
roçando, fertilizando, colhendo e ensacando
café em fazendas dos municípios de Leopoldo
de Bulhões e Silvânia (GO). Com enxadas,
foices e machados, eles trabalhavam desde
que eram meninos bem pequenos, pois quase
sempre acompanhavam o pai deles, o meu avó
Otávio, na árdua missão de tirar alimentos
da mãe Terra. Eram lavradores esforçados.
Para mim, foram e ainda são heróis.
Eles jamais foram à escola. Pobre não
ia à escola no Brasil dos anos 40 e 50,
época em que meus tios eram crianças e
adolescentes. A miséria do País era bem
distribuída para eles. Roupas, tinham
pouquíssimas! Poucos dentes sobreviviam em
suas bocas. Eram arrancados sempre que
doíam! No entanto, eles pareciam felizes.
Quando juntos, estavam sempre sorrindo e
falando piadas engraçadas, mesmo sob o sol
escaldante, enquanto capinavam lavouras ao
longo da vida. Eu e minha mãe, às vezes,
os acompanhávamos na lavoura, como na
colheita e na fertilização de cafezais.
Odiava vê-los bêbados! Mas hoje entendo!
Bebiam para suportar a vida difícil que
tinham. Trabalhavam, trabalhavam, mas mal
ganhavam para comer e vestir com decência.
Bebiam, bebiam porque queriam, apesar
de tudo, estar sempre felizes! Eles jamais
cortariam seus pulsos! Não eram covardes!
Aceitavam a vida do jeito que ela se
apresentava: cruel, implacável e injusta,
muito injusta! Lembro um dia em que o dono
de uma fazenda e seus capangas os
perseguiram, armados com espingardas, para
impedir que eles fossem embora de uma
propriedade onde trabalharam três meses sem
receber nenhum salário. Foram obrigados a
trabalhar até o final da colheita de café
sem ganhar nada em troca, exceto uma comida
que parecia mais uma ração para porcos.
Infelizmente, os resquícios da escravidão
contiuaram e ainda permanecem hoje, em plena
década de 20 do século XXI, no Brasil.
Sim,
meus tios mataram o Vicente, mas, acima de
tudo, mataram suas consciências tranqüilas!
Depois da morte de Vicente, suas vidas
miseráveis perderam a tranqüilidade, o único
bálsamo que ainda lhes restava na alma. Eles
mataram o Vicente, mas jamais os verei como
assassinos! Eles mataram o Vicente, mas
acima de tudo, mataram a si mesmos! Se
mataram em vida: a pior das mortes! Eles
mataram também um pouco do meu grande amor
por eles! Mas eu jamais os condenarei! Eles
já tiveram a pior das condenações: nasceram
na parte mais miserável de um País muito
rico e totalmente injusto! Quem sou eu para
julgá-los! Dos meu três tios heróis, tento
guardar suas tagarelices, suas piadas e suas
tentativas desesperadas de serem felizes!
Eles foram um pouco do pai que nunca tive!
Eles foram um pouco da família que nunca
tive! Eles são um pouco da lembrança de que
uma família apóia uns aos outros! Eles
mataram o Vicente para apoiar a minha mãe!
Mas acho que ela foi quem mais morreu!
A vida é assim: estranha e cheia de paradoxos inconciliáveis! Mas uma grande lição meus tios me deixaram: a vida não é para ser questionada, pois jamais haverá respostas satisfatórias! A vida é para simplesmente ser vivida! Embriagado ou não! Miserável ou não (há vidas não miseráveis?)! E se eu não me embriago, como eles, o problema é meu! Talvez eu apenas sofra um pouco mais!
Memórias de um menino que vivia num bordel
Um príncipe tira minha mãe “daquele lugar”
A canção “Eu vou
tirar você desse lugar”, do cantor Odair
José era uma das mais ouvidas, nos
primeiros anos da década de 70, nos
bordéis da cidade de Anápolis (GO). Em
plena ditadura militar, quando a censura
não permitia que se falasse, em uma
canção, as palavras cabaré, bordel, zona
etc. No entanto, até um menino de seis
anos, como eu naquela época, entendia
que o “desse lugar” se referia a um
local de prostituição. A canção narra a
história de um homem que foi a um
prostíbulo porque “precisou de carinho”
e que ele se apaixonou pela mulher com
quem fez sexo. Então, ele promete: “Eu
vou tirar você desse lugar\ Eu vou levar
você para ficar comigo\ e não interessa
o que os outros vão pensar...”
Pelo que eu ouvia das
conversas de minha mãe com suas colegas,
quase todas as prostitutas tinham o sonho de
serem tiradas “daquele lugar”, apesar de não
acreditarem muito em príncipes encantados.
Minha mãe, no entanto, foi surpreendida pela
vida com um “príncipe” que a tirou “daquele
lugar” e que a levou (com filhos e tudo)
para ficar com ele. Vicente, este era o nome
do príncipe de minha mãe, também não se
interessou pelo que os outros pensaram da
sua atitude, inclusive sua família. Aliás,
Vicente tinha uma família que possuía uma
casa bonita e grande em um bom bairro de
Anápolis. Mas, para viver com minha mãe, ele
teve que sair de sua bela casa. Eu não
lembro direito qual era a profissão de
Vicente, se é que ele tinha alguma definida,
mas, com seu trabalho, conseguia pagar o
aluguel de barracões em bairros da periferia
de cidade e colocar comida na mesa, como um
pai de família decente faz. Eu lembro,
por exemplo, de ele levar minha mãe, eu e
minha irmã para fazer grandes compras de
alimentos no supermercado. Vicente adotou a
família de minha mãe como se fosse sua!
No entanto, Vicente
também cumpriu a profecia popular que diz
que todo príncipe vira sapo! Uma pena! Minha
irmã e eu éramos felizes sob os cuidados de
Vicente. Minha mãe tinha muitas afinidades
com Vicente, inclusive o gosto pela bebida
alcoólica em excesso! Nossas vidas
funcionavam relativamente bem durante a
semana. Mas, quando chegavam o sábado e o
domingo, sempre tinha confusão! Os dois,
como se diz na linguagem popular, “bebiam
até cair!” E caiam tanto que, às vezes, os
donos dos imóveis que alugávamos
simplesmente nos expulsavam de casa sem nem
mesmo darem um prazo razoável para fazer a
mudança.
Mas o pior eram as
brigas dos dois. Vicente, quando bêbado,
adorava quebrar os móveis e louças da casa.
Gostava de quebrar também a cara de minha
mãe, que sempre estava com um olho roxo e
escoriações pelo corpo. Às vezes, no meio da
noite, minha mãe pegava a minha irmã e eu, e
fugíamos em direção a alguma delegacia de
polícia, na qual ela jamais tinha coragem de
entrar e denunciar Vicente. Na
segunda-feira, minha mãe sempre voltava para
Vicente e nossas vidas seguiam normalmente,
até que chegava um outro sábado ou domingo.
Certo dia, um dos
vários irmãos de minha mãe soube do que
estava acontecendo. Ele apareceu em nossa
casa e obrigou minha mãe a deixar Vicente.
Então, mudamos com ele para a pequena cidade
de Leopoldo de Bulhões (GO), onde viviam
outros três irmãos de minha mãe. Apesar das
surras, minha mãe amava absolutamente o seu
“príncipe” Vicente. Ele também a amava
absolutamente. Uma semana após chegarmos a
Leopoldo de Bulhões, lá aparece Vicente! A
se humilhar e a implorar por perdão, Vicente
jurava que não a espancaria mais! Mas o
problema é que Vicente tinha duas
personalidades bem distintas. Quando sóbrio,
era realmente um príncipe! Mas, quando
alcoolizado, virava um monstro, que não
chamarei de sapo para não ofender os
bichinhos!
Vicente prometeu algo
que o seu lado obscuro não conseguiria
cumprir jamais! As noitadas regadas a muito
pinga logo voltaram. E com elas, os
espancamentos de Vicente contra minha mãe.
Até que um dia, três dos quatro irmãos de
minha mãe se juntaram e atraíram Vicente
para uma emboscada, onde o mataram a golpes
de machado, como soube posteriormente! A
família de Vicente nunca pode enterrar o seu
corpo, que jamais foi encontrado. Este foi o
fim do príncipe de minha mãe! Ela nunca mais
seria amada como Vicente a amava. Ela nunca
mais seria esmurrada como Vicente a
esmurrava! E assim terminou talvez a maior
história de amor da vida da minha mãe. Na
época, talvez para suportar o peso da
situação, fiquei totalmente indiferente! Até
porque não podia fazer nada. Mas hoje
percebo que minha mãe sofreu muito em seu
relacionamento com Vicente. Percebo também
que a vida dos dois foi um “microcosmo” da
crueldade da sociedade brasileira, que cria
os meninos exatamente para serem como
Vicente foi: um monstro que expressa a sua
virilidade por meio de gritos, chutes,
murros, pontapés, facadas, pauladas e tiros.
Sim, minha mãe sofreu! Mas Vicente também
foi vítima desta sociedade extremamente
violenta e que produz anualmente
estatísticas assustadoras de mutilações e
assassinatos de mulheres e, é claro, também
de homens! Somos seres criados para o
fracasso da vida em família! Somos criados
para nos agredirmos e nos matarmos! Que
sociedade infeliz!
E o pior é que, cerca
de 45 anos após a morte de Vicente, pouco
mudou no caráter violento da vida social
brasileira. Há mais ou menos um ano (em
agosto de 2019), por exemplo, eu andava nas
proximidades do terminal rodoviário da
cidade de Goiânia, a capital de Goiás,
quando, ao atravessar uma feira improvisada
de roupas, me deparei com um vendedor
ambulante agredindo violentamente a sua
companheira. O rosto dela já estava ferido e
ensanguentado e ela apenas cuspia sangue e
chorava como uma criança totalmente
desamparada. Dezenas de pessoas ao redor
simplesmente ignoravam o drama da mulher
espancada. Em vez de me envolver na
situação, como já fiz várias vezes ao longo
da vida, eu saí correndo em direção a um
posto policial localizado a mais ou menos
500 metros de onde ocorria o espancamento.
Eu simplesmente queria que aquele homem
fosse preso em flagrante!
Eu estava chocado e
as lembranças dos espancamentos de Vicente
contra a minha mãe, sempre me vêm à mente em
situações como esta! Mas o meu choque foi
maior ainda quando, ofegante, narrei a
situação para os dois policiais em plantão
no posto. Eles riram, desdenharam e um
deles, diante da minha insistência, apenas
disse: “Não vamos intervir, não adianta,
mulher gosta de apanhar!” Boquiaberto e
incrédulo, eu saí correndo em direção a uma
delegacia de polícia localizada a mais ou
menos uns 900 metros de onde estava, para
pedir ajuda para aquela mulher, que, naquele
momento, era como se fosse minha mãe.
Novamente, eu fui recebido com indiferença e
sarcasmo e policiais civis se recusaram a
tomar qualquer providência. Eu estava sem
telefone celular, mas, felizmente, em frente
à delegacia de polícia, havia um telefone
público que ainda funcionava (um milagre!).
Liguei o número de emergência e minha
denúncia, mais uma vez, foi ignorada. Chorei
de raiva, chorei pela minha mãe e xinguei
muito! Foi só o que pude fazer! Esta é a
sociedade brasileira! Um Estado omisso e
cúmplice nos atos de violência contra as
suas cidadãs! Isso em 2019! Até
quando?
Um filho que já viu sua mãe ser espancada jamais esquece o horror que é a situação! Mas, como estou no Brasil, eu tenho de agradecer por não ter presenciado minha mãe ser assassinada na minha frente, como milhares de crianças vêem todos os anos por todos os cantos do país! Em relação ao Vicente, eu peço que sua alma perdoe a nossa família! Mesmo com tanta violência e tanta dor ele foi o príncipe que minha mãe pôde ter! Ele não teve muito a ver com os príncipes de contos de fada! Mas teve a ver com os príncipes possíveis em uma terra encantada chamada Brasil! Descanse com os anjos, Vicente!
Memórias de um menino que vivia num bordel
A estrela mais
brilhante
Houve momentos na minha vida de criança
que minha mãe me magoou muito. Mas hoje
quando penso na vida que ela teve, eu
fico chocado com o quanto ela também foi
magoada e maltratada em sua rápida e
absurdamente cruel existência. Eu ainda
sofro quando penso na única vez em que
ela me visitou no orfanato – quatro ou
cinco anos após ela permitir que eu
fosse (felizmente) levado para lá. Eu
fugi quando apareceu lá aquela mulher,
completamente açoitada pela decrepitude
física a afirmar ser minha mãe! “Não,
ela não é minha mãe”, gritei e saí
correndo para longe! Somente admiti
vê-la depois que as freiras insistiram
muito comigo! Mas muito mesmo! Minha mãe
estava esquálida (talvez com fome),
suja, maltrapilha, doente, desdentada,
aparentemente alcoolizada e calçava uma
sandália havaiana incrivelmente surrada
e que não protegia mais seus pés
empoeirados e feridos! Aquela mulher
morena e linda que me trouxe ao mundo,
lá no bordel da Dona Tonica, na existia
mais! Eu não lembro nada do que ela me
disse naquele dia e nem se eu disse
alguma coisa a ela. Eu devia ter uns
nove ou dez anos. Eu só queria chorar!
Eu só queria chorar um mar de lágrimas,
talvez para curar um pouco as suas dores
e suas chagas tão expostas e, quem sabe,
também para limpar a minha vergonha e o
meu constrangimento de que todos estavam
vendo que eu era filho de uma pessoa
completamente diferente daquela mulher
da qual eu falava a respeito para todo
mundo. Hoje, o meu constrangimento é por
ter constrangido ela! Eu não lembro
direito como eu a descrevia para as
pessoas do internato, mas eu sempre
falava de uma mulher muito bonita, muito
forte, muito capaz, muito rica! E que um
dia me buscaria daquele orfanato. De
repente, aparece lá a Dona Irani (este
era o lindo nome dela: Irani), tão
diferente da mãe que eu ostentava com
doces, amáveis (e talvez mentirosas
palavras) para todos no internato! Eu só
queria chorar um mar de lágrimas! Eu só
queria morrer! Mas não morri!
Ela,
sim, morreu poucos meses depois da visita,
na cidade de Leopoldo de Bulhões (GO), a uns
50 quilômetros Silvânia, onde ficava o
internato. Quando soube, talvez um ano
depois, eu não sofri muito. O sofrimento foi
chegando somente com o meu amadurecimento,
depois dos 30 anos, quando comecei a parar
de culpá-la pela minha miséria ao longo dos
anos. Quando comecei a assumir, de fato, a
minha própria vida com o que conquistei de
bom e ruim, é que entendi o significado
daquele dia. Hoje sei que foi muito bom
vê-la, mesmo que já semi-morta, a se
esforçar para se despedir de mim. Foi um
gesto de muito amor! Não lembro nada do que
dissemos um ao outro, mas a presença dela
foi uma maneira de falar que era eu especial
para ela. Eu era especial para alguém no
mundo! Hoje, entre outras coisas, imagino
que ela não tenha me visitado antes talvez
pelo simples fato de não ter dinheiro para
pagar uma passagem de ônibus, por exemplo!
Naquele tempo, era comum pessoas, como minha
mãe e seus irmãos, se deslocarem de uma
cidade para outra a pé. Eu mesmo já fui com
eles a algumas dessas viagens! Eram horas e,
às vezes, dias sob o sol escaldante ou chuva
fria! De qualquer forma, ela sabia que eu
estava vivendo muito bem sob os cuidados dos
padres, freiras e irmãos Maristas. Ela sabia
que eu tinha todas as refeições necessárias
à sobrevivência digna de uma pessoa a cada
dia, um luxo que, com certeza, ela não
possuía!
A
vida profissional de uma prostituta dura
tanto quanto a sua beleza e o viço de sua
pele! E a fase de decadência de minha mãe
começou e se acelerou à medida em que ela
foi se viciando em álcool. Ela chegou a ser
expulsa do bordel da Dona Tonica por causa
da bebida. E aí sua vida piorou
drasticamente! Ela nunca mais teve
estabilidade. Vivia mudando de cabaré em
cabaré! Era enxotada de uns, fugia de
outros! O dinheiro que ganhava mal dava para
pagar pessoas para cuidar de mim e de minha
irmã, quatro anos mais nova, e que nasceu
enquanto eu tinha sido adotado por uma
família de pequenos agricultores no interior
de Goiás. Depois que essa família me
rejeitou e me devolveu para minha mãe, um
longo inferno astral se abateu sobre minha
mãe e, consequentemente, sobre as suas
crias. Assim como eu, minha irmã também não
tinha qualquer ajuda por parte de pai.
Sequer soubemos os seus nomes! Hoje a
Justiça brasileira obriga os homens a
pagarem pensão alimentícia a seus filhos,
basta que um exame de DNA comprove a
paternidade. Mas naquela época, início dos
anos 70 do século passado, a omissão e
covardia masculinas eram completamente
impunes. Ainda mais quando a mãe era uma
prostituta!
Então, minha mãe tinha que bancar tudo
sozinha! Às vezes, fico imaginando o
pesadelo que deveria ser para ela ter que
sustentar filhos sem nenhuma ajuda! Então, à
medida que minha mãe ia decaindo na
profissão, eu e minha irmã íamos sendo
cuidados por gente mais pobre e despreparada
ainda. Numa dessas casas eu fui estuprado
por um pedófilo filho da mulher que minha
mãe, tão sofridamente, pagava para ela
supostamente cuidar de mim. Os pedófilos
faziam a festa, já que naquela época, eu
acho, que isso nem era crime! E se era,
ninguém denunciava! Quanto mais miserável e
barato era o lugar em que eu e minha irmã
morávamos, mais ficávamos vulneráveis a maus
tratos. Numa outra casa, minha irmã e eu
passamos a ser violentamente espancados pela
mulher paga para cuidar de nós. Sim, ela
cuidava, mas com pauladas, varadas,
sapatadas, chineladas e cintadas.
Por
fim, fomos morar num bairro muito distante
da região central de Anápolis, que deveria
ser habitado apenas por pessoas com
hanseníase, local apelidado de Vila dos
Leprosos, onde permanecemos por um bom tempo
no meio de pessoas com narizes, dedos, mãos
e outros membros se desprendendo do corpo!
Nessa época, as vítimas de hanseníase eram
obrigadas a viver em isolamento. Por
incrível que pareça, a vida neste lugar foi
maravilhosa, pois tivemos um pouco de
estabilidade e éramos muito bem alimentados
e bem cuidados! Mesmo criancinha, aprendi a
ter um respeito enorme por esses brasileiros
vítimas da hanseníase. Acostumei-me tanto
com a situação, que passei a conviver com
naturalidade com aquelas pessoas em extremo
desamparo! Este foi um episódio de minha
vida que não considero sofrimento! Acho que
foi até um privilégio conviver com tanta
gente maravilhosa e com incrível capacidade
de resiliência e de enfrentamento da vida!
Não me lembro de ver nenhuma das vítimas da
hanseníase triste por causa da doença em si.
Tinham moradia e comida boa, e isso bastava
para maioria deles. Também nunca tive medo
de pegar a doença. Aliás, não sei como não
peguei e não sei até hoje (com o Google e
tudo) se criança pega esta doença. E nem
quero saber! De qualquer forma, não vi
nenhuma criança com hanseníase durante os
meses em que morei com os doentes! Aprendi
com eles que a natureza nos anestesia quando
a dor é insuportável! Fisicamente, eles não
sofriam enquanto seus membros caíam. Sou
grato a todos eles pelo acolhimento e pelas
lições de vida! Fui feliz!
Mais
feliz fiquei ainda quando minha mãe apareceu
no bairro dos doentes de hanseníase e disse
que estava indo embora de Anápolis! Ela não
disse que estava deixando a prostituição,
mas isso me pareceu óbvio! Fomos,
finalmente, embora da cidade onde nasci!
Hoje, quando reflito sobre os acontecimentos daquele dia em que minha mãe me visitou no internato onde morava com os padres, freiras e irmãos Maristas, me chama a atenção a lembrança que tenho dos seus olhos incrivelmente tristes, vermelhos e quase sem vida. Hoje eu reflito que naqueles tristes olhos vermelhos e pele excessivamente queimada pelo sol estava o rosto que mais me amou neste mundo! Ninguém jamais me amará como aqueles pés machucados e sujos! Eu lembro que ela me abraçou! Eu tentei fugir! Apesar da recusa, aquele foi o abraço mais frágil e amoroso que eu jamais vou experimentar ao longo da minha existência! Aquela era Dona Irani! Aquela foi para mim a mulher mais especial, mais batalhadora, mais forte, mais guerreira, mais poderosa, mais bonita, mais linda, mais cheirosa, mais rica, mais pura e mais angelical que eu jamais conheci! Naquele corpo, que diante de mim se apresentava fraco e já quase sem vida, eu passei longos e maravilhosos novos meses a sugar a essência do Universo! Todo ser humano é uma estrela viva! Mas as mulheres são estrelas mais brilhantes ainda! Os homens são como o Sol! Já as mulheres são Super-Novas que espalham a vida por todo o Universo! E para mim, a minha mãe, foi a estrela mais brilhante que pôde existir! Ah, Betelgeuse, como você é ínfima perto da Dona Irani!
Memórias de um menino que vivia num bordel
As muitas surras e a minha grande vingança
Quando digo, hoje, que o bordel de Dona
Tunica era um lugar incrível é porque
tenho principalmente recordações boas
daquele local e daquele tempo!
Mas, é claro, a vida não era perfeita
lá. É do Cabaré de Dona Tunica que trago
uma lembrança de um dos espancamentos
mais violentas que já sofri na vida.
E
autora desta surra inesquecível foi
minha própria mãe. Não lembro com
exatidão a idade que tinha, mas suspeito
que eram três ou, no máximo, quatro
anos.
Foram
muitos tapas, chutes, murros, cintadas,
varadas e gritos. O que fiz para merecer tal
surra? Eu quase fui atropelado por um fusca
que surgiu em altíssima velocidade enquanto
eu atravessava a rua para comprar doces no
mercadinho em frente ao bordel. Hoje, no
Brasil, existem leis que protegem as
crianças de espancamentos e qualquer ato de
violência que os pais venham a praticar
contra os filhos, mas, naquela época, educar
era sinônimo de espancar. E eu era educado
assim. Tanto que, no dia do quase
atropelamento, que minha mãe presenciou da
calçada de frente ao bordel de Dona Tunica,
eu fugi e me recusava a voltar para casa. Eu
vi a expressão no rosto dela. Eu sabia que
levaria uma surra terrível!
Mas,
sorrateiramente, minha mãe foi atrás de mim,
com palavras gentis e muito carinhosas e
afirmações de que eu não apanharia, de
“forma nenhuma”. E eu acreditei! Assim que
ela colocou as mãos mim, as agressões
começaram, tudo ainda no meio da rua. Fui
apanhando até chegar no quarto em que
morávamos, onde a minha situação só piorou!
Depois, ainda fiquei de castigo sentado numa
cadeira por horas a fio! Acho que o carro em
cima de mim não faria tanto estrago! Como eu
rezei para ter sido atropelado neste dia.
Mas, infelizmente, não fui! Assim que
aprendi a falar “mãe”, eu lembro que sempre
chorava pronunciando esta palavra. Eu não
deixei de amar a minha mãe! Mas depois desse
dia, eu nunca mais chorei balbuciando a
palavra “mãe”.
Aparentemente, acho que as surras levadas de
minha mãe não me deixaram tão traumatizado
assim! Até porque agressões piores vieram
depois, quando fui morar com outras pessoas
ao longo de minha infância nômade.
Geralmente tinha agressões, por exemplo, nas
dezenas de casas de cuidadoras de crianças
pelas quais passei, à medida em que crescia,
já que os bordéis nos quais minha mãe morou,
depois do da dona Tunica, não aceitavam a
presença de crianças. A mulher da família de
agricultores que me adotou, e que depois de
um ano (mais ou menos) me devolveu para
minha mãe, também me espancava severamente
de vez em quando, geralmente com pedaços de
pau. Nunca esqueci também uma surra dada por
meu avô num período em que morei com ele
numa fazenda de café em que ele era
lavrador. Um menino do local, filho de outro
lavrador, causou confusão comigo, e o pai
dele reclamou com meu avô. A surra de varas
de pé de café me deixou com marcas pelo
corpo todo por vários dias. Mas acho que eu
ainda não tinha aprendido o que era uma
surra de verdade até chegar ao internato do
Padre Lancísio, em Silvânia, Goiás, para
onde fui enviado talvez aos sete ou oito
anos. Lá também apanhei muito, especialmente
em duas ocasiões – as duas aos 10 anos de
idade - quando, enfurecido, um dos homens
que era um dos cuidadores das crianças, me
derrubou no chão e, descontroladamente,
passou a me desferir murros e chutes,
inclusive na cabeça.
Sei
que, infelizmente, ainda guardo na alma
algumas feridas por todas essas agressões,
inclusive do ano em que passei como escravo
numa casa de uma família branca de Goiânia.
Mas não são as dores e o rancor o que
prevalece em mim, mas a gratidão a Deus e ao
Universo por ter sobrevivido a tanta fúria.
Todas essas pessoas também foram respeitosas
comigo na maioria do tempo em que convivi
com elas! É a gratidão o que prevalece em
mim. Se fosse o ódio, eu me destruiria.
Hoje,
aos 52 anos de idade, vivo plenamente um
período da minha existência que chamo de
fase do perdão e da
gratidão.
Depois de anos em busca de culpados por
todas as situações que acho que foram
incrivelmente injustas, doloridas e trágicas
em minha vida, cheguei à conclusão, lá pelos
30 anos, de que não há nenhum responsável
por meus infortúnios. Eu me recuso a culpar
qualquer pessoa. Se eu culpo alguém, eu me
coloco no pior dos papéis: o de vítima. E eu
não sou vítima! De ninguém! Nem do meu
próprio ódio! Durante muito tempo eu só me
concentrei nos aspectos negativos das coisas
da vida. Mas, aos poucos, eu fui sendo
amansando, domado, por mim mesmo, o que
resultou numa mudança total de estratégia,
pois o que prevalece na minha vida são
vitórias e não derrotas.
E se
eu não tivesse mudado, há muito eu já teria
sucumbido, como tentei, por exemplo, fazer
aos 19 anos de idade, quando joguei tudo que
possuía no lixo e fui para o meio do mato,
com uma corda, para me enforcar! Nesta época
(depois de ter passado anos a limpar
banheiros na casa de uma família rica na
cidade de Goiânia) eu já tinha um emprego
com um salário razoavelmente decente numa
firma de consórcios de automóveis, e morava
e comia com um certo conforto nunca antes
experimentado por mim. Mesmo assim, eu
sentia dores terríveis na alma! Às vezes, à
noite, quando chegava em casa, eu apenas
chorava! Às vezes, por horas a fio! Até
adormecer! Eu não queria viver, eu não
suportava viver, eu odiava viver! Eu odiava
tudo o que me fez viver, inclusive minha mãe
e o próprio Deus! Mas neste dia eu fui muito
covarde! Depois de horas em cima de uma
árvore, com um corda no pescoço, eu fui
inepto para consumar o suicídio! “Então”,
com toda a ênfase do mundo, eu disse para
mim mesmo: “assuma a sua vida, mas assuma
mesmo!”. Foi nesta hora que eu percebi que
minha vida e minhas dores eram somente
minhas e que ninguém se importaria se eu a
jogasse fora ou não. Também percebi que não
era vítima de ninguém! Então, a mudança
começou! Aos poucos! Mas começou!
No
outro dia, eu fui para o trabalho na firma
de consórcios! Fui com a mesma roupa – um
pouco suja – a única que sobrou, pois o
caminhão de lixo já tinha levado tudo o que
era meu, inclusive documentos pessoais. Eu
não tive coragem de contar aos colegas o que
realmente aconteceu. E menti para eles
dizendo que todas as minhas coisas tinham
sido furtadas por alguém que invadiu a minha
casa! No dia seguinte, ao chegar ao trabalho
novamente, meus colegas me surpreenderam com
uma grande quantidade de roupas: todas
novas! Eles recolheram dinheiro entre si e
compraram lindas camisas, calças e até um
par de sapatos! No escritório, parecia uma
festa de aniversário! A vida nova começou!
Foi o meu renascimento!
Voltei a estudar. No ano seguinte, eu fui
aprovado no vestibular para o curso de
Jornalismo da melhor e mais concorrida
universidade pública de Goiás! Entre todas
as profissões, só me interessava ser
jornalista. Eu queria contar histórias das
vidas das pessoas! Na minha visão, todo ser
vivo, principalmente o humano – o que, para
mim, é o que mais sofre – é um grande livro
escrito sob o olhar atento das estrelas!
E foi
olhando para as estrelas que grande parte da
minha dor foi se dissipando! Ao aprender,
com Carl Sagan, na série
Cosmos,
exibida na televisão nos anos 80, que todo o
material que nos constitui foi jogado pelo
espaço na explosão das gigantescas
Supernovas. Então, eu conclui: “eu tenho
biliões de anos! Eu tenho a idade do Big
Bang!” Houve muito esforço para que eu
estivesse aqui hoje! E, devagarinho, ao
longo dos anos, muita da minha dor foi
desaparecendo! Eu passei a honrar a minha
vida! Tão preciosa! Feita pelas estrelas! Os
choros ainda existem, mas não são mais
predominantemente de ódio e sofrimento: são
principalmente de agradecimento e
deslumbramento! E esta é a fase do perdão e
do agradecimento! Esta é a minha grande
vingança! Eu me vingo ao agradecer por tudo
de bom que acontece a mim ao mundo! Eu me
vingo ao agradecer pela mãe que tive e pelas
dificuldades que enfrentei. Eu me vingo ao
agradecer por viver na mesma época que Chico
Buarque e Madonna, e outros seres admiráveis
por aí nas mais diversas áreas da vida
humana! Eu me vingo ao não temer a morte,
pois sei que apenas voltarei para a
eternidade da qual sempre fiz parte! Eu me
vingo ao agradecer porque vou morrer como
uma criatura que buscou melhorar e que irei
embora melhor do que quando era aquele bebê
que veio ao mundo lá no bordel da Dona
Tunica! Eu me vingo ao agradecer porque o
ódio não me destruiu! Eu me vingo ao
agradecer, que mesmo tendo feito doutorado e
pós-doutorado, eu não deixei a pretensão e a
soberba me fazer acreditar que sei alguma
coisa dos mistérios da vida e da mente
humanas ou do esplendoroso Universo! Eu me
vingo ao fazer fotos incríveis de mim mesmo!
Eu me vingo ao dizer que sou muito feliz,
mesmo que por poucos momentos, como quase
todo mundo, mas que sei que nesses momentos
há sempre um toque do eterno! Eu me vingo ao
agradecer por ter a melhor profissão do
mundo: a de professor! Eu amo absolutamente
os meus alunos!
Eu ainda choro, choro muito diante da dor de pessoas arrebatadas pelas mais diversas formas de miséria que nos atingem diariamente! Mas choro também ao ler livros e ver filmes românticos e novelas “açucaradas” brasileiras, mexicanas e portuguesas! Choro ao sentir o amor e o amor próprio, e eles existem mesmo! Choro pelos animais e pelas árvores e plantas, feitos do mesmo material estelar que os humanos, mas tratados por nós como se estivessem em situação de inferioridade! Choro pelo uso profano do nome de Deus! Choro ao lembrar que a água salgada que sai do meu olho pode ter estado já algum dia ao redor de um quasar ou de em buraco negro! Eu choro em agradecimento pelo Sol que, em muitas manhãs e em muitos finais de dia, suavemente acarecia a minha pela e a pinta de ouro! Eu choro por quase tudo! E quanto mais eu choro, mais eu me vingo! Eu nunca fui e nem sou vítima de nada! Eu sou apenas um filho de uma puta e das estrelas!
Memórias de um menino que vivia num bordel
Um bordel é um lugar incrível
Cabaré, puteiro, bordel, inferninho,
casa da luz vermelha, zona do baixo
meretrício, ou simplesmente, “zona”.
Esses são alguns dos adjetivos que se
usava (e acho ainda se usa) para se
referir a casas de prostituição, como a
que nasci, no centro da cidade de
Anápolis, Goiás, no Centro-Oeste
brasileiro.
Confesso
que não sei mais se esse local, que era
uma espécie de pequeno bairro, com
alguns quarteirões, onde a prostituição
feminina era liberada e tolerada, ainda
existe, pois fui levado de Anápolis aos
seis anos de idade e nunca mais voltei.
O Brasil melhorou muito economicamente
desde 1968, o ano que nasci, mas ainda é
um país com milhões e milhões de
miseráveis, as principais vítimas da
prostituição.
Mas o
que importa é que, na minha mente, os vários
bordéis por onde minha mãe e eu moramos
ainda existem, e são locais incríveis. São
construções enormes, com longos corredores e
vários quartos onde dezenas de trabalhadoras
do sexo vivem e trabalham. A casa onde acho
que realmente nasci, o bordel da Dona
Tonica, que ficava numa rua próxima a uma
caixa d’água enorme, era a maior delas. Na
entrada, tinha um salão imenso, com vários
sofás, mesas e cadeiras, onde se recebiam os
clientes.
Quando
escurecia, eu era colocado para dormir, e
geralmente dormia. Mas houve situações em
que vi, pelo menos por um pouco, o salão em
pleno funcionamento.
Além
disso, mesmo que as pessoas tentassem
disfarçar, eu sempre ouvia, no dia seguinte,
trechos de histórias do que tinha ocorrido
em cada noite. As crianças são muito mais
espertas do que os adultos imaginam.
O
salão do cabaré da Dona Tonica era um lugar
onde a radiola (o aparelho de som da época)
tocava canções sertanejas dançantes no
volume máximo.
Havia
luzes coloridas e piscantes, principalmente
vermelhas.
E
havia, é claro, a luz negra. Esta me
fascinava absolutamente, porque ela deixava
florescentes e brilhantes as roupas brancas
das pessoas. Era mágico!
Os
cheiros das mais variadas bebidas se uniam
ao dos cigarros e ao dos inebriantes e
fortes perfumes das damas.
E
também, é claro, havia o odor dos perfumes
baratos dos homens. Os rapazes também faziam
questão de colocar as suas melhores roupas e
águas de cheiro. O chapéu era um acessório
bastante comum entre eles, a maioria jovens
trabalhadores rurais da região rural de
Anápolis, geralmente solteiros. Mas muitos
casados também eram frequentadores assíduos
do bordel da Dona Tonica. As mãos cheias de
calos, provocados pelas enxadas e foices, e
a pele embrutecida pelo excesso de sol, eram
o comprovante de que se tratava de seres
respeitáveis e que queriam apenas um pouco
de felicidade em suas vidas sofridas de
lavradores explorados por um trabalho quase
medieval e com aspectos de escravidão. Se há
vilões na prostituição, acho que não são
eles. Teve um tempo em que eu os odiava. Mas
com o desenrolar dos anos (muitos anos!),
deixei o meu desprezo de lado e passei a
respeitar esses homens, talvez pelo simples
motivo que, entre eles, há um que é o meu
pai. Eu nunca saberei qual, e nunca soube se
minha mãe
também saberia apontá-lo. Mas gosto de
imaginar que ele era um homem esforçado e
que trago muitas das suas características,
pois eu também já enfrentei muitos trabalhos
estafantes e próximos da escravidão.
Logo
que esses lavradores e vaqueiros entravam no
salão do cabaré de Dona Tonica, com suas
botas e botinas pesadas e com os bolsos
cheios de dinheiro, já eram abordados com
palavras e gestos de acolhimento e sedução.
Eles escolhiam as mulheres que mais lhes
agradavam, dançavam, bebiam, gritavam,
pagavam tudo adiantado e iam para os quartos
se divertirem, tudo com o tempo
cronometrado! Quem quisesse passar a noite
toda com uma dama tinha que pagar uma
pequena fortuna para a Dona Tonica. A dona
do bordel sempre estimulava as mulheres a
induzirem os homens a beber o máximo
possível, de preferências as bebidas mais
caras, como o
whisky,
vendido em pequenas e caríssimas doses. Mas
Dona Tonica não admitia excessos e
escândalos. Nem por parte das mulheres e nem
por parte dos homens. Quem se excedesse era
expulso da casa, sem possibilidade de
retorno. Um bordel é tudo menos um lugar
bagunçado e sem regras! As damas não podiam
roubar os cavalheiros, e eles não podiam ser
violentos com elas.
Com
pulsos firmes, Dona Tonica mantinha a paz no
local. Até mesmo policiais militares e
soldados do exército e aeronáutica, também
grandes frequentadores do local, não ousavam
contrariar Dona Tonica. Quem a visse durante
o dia não acreditaria que aquela mulher, de
mais ou menos 50 anos e aparência frágil,
era detentora de tanto poder. “Ela falou,
água parou”, dizia-se na época. Ela tinha um
enorme carinho por mim. “Fábio, vai comprar
carne para o biscoito”, bradava ela.
O
biscoito era o gatinho de estimação dela, “o
único amor de sua vida”.
Se a
carne não fosse fresca e moída na hora, ela
me fazia devolvê-la para o homem do açougue.
Eu ficava feliz quando era convocado por
Dona Tonica, pois sempre ganhava uma moeda
com a qual comprava alguma guloseima no
mercadinho, principalmente o doce de abóbora
em formato de coração. Ah, quanta saudade
desse doce! Um dia, minha mãe e ela ficaram
desesperadas porque eu engoli uma das moedas
que Dona Tonica me deu. Felizmente não
morri, pois tinha muito a aprender sobre o
bordel e sobre a vida. Onde andará Dona
Tonica? No céu, é claro! Se houver justiça
no pós-vida, toda prostituta vai direto para
lá, sem a menor possibilidade de passar pelo
purgatório!
As
prostitutas são pessoas completamente
comuns. O trabalho com o sexo não as torna
melhores nem piores do que os outros seres
humanos. Sofrem e choram, tem grandes e
pequenas alegrias, amam e odeiam como
qualquer pessoa “respeitável” da sociedade,
e acreditam que o futuro vai ser sempre
melhor, mas sem príncipes encantados, afinal
muitas caíram na prostituição por causa
dessa ilusão. Acho que prostitutas são um
pouco melhores do que os outros mortais
talvez por terem menos preconceitos. Não
julgam muito as pessoas, já que são julgadas
ao extremo. Ninguém escolhe ser puta! Uso a
palavra “puta” não para diminuí-las, mas
para engrandecê-las! Acho que elas têm um
poder sobre os homens (e sobre a vida) que
as mulheres comuns jamais experimentarão.
Elas, sim, são donas de suas vaginas! São
Marias Madalenas, mas geralmente sem
arrependimentos!
Cada
uma tem uma história dolorida que as
empurraram para os cabarés onde chegaram. No
caso da minha mãe, por exemplo, o próprio
pai dela a expulsou de casa ainda muito
jovem, quando ele soube que ela “se perdeu”.
Amo esse expressão, que significa “perdeu a
virgindade fora do casamento”, porque, para
mim, ela denota exatamente o contrário. Acho
que quem se perdeu, na verdade, se
encontrou! Descobriu a força mais poderosa
da vida, que é a própria vida a manifestar
sua ânsia de perpetuação. Descobriu também o
poder sobre os homens, algo inadmissível
desde que sociedade tornou-se patriarcal.
Talvez por isso, tanta humilhação às
mulheres que quebram as monótonas regras do
“casamento puro”.
Acho
que nós, homens, empurramos as mulheres para
a prostituição não só por vingança pelo
poder que possuem, mas principalmente porque
a vida sem o gozo oferecido pelas
prostitutas é muito entediante e sem
tempero! Acho que, sem elas, a maioria das
relações “abençoadas pelas igrejas”, seriam
insuportáveis. Aquele papo de “profissão
mais antiga do mundo” talvez devesse ser
mudado para “profissão mais essencial do
mundo”.
A
minha vida no bordel foi muito dolorida! A
vida da minha mãe foi mais sofrida ainda!
Ser colocada na prostituição pela própria
família é algo nefasto demais!
Não
desejaria esse tipo de vida para outras
pessoas! Mas se nascesse mil vezes, mil
vezes escolheria nascer no mesmo bordel da
Dona Tonica! Mil vezes escolheria ser filho
de uma puta, e com muito orgulho! A vida que
tive na infância e que se resvala,
absolutamente, no ser que hoje sou, é, para
mim a melhor vida de todas! Eu tenho orgulho
da minha jornada pela existência,
principalmente do início!
Assim
como no comovente filme do diretor italiano
Roberto Benigni,
A vida é bela
(1997), em que um prisioneiro judeu de um
campo de concentração nazista cria, durante
a Segunda Guerra Mundial, um mundo ilusório
para tentar proteger o seu pequeno filho
(também prisioneiro) da enorme tragédia que
viviam, minha mãe também se esforçava para
criar uma vida de faz de conta, para que eu
não percebesse que vivia num bordel. Ela
jamais pronunciou a palavra cabaré ou
sinônimos para mim! Ela jamais se disse
prostituta!
Oh,
mãe! Eu sempre soube de tudo! Acho que desde
o momento em que minha consciência se
despertou para a vida!
E
tudo bem! Eu nasci num lugar incrível! Onde
mais eu teria tantas luzes coloridas? E
tantos espaços inusitados para brincar com
meus balões? Onde eu teria a Dona Tonica
para me dar moedas? Onde eu teria tantos
amiguinhos para brincar? Onde mais eu teria
uma mãe tão poderosa como você?
Memórias de um menino que vivia num bordel
O pior de todos os dias
Dizem que nossas memórias, principalmente as da infância, são quase todas meio ficcionais. Como desejaria que isso fosse verdade! Acho que os principais defensores desta idéia são aquelas pessoas que tiveram, nos primeiros anos de suas vidas, uma forte rede de proteção, a ponto de terem passado os primeiros anos de suas vidas a brincar prá lá e pra cá e a experimentar a maldade e o desamparo apenas de bruxas e monstros que povoam os contos de fada e filmes da televisão e cinema. Gostaria, por exemplo, que a falta do nome de um pai em minha certidão de nascimento fosse apenas uma “ficção”! Desejaria que a ausência absoluta desse pai fosse apenas um “jogo de faz de conta”! Gostaria que as marcas de espancamentos brutais, estupros (ah, foram tantos!) e outras violências mil que sofri por parte de dezenas de pessoas, ao longo dos meus primeiros anos neste mundo, fossem apenas “imaginárias”! Gostaria que os dias de fome pelos quais passei – e foram muitos, tivessem sido apenas “simples pesadelos” de um menino que gostava de dormir no escuro.
Ah, como eu desejaria não ter passado um ano como escravo (isso mesmo, escravo!) na casa de uma família branca de classe média na cidade de Goiânia, Goiás! Isso nos últimos anos da década de 1970 (que não me lembro qual), quase 100 anos do fim da escravidão no Brasil. Neste caso, será que foi ficção que, numa bela manhã de sol, um lindo casal chegou ao orfanato onde morava, havia dois anos, e insistiu para me adotar e, que, assim que cheguei na casa deles, fui transformado em empregado doméstico? Eu não tinha mais do que oito ou nove anos! Esta família de escravocratas só me devolveu ao orfanato porque eu passei a me auto-mutilar com fortes mordidas no braço, e eles, ao perceberem que não teriam um “escravinho” por muito mais tempo, me levaram de volta ao internato. Ao lembrar dessas situações, elas não me parecem nada ficcionais, senhores discípulos de Freud! Algumas fortes marcas, físicas e na alma, subsistem! Mas eu não me concentro nelas!
Só recordo das situações negativas que atravessei quando faço enorme esforço e, se fosse possível, não me lembraria de forma nenhuma. Ah, não lembraria mesmo! Como estratégia de sobrevivência, aprendi que focar em coisas negativas faz com que essas coisas se tornem mais monstruosas do que são. Se minha vida teve muitas tragédias, ela também teve grandes milagres e foram eles que contribuíram para que eu crescesse saudável e feliz! E a minha felicidade vem da gratidão por Deus (ah, quantas vezes eu fui resgatado do vale da sombra a morte!) e todo esse infinito Universo, que me criaram, me protegeram e que fizeram com que o que prevalecesse em mim fosse a luz e não as trevas! É por isso que sou absolutamente grato! Grato por tudo! Pelo bem e pelo mal (que me fez mais forte e orgulhoso da minha trajetória)! Sou grato especialmente pela mãe que tive! Se minha trajetória foi difícil, a dela deve ter sido mais ainda! Eu sei muito pouco da vida dela! Há pessoas espiritualistas que dizem que escolhemos os nossos pais. Gosto de acreditar nisso! E mesmo que não tenha escolhido a mãe que tive, tenho plena consciência, já há alguns anos, que ela foi a melhor mãe que eu poderia ter tido. Eu a escolheria milhares de vezes! Mas eu tive outra mãe ao longo da vida, e é dela que vou falar agora.
Quando morava no bordel com minha verdadeira mãe, na cidade de Anápolis, Goiás, época em eu tinha provavelmente uns quatro ou cinco anos, ela me entregou para a adoção. Naquele tempo, as adoções não passavam pela aprovação do Judiciário, e os pais “davam” os filhos para quem quisessem. Então, eu fui “dado” para um casal de agricultores e seus quatro filhos, que viviam numa pequena propriedade rural no município de Silvânia, Goiás. Eles tinham três meninas e um menino, e queriam mais um garoto, para brincar com o menino, já que na época não era muito aceitável um menino brincar com garotas! Eu acho que morei com essa família por mais ou menos um ano. Eu me adaptei de imediato a eles. Passei a chamar a mulher (dona Estelita) de mãe e, o homem (senhor José Rodrigues), de pai. E as crianças (Guilherme, Márcia, Marlene e Marcilene), para mim, tornaram-se meus irmãos. Eu amava todo mundo e eles eram, para mim, a família perfeita. Eu amava viver com eles no meio das árvores, rios, vacas, cavalos, noites estreladas (desde muito pequeno gosto de contemplar as estrelas) e todas as belezas que a vida numa fazenda propicia. Era maravilhoso pertencer a uma família!
Mas, de repente, num belo dia, eles simplesmente me devolveram para a minha verdadeira mãe! Inacreditável! Essa foi uma das situações mais tristes e doloridas da minha vida. Recordo que, quando fui entregue à minha mãe, eu comecei a chorar e não parei mais. Acho que chorei um dia inteiro, e, se parei, foi por exaustão. A minha vontade era de chorar para sempre, até morrer! Sim, acho que foi o dia mais triste da minha vida! Não consigo lembrar de ter atravessado um luto tão dolorido em toda a minha existência. Tempos depois soube o motivo da minha devolução: os meus pais adotivos não aceitaram o fato de eu gostar de brincar também com as meninas! Já adulto, soube que o meu irmão adotivo, o Guilherme, aos 18 anos, foi assassinado em um conflito de terras, quando a família dele mudou de Goiás para o Pará. Quando era estudante de graduação, no curso de jornalismo da Universidade Federal de Goiás, uma pessoa da cidade de Silvânia soube da minha história e disse que os meus ex-pais adotivos tinham um grande pesar pelo que fizeram e que queriam, muito, entrar em contato comigo! Mas eu recusei, e recuso qualquer aproximação! Acho que tenho esse direito! Não é que não os perdôo! É que tenho respeito pelas lágrimas que derramei durante dias após a minha devolução. A sensação que tenho é que não foi justo! Não foi justo mesmo!
Apesar da dor imensa que a rejeição por parte dessa família me causou, hoje percebo que talvez tenha sido melhor eu retornar para a minha mãe! Lá no fundo, eu tenho mais orgulho de ter vivido num bordel e de ser o “filho de uma puta” do que ter vivido no seio de uma família conservadora. Se fosse hoje, eu não derramaria nenhuma lágrima por causa do meu retorno para a minha verdadeira mãe! Ah, Se fosse hoje!
Memórias de um menino que vivia num bordel
O melhor dia de minha vida (2.ª parte)
O
despertar, na manhã seguinte, foi
incrível. Um homem, moreno baixo e de
voz forte, gritava e batia palmas.
“Acorda, garotada! Rápido! Vocês só têm
uns 10 minutos! Todo mundo escovando os
dentes... e rápido!” Assim, pelo menos
uns 50 meninos com cara de sono, aos
poucos e preguiçosamente, se levantavam!
Lentamente, se dirigiam ao banheiro com
suas escovas de dente. Eram dezenas de
pias e chuveiros com água fria. Imóvel,
eu apenas olhava tudo aquilo com
estupefação. De repente, aquele homem
olhou para mim e gritou bem alto: “você
que é Fábio?” Assustado com tantos
olhares voltados para mim, eu apenas
balancei a cabeça num gesto afirmativo.
“Vá escovar os dentes, menino! Rápido! O
que você está esperando?” Timidamente,
eu respondi que não tinha escova de
dente. Então, ele me chamou até ele e
abriu um armário, de onde retirou um
sabonete, uma toalha, um dentefrício
(era assim que chamávamos o creme dental
naquela época; às vezes falávamos apenas
pasta) e uma escova de dentes. “Cuida
bem deste material. Se perder alguma
coisa você vai ficar de castigo! Ouviu!
Agora vai escovar os dentes e limpar
essa cara! Rápido!”
Eu
não lembro de ter tido uma escova de dentes
antes (nem mesmo no período quando fui
adotado por uma família de agricultores,
algo que contarei mais à frente). Eu mal
coloquei a escova na boca e o monitor, o
qual chamávamos de assistente, bradou: “todo
mundo em fila indiana, rápido! Você também,
moleque”, disse ele, se referindo a mim. E,
em fila, e em silêncio, fomos para o
refeitório, onde foi designado um lugar para
mim numa das dezenas de mesas. Lá
encontramos outra fila com uns 40 meninos.
Eles dormiam em outro dormitório e, por
serem mais velhos que os garotos do meu
dormitório, eram chamados de “maiores”. Era
assim que funcionava: os menores quando iam
crescendo, mudavam para o dormitório dos
maiores.
O
café da manhã era constituído de um pão com
manteiga e um copo de leite. Eu gostei muito
daquela que era apenas a primeira de quatro
refeições que tínhamos ao longo do dia. Após
o café da manhã, éramos conduzidos, sempre
em filas, para as salas de aula. E eu, como
disse que já tinha estudado antes, quando
morei com a família de agricultores, então,
em vez de entrar no pré-primário, fui
designado para a primeira série. A
professora era uma freira que não usava
hábito (aquela roupa típica de freira)
chamada de Maria José. Ela era considerada
uma professora muito brava, pois dava
palmatórias com uma enorme régua de madeira
nos alunos que faziam bagunça durante a
aula. Eu gostava dela. Ela jamais me
agrediu, pois eu era excelente aluno e
sempre tirava as melhores notas.
Estar
naquele internato, chamado na época de
Aprendizado Agrícola São José, foi
maravilhoso demais para mim, pois, além de
comer, com regularidade, refeições
deliciosas e balanceadas, algo que não
acontecia quando morava com minha mãe, eu
ainda fazia a coisa que mais amava na vida:
estudar.
Como
sou grato por ter ido morar naquele
internato. É tanta gratidão que não consigo
expressar em palavras. E agora, enquanto
escrevo estas lembranças, lágrimas escorrem
dos meus olhos. Essas lágrimas, mais do que
palavras, dão uma idéia da enorme gratidão
que tenho aos Céus, e aos anjos que sempre
me guiaram, por terem me levado para aquele
lugar. Eu não consigo nem imaginar o que
teria acontecido comigo se não tivesse ido
para lá. Obrigado Deus! Obrigado Universo!
Obrigado Padre Lancísio! Obrigado Dona
Leontina!
Eu amo Jane Fonda!
Ao
navegar pela rede social
Instagram,
deparei-me com uma foto da atriz e ativista
norte-americana Jane Fonda, algemada e
conduzida pela polícia norte-americana.
Fiquei um pouco chocado e fui ver o restante
da informação.
Tratava-se já da segunda prisão da atriz,
por fazer protestos em frente ao Capitólio,
edifício onde funciona o Congresso dos
Estados Unidos, em Washington(D.C.);
estranhamente, um prédio público onde não se
permitem manifestações. Inspirada pela
adolescente sueca Greta Thunberg, Jane Fonda
tentava chamar a atenção contra a destruição
do meio ambiente. Eu comentei a foto: “I
just love her”.
Imediatamente, alguém com um perfil
republicano, perguntou-me, em tom de
sarcasmo e ironia: “Só por curiosidade, por
que você a ama, mesmo?”
Sem querer polemizar muito, eu respondi: “o
amor, assim como o ódio, não tem muita
explicação lógica. Eu simplesmente a amo”.
Mas motivos não faltam pela minha grande
admiração por Jane Fonda.
Ultimamente, o meu amor por ela tem sido
mais em virtude da sua participação na série
da Netflix
Grace e Frankie.
Esta série, lançada em 2015 e que está na
sexta temporada, é uma das pouquíssimas
dedicadas ao público sênior. Nela, Jane,
lindíssima aos 81 anos, mostra que a
velhice, sem eufemismo nenhum, pode, sim,
ser a melhor fase da vida de um ser humano.
Assim como faz fora das telas, Jane vive
Grace, uma mulher ativista por uma vida
plena. A separação do marido, vivido por
Martin Sheen – cujo personagem se assume gay
aos 75 anos e se casa com outro homem – é a
oportunidade que ela tem de riscar todo
o tipo
de hipocrisia de sua vida.
Grace, que antes da aposentadoria era uma
implacável mulher de negócios na área de
cosméticos, faz renascer seu espírito de
empresária ao lançar um vibrador desenhado
especialmente para mulheres mais velhas.
Sim, as mulheres se masturbam, inclusive as
mais velhas!
Grace
adora o seu consolo anatômico, mas ela quer
mais. Ela quer ser amada por um homem de
verdade. É dificílimo de encontrar, mas ela
prefere morrer tentando.
Ao
lado da amiga Frankie, vivida pela
maravilhosa Lily Tomlin, a irreverente Grace
vive situações típicas de quem está
envelhecendo e que se defronta com uma
sociedade que negligencia e abomina a
velhice. Por trás de cada risada, a série
discute, algum drama bastante real daquilo
que, eufemisticamente, chamamos no Brasil de
terceira idade ou “a melhor idade”. Com
Grace e Frankie, a velhice é realmente a
melhor idade! E quem está a envelhecer, como
é o meu caso, perde grande parte do medo de
enfrentar esta fase que pode, sim, ser a
melhor da vida!
Na
década de 1980, Jane Fonda destacava-se
pelos seus vídeos de ginástica para mulheres
balzaquianas (na faixa dos 30 anos). Tanta
malhação talvez tenha sido o motivo de ela
chegar à sua oitava década de vida
esbanjando saúde, beleza e consciência de
cidadã. “Talvez passe o meu aniversário de
82 anos na cadeia”, disse ela, no final de
2019, para um programa jornalístico da
televisão brasileira, ao ressaltar que sua
militância em defesa do planeta Terra só
está começando. Nos anos 60, quando era
considerada uma das mulheres mais
sexy
do planeta, Jane chegou a ser declarada
inimiga pública dos Estados Unidos, por
causa de seus insistentes protestos contra a
Guerra do Vietnã. No dia 4 de janeiro de
2020, lá estava Jane novamente, começando o
Ano Novo em frente ao Capitólio, a protestar
contra o ataque inconseqüente de Donald
Trump ao general iraniano Qasem Soleimani.
“Não queremos mais guerras!”, gritava ela,
sob o frio de zero grau, acompanhada de uma
multidão entusiasmada. Assim como inspirou
milhares de pessoas a cuidarem do corpo nos
anos 80 do século passado, hoje, Jane Fonda,
na vida real e na ficção, nos provoca a
envelhecermos com prazer, dignidade,
consciência de cidadania e responsabilidade
com o planeta. E, é claro, com muito
botox
no rosto!
Estes
são apenas alguns dos motivos que fizeram
com que eu declarasse, no
Instagram,
o meu respeito e o meu amor por Jane Fonda.
Numa época em que governantes racistas,
mentirosos, misóginos, homofóbicos e
inimigos do planeta Terra são eleitos,
inacreditavelmente, pelo voto direto, em
países como o Brasil e os Estados Unidos, a
militância de Jane Fonda é uma boa lembrança
de que o mundo é habitado também por pessoas
contrárias à destruição e ao apocalipse. O
planeta não é só dos
haters
(pessoas que só espalham o ódio)!
Inspirada pela menina Greta Thunberg, a nova
fase de militância de Jane Fonda é a prova
de que as gerações mais velhas não são
compostas apenas de gente indiferente,
omissa e preconceituosa. Nossas rugas e
nossos cabelos brancos não destruíram a
nossa capacidade de nos indignar. Obrigado
Jane Fonda por nos inspirar!
I just love you!
Memórias de um menino que vivia num bordel
Capítulo 1 - O melhor dia de minha vida
Somente nos últimos
meses, depois de mais 45 anos do ocorrido, é
que eu percebi que aquele foi o dia mais
importante de minha vida. Foi o dia que
definiu o que eu sou hoje e o dia no qual eu
me livrei de uma espécie de maldição que
sempre rondou a família da qual eu faço
parte. Depois de meses a implorar ao padre
Lancísio que me levasse para viver no
orfanato do qual ele era diretor,
finalmente, Dona Leontina teve êxito em sua
insistente demanda. “Padre, esse menino não
pode continuar a viver no meio destes
bêbados. Logo estará bebendo pinga também!”.
Dona Leontina correu
até a praça da pequena cidade de Leopoldo de
Bulhões, onde minha mãe e seis de seus
irmãos acampavam, pois não tinham casa, nem
mesmo das mais pobres, e bradou: “O padre
vai levar o menino hoje. Cadê as roupas
dele?” Minha mãe, meio alcoolizada, não
apresentou nenhuma resistência. Rapidamente,
esvaziou um saco de pão, e colocou uma
camiseta, um shortinho e uma calça boca de
sino feita em tergal azul.
Não lembro de nenhuma
palavra ou gesto de despedida. Dona
Leontina, muito ofegante, saiu correndo pela
praça e alcançou o padre já dentro de sua
Kombi branca, um pouco impaciente com a
suposta demora. Já era noite, ele tinha que
voltar para a cidade de Silvânia, onde
ficava o internato onde eu iria passar os
próximos sete anos de minha vida. “Ele só
tem isso de roupa?”, perguntou o padre para
Dona Leontina ao apontar para a minha
pequena mala: o saco de pão. “Ele é pobre,
padre!”.
Dona Leontina
afastou-se do veículo e o padre acelerou o
motor, e lá fomos nós rumo ao Aprendizado
Agrícola São José. Eu nunca mais veria Dona
Leontina novamente. Eu nunca mais teria a
chance de agradecê-la pessoalmente. Certa
vez, aos 15 anos, quando saí do internato e
fui morar na capital do Estado de Goiás,
Goiânia, eu fui a Leopoldo de Bulhões para
dizer a ela de minha gratidão. Mas já era
tarde demais. Dona Leontina já havia morrido
fazia alguns anos.
Quando a conheci, ela
já era bastante idosa. Talvez estivesse na
faixa dos 70 anos. Ela era branca, baixinha
e andava com uma bengala. Mesmo assim
caminhava com agilidade, quando era
necessário. Nunca vou esquecer o quanto sua
casa, apesar de pequena, era linda. O que
mais me chamava a atenção era o quintal
enorme e com várias árvores frutíferas.
Havia mangueiras, bananeiras,
jabuticabeiras, pés de laranja e mixirica,
entre outras plantas com belas flores. Outra
coisa que me chamava a atenção em sua casa
era o presépio enorme que montava na época
de Natal. Tudo o que era colorido e brilhava
ela colocava como enfeite, extremamente
católica, ela jamais perdia uma missa. E foi
à caminho da igreja que ele me conheceu ali
na praça onde minha mãe e seus irmãos
bêbados passavam a maior parte do tempo. Sou
eternamente grato a senhora, Dona Leontina!
Em relação à minha
mãe, eu ainda a veria uma única vez. Quatro
anos depois de eu ter sido levado para o
internato, ela lá apareceu para fazer-me uma
visita. Foi uma situação muito
constrangedora, pois eu corri dela. Não
queria vê-la de forma nenhuma. Ela estava
esfarrapada, desdentada e parecia bêbada e
doente.
Ainda sofro pela
atitude que tive! Somente muitos anos mais
tarde, percebi que foi uma visita de
despedida, pois ela morreu meses depois, em
conseqüência do alcoolismo. Aquela senhora
que apareceu de surpresa no internato para
visitar-me não correspondia em nada à mãe
idealizada que vivia em minha cabeça. Se eu
pudesse voltar no tempo, em vez de correr
dela, eu a abraçaria, beijaria e diria da
minha gratidão por ser filho dela. Falaria
do quanto ela era linda e que, entre todas
as mulheres da Terra, eu a escolheria,
infinitas vezes, para ser a minha mãe. Dona
Irani foi uma alcoólatra e uma prostituta,
mas, para mim, foi a mulher mais honrada que
já viveu! Ela apenas sucumbiu à crueldade do
mundo, principalmente com as mulheres.
Memórias de uma orquídea que foi jogada no lixo
Fábio d'Abadia de Sousa
“Da vida
eu tive o melhor e pior”, conforme dizem
algumas orquídeas e pessoas ao fazerem um
balanço de suas vidas.
Mas,
além do pior e do melhor, eu tive o lixo.
Não existe um adjetivo para descrever a
sensação de ser jogada lixo. É o pior do
pior, mas é o melhor do melhor. Eu fiquei
uma semana no lixo, com as raízes expostas
ao sol e com as folhas misturadas com
fraldas sujas e restos de comida. No
primeiro dia, eu só rezeva para morrer. Mas,
apesar de tanta ânsia pela morte, eu não
morri. Com o passar do tempo, no entanto, eu
deixei de lutar contra a dor de estar no
lixo, e eu fui descobrindo a maravilhosa e
libertadora sensação de não ter
absolutamente nada a perder.
É
como nadar entre os peixes coloridos dos
corais das ilhas do Caribe e voar entre as
aves e coloridas borboletas e por entre as
estrelas, tudo ao mesmo tempo.
É
como romper todas as fronteiras que eu
acreditava existir entre as coisas: o dia se
mistura com a noite, o mar com a terra, o
amor com o ódio, as pessoas viram árvores e
as plantas viram pessoas, tigres e
sardinhas. Então, eu descobri algo que acho
que seria aquilo que as orquídeas e as
pessoas chamam de essência ou sentido da
existência. Mas antes de falar disso, quero
contar o que acreditava ter sido o melhor e
o pior da minha vida.
Pelo o
que eu me lembro, tudo começou na
maravilhosa cidade de Faro, no Algarve,
Portugal, um dos lugares mais ensolarados e
lindos da Europa e que é o berço de uma
civilização humana de mais de três mil anos.
Fenícios, romanos, árabes, lusitanos são
alguns dos povos que originaram a população
que hoje vive nesta região.
Eu amava o clima do Algarve, para mim, até
então, o melhor do mundo. Antes de ter sido
dada de presente a uma noiva por seu
pretendente apaixonado, eu acreditava que o
melhor da minha vida era estar no viveiro
com milhares de outras orquídeas.
Mas eu sempre pressenti que a minha vida
tinha que ter outros propósitos, como, por
exemplo, fazer outros seres felizes. Um dia,
eu fui colocada num caminhão junto com
outras irmãs, e fui enviada para uma loja de
flores no centro da cidade.
Muitas
das pessoas que passavam na calçada em
frente à vitrine onde eu fui colocada, às
vezes, paravam e ficavam a me admirar! Como
eu ficava vaidosa! Nossa! Eu não sabia que
era tão bonita assim!
“Obrigada, obrigadinha!”, dizia eu para todo
mundo! Até que eu dia, um homem parou por
mais de meia hora em frente à vitrine! Eu
cheguei a ficar envergonhada com tanta
admiração! Então, ele entrou, chamou a
vendedora, e disse: “É a flor mais linda que
já vi em minha vida! Vou levá-la para a
minha noiva!” Nossa, o termômetro que mede o
calor da minha vaidade quase explodiu! Eu,
além de linda, era um símbolo de amor, o
sentimento mais nobre entre os humanos!
Quando a noiva me recebeu de presente,
lágrimas desceram de seus lindos olhos
castanhos! E também, é claro, eu fiquei
emocionada, pois não sabia que era capaz de
provocar lágrimas em humanos!
Duas
semanas de pura felicidade se passaram.
Então, numa manhã fria e nublada, a minha
dona chegou até mim chorando copiosamente!
Era um choro estranho, exagerado! Fiquei com
medo! ”Aquele monstro, que jurou me amar
pelo resto da minha vida, me traiu, e o
pior: com um homem! Eu vou matá-lo!” De
repente, ela avançou sobre o vazo onde eu
morava e me atirou pela janela da sala de
estar do apartamento, que ficava no quarto
andar do prédio. Eu caí, de cabeça para
baixo, a uns sete metros do edifício,
exatamente, num monte de lixo que ficava na
calçada, em frente a um terreno abandonado!
Cacos do
meu vazo chegaram a atingir um gato preto
que comia restos de comida chinesa que
estava espalhada no local! O meu choque foi
imenso! Comecei a gritar por ajuda às
pessoas que passavam
prá lá e prá cá! “Socorro! Eu sou uma
orquídea linda! Alguém me ajude, por favor!
Eu sou bonita! Olhem para mim, por favor!”
Ninguém olhou. Eu continuei a gritar:
“Socorro! Socorro!”
Foi
inútil. Ninguém me ajudou! De repente, ao
cair da noite, um senhor idoso se aproximou
com seu lindo cachorro da raça São Bernardo!
“Graças a Deus! Serei resgatada!” Mas ele
nem mesmo me viu! Para piorar, o cachorro,
enorme, urinou em cima do pouco que restou
de minhas pétalas! “As minhas folhas ficaram
quase intactas, mas as flores praticamente
não existiam mais! Meu Deus! Como eu fiquei
feia e fedorenta!” Eu chorei a noite toda!
Com o raiar do sol, renovaram-se minhas
esperanças de ser resgatada por alguém.
Centenas de pessoas passaram em frente a
mim, mas ninguém olhava na minha direção. E
assim foram os meus próximos seis dias. Até
que no sétimo dia, quando eu já começava a
morrer, pois minhas raízes estavam expostas
ao sol, um senhor negro parou em frente a
mim e começou a conversar comigo.
“Meu
Deus, o que você está fazendo aí?” Perguntou
ele, com um sotaque brasileiro. Ele me
pegou, com todo o carinho, juntou o que foi
possível da terra que me sustentava e
colocou em um saco plástico que ele colheu
ali perto. Então, eu desmaiei. Quando
acordei, estava debaixo de uma torneira, em
um vazo novo e com terra nova. Eu bebia
daquela água com todo o desespero de quem
voltava da morte!
Os dias
foram passando e eu comecei a ficar com
minhas folhas brilhantes novamente. Então,
depois de uma semana, vi o meu dono
arrumando as suas malas, pois ele iria
retornar para o Brasil, já que tinha
concluído o curso que fora fazer na
Universidade do Algarve. Ele pegou-me do
jeito que eu estava, com vazo e tudo,
enrolou-me com jornal e colocou-me dentro de
um pequeno balde, o qual tapou e lacrou com
fita adesiva. De repente, fez-se uma
escuridão total, mas eu ainda o ouvi dizer:
“Você vai para o Brasil comigo!” Eu perdi a
noção do tempo, mas foram mais de dois dias
naquela situação de breu, confusão e barulho
ensurdecedor de motor de avião.
Eu
pensei fazer um escândalo na alfândega para
avisar que uma cidadã portuguesa estava
sendo contrabandeada para o Brasil. Mas
desisti rapidamente desta idéia. No meu
íntimo, eu tinha certeza que estava sendo
levada para algum lugar onde eu seria muito
feliz! E não é que minha intuição estava
certa?
Quando
voltei a ver a luz novamente, eu estava numa
varanda, no trigésimo andar de um prédio
lindo, na cidade de Goiânia, no Centro-Oeste
brasileiro, onde o sol brilhava
esplendorasamente.
Eu fui
saldada por várias outras plantas que
falavam com sotaque brasileiro. Uma espada
de São Jorge logo me perguntou: “É verdade
que você veio de Portugal? Todas nós aqui
somos plantas que o nosso dono catou no
lixo! Você também foi catada no lixo?
Exausta, mas deslumbrada, eu respondi: “Sim!
Eu fui catada no lixo! Ainda bem que fui
jogada no lixo! Foi a melhor que já me
aconteceu!”
Agora
que vocês entenderam o que foi o melhor e o
pior da minha vida, volto às minhas
reflexões sobre as epifanias que tive a
partir da minha experiência de ter sido
jogada fora. Por exemplo, foi numa noite
estrelada, enquanto jazia ao lado de restos
de comida apodrecida, que eu entendi aquilo
que Edith Piaf canta na canção
Je ne
regrette rien.
Quando
ela diz que tanto o bem quanto o mal são,
para ela, a mesma coisa, eu percebi que
talvez ela tenha querido dizer que tanto o
bem quanto o mal são essenciais ao nosso
crescimento. Talvez o mal seja mais
importante ainda. É ele que nos torna
fortes. No monte de lixo, eu perdi tudo, mas
principalmente todos os medos que tinha,
inclusive o de não agradar aos outros depois
de me esforçar muito para atender às suas
expectativas. As expectativas alheias não
são problemas meus. Eu ainda quero agradar
aos seres com os quais eu convivo, mas não
sofro se não tiver êxito nisso.
Eu
deixei no lixo os dois maiores medos que
podemos ter: o do futuro e o da morte.
Não tenho mais medo do futuro porque sei que
haverá o bem e o mal em cada esquina que
cruzar, e ambos serão bem-vindos para o meu
crescimento. Não tenho mais medo da morte
porque sei que não morrerei.
Nada nem ninguém - nem mesmos os deuses
chicoteadores de orquídeas e pessoas
incrédulas -, vão conseguir apagar o que foi
a minha existência e o orgulho que eu tive
dela! Isso está registrado em algum lugar do
espaço-tempo, e pronto! Isso é mais dos que
suficiente para satisfazer o meu desejo de
eternidade. Enquanto começava a me decompor
naquele monte de lixo, em vez de dor, eu
sentia o Universo me abraçando através dos
braços da mãe Terra. Foi o abraço mais
maravilhoso que já experimentei!
Sim,
cheguei a lamentar não ter morrido! Mas não
lamento ter sobrevivido! Agora vejo tudo com
mais clareza e só tenho um único medo: o de
ter medo! Acho que o sentido da minha vida é
esse: não ter medo! Se não tivesse
sobrevivido, eu não poderia contar a minha
história! E eu tenho muito orgulho dela!
Hoje me sinto conectada a tudo e a todos,
tanto no presente quanto no passado e no
futuro! Não sou apenas uma orquídea que
carrega bilhões de anos de informações em
seus genes!
Sou um
ser que faz parte de todos os outros seres e
de todas as estrelas e corpos celestes do
Universo! Como agradecer por tudo isso?
Sendo uma flor, sem medo!
Muito obrigado, Roberto Leal!
Fábio d'Abadia de Sousa
Aos seis anos de
idade, em plena década de 70 do século
passado, numa cidade do interior do
Centro-Oeste brasileiro, eu aprendi que
Lisboa, a capital portuguesa, era uma cidade
“cheia de encantos e belezas”. Quem me
ensinou isso foi o cantor Roberto Leal, com
a canção
Lisboa antiga
(composição de autoria de José Galhardo, Amadeu do Vale e Raúl Portela).
Quarenta e quatro
anos depois eu pude comprovar, pessoalmente,
as observações de Roberto Leal sobre Lisboa.
Foi com Roberto também que aprendi muitas
outras coisas sobre Portugal, como por
exemplo, que o sotaque dos nativos
portugueses causou em mim, nas primeiras
vezes que o ouvi, a impressão de que se
trata de uma língua muito mais bonita do que
a que se fala no Brasil, e que parece que
não é falada, mas cantada!
E quando ouvia a
Língua Portuguesa, cantada na voz de Roberto
Leal, parecia mais linda ainda. Linda e
alegre! Como o meu primeiro contacto com a
canção
Lisboa antiga
foi através de Roberto Leal, que era um
cantor muito popular no Brasil, tive uma
impressão diferente da que teria se tivesse
conhecido a mesma canção na versão da genial
Amália Rodrigues, que é um fado - e que só
vim tomar conhecimento muitos anos mais
tarde. O ritmo dançante de Roberto fez com
que a primeira de impressão que tive de
Lisboa foi a de uma cidade alegre, o que
pude comprovar anos depois. É claro que a
capital portuguesa também se apresenta, em
certos lugares, vestida num forte figurino
de fado. Entre as várias capitais europeias
que conheci, como Londres, Paris, Madrid e
Roma, Lisboa me pareceu a mais alegre.
Nunca consegui ver
Roberto Leal como estrangeiro, pois cresci
ouvindo e assistindo ao seu trabalho na
televisão e rádio brasileiros, assim como
acompanhava a carreira de Roberto Carlos. O
estilo dançante e sorridente de Roberto Leal
combina muito com a alegria brasileira,
principalmente das crianças, como eu, aos
seis anos de idade, que tentava imitar um
pouco das belas coreografias de Roberto.
“Ai, bate o pé\ bate o pé\bate o pé\Ai, bate
o pé, faça assim como ...”.
Senti muito a partida
de Roberto Leal. Ele faz parte de um período
que foi, para mim, de descobrimentos do
mundo. Com sua voz e suas danças, eu
conheci muito de Portugal, um lugar que
parecia, para mim, muito, muito distante.
Mas não era! O cantor me guiava pela “Lisboa
de ouro e de prata”, cujo “semblante se
retrata no cristalino azul do Tejo”. O
Portugal de Roberto era tão encantador
quanto o Portugal que conheci há dois anos.
E enquanto caminhava pelas ladeiras da
cidade que ressurgiu das cinzas, já aos meus
49 anos, o canto de Roberto Leal fazia
renascer o menino de seis anos e o artista
me guiava: “olhai, senhores, esta Lisboa de
outras eras...”
Socorro, socorro, o meu país está em chamas!
Fábio d'Abadia de Sousa
Geralmente, só percebemos o real valor das coisas quando as perdemos. Eu nunca imaginei que o ar fresco poderia faltar no planeta! Mas ele começa a faltar para mim! Pelo menos é assim que me sinto no meu país! Neste país, que é um dos que apresentam algumas das mais exuberantes florestas da Terra, o que se vê no horizonte é aproximação de uma grande onda de destruição. Implacável e avassalador, o tsunami de fogo, poeira, fumaça, tiros (e muito ódio) se aproxima! Eu tento fugir! Mas tropeço e caio! Tento ignorar, como muitos fazem - inclusive o Supremo Tribunal Federal, a Câmara dos Deputados e o Senado - mas não consigo!
São tantas agressões diárias e recorrentes a grupos minoritários, como os indígenas, gays, idosos, jornalistas, artistas, estudantes, professores, negros, mulheres, sobreviventes das torturas da ditadura militar de 1964, etc. Como fingir que isso não está acontecendo? Impossível! Principalmente quando o oxigênio começa a faltar no ar. Todo vez que lembro que mais de 50 milhões de eleitores votaram nesta pessoa que lidera a gigantesca onda de destruição, o ar me falta completamente. Quase desmaio! Essa pessoa jamais escondeu sua ideologia nazi-facista. Então, há mais de 50 milhões de cúmplices desta massiva onda de ódio que toma conta do meu país. Esta constatação é a que mais entope os meus pulmões com o gás carbônico da floresta em chamas.
Enquanto a fauna e flora riquíssimas viram cinza, eu fico imaginando até quando a cumplicidade desta multidão rancorosa vai continuar. Até a última árvore das terras dos indígenas queimar? Até o último jovem negro ser assassinado? Até o último homossexual ser apedrejado em praça pública pela enorme horda de evangélicos (com a bíblia debaixo do braço) que apóia o “mito”? Até o último jornalista ser censurado? Até o último artista ser agredido no palco? Até o último professor ser afrontado em sala de aula pelos defensores da “escola sem partido”? Até o último opositor ser preso? Até o último crítico ser calado nas redes sociais pelos linchadores virtuais?
A estratégia dos militantes do Partido do Ódio é serem extremamente agressivos com qualquer um que os contrarie ou ameace (real ou imaginariamente), mesmo que seja apenas uma inofensiva professora, como foi o caso da primeira dama da França Brigitte Macron, esposa do presidente Francês Emmanuel Macron, um dos poucos líderes estrangeiros a chamar a atenção para a completa falta de preparo daquele que assumiu a presidência do meu país. Aliás, polidez e elegância não fazem parte do vocabulário e do comportamento dos bárbaros à frente do governo do meu país. Mil desculpas professora Brigitte Macron! Muito obrigado Emmanuel Macron!
Enquanto isso, a floresta queima! Os meus pulmões ardem e a minha respiração falha. Mas, mesmo sufocado, vou lutar e me posicionar contra o Partido do Ódio! Enquanto tiver força, vou enfrentar! Mesmo que me matem, o que importa para mim é que não fui omisso diante dos nazi-fascistas que tomaram conta do meu país.
No meu país, a exuberante floresta arde em chamas e eu mal consigo respirar...
* Foto: Ramon Aquim in https://amazoniareal.com.br
Saudades de Portugal e a alegria de assistir a uma telenovela portuguesa na televisão aberta brasileira
Fábio d'Abadia de Sousa
A
televisão aberta brasileira, mais
especificamente a Band, está a
exibir, desde 15 de julho de 2019, em
horário nobre, a telenovela portuguesa
Ouro Verde, de autoria de Maria João
Costa e direção de Hugo de Sousa. Esta
telenovela é um marco, pois parece iniciar
uma fase em que o Brasil, que há anos tem
suas telenovelas exibidas na TV portuguesa,
agora tem a oportunidade de assistir a uma
novela feita em Portugal.
De
qualquer forma, a exibição de Ouro Verde
na TV brasileira é um fato que deve ser
comemorado, pois, de alguma forma é uma
maneira sutil de aproximação de parte da
audiência brasileira do país que “criou” o
Brasil. Uso aqui a palavra “criou”, (em vez
dos termos usuais dos historiadores, como
“colonizou”, “descobriu”, “conquistou”,
“explorou”, “escravizou”, “dizimou”, etc),
pois sou um brasileiro que já viveu em
Portugal e que se apaixonou profundamente
pelo povo português e que, talvez por esta
paixão tão forte, consegue ver no povo
português principalmente a figura do
desbravador de indomáveis oceanos e terras
longínquas que se acreditavam indomáveis.
Sei
que a colonização teve momentos de
extremismos de violência, principalmente
contra os nativos brasileiros e os escravos
dilapidados da Mãe África. Nunca negarei
isso! Mas depois de morar em Portugal, não
consigo mais não relativizar a relação
Brasil-Portugal. Quem expulsou Dom Pedro II
do Brasil, na minha opinião, a partir da
leitura de autores de
clássicos sobre o assunto, foi uma elite que
queria tomar o poder com objetivo de se
locupletar e não de distribuir a enorme
riqueza do Brasil com os brasileiros! Prova
disso é que o país é um dos 10 mais
opulentos do mundo, mas um dos piores em
termos de distribuição de renda, e lá se
foram 130 anos desde a partida de Dom Pedro
II, na minha visão, o maior governante que o
Brasil já teve, depois de Luiz Inácio Lula
da Silva. Como não puderam expulsar Lula,
prenderam-no injustamente!
Depois de morar em Portugal, passei a
compreender também o lado dos homens e
mulheres portugueses, movidos por uma das
condições humanas mais avassaladoras, o
desejo de descobrir o que está além, talvez
para desafiar a morte e tornar-se parte
daquilo que assusta e fascina. É esta
característica humana, forjada lá no nosso
DNA, que um dia vai nos levar para outros
pontos do oceano sem fim, que é o restante
do Universo. E, do Alenterra, quem
não lembrar do feito inicial dos
portugueses
estará sendo injusto e tendencioso.
Os portugueses e portuguesas não tinha
escolha a não ser jogarem-se no mar, pois
covardia nunca combinou com este povo, que
também traz em sua linhagem o sangue dos
fenícios, dos árabes e
dos romanos.
Sou
um brasileiro de 51 anos, professor do curso
de Jornalismo na Universidade Federal do
Tocantins e que morou em Portugal
parte do ano de 2018, para a realização de
um curso de pós-doutoramento na excelente
Universidade do Algarve, em Faro. Fui
tratado com tanto carinho e respeito
-espontâneos e autênticos - pelos
portugueses, que jamais tive a sensação de
estar num país estrangeiro, mas que estava
de volta para casa, uma casa que eu não
conhecia, mas que parecia reconhecer que nas
minhas veias corre um pouco do sangue dos
desbravadores de séculos atrás. Nos olhares
acolhedores e no sotaque doce e que, às
vezes, parece estar cantando uma canção de
ninar, eu sempre me senti acolhido. Cheguei
a comentar com os meus orientadores, os
maravilhosos professores doutores Carolina
Sousa e Francisco Gil, que eu tive, muitas
vezes, a sensação de já conhecê-los. Os dois
formam para mim uma síntese do povo
português que conheci em várias regiões do
País: pessoas reservadas, simples,
esforçadas (pois trabalham muito),
acolhedores e carinhosos com a família e até
com estranhos (como foram comigo!).
Exatamente a família que gostaria de ter!
Antes de morar em Portugal, eu sempre fazia
questão de me definir fisicamente apenas
como um negro-índio (e com muito orgulho!),
apesar de que nos meus traços físicos
predominam características mais acentuadas
do elemento africano. Mas a ciência já
comprovou que, queiramos ou não, nós,
brasileiros típicos, (antes das grandes
imigrações italiana, alemã e japonesa e de
outros povos afetadas pelas duas grandes
guerras mundiais do século XX), temos, quase
todos, o sangue formado pela junção dos DNAs
de portugueses, indígenas e africanos.
Depois da minha estada em Portugal, eu faço
questão de reconhecer que tenho também o
sangue português. Gosto de brincar comigo
mesmo que agora sou completo, pois herdei do
negro a resiliência a situações difíceis; do
indígena, me veio uma ligação profunda com a
Terra e a Natureza; e, do português, a
capacidade de sonhar, principalmente em
desbravar mundos distantes nos quais a
felicidade parece se esconder. Mas, com os
portugueses aprendi também que o Brasil tem
um vínculo eterno com Portugal. Um vínculo
que vem do sangue de nossos antepassados
comuns e que elites egoístas, gananciosas e
que só pensam em poder não são capazes de
dissolver!
Em
Portugal, os portugueses têm enorme respeito
pelo Brasil e pelos brasileiros e adoram
ressaltar a nossa grandiosidade (que nem
sempre nós, brasileiros, prestamos atenção).
Mas, eu gosto, sempre que posso, de
ressaltar que grandes são os portugueses,
que um dia deixaram suas terras, se jogaram
no oceano e realizaram feitos incríveis,
como a “criação” do Brasil!
É por isso que comemoro a chegada ao Brasil da telenovela Ouro Verde! Espero que venham muitas outras novelas portuguesas (sem dublagem, pelo amor de Deus!) para que possamos, nós, brasileiros conhecer um pouquinho melhor este país que nos “criou”! Amo absolutamente o povo português! Obrigado por terem me tratado como se eu fosse especial!
O que teria acontecido com Bette Davis?
Fábio d'Abadia de Sousa
Uma das vaidades humanas mais intrigantes é a de desejar não ser esquecido após a morte. E não é que as novas tecnologias da informação têm tornado um pouco mais real esta aspiração! Indiferentes se estamos vivos ou não, nossas poses e trejeitos, ostentados nos nossos selfies e vídeos, permanecem nas redes sociais. Numa eventual situação de falecimento, por exemplo, caso um familiar do morto não solicite formalmente a retirada das imagens das redes, elas lá continuam, numa sobrevivência simbólica, através de suas imagens.
Acreditamos que essa “sobrevida simbólica” começou desde que os franceses anunciaram, em1839, a invenção da fotografia, chamada, então, de daguerreótipo, numa referência a Louis Jaques Mandé Daguerre (1787-1851), o francês que aperfeiçoou o processo de captação, pela luz, de cenas da realidade visível, iniciado por vários inventores ao redor do mundo, mas principalmente por Joseph Nicéphore Nièpce (1765-1833).
Parece que, com as redes sociais e a suposta “eternidade” das imagens, a morte não apaga mais totalmente aquilo que fomos. Pelo menos na rede é possível a nossa continuidade! E isso não é pouco, já que os contatos via plataformas digitais se intensificam cada vez mais e, em muitos casos, já substituem as relações reais. Caso tenhamos saudades de alguém falecido que amávamos (e/ou continuamos a amar), uma rápida visita ao seu perfil no Facebook ou no Instagram talvez amenize um pouco a dor da separação. Será?
De qualquer forma, as redes sociais - que têm modificado o comportamento humano em quase todos os ramos - parece que também têm influenciado a nossa forma de lidar com a morte. Percebe-se, por exemplo, que aumentamos o nosso culto aos mortos que um dia foram celebridades no cinema, televisão, música, artes plásticas, esportes, etc. Isso ocorre talvez em virtude da disponibilidade de acesso quase ilimitado a informações visuais dessas pessoas, antes restritas a pequenos grupos da mídia.
Nas redes sociais, são milhares de páginas e canais dedicados a exaltar, diariamente, com fotografias e vídeos, pessoas como Elvis Presley, Marilyn Monroe, Vivien Leigh, Fred Astaire, Elisabeth Taylor, John Lennon, Frank Sinatra Ayrton Senna, Michel Jackson, Amy Winehouse, Frida Kahlo, etc. Esta última é detentora de perfis feitos por pessoas das mais variadas partes do mundo. Surpreendentemente, Frida (1907-1054), que, em vida, dedicou-se mais às artes plásticas, é cultuada, principalmente por jovens, talvez pela sua personalidade forte e insubordinada e, é claro, pela sua original elegância na forma de se apresentar em público, com roupas e acessórios de moda feitos por ela mesma, até hoje considerados chiques e de extremo bom gosto. Considerada uma das pioneiras do feminismo, a artista mexicana também inspira a juventude por ter sido uma pessoa que não se deixou abalar pelos enormes percalços que enfrentou em vida depois de ter sido atropelada por um veículo pesado.
Uma das estrelas do cinema já falecida e com mais seguidores no Instagram parece que é a norte-americana Bette Davis (1908-1989). Considerada uma das melhores atrizes de todos os tempos, a artista é referência principalmente por sua atuação como mulher malvada e de olhos incrivelmente lindos e sedutores. Em muitas de suas entrevistas, cujos trechos são compartilhados diariamente nas redes sociais, Bette Davis fazia questão de ressaltar que o exemplo de beleza feminina invejável no cinema não era ela, mas Audrey Hepburn (1929-1993). Os milhares de criadores de perfis e de seguidores de Audrey Hepburn concordam absolutamente com Betty Davis. O culto a Audrey a coloca num patamar superior a qualquer estrela do cinema que já viveu, acima, inclusive, de Marilyn Monroe (1926-1962), outra campeã de acessos nas redes sociais.
Os adoradores dessas celebridades não as tratam como pessoas que já faleceram, mas como gente absolutamente viva. Mas será que não estão vivas mesmo? As redes sociais potencializaram para outras celebridades aquele mito que só Elvis Presley (1935-1977) parecia ter conquistado: o de que está vivo e recluso em algum lugar e que, a qualquer momento que achar conveniente, poder aparecer.
Será que esta situação paradoxal de aparente indiferença se uma celebridade está morta ou viva pode chegar também a nós, mortais comuns? Talvez sim! Quem um dia foi fotografado, e esta imagem está acessível a alguém, não morre completamente, pois sua lembrança continua em outras pessoas. De alguma forma, a fotografia nos trouxe um pouco de eternidade, quer os deuses gostem ou não! E as redes sociais potencializaram isso! Então, assim como Bette Davis, Frida Kahlo, Audrey Hepburn e Elvis Presley, parece que conquistamos o direito de não morrermos completamente.
O que somos senão uma coleção de memórias?
Fábio d'Abadia de Sousa
“Se você pudesse, você abriria mão das suas memórias mais tristes e desagradáveis?” Ao ouvir esta pergunta, feita a mim, por um amigo, no final do ano passado, sem pensar muito, eu dei uma resposta afirmativa. Mas, depois, comecei a refletir melhor e percebi o quanto memória é assunto sério e complexo.
A chegada aos 50 anos, em 2018, foi, para mim, um momento divisor de águas. Por mais que tentasse me esconder de Chronos, constatei, com mais atenção, que ele (implacavelmente) esteve sempre ao meu lado e começou a ressaltar em mim os traços característicos desta idade: cabelos brancos, calvície, rugas, pele flácida, etc.
Mas nada disso me assustou tanto quanto uma crise de perda de memória. Passei a esquecer coisas simples do dia a dia, mas fundamentais para a sobrevivência de uma pessoa que, como eu, optou por morar só (optei mesmo: antes só que mal acompanhado), como, por exemplo, desligar o gás ou trancar a porta de casa antes de sair ou dormir. Passei a perder cartões de banco e smartphones quase todas as semanas. Esquecia até de comer!
Certo dia, quando tirava a poeira de alguns móveis da sala incrivelmente bagunçada, encontrei, debaixo de uma panela de barro que serve como artefato de decoração, uma quantia de R$ 500,00, o que corresponde a mais ou menos a cem euros. Para um brasileiro, é uma quantia considerável (é a metade de um salário mínimo, a remuneração de quase metade da população brasileira economicamente ativa). As duas únicas possibilidades de esse dinheiro ter sido encontrado na minha casa eram: ou eu o coloquei lá ou o Papai Noel me visitou. Eu sempre acreditei em milagres e magias, e situações vividas ao longo de minha existência comprovam que, para mim, eles existem! Mas, no caso específico do dinheiro encontrado, sou mais tentado a pensar que eu mesmo saquei a referida quantia e a guardei, mas simplesmente esqueci que fiz isso.
Esta situação me deixou muito alarmado, principalmente depois que uma médica me advertiu que talvez pudesse ser o início de um caso de demência. “Mas aos 50 anos?” “Sim, há casos de Mal de Alzheimer até mesmo antes desta idade”, respondeu a neurologista. Tive que me submeter a vários exames para comprovar ou não a suspeita. Enquanto os resultados não saíam, passei a imaginar as conseqüências assustadoras da falta de memória. Foram 15 longos dias de apreensão. O mais tenebroso para mim seria depender de outras pessoas. Logo eu, tão orgulhoso de ser dependente apenas de Deus e de mim mesmo!
Acredito que a resposta para seja lá o que somos, fomos ou seremos está na nossa memória, e perdê-la ainda em vida é perder a nós mesmos. Henri Bergson, na obra Matéria e memória (Martins Fontes, 1999, p. 88-90) aponta que temos dois tipos de memória: uma que imagina e outra que repete “A primeira registraria, sob forma de imagens-lembranças, todos os acontecimentos de nossa vida cotidiana à medida que se desenrolam...”. O segundo tipo de memória é a que, ao invés de representar o nosso passado, ela o encena. “Para evocar o passado em forma de imagem, é preciso poder abstrair-se da ação presente, é preciso saber dar valor ao inútil, é preciso querer sonhar”.
Pelo o que eu entendi da minha situação de falta de memória, e que pareceu comprometida foi a do primeiro caso detalhado por Bergson, a que registra acontecimentos rotineiros. Tal situação teria ocorrido, conforme constatei posteriormente, em virtude da necessidade de produção de trabalhos acadêmicos em tempo muito exíguo, já que sou um procrastinador e que, geralmente, deixo quase tudo para a última hora. Quando mais jovem e sob pressão, eu sempre conseguia produzir muito em pouco tempo, mas agora não. Outra conseqüência da chegada ao meio século de vida!
Quando, finalmente, recebi os resultados dos exames neurológicos, respirei aliviado. Foi descartada, pelo menos por enquanto, qualquer possibilidade de Mal de Alzheimer. Passei a tomar alguns remédios, conforme prescrição médica, e percebo que a memória já está menos falha. Tal situação foi importante para que eu refletisse melhor sobre as dificuldades que enfrentam as famílias com pessoas com Alzheimer. Passei também a prestar mais atenção sobre o quanto somos definidos pelas memórias acumuladas ao longo da vida. Boas ou ruins, somos uma coleção de lembranças acumuladas na nossa existência.
Não, eu não abriria mão de minhas memórias de situações difíceis que atravessei. Depois de refletir muito sobre o assunto, conclui que o melhor que se pode fazer a respeito é lutar para que os eventuais traumas sejam superados e que, assim como as cicatrizes físicas, elas se tornem apenas lembranças de que superamos momentos difíceis e que ficamos mais fortes e sábios por causa disso.